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A dupla dimensão do movimento latino-americano de história das ideias

Resumos

O presente artigo tem como propósito oferecer uma análise sobre a dupla dimensão do movimento intelectual de história das ideias, organizado na América Latina por volta da década 1940, sob a liderança destacada do filósofo mexicano Leopoldo Zea (1912-2004). A primeira dimensão, denominada 'projeto disciplinar', expressa os fundamentos de uma história das ideias latino-americana como disciplina específica, abarcando os pressupostos filosóficos, epistemológicos, teóricos e metodológicos que lhe deram sustentação. Já a segunda dimensão, denominada 'projeto extradisciplinar', caracteriza-se pela função pragmática e identitária atribuída pelos representantes do movimento à história das ideias latino-americana. A reflexão sobre as íntimas relações entre essas duas dimensões ou projetos, ou seja, entre a disciplina História das Ideias e suas funções, constitui, em última instância, o objetivo principal deste trabalho.

História das Ideias; pensamento latino-americano; movimento intelectual


The goal of this article is to analyze the double dimension of the intellectual movement of History of Ideas, organized in Latin America in the 1940s, under the leadership of the prominent Mexican philosopher Leopoldo Zea (1912-2004). The first dimension, known as 'disciplinary project,' sets the grounds for a history of ideas in Latin America as a specific subject, including the philosophical, epistemological, theoretical, and methodological assumptions used as a foundation for his work. The second dimension, called 'extradisciplinary project,' is characterized by a pragmatic as well as an identity function assigned to the Latin American history of ideas by the representatives of the movement. Ultimately, the main objective of this work is to reflect upon the intimate relationship between these two dimensions or approaches, that is, between the History of Ideas discipline and its functions.

History of ideas; Latin American thought; intellectual movement


ARTIGOS

A dupla dimensão do movimento latino-americano de história das ideias1 1 Este artigo é resultado parcial de pesquisa que contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

The double dimension of the Latin American movement of History of Ideas

Eugênio Rezende de Carvalho

Doutor em História Social das Ideias (UnB), pós-doutorado (USP). Universidade Federal de Goiás (UFG) - Campus II - Faculdade de História - Caixa Postal 131. 74001-970 - Goiânia - GO - Brasil. eugenio.carvalho@pq.cnpq.br

RESUMO

O presente artigo tem como propósito oferecer uma análise sobre a dupla dimensão do movimento intelectual de história das ideias, organizado na América Latina por volta da década 1940, sob a liderança destacada do filósofo mexicano Leopoldo Zea (1912-2004). A primeira dimensão, denominada 'projeto disciplinar', expressa os fundamentos de uma história das ideias latino-americana como disciplina específica, abarcando os pressupostos filosóficos, epistemológicos, teóricos e metodológicos que lhe deram sustentação. Já a segunda dimensão, denominada 'projeto extradisciplinar', caracteriza-se pela função pragmática e identitária atribuída pelos representantes do movimento à história das ideias latino-americana. A reflexão sobre as íntimas relações entre essas duas dimensões ou projetos, ou seja, entre a disciplina História das Ideias e suas funções, constitui, em última instância, o objetivo principal deste trabalho.

Palavras-chave: História das Ideias; pensamento latino-americano; movimento intelectual.

ABSTRACT

The goal of this article is to analyze the double dimension of the intellectual movement of History of Ideas, organized in Latin America in the 1940s, under the leadership of the prominent Mexican philosopher Leopoldo Zea (1912-2004). The first dimension, known as 'disciplinary project,' sets the grounds for a history of ideas in Latin America as a specific subject, including the philosophical, epistemological, theoretical, and methodological assumptions used as a foundation for his work. The second dimension, called 'extradisciplinary project,' is characterized by a pragmatic as well as an identity function assigned to the Latin American history of ideas by the representatives of the movement. Ultimately, the main objective of this work is to reflect upon the intimate relationship between these two dimensions or approaches, that is, between the History of Ideas discipline and its functions.

Keywords: History of ideas; Latin American thought; intellectual movement.

Tal es también, el programa que la historia de nuestras ideas ha hecho expreso. Un programa, de desenajenación, de descolonización, que va implícito en la toma de conciencia del cómo nuestros pueblos, los pueblos de esta América Latina, han recibido y asimilado las expresiones de otras culturas. La forma como estos pueblos, pese a todo, han hecho suyos, adaptándolos a su ineludible personalidad, valores con los que se quiso justificar dominaciones y dependencias. Toma de conciencia que nos ha ido permitiendo hacer, de tales valores, expresiones de nuestra propia personalidad, ineludibles complementos de ella.

Leopoldo Zea

A produção e a publicação de estudos no campo da história das ideias têm sido abundantes no contexto dos países hispano-americanos e até mesmo em alguns centros europeus e estadunidenses, em que pese não se possa dizer o mesmo no âmbito do Brasil. Entretanto, poder-se-ia supor que pelo menos a expressiva tradição ou vertente latino-americana da história das ideias, por encontrar-se difundida por praticamente todo o continente americano a partir de meados do século XX e, sobretudo, por contar em seus primeiros momentos com a participação de alguns eminentes intelectuais brasileiros,2 2 É o caso, por exemplo, do filósofo João Cruz Costa (1904-1978), que foi catedrático de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de vários trabalhos sobre a história das ideias no Brasil. fosse mais conhecida nos meios acadêmicos do Brasil.

O historiador brasileiro Francisco Calazans Falcon, por exemplo, ofereceu-nos, em trabalho publicado em 1997

Consideramos que mesmo as eventuais dificuldades em situar a história das ideias latino-americana como um campo da disciplina histórica não justificam tal omissão no âmbito dos balanços historiográficos realizados no Brasil, e nem mesmo constituem um obstáculo ao seu estudo numa perspectiva historiográfica. Sobretudo se consideramos que o próprio movimento intelectual ao qual ela esteve vinculada já forma, por si só, um objeto legítimo da investigação histórica. Tal foi o contexto de inquietação e, ao mesmo tempo, de motivação, que marcou nossa decisão e empenho em desenvolver uma pesquisa sobre o movimento latino-americano de história das ideias, da qual este artigo é um resultado parcial.

Apesar do seu pouco conhecimento no Brasil, essa vertente latino-americana de história das ideias - cujos principais expoentes foram os filósofos Leopoldo Zea (1912-2004), do México, Arturo Ardao (1912-2003), do Uruguai, e Arturo Andrés Roig (1922-), da Argentina - conta já com uma longa tradição, projeção e história. Na verdade, muito além de uma mera vertente particular da história das ideias, constituiu-se mesmo em um movimento organizado, que associou o seu projeto de uma história das ideias latino-americana a perspectivas de autoafirmação nacional e continental.

Entende-se aqui por movimento um conjunto de ações articuladas por um grupo de intelectuais com o propósito de executar um plano ou um programa previamente acordado. Tais ações foram, por exemplo, fundar instituições - dentro e fora dos meios universitários - e produzir eventos e publicações.4 4 Entre as principais instituições fundadas e dirigidas pelos líderes do movimento encontram-se o Comité de História de las Ideas do Instituto Panamericano de Geografía e Historia (IPGH), fundado em 1947, além da Sociedad Latinoamericana de Estudios sobre América Latina y el Caribe (cuja sigla adotada mais tarde seria Solar) e a Federación Internacional de Estudios sobre América Latina y el Caribe (Fiealc), ambas criadas em 1978. No âmbito dos eventos, destacou-se, entre outros, o Primer Seminario de Historia de las Ideas en América, realizado em Porto Rico em 1956. Já no campo das publicações, tivemos, além da Revista de História de las Ideas en América, fundada em 1959, dezenas de coletâneas e livros individuais abordando a história das ideias, produzidos por representantes do movimento. Tudo com o propósito de promover o intercâmbio dos pesquisadores latino-americanos da história das ideias, bem como a própria disciplina, incluindo aquilo que ela reivindicava como sua função básica: divulgar um determinado projeto de identidade latino-americana.

A emergência desse movimento pode ser situada na década de 1940, no contexto intelectual marcado por um acalorado debate filosófico. Sob a influência do historicismo, sobretudo na perspectiva do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), o impulso alcançado pelos estudos filosóficos na América Latina nesse período esteve vinculado à consolidação de uma consciência filosófica latino-americana que valorizou a reflexão sobre a sua própria produção intelectual em relação com as matrizes do pensamento filosófico europeu. Tal consciência filosófica esteve, por sua vez, acompanhada de um modo peculiar de entender a filosofia - marcadamente influenciada pela perspectiva apontada por Juan Bautista Alberdi (1810-1884) em meados do século XIX5 5 Em seu ensaio intitulado Ideas para presidir a la confección del curso de filosofía contemporânea, publicado em Montevidéu, em 1842, esse filósofo argentino declarou não haver filosofia universal, defendendo a existência de uma filosofia americana que tinha como função "resolver o problema dos destinos americanos". Texto Disponível em www.hacer.org/pdf/Ideas.pdf ; acesso em 9 nov. 2010. - como reflexão sobre os problemas concretos do contexto específico de quem a produz, em contraposição à concepção universalista abstrata preponderante na matriz filosófica europeia.

Como parte desse processo - funcionando como pano de fundo, como um fator externo decisivo para o surgimento do movimento, interpelando e inquietando seus iniciadores e promotores -, encontrava-se uma velha polêmica bastante recorrente entre a intelectualidade hispano-americana, desde meados do século XIX. Tratava-se da tendência de opor o caráter 'importado' ao caráter 'autóctone' do pensamento e da produção intelectual latino-americana, buscando, para tal, especificidades, nacionais ou latino-americanas, em relação ao pensamento europeu.

Assim, partindo de uma peculiar definição de filosofia, os integrantes do movimento latino-americano de história das ideias passaram a defender não apenas a simples existência, mas também o caráter original de uma filosofia latino-americana, forjando uma consciência filosófica apoiada na elevação da autoestima e repelindo qualquer tese de inferioridade. A propósito, o principal líder do movimento, Leopoldo Zea, escreveu:

La pregunta sobre la originalidad, el sentimiento de inferioridad y otras expresiones de las reflexiones del hombre de esa parte del mundo no era sino expresión de una realidad que, al hacerse consciente, mostrarían a otros hombres una situación, un punto de partida de un reflexionar distinto, pero no por ello menos filosófico, menos expresión de lo humano por excelencia.

Considerando a existência dessa filosofia latino-americana, ela poderia então ser historiada, e o objeto de tal história consistiria nas ideias expressas pelos pensadores - no caso, latino-americanos -, no processo de reflexão sobre a sua própria realidade social e histórica, com o propósito de apreendê-la e de dar solução aos seus problemas concretos.

Tais foram, em síntese, alguns dos pressupostos fundamentais que motivaram e orientaram, durante várias décadas, as ações do movimento latino-americano de história das ideias. Contudo, no âmbito deste artigo, não temos a pretensão de oferecer uma síntese histórica desse movimento - o que já realizamos em outro trabalho.

Em primeiro lugar, nos propomos a explorar o que se denominou 'projeto disciplinar' do movimento, ou seja, os fundamentos da proposta de uma história das ideias latino-americana como disciplina específica, abarcando os pressupostos filosóficos, epistemológicos, teóricos e metodológicos que lhe deram sustentação. Em segundo lugar, pretendemos analisar o que se rotulou de projeto 'extradisciplinar', ou seja, a função pragmática atribuída pelos seus próprios representantes à história das ideias latino-americana. Evidentemente, as análises individuais de cada um desses projetos - 'disciplinar' e 'extradisciplinar' - não podem prescindir de uma reflexão acerca de suas interconexões.

O PROJETO DISCIPLINAR

Para caracterizar o que neste texto se denomina projeto disciplinar do movimento latino-americano de história das ideias, torna-se necessário resgatar sumariamente alguns pressupostos teórico-metodológicos que lhe deram sustentação. Tais fundamentos epistemológicos devem ser buscados nos estudos empíricos realizados nesse campo pelos principais representantes do movimento, levando em conta as diferentes etapas das suas produções, com destaque não só para as obras de Leopoldo Zea, Arturo Ardao e Arturo Andrés Roig, mas também para alguns documentos programáticos e textos teóricos, produzidos individual ou coletivamente.

Consideramos que, ao menos até meados da década de 1970, tal projeto disciplinar esteve assentado basicamente sobre os seguintes pressupostos:

1) concepção de uma história das ideias entendida como historia das ideias filosóficas, história do pensamento filosófico ou até mesmo, simplesmente, história da filosofia;

2) noção bastante historicizada, contextualizada, relativizada e pragmática dos conceitos de ideia filosófica, pensamento filosófico e filosofia;

3) adoção do circunstancialismo e do método generacional de Ortega y Gasset, bem como dos fundamentos do historicismo alemão de Wilhelm Dilthey (1833-1911) e da sociologia do conhecimento do húngaro Karl Mannheim (1893-1947);

4) delimitação do seu objeto às ideias (ideias filosóficas, pensamento filosófico ou filosofia) especificamente latino-americanas;

5) eleição de certos pensadores ou intelectuais latino-americanos dos séculos XIX e XX (curiosamente em sua maioria não filósofos) como os sujeitos enunciadores das ideias a serem historiadas.

Para Roig, a história das ideias foi uma forma particular, latino-americana, de historiar a filosofia - ou o pensamento filosófico - da América Latina, em substituição à tradicional e acadêmica história da filosofia.

Em suma, para os três principais representantes do movimento, considerando seus textos programáticos e suas pesquisas empíricas nesse campo (pelo menos na etapa inicial de sua produção, sobretudo no caso de Zea e Roig), a história das ideias latino-americana se identificava praticamente com uma história das ideias filosóficas, ou com uma história do pensamento filosófico, ou, enfim, com uma história da filosofia latino-americana, apesar de terem assumido, conforme veremos adiante, uma concepção bastante peculiar do que seriam ideias filosóficas, pensamento filosófico e filosofia.

Para outros representantes do movimento, como o filósofo peruano Francisco Miró Quesada (1918-), a história das ideias chegava a se constituir numa das correntes da filosofia latino-americana contemporânea (a ele), que se converte em uma matriz para outras tendências filosóficas de meados do século XX: a 'filosofia do americano' e seus desdobramentos posteriores, sob a forma de uma 'filosofia da libertação' ou de uma 'filosofia terceiro-mundista' ou 'filosofia da independência'. Tal movimento historiográfico seria assim, segundo Miró Quesada, uma das manifestações mais características do pensamento latino-americano.

La tradición fecunda de la historia de la filosofía latinoamericana se hunde en un enfoque disciplinario que adquiere torsiones específicas en la región: la historia de las ideas. Como esta disciplina se ha cultivado privilegiando las ideas filosóficas, se puede afirmar que, en líneas generales, las denominaciones historia de las ideas e historia de las ideas filosóficas se superponen o aluden a la misma labor historiográfica. ... A punto tal, que hablar de filosofía latinoamericana se ha vuelto prácticamente inescindible de referencias - no siempre bien fundadas - a la historia de las ideas.

Porém, muito embora a delimitação do território disciplinar da história das ideias vinculasse-a ao campo da filosofia, aquela não se confundiu totalmente com esta, porque a concepção de filosofia predominante no interior do movimento latino-americano de história das ideias era bastante peculiar, sobretudo em razão de seu viés historicista ou orteguiano. Em outras palavras, não obstante ter sido realizada majoritariamente por filósofos, essa vertente da história das ideias na América Latina não se identificou com uma história das ideias restrita ao estudo do pensamento sistemático, ou seja, das ideias geralmente expostas em tratados filosóficos, conforme a tipologia de Robert Darnton.

Tal concepção particular de filosofia (ou de ideia ou pensamento filosóficos), à parte de sua função pragmática, apoiava-se fundamentalmente na defesa do caráter concreto, relativista, historicizado e contextualizado de toda produção filosófica, bem como, consequentemente, na crítica ao caráter universalista abstrato assumido pela filosofia ocidental de matriz europeia. Em 1983, no seu discurso no encerramento do XVII Congresso Mundial de Filosofia, em Montreal, Canadá, Zea relembrou, retomando a polêmica levantada por Alberdi no século anterior, como aquele evento reafirmara a inexistência de uma filosofia universal, ao proclamar "filosofias concretas que se universalizam à medida que são compreendidas por outros e que compreendem estes outros".

Em suma, esse modo peculiar de entender a filosofia marcou a relação que o movimento estabeleceu entre a história da filosofia e a história das ideias, conforme podemos observar nas palavras de Roig:

Decíamos que se trata de un modo peculiar de entender la filosofía que ha hecho que su historia fuera comprendida justamente como Historia de las ideias y no como la tradicional y académica "Historia de la filosofía". La razón es simple, se quería hacer filosofía e historia de nuestras cosas y, por supuesto, del discurso sobre nuestras cosas. (1994, p.128)

No que diz respeito à definição e à delimitação do objeto 'ideia', oferecidas pelos principais representantes do movimento, devem-se considerar vários aspectos, um dos quais a própria concepção de ideia, como objeto legitimamente historiável. Para Ardao, as únicas ideias historiáveis seriam as que ele chamou de 'ideias-juízo' - pensamentos concretos, (re)ações humanas frente a situações ou circunstâncias determinadas, das quais tais ideias eram inseparáveis - em oposição às ideias puras e abstratas, vistas como esquemas abstratos de pensamento e, portanto, não historiáveis (Ardao, 1984). Para Leopoldo Zea - seguindo a posição de seu mestre, o filósofo espanhol exilado no México José Gaos (1900-1969) - conforme deixa explícito em seus estudos sobre o positivismo no México e na América Latina, as ideias, como objeto de estudo historiográfico, seriam aquelas expressões ou doutrinas filosóficas assimiladas externamente pelo pensamento latino-americano e adaptadas à sua realidade nacional ou regional concreta, transformadas em instrumentos originais para a solução de problemas específicos dessa mesma realidade (Zea, 2000, p.39-40). Há ainda que se registrar aqui a importância do aporte de Gaos, com a sua categoria de pensamento, bastante empregada dentro do movimento como sinônimo de ideia, embora o filósofo espanhol considerasse a história das ideias como um campo mais amplo do que a história do pensamento, já que este último teria como sujeito apenas uma classe particular de indivíduos: a dos pensadores.

Já nas recomendações metodológicas que os principais representantes do movimento latino-americano de história das ideias propuseram como normas para a tarefa historiográfica dentro de seu campo de trabalho - quando convocados pela Unesco, na cidade do México, em 1974 -, depara-se com uma significativa ampliação do objeto 'ideias', não mais restrito às expressões meramente filosóficas, abrangendo vivências, ideologias, concepções de mundo etc. Para Roig, o principal mentor intelectual dessas recomendações, a noção de ideia deveria ser ampliada de forma a abranger também as suas manifestações não filosóficas, no âmbito do discurso cotidiano e não acadêmico.

Outro aspecto relevante, ainda quanto à delimitação do objeto 'ideias', é que segundo o programa disciplinar do movimento tratava-se de uma história das ideias entendidas como ideias latino-americanas, formuladas por sujeitos latino-americanos, carregadas de um sentido de autenticidade e originalidade. Leopoldo Zea, por exemplo, em seu estudo sobre o positivismo no México, ressaltava que tal positivismo deveria ser visto

en una relación muy particular, en una relación parcial, en relación con una circunstancia llamada México; en relación con unos hombres que vivieron y murieron o viven en México, que se plantearon problemas que sólo la circunstancia mexicana en ciertos momentos de su historia podía plantearles.

Tal estudo visava assim identificar a forma peculiar e original - portanto mexicana - com que o positivismo foi assimilado e adaptado a essa realidade pelos pensadores mexicanos. Vinculado a esse aspecto como mais uma característica da história das ideias na América Latina, foi a crescente preocupação em ampliar o seu campo de abrangência para a esfera regional ou continental, superando a tendência inicial de uma história das ideias de tipo nacional, no rumo de uma história das ideias efetivamente cada vez mais latino-americana.

Todas essas questões relacionadas à definição e delimitação do objeto 'ideias' certamente pressupõem uma noção do sujeito histórico portador de ideias. Nos primeiros trabalhos de Roig e praticamente em toda a obra de Zea e Ardao, tais sujeitos são claramente identificados como pensadores ou representantes destacados do pensamento latino-americano. Entretanto, a partir da renovação metodológica da década de 1970, essa noção de sujeito histórico portador de ideias será revista e ampliada, não se restringindo mais aos heróis do pensamento - nas palavras de Roig (1981, p.49-55) -, aos membros de uma elite intelectual, acadêmica ou universitária. Porém, tais revisões e ampliações no âmbito do objeto e dos sujeitos portadores das ideias implicavam consequentemente uma necessidade de renovação e ampliação das fontes utilizadas.

Quanto aos pressupostos teórico-metodológicos mais gerais, além daqueles implícitos nas questões já aventadas, observa-se que o movimento de história das ideias assumiu distintas perspectivas conforme a etapa e os autores considerados. Na etapa inicial do movimento, levando-se em conta os primeiros trabalhos de Roig e os de Zea e Ardao, os estudos nesse campo foram realizados com base em fundamentos teórico-metodológicos derivados principalmente do historicismo de Dilthey, do circunstancialismo de Ortega e da sociologia do conhecimento de Mannheim. Com esses fundamentos teóricos, houve uma rejeição tanto a uma história das ideias descontextualizada quanto a uma pretensa história 'objetiva' das ideias, nos moldes propostos pela Intellectual History estadunidense. De forma geral, tendeu-se a enfocar as ideias a partir de seus vínculos e condicionamentos em face dos seus contextos sociais de produção, enfatizando os seus usos e funções no plano social, político e ideológico.

Como bem salientou Roig, o projeto disciplinar do movimento não apontou para uma 'história imanente das ideias', dentro de uma tradição academicista, voltada para a mera investigação de ondas de influências ou à descrição de correntes filosóficas impulsionadas por uma lógica interna autônoma, muito embora alguns de seus representantes possam ter eventualmente se dedicado ao estudo de certas influências filosóficas europeias no pensamento latino-americano (talvez o próprio Roig em seus primeiros trabalhos).

Es evidente que una historiografia filosófica de tipo tradicional, que se ocupa de hacer un estudio de los sistemas considerados como sustantes en sí mismo, o de describir corrientes de pensamiento entendidas como impulsadas por una especie de dialéctica autónoma, tal como se ha llevado a cabo la historiografía filosófica europea en las universidades latinoamericanas, no hubiera podido mostrar jamás todo este rico conjunto de posibilidades y esta amplia riqueza temática. (Roig, 1991, p.37)

Porém, o projeto disciplinar do movimento, em função de sua perspectiva historicista, tampouco apontou para uma história das ideias erudita, objetiva, empírica ou imparcial.

Desde el punto de vista historiográfico, no se trata de hacer con la historia de las ideas una historiografía erudita e ingenuamente objetiva, con todo lo que involucra tal ingenuidad, como es lo que sucede con tantos que llegan a considerar el juicio de valor como espúreamente subjetivo y reducen su tarea a una descripción que pretende ser imparcial. (Roig, 1991, p.39)

Prova disso foram as polêmicas travadas entre Zea e os representantes da Intellectual History estadunidense, Charles A. Hale (1930-) e William D. Raat. É o caso também do filósofo mexicano Abelardo Villegas - um discípulo de Zea -, que defendeu veementemente o caráter objetivo das ideias como objeto de investigação histórica.

Mesmo assim, alguns dos pressupostos teórico-metodológicos que fundamentaram os primeiros trabalhos nesse campo de estudos na América Latina - em particular, o método generacional e o circunstancialismo de Ortega y Gasset - passaram por uma profunda revisão crítica a partir de meados da década de 1970, sobretudo através de Roig, que já os havia abandonado em sua prática historiográfica. De tais pressupostos talvez tenha permanecido apenas um novo enfoque historicista da história das ideias, de caráter retrospectivo, prospectivo e, principalmente, comprometido.

A partir de meados da década de 1970, o projeto disciplinar foi afetado pelo chamado 'giro linguístico', que trouxe para esse campo de estudos as complexas problemáticas da linguagem e do discurso, embora, de certa forma, tal impacto tenha de ser relativizado em razão de que essas novas orientações não se converteram em uma renovação imediata das práticas historiográficas no campo das ideias. Entre os autores analisados neste trabalho, apenas Roig incorporou esses novos aportes em seus estudos posteriores e na fundamentação de sua prédica em favor da renovação metodológica da história das ideias latino-americana.

Diante do exposto, esse momento de renovação metodológica aberto nos meados da década de 1970 representou, do ponto de vista do projeto disciplinar da história das ideias latino-americanas, um momento bastante crítico em relação aos pressupostos teórico-metodológicos que teriam fundamentado a disciplina em suas etapas iniciais. Significou, em muitos aspectos, o rompimento com uma tradição historiográfica anterior, marcando uma nova etapa em seu desenvolvimento. Diante do baixo índice de reciclagem da maior parte dos integrantes do movimento, os novos apelos por uma renovação metodológica pouco repercutiram nas práticas historiográficas da velha geração de historiadores contemporâneos de Roig.

O PROJETO EXTRADISCIPLINAR

No âmbito deste estudo, denomina-se projeto extradisciplinar do movimento latino-americano de história das ideias o estabelecimento, explícito ou implícito, de certos princípios externos motivadores, legitimadores e reguladores da atividade historiográfica no campo das ideias, definindo as funções que essa disciplina deveria desempenhar. Esse projeto buscou, em última instância, dentro de um processo de autorreflexão teórica, filosófica e especulativa sobre essa prática historiográfica, dar-lhe um sentido no contexto mais amplo de um movimento intelectual latino-americano. Seguindo o mesmo caminho, para caracterizar esse projeto extradisciplinar, torna-se necessário também perscrutar as suas evidências nas ações do movimento, nos documentos coletivos de caráter programático, assim como nos estudos empíricos e teóricos (incluindo os de autorreflexão) produzidos no campo da história das ideias pelos seus principais representantes, levando em conta as diferentes etapas percorridas pelo movimento.

As motivações em prol da emergência, articulação e organização continental desse movimento, a partir da década de 1940 - que integraram o seu projeto extradisciplinar desde a sua etapa inicial - compreendem um amplo leque de variáveis que tiveram como pano de fundo a consolidação de uma consciência e de uma demanda por autoafirmação identitária, em nível tanto nacional quanto continental.

A tomada de consciência desse complexo de inferioridade e a busca de meios para a sua superação se convertiam, naquele momento, nos grandes desafios do movimento. Essa questão do complexo de inferioridade foi central, por exemplo, num livro que chamou bastante a atenção de Gaos e de Zea, El perfil del hombre y la cultura en México (1934), no qual o filósofo mexicano Samuel Ramos (1897-1959) oferecia uma interpretação do mexicano e de sua cultura sob uma perspectiva psicológica. Essa tarefa passava pela afirmação da capacidade dos pensadores latino-americanos para o exercício da filosofia, entendida não como mera cópia dos sistemas filosóficos europeus, mas como expressão de um pensamento autóctone, distinto e original. Isso explica a retomada da polêmica levantada no século anterior por Alberdi sobre a existência de uma filosofia americana, bem como o fato de vários intelectuais latino-americanos se autoproclamarem continuadores do historicismo romântico iniciado por esse filósofo argentino. O exemplo clássico dentro do movimento acerca da retomada da polêmica alberdiana foi o debate travado no final da década de 1960 entre Zea e o filósofo peruano Augusto Salazar Bondy (1925-1974). Na base desse debate radicava a questão da possibilidade de uma história das ideias na ou da América Latina, entendidas já como autenticamente ideias latino-americanas, como expressões de um tipo peculiar do pensamento universal.

Foi nesse contexto que se teria consolidado, segundo Ardao, uma consciência filosófica latino-americana, de marcado viés historicista, que valorizava a autorreflexão sobre a própria produção filosófica continental:

se produce por vez primera con carácter continental, una vuelta sobre sí de la conciencia filosófica latinoamericana; dispersos antecedentes, algunos lejanos, son registrables y han sido registrados, pero es ahora cuando la filosofía latinoamericana se convierte orgánicamente en objeto para sí misma, cuando a la reflexión tradicional, sin dejarla de lado, incorpora su autorreflexión ... Nuestra relación con toda la filosofía y cultura europeas, no ya de tal o cual país, y secundariamente con la filosofía y cultura norteamericanas, quedó puesta en cuestión. Desde el ángulo de la filosofía, viejas confrontaciones adquirieron entonces un sentido nuevo.

Essa consciência, ao superar todo tipo de complexo de inferioridade, impotência e incapacidade, visava revelar ao mundo, em busca de reconhecimento e legitimação, o que seriam as expressões autênticas e originais do pensamento filosófico latino-americano. Apoiada na elevação da autoestima, tal consciência resultou na promoção da tarefa historiográfica de investigar o passado filosófico latino-americano, como passo prévio para o reconhecimento da sua existência e originalidade. O propósito era revelar os esforços empreendidos pelos pensadores da região para transformar as expressões filosóficas assimiladas externamente em instrumentos originais que solucionassem os problemas específicos da realidade latino-americana (Zea, 2000, p.39-40).

Partia-se, então, de uma peculiar concepção da filosofia, contextualizada e historicizada, que enfatizava sua função utilitária para a realidade social latino-americana. A originalidade desse pensamento seria, assim, buscada, sustentada e legitimada na e pela sua própria história. Ou seja, a formulação de um pensamento original na América Latina se basearia no conhecimento e na reflexão sobre o seu próprio passado filosófico. Essa seria a grande tarefa de uma história das ideias ou história do pensamento filosófico latino-americano - em suma, estariam nessa tarefa as motivações extradisciplinares da etapa da fundação do movimento.

Com suas decisivas articulações nos campos organizacional e editorial, a partir das décadas de 1940 e 1950, o movimento passou por um amplo processo de consolidação, fazendo que a história das ideias deixasse de se constituir numa mera forma de saber disciplinar.

Como consecuencia del amplio proceso que tomara cuerpo abiertamente a partir de las décadas de los 40 y los 50 de este siglo, la historia de las ideas acabó por incorporarse no sólo como una forma de saber normal, sino que terminó siendo toda una "corriente de pensamiento". Se organizó como una historiografía - dentro de la cual la historia de las ideas filosóficas ha tenido preeminencia - que implicaba una toma de posición teórica respecto de nuestra realidad social y nacional. (Roig, 1984, p.VIII)

Tornou-se, enfim, uma corrente de pensamento que teria preconizado uma historiografia comprometida com a realidade social e nacional latino-americana. Essa corrente estendia tal comprometimento tanto espacial (a partir do nacional em direção ao regional e continental) quanto cronologicamente (a partir do passado em direção ao seu presente).

Sobretudo na década de 1970, consolidou-se no seio do movimento um processo de generalização do caráter pragmático que deveria assumir a história das ideias na América Latina. Em face disso, essa disciplina se converteu, com seus produtos historiográficos, numa fonte que privilegiava a interpretação e a busca de sentido para a história latino-americana. Com isso, a tarefa disciplinar - ou historiográfica propriamente dita - da história das ideias se vinculava indissoluvelmente a uma tarefa extradisciplinar, de caráter eminentemente especulativo e teleológico. Mais do que um vínculo, a tarefa historiográfica se colocava a serviço da função filosófico-especulativa, de forma que a história das ideias assumia assim, em relação à filosofia da história, uma função eminentemente pragmática.

Concentravam-se aí as linhas gerais desse processo de deslocamento do centro das preocupações dos principais representantes do movimento, de uma história das ideias em direção a uma filosofia da história latino-americana. Tal processo torna-se evidente, a partir da análise da evolução biográfica intelectual de Zea, do campo historiográfico ao especulativo, em direção a uma filosofia da história latino-americana, principalmente depois da primeira edição de El pensamiento latinoamericano (1968). Essa evolução foi claramente assumida pelo próprio Zea em De la historia de las ideas a la filosofía de la historia latinoamericana (1975), que revelou a impossibilidade de dissociação entre o filósofo e o historiador. Nesse trabalho, justificando seu movimento em direção à filosofia da história latino-americana, Zea declara:

Quienes venimos trabajando en Latinoamérica, desde hace ya algunos años, en el terreno de la Historia de las Ideas de cada uno de nuestros países, o de América Latina como totalidad, vamos encontrando, querámonos o no, el sentido de su historia y, al hacerlo, intentamos su interpretación. Se puede, desde luego, explicar el hecho por la formación filosófica de quienes, como en mi caso, han actuado como adelantados en la búsqueda y explicitación de esa historia. Venidos de la filosofía, intentamos dar a los hechos explicitados una interpretación, les buscamos un sentido. Y de este sentido, puede resultar, como parece que sucede en mi caso, una filosofía de la historia.

Ciente da dependência - em vários níveis - dos povos latino-americanos, que dificultava a afirmação de suas próprias expressões culturais, esse processo vinculou a história das ideias a um programa extradisciplinar de autonomia e independência cultural, de desalienação e descolonização da América Latina. Esse programa culminaria, diante de uma filosofia (e de uma cultura) da dependência e da dominação historicamente impostas, no projeto de uma filosofia da libertação. Esse programa de uma filosofia da libertação foi discutido e aprofundado posteriormente, durante a realização do Primeiro Congresso Nacional de Filosofia organizado pela Sociedad Mexicana de Filosofía, na cidade de Morelia, México, em 1975, quando alguns dos pricipais representantes do movimento lançaram a Declaración de Morelia. Nesse projeto, a filosofia na história (a filosofia como objeto de uma história das ideias filosóficas) era inseparável de uma história na filosofia (a história latino-americana como objeto da reflexão especulativa filosófica) (Ardao, 1991, p.XVIII).

Tal projeto extradisciplinar comum, partilhado por praticamente todos os participantes do movimento, foi decisivo para manter sua unidade de ação e organicidade, superando eventuais divergências internas tanto no campo filosófico quanto no metodológico, colocando lado a lado, por exemplo, nomes como Zea e Salazar Bondy - apesar de suas distintas perspectivas filosóficas -, ou ainda Zea e Roig - mesmo com suas evidentes diferenças metodológicas acentuadas a partir da década de 1970.

Esse projeto se fundou na ideia compartilhada de que a filosofia latino-americana e a história das ideias filosóficas, quanto à sua função, deveriam contribuir para a libertação da América Latina, em face de sua histórica condição de dependência. Muitas das críticas externas que o movimento latino-americano de história das ideias recebeu - principalmente de algumas correntes estadunidenses (como a da filosofia analítica e da Intellectual History) - se dirigiram especialmente ao projeto extradisciplinar ao qual a história das ideias encontrava-se umbilicalmente vinculada. A reação de Zea às críticas, por exemplo, serviu para explicitar os princípios não acadêmicos norteadores ou motivadores de sua produção filosófica e historiográfica.

Os novos rumos da história das ideias tomados a partir das recomendações metodológicas de 1974 - que não se restringiram a meras questões de metodologia historiográfica - e o empenho de Roig pela renovação metodológica resultaram num processo de radicalização desse projeto extradisciplinar. As novas orientações visavam redefinir o status epistemológico da história das ideias latino-americana, transformando-a numa 'metadisciplina', que deveria transcender os campos epistemológicos e disciplinares tradicionais, cuja função seria a de alimentá-la. Em tal deslocamento epistemológico, as funções da história das ideias seriam alargadas de forma a extrapolar a mera dimensão historiográfica propriamente dita, abarcando as esferas ideológicas, especulativas e teleológicas. Assim, esse enfoque da história das ideias reforçou ainda mais o seu valor funcional de fonte legitimadora tanto de uma filosofia da história como de uma filosofia da libertação latino-americanas. Reforçou ainda o seu valor funcional de compromisso com um projeto comum de libertação e de integração latino-americanas, enfim, com um projeto identitário regional, que superasse "los límites exclusivamente nacionales dentro de los que se ha venido haciendo la historia de las ideas y avanzar hacia panoramas de tipo regional continental" (Roig, 1981, p.55), ou, em outras palavras, que superasse o que Roig chamou de 'nacionalismo negativo' na historiografia das ideias.

A grande função da história das ideias passava a ser - a partir de uma nova perspectiva historicista - uma tarefa de autoconhecimento, de promoção de um novo saber historiográfico-filosófico sobre o pensamento latino-americano.

podemos decir que la historia de las ideas se ha constituido como una forma de saber de América, o más señaladamente, de Latinoamérica. Saber de esta América que, en los casos de menor vuelo, es por lo menos un saber nacionalista, con todos los riesgos de un pensar estrecho, pero que en general trasciende ese marco para enfocar la realidad latinoamericana como saber integrador y sin el cual las nacionalidades y los nacionalismos no alcanzan su verdadero sentido. (Roig, 1981, p.37)

Tratava-se de um saber latino-americano sobre a realidade da América Latina, mas, acima de tudo, um compromisso com a sua transformação, desalienação e libertação.

Nessa dimensão extradisciplinar, a história das ideias na América Latina assumia definitivamente a forma de uma filosofia da libertação latino-americana, que logo se universalizaria como um movimento filosófico de libertação em escala global. As novas ações nos campos institucional e editorial do movimento, nas décadas de 1970 e 1980, passaram a servir muito mais a essa dimensão extradisciplinar da história das ideias, de natureza especulativo-funcional, respondendo às demandas cada vez mais crescentes de autoconhecimento, autonomia, integração e autoafirmação identitária latino-americana.

A partir da década de 1980, o movimento latino-americano de história das ideias viu-se diante de um forte dilema: como conciliar ambos os projetos - disciplinar e extradisciplinar - de forma equilibrada, sem que o estreito vínculo da história das ideias com uma filosofia da história e com uma filosofia da libertação significasse internamente um empobrecimento teórico-metodológico na sua prática especificamente historiográfica? Eis aqui uma crucial questão ainda aberta para investigações futuras.

Para alguns autores contemporâneos, sobretudo vinculados ao campo da história intelectual latino-americana, como por exemplo o argentino José Elias Palti, tal dilema teria gerado um profundo mal-estar entre os seus praticantes. Para eles, o futuro da história das ideias estaria na dependência talvez do rompimento definitivo entre tais projetos, bem como da libertação das pressões e demandas externas e estranhas ao seu âmbito particular, com a consequente reestruturação dos marcos teórico-metodológicos dentro dos quais ela teria se desenvolvido na América Latina.

NOTAS

  • 3 FALCON, Francisco Calazans. História das ideias. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.91-125.
  • 6 Cf. STROZZI, Susana. El discurso del método y el método de los discursos en la historia intelectual de América Latina. In: TRONCOSO, Hugo Cancino et al. (Ed.). Nuevas perspectivas teóricas y metodológicas de la historia intelectual de América Latina Madrid: Iberoamericana; Frankfurt am Main: Vervuer, 1999, p.8.
  • 7 ZEA, Leopoldo. José Gaos. Cuadernos Americanos, Nueva Época México: Ed. Unam, v.1, n.79, p.26, ene.-feb. 2000.
  • 8 Ver CARVALHO, Eugênio Rezende de. Pensadores da América Latina: o movimento latino-americano de história das ideias. Goiânia: Ed. UFG, 2009.
  • 9 ROIG, Arturo Andrés. El pensamiento latinoamericano y su aventura Tomo II. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1994, p.128.
  • 10 ARDAO, Arturo. Sobre el concepto de historia de las ideas. Revista de Historia de las Ideas, ed. facsimilar. Quito: Banco Central del Ecuador, n.1, p.77, 1984.
  • 11 Cf. MIRÓ QUESADA, Francisco. Proyecto e realización del filosofar latinoamericano México: Fondo de Cultura Económica, 1981.
  • 12 CERUTTI GULDBERG, Horacio; MAGALLÓN ANAYA, Mario. Historia de las ideas latinoamericanas ¿Disciplina fenecida? México: Casa Juan Pablos Universidad de la Cuidad de México, 2003, p.36.
  • 13 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.188.
  • 14 ZEA, Leopoldo. Filosofar a la altura del hombre: discrepar para comprender. México: Ed. Unam, 1993, p.362.
  • 15 GAOS, José. En torno a la filosofía mexicana México: Porrúa y Obregón, 1952, p.17.
  • 16 ROIG, Arturo Andrés. Filosofía, universidad y filósofos en América Latina México: Unam-CCyDEL, 1981, p.55-56.
  • 17 ZEA, Leopoldo. El positivismo en México México: El Colegio de México, 1943, p.17.
  • 18 ROIG, Arturo Andrés. La "historia de las ideas" cinco lustros después: estudio introductorio de la edición facsimilar de los números 1 y 2. Revista Historia de las Ideas, ed. facsimilar. Quito: Banco Central del Ecuador, n.1, p.I, 1984.
  • 19 ZEA, Leopoldo. La filosofía como compromiso de liberación Seleção, cronologia e bibliografia de Liliana Weinberg de Magis e Mario Magallón. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1991, p.76.
  • 20ARDAO, Arturo. Prólogo. In: ZEA, Leopoldo. La filosofía como compromiso de liberación Sel., cronol., bibliogr., Liliana Weinberg de Magis e Mario Magallón. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1991, p.XI.
  • 21 ZEA, Leopoldo. De la Historia de las Ideas a la Filosofía de la Historia Latinoamericana. In: ZEA, Leopoldo; MIRÓ QUESADA, Francisco (Ed.). La Historia de las Ideas en América Latina Tunja-Colombia: Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia, 1975, p.5.
  • 22 PALTI, Elias José. Leopoldo Zea y la historiografía de ideas en América Latina. In: SALADINO, Alberto; SANTANA, Adalberto (Comp.). Visión de América Latina. Homenaje a Leopoldo Zea. México: Fondo de Cultura Económica, 2003, p.160.
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    - diga-se de passagem, de requintada erudição e inestimável valor como síntese historiográfica -, uma 'história' da história das ideias, destacando as diversas e principais fases e correntes desse campo complexo e diversificado do conhecimento. Entretanto, contemplou exclusivamente as correntes da história das ideias - ou que delas se aproximam - dos Estados Unidos e da Europa, sobretudo da França, sem fazer qualquer referência à corrente latino-americana.
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    Nesse sentido, a história dessas ideias filosóficas era, no dizer de seus representantes, uma história de suas próprias ideias (latino-americanas), ou seja, daquelas que foram assimiladas externamente (da matriz filosófica europeia ou ocidental) pelos intelectuais latino-americanos e adaptadas à sua própria realidade.
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    Nosso objetivo aqui é analisar as articulações possíveis entre duas dimensões ou dois projetos inerentes a esse movimento intelectual.
  • 9
    Para Ardao, embora a história das ideias fosse mais ampla do que a história das ideias filosóficas - esta última vista como sinônimo de história da filosofia e como história de apenas um tipo de manifestação das ideias -, essa história das ideias filosóficas era o ponto de partida para uma história das ideias latino-americana e, assim, deveria ser privilegiada.
  • 10
    Para Zea, conforme se pode extrair de vários de seus textos, a história das ideias seria um campo disciplinar (historiográfico) voltado ao estudo do passado filosófico latino-americano, com dupla finalidade: por um lado, demonstrar a originalidade desse pensamento filosófico radicado no contexto particular da América Latina e, por outro, servir à reflexão sobre o
    sentido de tal passado, ou seja, servir a uma filosofia da história latino-americana.
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    Zea reafirma tal concepção filosófica em várias passagens de suas obras, ressaltando sempre que a filosofia não expressa mais do que um modo limitado de compreender o mundo e de resolver seus problemas, não podendo, pois, restringir-se apenas a uma determinada forma de expressão humana em detrimento de outras.
  • 15
    De forma geral, a partir de uma concepção historicista desse objeto 'ideia', as ideias historiáveis seriam apenas aquelas vinculadas à sua realidade histórico-social concreta, na medida em que estivessem desempenhando nela uma função social, política ou ideológica determinada. Como exemplos de ideias filosóficas que foram historiadas de forma privilegiada dentro do movimento, sobretudo em suas etapas iniciais, destacam-se o positivismo, o liberalismo, o romantismo, o espiritualismo, o racionalismo, a escolástica, o ecleticismo, o krausismo, o historicismo, além de outras como o pan-americanismo, o latinismo etc.
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    Evidentemente, essa proposta de ampliação significava uma revisão da forma restrita com que ele, Zea e Ardao vinham considerando esse objeto. Embora nunca tenham chegado a realizar uma história que não fosse das ideias filosóficas, admitiam em tese sua legitimidade.
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    Essa consciência deve ser compreendida dentro dos marcos de um nacionalismo e de um (latino-)americanismo cultural e filosófico forjados como reação às recorrentes imagens negativas da realidade e dos povos americanos elaboradas externamente e difundidas durante séculos. Foi o processo ao qual Zea chamou de descobrimento latino-americano de sua própria personalidade cultural e espiritual.
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    Tais imagens - analisadas e criticadas pelo historiador italiano das ideias Antonello Gerbi, em seu livro clássico O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900), obra aberta a que alguns dos integrantes do movimento se propunham a dar continuidade (Roig, 1984, p.XVII) - contribuíam para a internalização de certo sentimento de inferioridade que colocava em dúvida as possibilidades de uma cultura e de um pensamento próprio e original. Assim, o movimento emerge em um contexto de crise de identidade, no qual as representações eurocêntricas da realidade americana eram não só consideradas estranhas a essa mesma realidade, mas também legitimadoras das formas de alienação e dependência cultural.
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    Entre os principais representantes do movimento, talvez apenas Roig tenha se preocupado de forma mais efetiva com a manutenção desse equilíbrio. Se houve nas décadas seguintes uma continuidade do movimento de história das ideias, pode-se aventurar a dizer que o que passava a garantir a sua unidade programática foi muito menos o projeto disciplinar propriamente historiográfico e mais o que, neste artigo, se denomina 'projeto extradisciplinar', mesmo tendo em vista a indissociabilidade de ambos, sem a qual se torna impossível compreender o movimento como um todo.
  • 1
    Este artigo é resultado parcial de pesquisa que contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    É o caso, por exemplo, do filósofo João Cruz Costa (1904-1978), que foi catedrático de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de vários trabalhos sobre a história das ideias no Brasil.
  • 4
    Entre as principais instituições fundadas e dirigidas pelos líderes do movimento encontram-se o Comité de História de las Ideas do Instituto Panamericano de Geografía e Historia (IPGH), fundado em 1947, além da Sociedad Latinoamericana de Estudios sobre América Latina y el Caribe (cuja sigla adotada mais tarde seria Solar) e a Federación Internacional de Estudios sobre América Latina y el Caribe (Fiealc), ambas criadas em 1978. No âmbito dos eventos, destacou-se, entre outros, o
    Primer Seminario de Historia de las Ideas en América, realizado em Porto Rico em 1956. Já no campo das publicações, tivemos, além da
    Revista de História de las Ideas en América, fundada em 1959, dezenas de coletâneas e livros individuais abordando a história das ideias, produzidos por representantes do movimento.
  • 5
    Em seu ensaio intitulado
    Ideas para presidir a la confección del curso de filosofía contemporânea, publicado em Montevidéu, em 1842, esse filósofo argentino declarou não haver filosofia universal, defendendo a existência de uma filosofia americana que tinha como função "resolver o problema dos destinos americanos". Texto Disponível em
    www.hacer.org/pdf/Ideas.pdf ; acesso em 9 nov. 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      2011
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