No centro da imagem, a miniatura de uma estátua equestre. Uma voz feminina - que posteriormente compreendemos ser de dona Leopoldina (Luise Heyer) - reflete em alemão: “As estátuas servem para ser admiradas. Para nos provocar uma memória, uma lembrança, um pensamento... Por que alguém vira uma estátua? Mas por que alguém passa uma vida inteira desejando virar uma estátua? Por que você quis virar uma estátua no meio da praça? Ser admirado por quem? Para quem? A que custo, exatamente?”.
Essas elucubrações iniciais demarcam a linha narrativa de A viagem de Pedro (Laís Bodanzky, 2021A VIAGEM DE PEDRO. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Laís Bodanzky et al. Brasil, Portugal: Vitrine Filmes, 2021.) e preparam o percurso narrativo, que explora um momento de crise na biografia do então ex-imperador do Brasil, dom Pedro I. O momento escolhido é aquele da decisão de abdicar do trono brasileiro e voltar para a Europa com a intenção de garantir o trono português para sua filha mais velha, dona Maria da Glória. A viagem do título é justamente a empreendida a bordo de uma fragata inglesa rumo a um futuro incerto - suas ações no Brasil seriam suficientes para garantir uma estátua em praça pública? Ou ainda precisaria travar mais batalhas para assegurar seu brilho perante a posteridade?
As dúvidas expostas na abertura são justificadas nos créditos finais, em que se lê: “Esse filme se passa em uma lacuna histórica. Poucos foram os registros nos livros sobre a travessia do Atlântico de dom Pedro I rumo à Europa”. A película aproveita esse caráter lacunar para seguir um trajeto especulativo, em que o personagem histórico se debate diante da possibilidade de não ter sua carne eternizada em pedra, de não ser transformado em vulto. A proposta, portanto, não é ser fiel ao passado, mas confrontá-lo. Menos que apresentar a trajetória de dom Pedro com base em debates historiográficos, a obra procura refletir sobre a construção de sua imagem.
Embora estivesse pronto desde 2021, sendo exibido em festivais, o filme estreou oficialmente nas salas de cinema do Brasil na semana do 7 de setembro de 2022. Esse dado leva ao questionamento sobre o papel da película nas comemorações do Bicentenário da Independência, já que, seguindo a perspectiva de Marcos Napolitano (2011NAPOLITANO, Marcos. A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: CAPELATO, Maria Helena et al. (Org.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2011. pp. 65-84., p. 68), um filme pode contribuir para “a monumentalização ou, seu contrário, a desconstrução dos monumentos historiográficos através da ‘escrita fílmica da história’”.
A despeito da estratégia de divulgação, que aproveitou a data comemorativa, a obra da diretora não parece se coadunar com o tom ufanista que o então governo de Jair Bolsonaro tentou imprimir à efeméride. Como o texto que abre o filme indica, menos que louvar a “monumentalização” de dom Pedro, o filme busca pôr em tensão as coordenadas envolvidas neste processo. Por outro lado, seu objetivo também não parece ser negar a sua efetivação ou tentar combatê-la de forma enfática - daí a ambiguidade do termo “(des)monumentalização” presente no título desta resenha.
Afinal, a possibilidade de uma desconstrução psicológica do protagonista, no lugar de um tom mais evidentemente iconoclástico, se coaduna com a carreira da cineasta, marcada pelos longas Bicho de sete cabeças (2000), Chega de saudade (2007), As melhores coisas do mundo (2010) e Como nossos pais (2017), em que, por caminhos diversos, os protagonistas se dedicam a gerir crises pessoais e repensar seu lugar no mundo. Um dos modos como dom Pedro empreende essa dupla tarefa no longa-metragem é questionando sua imagem pública, como apresentado a seguir.
DOM PEDRO E AS IMAGENS
Ainda na abertura do filme, antes que seu título seja exibido na tela, acompanhamos uma conversa entre o protagonista, interpretado por Cauã Reymond, e seu filho, futuro dom Pedro II. O pai informa que aquela escultura que observam (a mesma exibida na primeira cena) representa Napoleão Bonaparte, a quem admira pela bravura. Contudo, ressalva que mesmo um guerreiro com muitas batalhas vencidas pode ter medo. Com um afago, pede que o garoto prometa que, se um dia se sentir amedrontado, irá buscar o auxílio de alguém em quem confie.
Cauã Reymond (dom Pedro I) e Emílio Eduardo (futuro dom Pedro II) em cena do filme A viagem de Pedro, de Laís Bodanzky (2021A VIAGEM DE PEDRO. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Laís Bodanzky et al. Brasil, Portugal: Vitrine Filmes, 2021.).
O medo é novamente tematizado quando dona Maria da Glória (Luísa Gattai), então com 12 anos de idade, tenta se esconder para não ser afastada do pai ao mudar de embarcação, como exigiam as normas de segurança, pelas quais os membros da família real deveriam viajar separados. Mais uma vez, dom Pedro se mostra um pai delicado e atencioso, buscando formas afetuosas de convencer a menina a enfrentar seus temores.
A insistência no tema parece demarcar a apreensão do próprio dom Pedro diante da insegurança política gerada por sua decisão. Uma conversa entre ele e dona Amélia (Victoria Guerra), sua segunda esposa, ajuda a compreender a perspectiva assumida pela obra: os dois estão deitados em uma cama quando a mulher começa a falar em francês, ao que dom Pedro, em tom alterado, informa que não era necessário manter o protocolo, já que estavam a sós. Na alcova, as aparências não importam. Esta sequência sobre a liberdade possível no espaço privado e as duas sobre o medo indicam o campo explorado na película: a possibilidade de uma figura pública assumir e encarar seus temores na intimidade.
Por consequência, os embates políticos enfrentados pelo protagonista são apresentados de forma periférica, como ruídos ao fundo ou tema de recordações e delírios. Neste âmbito, vale destacar o recurso à voz over de dona Leopoldina. Primeira esposa de dom Pedro, a princesa austríaca era uma intelectual incentivadora das artes e da ciência no Brasil, além de ter sido uma das articuladoras da independência, atuando como regente enquanto dom Pedro estava em São Paulo em 1822. A despeito de suas qualidades, foi menosprezada pelo marido, que preferia a amante, dona Domitila (a marquesa de Santos, interpretada por Rita Wainer) e não fazia questão de disfarçar o romance extraconjugal. Também há relatos de maus-tratos físicos desferidos pelo esposo, situações encenadas no filme. Por conta dessa relação complexa, a voz de dona Leopoldina funciona simultaneamente como memória e consciência crítica, confrontando dom Pedro com suas decisões no passado, no presente e no futuro. Em dado ponto, ela sugere que ele aproveite a viagem para refletir melhor sobre seus propósitos. Em outro, afirma que, a despeito de estar morta, sua voz o acompanhará para sempre e ele, com remorso por todos os males que lhe causou, precisará lidar com ela - a voz - como quem lida com uma maldição.
Outro elemento explorado é o próprio mar: durante um mergulho, dom Pedro tem uma crise de epilepsia que parece deflagar um delírio em que momentos diversos da sua vida são revisitados - por exemplo, a relação com a mãe, dona Carlota Joaquina (Luísa Cruz), e com o irmão, dom Miguel (Isac Graça). Nestas sequências, a narrativa realista é quebrada em prol de um tom onírico, com imagens distorcidas e situações desconexas, ainda que nunca herméticas. Caminhando pelos cenários com o corpo encharcado, acompanhado por uma câmera oscilante e uma trilha sonora eletrônica que estabelece um fundo constante e tenso para os diálogos, o protagonista confronta seu passado, observando aspectos de sua infância ou momentos cruciais de sua trajetória política, como os embates com o irmão. A presença constante da água parece dialogar com a perspectiva junguiana, em que o elemento é tomado como arquétipo que simboliza o inconsciente coletivo ou, individualmente, o mergulho em si e a possibilidade de um renascimento metafórico. Como reforço dessa percepção, um dos cartazes do filme exibe o corpo do protagonista no momento do mergulho, totalmente envolvido pelas águas:
Ainda no plano de uma leitura psicológica, uma das escolhas mais instigantes do roteiro é associar a crise enfrentada por dom Pedro à disfunção erétil que tenta tratar ao longo da viagem. Em uma conversa com o comandante da fragata (Francis Magee), o ex-imperador diz que sempre ganhou competições envolvendo a quantidade de sêmen e a distância das ejaculações, e que seu pênis é do tamanho de seu império, perdendo apenas para o de Napoleão. O outro retruca, informando que Napoleão tinha o pênis pequeno, mas ganhava na quantidade de vezes que conseguia ejacular em seguida, ao que Dom Pedro se gaba, dizendo que seu recorde era de oito vezes em uma noite. Desse modo, o filme explora as conexões simbólicas entre pênis/virilidade e espada/agressividade, resumidas didaticamente em uma cena em que, após ser examinado por um médico, o protagonista questiona com irritação: “Como é que eu vou ganhar uma guerra de pau mole?”.
Portanto, o pênis ereto pode ser intercambiado com a espada ou o braço em riste, que garantiria a vitória e a boa fama, como no muito reproduzido quadro de Pedro Américo, Independência ou morte (1888), ou na estátua equestre da Praça Tiradentes (1862), no Rio de Janeiro, em que dom Pedro empunha a Carta Constitucional de 1824. Ironicamente, as duas estátuas dedicadas a dom Pedro em Portugal - em Lisboa e no Porto - não o apresentam com o braço erguido, dado que não chega a ser explorado na película, mas que poderia render boas especulações.
Uma relação semelhante à estabelecida com as estátuas se dá com outras formas de imagens. É digno de nota o fato de que muitos personagens aparecem retratados em telas que reforçam sua majestade, e dom Pedro parece desejar ou invejar essas representações pictóricas. Em uma conversa com dona Amélia, conjectura se seus filhos se lembrariam dele como um quadro ou como uma caricatura; e, em uma discussão com dom Miguel, vaticina que um quadro apresentando o irmão como rei jamais seria pintado.
Monumento a dom Pedro I, inaugurado em 1862, situado na Praça Tiradentes, Rio de Janeiro. Apesar de não empunhar uma espada, o braço está em riste, como no quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, de 1888.
Monumento em homenagem a dom Pedro IV de Portugal (dom Pedro I do Brasil), inaugurado em 1866, situado na Praça da Liberdade, no Porto.
DOM PEDRO, OS FILHOS, AS MULHERES E OS NEGROS
Concomitantes à disfunção erétil, outros recursos do roteiro tematizam a fragilidade do protagonista. Na relação com os filhos, procura demonstrar afeto e ser um bom pai, assumindo que deseja relegar às crianças o tratamento que não recebeu de seus genitores, especialmente de sua mãe. Contudo, os limites desse comportamento são balizados pelas obrigações políticas - ainda que o faça com carinho, não deixa de abandonar o menino Pedro no Brasil e de obrigar dona Glória a seguir viagem em outra embarcação, por exemplo. O pai não se sobrepõe ao monarca, ao contrário.
Em seus relacionamentos afetivos com dona Leopoldina, dona Domitila e dona Amélia, a centralidade do falo e a imposição agressiva da socialmente construída autoridade masculina são reavaliadas pelo protagonista, mas com resultados pouco efetivos. Afinal, ao passo que enfrenta a voz de dona Leopoldina - sua “consciência crítica” - e pede perdão por todas as vezes em que foi violento com ela, não demonstra uma postura menos agressiva com a esposa atual, dona Amélia. A relação com dona Domitila, por sua vez, pautada pela hipersexualização da personagem, não consegue ultrapassar os limites da alcova - quando a paixão pela concubina poderia ter sido publicamente assumida, dom Pedro se comprometeu com dona Amélia, uma nobre europeia. A assunção das fragilidades parece ser efêmera e estar circunscrita ao tempo da viagem - uma vez restabelecida a virilidade, a supremacia masculina também poderia ser recuperada.
Do modo semelhante, o desmoronamento de sua majestade é simbolicamente evidenciado pelo contraste com o restante da tripulação do navio, majoritariamente negra. Em uma sequência, espiando por uma fresta, dom Pedro observa um grupo de homens negros debochando de sua disfunção erétil enquanto são aplaudidos por Dira (Isabél Zuaa), uma escravizada que sonha conquistar a liberdade na Europa, e com quem ele tentará manter uma relação sexual como forma de cura para seu “mal”.
Em outro momento, ao ser apresentado ao chef da cozinha da fragata (Sérgio Laurentino), percebe o olhar indiferente do homem, o que lhe causa incômodo a ponto de tentar descobrir porque merecera aquele tratamento. Apreensivo, pergunta de onde o homem vem, se sabe ler em árabe e se estivera na Bahia em 2 de julho de 1823. Quando o outro responde que vinha do Benin, se agita, perguntando insistentemente se ele seria um malê. Em seguida, reporta ao comandante da fragata que o chef deve estar preparando uma armadilha, pois faria parte de um grupo de escravizados mulçumanos que o atacaram durante as guerras de independência na Bahia.
Tendo em vista que a Revolta dos Malês só aconteceria cerca de quatro anos mais tarde e que não há relatos de ataques a dom Pedro no dia 2 de julho de 1823 na Bahia, é provável que ele se refira a um levante de escravizados incentivado por portugueses, que teria acontecido durante as lutas pela Independência, mas em outra ocasião (Reis, 1989REIS, João José. O jogo duro do dois de julho: o “Partido Negro” na Independência da Bahia. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989. pp. 79-98.). Não se deve descartar, contudo, que a confusão talvez seja fruto do desconforto diante do desprezo do chef e uma tentativa de justificar tal comportamento com base em uma suposta conspiração.
Corrobora a segunda hipótese descrita acima o fato de que, algumas sequências depois, o chef se mostra amistoso, afirmando que ambos são filhos do mesmo orixá, Ogum. Interessante perceber que se trata da divindade que rege a metalurgia e as guerras, tendo como símbolo uma espada - o que reforça a construção simbólica do protagonista. Em seguida, o homem se oferece para fazer um ebó (ritual de oferenda), de modo que dom Pedro possa se “livrar” do egum de uma mulher (presumivelmente, dona Leopoldina), que, por amor, deseja levá-lo para o mundo dos mortos.
O mesmo homem que parece ser um malê (muçulmano, portanto), possui manipansos entre seus objetos rituais e joga búzios seguindo a tradição nagô (iorubá), enquanto mantém o Alcorão aberto ao lado da tábua de Ifá. A construção da personagem causa estranheza, pois, embora a relação sincrética do islamismo com outras tradições religiosas não fosse impossível (Reis, 2003REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.), não é o que mais caracterizava os malês (haussás) da Bahia. Duas possibilidades de leitura se apresentam: ou o roteiro deseja enfatizar o sincretismo, mesmo em uma situação pouco provável, ou pretende demarcar a ignorância de dom Pedro em relação a uma parte substancial do Império que havia fundado - os negros, fossem escravizados, livres ou alforriados.
O fato de a maioria da população da fragata ser formada por homens (e algumas mulheres) negros, estabelecendo um microcosmo atravessado por tensões envolvendo a diferença entre as línguas, códigos de vestimentas e hierarquias, reforça a segunda leitura. Ao sair da Brasil, dom Pedro ainda seria simbolicamente acompanhado por parte do país que escolheu não mais governar, representado por um grupo de personagens que ora parecem indiferentes a sua presença, ora se impõem, subjugando a vontade do ex-imperador, como no caso do chef e sacerdote. Em ambas as ocasiões, sua presença é rebaixada à condição de apenas “mais um” entre os tripulantes. Talvez por isso, o título do filme não o trate por “dom”, o que reforçaria a ideia de domínio.
Há ainda duas sequências que agregam sentidos a essa leitura. Na primeira, Dira e Tigre (Calvin Denangowe) estão narrando histórias da escravidão a seus companheiros no convés da fragata, quando dom Pedro, que ouve de longe, ordena que o rapaz conte uma história engraçada. Ele o ignora e continua sua saga, explicando que, por ter recebido muitos golpes nos testículos, não poderia ter filhos e, por esse motivo, fora colocado para trabalhar como carregador de dejetos. Seu “apelido”, Tigre, seria decorrente das listras claras deixadas pela amônia que escorria por seu corpo enquanto trabalhava. Por fim, tira sua camisa e exibe o corpo marcado, gritando que não quer mais ser engraçado, e se joga no mar.
A outra sequência representa uma das lembranças de dom Pedro, segundo a qual, após dona Leopoldina ter dado à luz, ele pergunta a uma senhora escravizada o que se dá às escravas para que elas consigam trabalhar logo depois de ter parido. A mulher responde que elas bebem chá de capim santo, mas que não é o chá que faz com que trabalhem. Ele pergunta o que é, mas ela não responde, constrangida. Nas duas situações, é reforçado o desprezo do personagem pela dor alheia, demonstrando pouco interesse por situações e mecanismos de ação atrelados à escravidão. Assim como ocorre em relação aos filhos e às mulheres, os limites de sua “desconstrução” são bem estreitos.
DOM PEDRO E O BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA
Como informado no início do texto, o filme estreou em 7 de setembro de 2022, coincidindo com as celebrações oficiais da efeméride, incluindo o translado do coração de dom Pedro de Portugal para o Brasil. O objetivo da operação diplomática foi render homenagens e honrarias ao órgão embalsamado, “objeto de todas as medidas que se costumam atribuir a uma visita oficial, uma visita de Estado, de um soberano estrangeiro, no caso de um soberano brasileiro ao Brasil”, conforme informou Alan Coelho de Séllos, ministro-chefe do cerimonial do Itamaraty, em declaração ao G1 (Honorato; Marques, 2022HONORATO, Raquel; MARQUES, Cristina. Coração de Dom Pedro I chega ao Brasil e é esperado “como se o imperador estivesse vivo”, diz Itamaraty. 22 ago. 2022. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2022/08/22/coracao-de-dom-pedro-i-chega-ao-brasil-e-e-esperado-como-se-imperador-estivesse-vivo-diz-itamaraty.ghtml . Acesso em: 30 nov. 2022.
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). Além das críticas direcionadas aos elevados gastos dispendidos pelo governo Bolsonaro em um contexto de crise econômica, o ritual também foi alvo de comentários que denunciavam seu caráter elitista, ao reforçar a ideia de que a Independência teria sido conquistada exclusivamente por um homem branco por meio de um gesto apaixonado e bélico.
Também foi apontada a semelhança do evento com o cerimonial que trouxe os restos mortais de dom Pedro I para o Brasil, como parte da celebração ufanista do Sesquicentenário levada a cabo pela ditadura civil-militar. O local escolhido para abrigar os despojos mortais em 1972 foi o Monumento à Independência, construído em 1922 para celebrar o Centenário do evento. As características estéticas desta obra fornecem algumas pistas sobre o modo como se concebia a Independência nos dois contextos (1922 e 1972). O conjunto escultórico favorece uma ação coletiva em prol da separação do Brasil de Portugal, mas, mesmo assim, privilegia homens brancos, na maioria pertencentes às camadas mais altas da sociedade.
Ainda, uma das faces do conjunto reproduz em alto relevo o já citado quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, tela pertencente ao acervo do Museu do Ipiranga, onde também está o monumento. No quadro, o protagonismo de dom Pedro é reforçado, de modo a “arrematar” as ações pregressas, tomadas como preparação para o fato instaurado pelo príncipe e futuro imperador. Vale informar que o mesmo quadro foi exaustivamente utilizado como base apara a direção de arte no longa-metragem Independência ou morte (Carlos Coimbra), que também fez parte das celebrações do Sesquicentenário (Pinto, 2014PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Bem mais que 24 quadros: as relações entre cinema, história e pintura através de Independência ou morte (Carlos Coimbra, 1972). In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH-RIO, XVI, 2014, Rio de Janeiro. Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio: saberes e práticas científicas. Rio de Janeiro: Anpuh-Rio, 2014. pp. 1-10.; Cordeiro, 2015CORDEIRO, Janaina Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.; Fonseca, 2017FONSECA, Vitória Azevedo da. A monarquia no cinema brasileiro: metodologia e análise de filmes históricos. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2017.).
Reprodução do quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, parte do acervo do Museu do Ipiranga.
Pelas características descritas acima, é fácil notar que os eventos diplomáticos envolvendo o coração de dom Pedro em 2022 reforçam a monumentalização da personagem histórica, alimentando a intenção de lhe associar a valores - bravura, impetuosidade, senso de liberdade - perpetuados com o auxílio de imagens e ritos.
Quando observado em perspectiva com seu contexto de lançamento, dois aspectos se sobressaem no filme de Laís Bodanzky em relação à (des)monumentalização de dom Pedro. O primeiro é a ausência de referências ao grito do Ipiranga, ao 7 de setembro ou a gestos heroicos que se cristalizariam na cultura histórica do Brasil por meio de imagens “que contribuem para criar um discurso sobre o passado nacional” (Fonseca, 2017FONSECA, Vitória Azevedo da. A monarquia no cinema brasileiro: metodologia e análise de filmes históricos. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2017., p. 31). Quando o protagonista se recorda da Independência, é a partir das lutas na Bahia, e, de todo modo, sem referências à vitória, e sim a um suposto ataque perpetrado por escravizados malês. Esse recurso narrativo desloca o foco do seu passado político no Brasil para as batalhas que ainda precisaria enfrentar em Portugal, como se os feitos pregressos não fossem suficientes para garantir sua monumentalização. Vivenciando o presente como abertura, destituído das glórias que lhe sustentariam como vulto, o personagem demonstra sua fragilidade, especialmente perante as mulheres e os negros.
O segundo aspecto está sintetizado na última fala da película, quando a voz de dona Leopoldina, retomando o discurso inicial do filme, afirma que dom Pedro conseguiu vencer o irmão e coroar a filha: “E você virou uma estátua. Na praça do Rossio, em Lisboa. E você está lá. Você virou esse herói. Você virou essa estátua. A que custo? Admirado por quem? Você entendeu o que fez? Você entendeu que, na verdade, virou uma pedra bruta no meio de uma praça?”. Com essa visada para o futuro, a consciência crítica do protagonista põe em xeque a validade do desejo de ser uma estátua, mas, de todo modo, confirma a monumentalização. O tempo lacunar da viagem - das incertezas e fragilidades - se encerrou, e as glórias conquistadas possibilitaram que a estátua fosse erigida. Simbolicamente, o pênis voltou a ficar ereto. Por fim, o filme não chega a derrubar dom Pedro de seu pedestal, embora consiga instaurar uma rachadura discreta.
REFERÊNCIAS
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» https://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/filme-a-viagem-de-pedro-estreia-no-cine-passeio-e-tera-sessao-gratis-na-cic/65232 - CORDEIRO, Janaina Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
- ESTÁTUA EQUESTRE DE D. PEDRO I, inaugurada em 1862 na atual Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. 6 ago. 2022. Disponível em: Disponível em: https://ensinarhistoria.com.br/sete-de-setembro-independencia-do-brasil/estatua-equestre-de-d-pedro-i-inaugurada-em-1862-na-atual-praca-tiradentes-no-rio-de-janeiro-copia/ Acesso em: 30 abr. 2023.
» https://ensinarhistoria.com.br/sete-de-setembro-independencia-do-brasil/estatua-equestre-de-d-pedro-i-inaugurada-em-1862-na-atual-praca-tiradentes-no-rio-de-janeiro-copia/ - FONSECA, Vitória Azevedo da. A monarquia no cinema brasileiro: metodologia e análise de filmes históricos. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2017.
- G1. “A viagem de Pedro”, com Cauã Reymond interpretando Dom Pedro I, ganha 1º trailer. 25 out. 2021. Disponível em: Disponível em: https://shre.ink/QyTQ Acesso em: 30 abr. 2023.
» https://shre.ink/QyTQ - HONORATO, Raquel; MARQUES, Cristina. Coração de Dom Pedro I chega ao Brasil e é esperado “como se o imperador estivesse vivo”, diz Itamaraty. 22 ago. 2022. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2022/08/22/coracao-de-dom-pedro-i-chega-ao-brasil-e-e-esperado-como-se-imperador-estivesse-vivo-diz-itamaraty.ghtml Acesso em: 30 nov. 2022.
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» http://encurtador.com.br/cuCF7 - A VIAGEM DE PEDRO. Direção: Laís Bodanzky. Produção: Laís Bodanzky et al. Brasil, Portugal: Vitrine Filmes, 2021.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
-
Recebido
30 Abr 2023 -
Aceito
07 Jul 2023