Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar as produções didáticas, em forma de livros impressos e manuscritos, produzidas pelo professor Godofredo Schrader, S. J., que atuou em duas escolas localizadas na Província Sul-brasileira pertencentes à Companhia de Jesus, entre os anos de 1905 e 1945. Para isso, atentamos para determinados aspectos acerca da formação e atuação do professor Godofredo Schrader, S. J., por meio de suas publicações na área da Geometria. Metodologicamente, este trabalho vale-se da análise documental histórica, analisando fontes localizadas em três arquivos de Instituições Jesuítas. A pesquisa indica que as produções de Schrader se adequavam à reforma Francisco Campos e ao currículo do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, e que circularam e foram utilizadas por professores de determinadas escolas da Ordem.
Palavras-chave:
história da educação matemática; ensino de geometria; Jesuítas; Godofredo Schrader, S. J
Abstract
This article aims to analyze the pedagogical productions, in printed and handwritten form, produced by teacher Godofredo Schrader, S. J., who worked at the South-Brazilian Province, from the Society of Jesus, between the years of 1905 and 1945. In this regard, we observe some aspects concerning the educational background and practice of teacher Godofredo Schrader, S. J., by means of his publications in the area of Geometry. Concerning methodological procedures, this work uses the Historical Documentary Analysis, analyzing sources located in three collections of Jesuit Institutions. The research indicates that the productions of Schrader fitted the Francisco Campos reform and to the curriculum of the Pedro II School, Rio de Janeiro, which circulated and were used by teachers of certain schools of the Order.
Keywords:
history of the mathematical education; teaching of geometry; Jesuits; Godofredo Schrader, S. J
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar las producciones didácticas, en formato de libro impreso y manuscritos, producidos por el profesor Godofredo Schrader, S. J., que actuaba en dos escuelas localizadas en la Provincia Sur-brasileña que pertenecía a la Compañía de Jesús, entre los años de 1905 y1945. Para esto, procuramos observar aspectos referentes a la formación y actuación del profesor Godofredo Schrader, S.J., por medio de sus publicaciones en el área de Geometría. Metodológicamente, este trabajo se utiliza del Análisis Documental Histórico, analizando las fuentes situadas en tres archivos de las instituciones Jesuitas. La investigación indica que las producciones de Schrader estaban ajustadas a la reforma Francisco Campos y al curriculum de la escuela Pedro II, Río de Janeiro, y que habían circulado y fueron utilizadas por los profesores de las escuelas de la Orden.
Palabras clave:
historia de la educación matemática; educación de la geometría; Jesuitas; Godofredo Schrader, S. J
Introdução
Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham (Borges, 1999Borges, J. L. (1999). O Aleph. In Obras completas de Jorge Luis Borges (p. 87-96). São Paulo, SP: Globo., p. 93).
No entendimento de que toda linguagem é representada por meio de um alfabeto de símbolos, apresentamos neste estudo determinados vestígios relacionados à circulação de saberes matemáticos que foram compartilhados por uma comunidade escolar. A pesquisa está inserida no campo da História da Educação, com foco na História da Educação Matemática. O objetivo foi compreender as práticas relacionadas à produção de conhecimento matemático por um padre Jesuíta, Godofredo Schrader, que lecionou matemática na Província1 1 A Companhia de Jesus estende-se por todo o mundo, organizada em províncias e regiões. A Cúria Geral encontra-se em Roma. A organização em províncias geralmente é dada com base no número de jesuítas e obras em um determinado território; uma província pode ser formada somente por uma parte do território de um país, ou pode coincidir justamente com as suas fronteiras; mas também pode ser formada por vários países. Sul-brasileira nas primeiras décadas do século XX. Nesse sentido, seguimos algumas etapas: identificar os padres jesuítas que lecionaram Geometria e que escreveram e produziram materiais didáticos; escolher entre eles aquele cuja produção mais circulou entre as escolas da Província Sul-brasileira; analisar as principais obras, relacionadas ao ensino de matemática, produzidas por esse padre.
Investigar as produções de saberes matemáticos e práticas educativas estabelecidas por padres jesuítas que atuaram como professores dessa área em instituições de ensino, pertencentes à Província Sul-brasileira, possibilita uma reflexão sobre as transformações e permanências relacionadas a um componente curricular que vem ganhando destaque, em detrimento de outros, no decorrer de uma perspectiva Moderna2 2 Perspectiva Moderna, aqui, é entendida como uma racionalidade que inicia na Idade Moderna, século XVI, e se estabelece e se consolida com os preceitos iluministas, no sec. XVIII, de cientificidade, verdade, sujeito unificado e razão, dentre outras características produzidas nesse período. Além disso, se constituiu e se perpetua na lógica do pensamento social, adentrando a Idade Contemporânea. de educação, produzindo determinada racionalidade que permeia a sociedade ocidental.
A História da Educação e a História das Instituições Escolares permitem uma reflexão sobre o contexto no qual está inserida a educação, propondo determinadas discussões e possibilitando a identificação das diferentes narrativas produzidas ao longo do tempo. Aqui a memória escolar e a História da Educação são compreendidas como “[...] ciência da mutação e da explicação dessa mudança [...] uma construção e uma reinterpretação constante, tem um futuro que é parte integrante e significativa da história” (Le Goff, 1990Le Goff, J. (1990). História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp., p. 25). Desse modo, conhecer a História de distintas formas de docências relacionada ao ensino de matemática, as práticas e as maneiras como se constituiu a disciplina, em tempos pretéritos, amplia as possibilidades de análise do currículo em diferentes temporalidades.
A pesquisa foi desenvolvida nos estados que compõem a Província Sul-brasileira, a saber: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso3 3 Em 1999 foi criada a Região do Mato Grosso, desmembrando da Província do Sul os estados do Mato Grosso e Rondônia. . A jornada desta investigação foi iniciada pelas regiões onde se encontram instituições de ensino pertencentes à Companhia de Jesus que permanecem em atividade. O recorte temporal definido para a pesquisa compreende o período entre 1905 e 1945, que compreende o ano de chegada, ao Brasil, do padre Godofredo Schrader e o de seu falecimento.
Este artigo está dividido em cinco seções; esta primeira consiste na introdução. A segunda traz o contexto da pesquisa, priorizando os fatos históricos que dizem respeito à inserção da Companhia de Jesus em território brasileiro. Abordamos, ainda, um panorama geral sobre o ensino de matemática nas escolas dessa Ordem até a identificação dos padres jesuítas responsáveis pela produção de materiais didáticos, relacionados ao ensino de matemática, nas escolas da Província Sul-brasileira, escolhendo, dentre eles, Godofredo Schrader.
Na terceira seção, tratamos da metodologia empregada, das formas como nos aproximamos da documentação e de sua seleção, dos teóricos que auxiliaram na compreensão dos conceitos que mobilizamos neste estudo. Na quarta parte, nos propusemos a discutir minuciosamente o conteúdo de geometria encontrado nos livros didáticos produzidos por Godofredo Schrader e, em certa medida, a circulação e utilização desses artefatos relacionados ao ensino de Geometria, Álgebra e Aritmética. E, por último, as nossas considerações são resultantes do contato com a temporalidade estudada.
A constituição da Companhia de Jesus no Brasil: as instituições educacionais da Província Sul-brasileira
A trajetória da Companhia de Jesus no Brasil remete a fatos históricos, amplamente divulgados, que fazem parte da história oficial da Companhia de Jesus, diferenciando-se do viés que este estudo pretender percorrer4 4 Para aprofundamento, consultar: Klein (2015). . Segundo Klein (2015Klein, L. (Org.). Educação jesuítica e pedagogia inaciana (1a ed.). São Paulo, SP: Edições Loyola, 2015.), o grupo de jesuítas que chegou ao solo brasileiro tinha como missão difundir o Evangelho em novas terras e catequisar os indígenas para a fé católica.
Sobre o modelo pedagógico empregado, Teixeira (2008Teixeira, L. S. (2008). Os jesuítas na moderna historiografia brasileira. In Anais Encontro de História ANPUH-RIO. Rio de Janeiro, RJ. Recuperado de: http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212982184_ARQdo UIVO_OJesuitanaModernaHistoriografiaBrasileira.pdf
http://encontro2008.rj.anpuh.org/resourc...
) chama atenção para o caráter contraditório e ao mesmo tempo unificador e dispersivo da ação jesuítica, a qual procurava a articulação de uma formação nacional e a desarticulação das sociedades indígenas tradicionais. Nessa linha, Freyre (2005Freyre, G. (2005). Casa grande e senzala (50a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.) destaca a ação da Cia de Jesus como destruidora das culturas não europeias, pois tinha como base a idealização de ‘aprender os bons costumes’, apresentada por meio de crianças vindas do continente europeu, consideradas ‘modelo’.
Nesse período, os estabelecimentos de ensino jesuítas não dispunham de uma normativa sobre o trabalho a ser desenvolvido. No estudo realizado sobre a pedagogia inaciana, Klein (2015Klein, L. (Org.). Educação jesuítica e pedagogia inaciana (1a ed.). São Paulo, SP: Edições Loyola, 2015.) ressalta que os jesuítas se pautavam pela fonte mais inspiradora para a pedagogia jesuítica, os exercícios espirituais, elaborados por Santo Inácio de Loyola, aprovados pelo Papa Paulo III em 1548. Contudo, a elaboração de um plano estrutural no sistema escolar que norteasse as instituições estava em andamento. Em 1586, a Companhia de Jesus disponibilizava a versão preliminar, a Ratio Studiorum5 5 A Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (Plano e Organização de Estudos da Companhia de Jesus), conhecida como Ratio Studiorum, trata de um conjunto de normas criadas para regulamentar o ensino nos colégios jesuíticos. Tinha por finalidade ordenar as atividades, as funções e os métodos de avaliação nas escolas jesuíticas. , que contava com 17 capítulos, os quais faziam referência específica à Educação e às instituições educativas. O texto dirigia-se aos jesuítas formados e em formação, com o objetivo de capacitá-los para o trabalho docente que a ordem religiosa propunha. A versão definitiva foi disponibilizada em 8 de janeiro de 1599; segundo o mesmo autor (p. 6), no Brasil, o código educativo nunca pôde ser aplicado de maneira fiel, pois as condições climáticas, culturais e de recursos humanos exigiriam adaptações de calendário, horário e metodologia.
Em 3 de setembro 1759, ocorreu a expulsão dos jesuítas da Península Ibérica e suas colônias, assim eles se ausentaram do Brasil por decreto do Marquês de Pombal. Nesse período, a rede jesuíta havia constituído 17 colégios e 10 seminários, distribuídos em 12 municípios, em solo brasileiro, sendo necessário abandoná-los. Diante da desestrutura causada no sistema organizado pela ordem jesuíta devido à sua expulsão, outras ordens religiosas, posteriormente, assumiram os colégios e as escolas.
Em 1841, a Companhia de Jesus retornou ao Brasil, por meio de um grupo de jesuítas espanhóis vindos da Argentina, e desenvolveu atividades nas cidades de Porto Alegre e Rio de Janeiro, estabelecendo-se em Desterro, atualmente Florianópolis, capital de Santa Catarina. A missão dos jesuítas se concretizava de maneira relacionada à área educacional, tornando-se fundamental criar instituições de ensino.
Nesse período, a ordem jesuíta se reestabeleceu em solo brasileiro, criando instituições de ensino, dentre as quais destacamos as pertencentes aos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina: Escola de Gramática (Porto Alegre/RS); Colégio Santíssimo Salvador (Desterro/SC); Ginásio Nossa Senhora da Conceição (São Leopoldo/RS); Colégio Anchieta (Porto Alegre/RS); Ginásio São Luís Gonzaga (Pelotas/RS); Ginásio do Sagrado Coração de Jesus (Rio Grande/RS); Colégio Catarinense (Florianópolis/SC) e Colégio Medianeira (Curitiba/PR). Para esta pesquisa, apesar de algumas das instituições citadas não estarem em atividade, contou-se com a possibilidade de localizar documentos pertencentes às instituições que se constituíram no período investigado, uma vez que os documentos se encontram salvaguardados em outros arquivos da Companhia.
Os lugares de custódia dos documentos que nos permitiram construir a narrativa sobre o ensino de matemática no recorte escolhido foram: Colégio Anchieta, localizado em Porto Alegre/RS; Colégio Catarinense, localizado em Florianópolis/SC; Colégio Medianeira, localizado em Curitiba/PR; e ainda o Arquivo Histórico da Província do e Arquivo Histórico da Província do Brasil Meridional (BRM), localizado em Porto Alegre/RS.
Esse primeiro momento, de inserção nos espaços, tornou-se fundamental para vislumbrar as possibilidades de pesquisa. Foram separados e reunidos os materiais que tratavam do ensino de matemática, com o intuito de se tornarem parte do corpus empírico do estudo.
No estado do Rio Grande do Sul, o nascimento da primeira instituição católica ocorreu em 13 de janeiro de 1890. Inicialmente foi nominado ‘Colégio dos Padres’ e contou com os preceitos pedagógicos cristãos da Companhia de Jesus. Segundo Lutterbeck (1977Lutterbeck, J. A. (1977). Jesuítas no sul do Brasil: capítulos de história da missão e província sul-brasileira da Companhia de Jesus. São Leopoldo, RS: Instituto Anchietano de Pesquisas.), o Colégio dos Padres foi fundado como escola complementar da Igreja São José, funcionando, por alguns anos, como externato do Colégio Nossa Senhora da Conceição, de São Leopoldo. De acordo com as informações fornecidas pela Instituição, o Colégio passou por uma série de alterações em sua denominação. Em 1901, por sugestão do então diretor, Pe. Conrado Menz, adotou-se o nome Colégio Anchieta, em homenagem a José de Anchieta, jesuíta espanhol conhecido como ‘Apóstolo do Brasil’. Lutterbeck (1977) destaca que, a partir de 1908, o Colégio Anchieta se tornou independente do Colégio Nossa Senhora da Conceição e adquiriu, ao mesmo tempo, sua equiparação ao Colégio Pedro II6 6 Primeiro colégio de instrução secundária, foi criado em 1837 para ser referência de ensino no Brasil. Bernardo Pereira de Vasconcelos, à época Ministro da Justiça e do Império, foi responsável pela transformação do antigo Seminário de São Joaquim em ‘collégio de instruçcção secundária’. .
O segundo espaço de custódia mencionado é o Arquivo Histórico da Província do BRM, que está localizado no município de Porto Alegre, próximo ao Colégio Anchieta. Sobre os documentos que constituem seu acervo, Kunz (2019Kunz, J. R. (2019). Entrevista com João Rudimar Kunz [Entrevista concedida a Juliana Mercedes Rheinheimer]. Porto Alegre.) informou que o material está basicamente relacionado com a vida e obra dos jesuítas da antiga Província do BRM. Isso implica a sua organização enquanto província jesuítica, com correspondências - tanto interna, entre os membros, quanto externa, com a Cúria Geral (Superior Geral) em Roma - com outras províncias espalhadas pelo mundo e com os bispos das dioceses em que as casas e obras dos jesuítas estão inseridas. Guarda um vasto material sobre cada uma das casas e obras, tais como: paróquias, seminários, casas de retiro, colégios, universidade, obras sociais etc. Também guarda dados sobre a vida e obra de cada um dos jesuítas que nela viveram ao longo desses anos. Além dos diversos documentos escritos, há uma grande quantidade de fotografias, físicas e digitalizadas.
Sobre o recebimento de materiais, atualmente o arquivo não vem recebendo materiais para salvaguardar. O espaço apenas mantém e organiza o material existente e o disponibiliza para consulta e pesquisa de interessados. Com a extinção da Província do BRM, as quatro províncias existentes no Brasil foram reunidas em uma só, denominada Província do Brasil (BRA), que atualmente salvaguarda os documentos em sua sede na cidade do Rio de Janeiro.
O último espaço mencionado, o Colégio Catarinense, datado de 1906, está localizado em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina. De acordo com Lutterbeck (1977Lutterbeck, J. A. (1977). Jesuítas no sul do Brasil: capítulos de história da missão e província sul-brasileira da Companhia de Jesus. São Leopoldo, RS: Instituto Anchietano de Pesquisas.), para instalação do Colégio, a Missão ou Província dos Jesuítas Alemães comprou um prédio, na ‘praia de fora’, centro histórico de Florianópolis. Segundo o autor, o coronel Vidal Ramos, sucessor de Felipe Schmidt no Governo do Estado de Santa Catarina e ex-aluno do Colégio Conceição, estava determinado a buscar por melhorias na área educacional na capital catarinense e no interior do estado. Com isso, por volta de 1905, Ramos resolveu convidar o provincial alemão Pe. Carlos Schäffer, S. J.7 7 Companhia de Jesus, em latim, Societas Iesu, S. J. , para uma conferência que visava à fundação de um colégio da Companhia de Jesus em Florianópolis.
Segundo o site do Colégio Catarinense, o ‘Ginásio Santa Catarina’ foi criado sob a Lei Estadual n° 669, de 30 de agosto de 1905; a partir de um contrato firmado no dia 04 de novembro de 1905 entre o governador do estado e a Companhia de Jesus, a instituição entrou em atividade no dia 15 de março de 1906.
Com esse breve recorrido, buscamos contextualizar, brevemente, o início das obras educacionais da Cia de Jesus no Brasil, o recorte por nós selecionado e os locais de garimpo dos documentos utilizados na pesquisa. No capítulo a seguir, abordaremos a metodologia empregada, relacionada à maneira como nos aproximamos da documentação e fizemos sua seleção, a partir de teóricos que nos auxiliaram na compreensão dos conceitos de Práticas e Cultura Escolar.
Arquivos, documentos e práticas do ensino de matemática: possibilidades metodológicas
Para adentrar essa discussão, indicamos aqui o caminho percorrido em meio aos Colégios da Província Sul-brasileira, desde seus arquivos, os primeiros professores, os padres jesuítas, os quais escreveram livros didáticos, e os modos de ensinar Geometria, Álgebra e Aritmética, até o encontro e a discussão com os materiais de Godofredo Schrader nas instituições escolhidas para este estudo.
A realização desta pesquisa dependeu, em um primeiro momento, da localização de documentos preservados. Apesar de algumas das instituições citadas não estarem em atividade, contou-se com a possibilidade de localizar um corpus significativo de documentos, uma vez que esses se encontram salvaguardados em outros arquivos da Companhia.
Os lugares de custódia dos documentos que nos permitiram construir a narrativa sobre o ensino de matemática no recorte escolhido foram: o Colégio Anchieta, localizado em Porto Alegre/RS; o Colégio Catarinense, localizado em Florianópolis/SC; o Colégio Medianeira, localizado em Curitiba/PR; e ainda o Arquivo Histórico da Província do BRM, localizado em Porto Alegre/RS.
Esse primeiro momento, de inserção nos espaços, tornou-se fundamental para vislumbrar as possibilidades de pesquisa. Foram separados e reunidos os materiais que tratavam sobre o ensino de matemática, com o intuito de se tornarem parte do corpus empírico da pesquisa. Os documentos pertenciam aos padres Godofredo Schrader, S. J., que desenvolveu livros na área da Geometria; Pedro Browe, S. J., que atuou na área da Álgebra; Luiz Schuler, S. J., autor de um livro na área da Aritmética com contribuições do professor Browe; e Germano Dieckmann, S. J., que elaborou um documento sobre Geometria. De toda essa documentação mobilizada em uma investigação de maior âmbito, fizemos, para este estudo, um recorte das produções do professor Godofredo Schrader que consideramos o mais significativo em número e em conteúdo disponibilizado.
Produzimos, nesse percurso, um corpus documental que foi analisado à luz do conceito de ‘representação’ apresentado por Chartier (2002Chartier, R. (2002). História e literatura. In R. Chartier. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes (p. 12-26). Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS.). Para o autor, as “[...] representações no mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” (Chartier, 2002, p. 17) - nesse caso, uma ordem religiosa, o que torna fundamental relacionar os discursos proferidos e a posição de quem os utiliza. Chartier (2002) destaca, ainda, que os discursos não são neutros; portanto, deve-se considerar minuciosamente os aspectos sociais, escolares e políticos em que foram produzidas essas práticas. Esses aspectos puderam ser identificados, em alguma medida, no processo de acessar os arquivos e analisar os documentos atinentes ao estudo que ora apresentamos.
Ao processo de percorrer corredores com documentos catalogados, telas de computadores, com documentos digitalizados, se uniu a empreitada de garimpar documentos em prateleiras empoeiradas e caixas esquecidas. Em cada lugar de memórias guardadas, vêm as palavras de Antônio Cícero: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado” (Cícero, 2006). Foi esse pensamento que nos inspirou, e, junto com o processo de olhar, admirar e fitar, ainda desnaturalizamos, problematizamos e propusemos uma discussão sobre as formas com que foram sendo forjados os primeiros passos do ensino de Álgebra, Aritmética e Geometria, pelas mãos do padre Godofredo Schrader.
O conceito central para compreender o conjunto formado por instituições, professores S. J.8 8 Companhia de Jesus, em latim, Societas Iesu, S. J. e seus métodos foi o de ‘práticas cotidianas’. Essa compreensão parte da perspectiva teórica de Michel de Certeau (1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.). Segundo o autor, com o termo ‘práticas’, tem-se noção de totalidade; desse modo, as práticas docentes, as práticas educativas e as práticas disciplinares não estão isoladas do contexto social e fazem parte, assim, do que o autor chama de práticas cotidianas. Ele propõe a ideia de que o cotidiano não é uma repetição, uma vez que é reinventado pelos sujeitos implicados. Nesse sentido, auxilia na compreensão dos diferentes aspectos que compõem a produção do conhecimento matemático quando afirmam que ‘práticas’ ou “[...] maneiras de fazer não são um fundo noturno da atividade social” (Certeau, Giard, & Mayol, 2012, p. 37).
As práticas cotidianas das instituições jesuítas são, portanto, “[...] uma maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar” (Certeau et al., 2012Certeau, M., Girard, L., Mayol, P. (2012). A invenção do cotidiano 2: morar e cozinhar (17a ed., Ephraim Ferreira Alves, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes ., p. 42). Importa aqui entender quais formas de agir estiveram implicadas no processo de produção do conhecimento matemático e de como essa produção circulou nas escolas jesuítas constituindo formas de ensinar e de difundir esse conhecimento.
No campo específico da História da Educação Matemática, Valente (2007Valente, W. R. (2007). História da educação matemática: interrogações metodológicas. REVEMAT, 2(2), 28-49.) ressalta a necessidade de se interrogar diversos tipos de fontes no estudo das práticas educativas, pois representam traços que o passado nos deixou. O autor destaca materiais que fazem parte do cotidiano escolar, como diários de classe, exames, provas, livros de atas, fichas de alunos, dentre outros, existindo uma diversidade de documentos que devem ser interrogados para a construção de uma narrativa histórica na educação matemática. Além disso, tem-se a documentação oficial normativa e legislativa que regulava o funcionamento do ensino, como decretos, normas, leis e reformas da educação. Recolhemos, no processo de garimpar vestígios da educação matemática, registros oficiais (leis e decretos), livro de registros (atas), regimento escolar, livros didáticos, cadernos escolares, fotografias; anuários e materiais manipulativos. Para fins de discussão, nos valemos, neste artigo, de três livros, dois em forma de manuscrito e um impresso, e de um conjunto de cadernos de um aluno.
Para Valente (2007Valente, W. R. (2007). História da educação matemática: interrogações metodológicas. REVEMAT, 2(2), 28-49.), os documentos oficiais constituem um precioso material para análise, pois apresentam a maneira como a educação foi pensada em diferentes momentos históricos, refletindo no modo como se buscou ordenar a sua prática. É com base em um conjunto de fontes, semelhantes às citadas por Valente (2007), que construímos esta narrativa historiográfica.
Produção e circulação de livros didáticos e sua emergência para o ensino de Geometria
Discutimos aqui a produção, o conteúdo e algumas pistas sobre a circulação dos livros de Geometria elaborados por Godofredo Schrader, S. J. Consideramos tais documentos intrigantes, pois são fontes datadas do período inicial das instituições escolares jesuítas pesquisadas, tendo como destaque as contribuições desenvolvidas, de próprio punho, pelo professor.
Antes de ingressar no mundo das ciências, que era foco de estudo do Pe. Schrader, é pertinente discutir alguns elementos sobre o autor. Para entender sua obra, é importante observar o contexto histórico que a cerca. Schrader nasceu em Mentz, Alemanha, em 22 de março de 1875. Ingressou na Companhia de Jesus em 25 de setembro de 1898, depois de realizar estudos na área de Farmácia.
No Arquivo Histórico da Província do BRM, foram identificados alguns dados referentes à sua formação e ocupação na Companhia de Jesus. Schrader desenvolveu seus estudos em Exaten, na Holanda, de 1900 a 1903 e de 1908 a 1911. Seu primeiro curso foi Filosofia, realizado entre os anos de 1901 e 1903, no Colégio Santo Inácio, em Valkenburg, Holanda; os estudos de retórica constituem a formação humanística, sendo reduzidos para um ano devido à sua formação anterior.
O curso de Filosofia tinha como prática a ênfase em ciências positivas, como física, matemática, química, história natural e astronomia, relacionando questões filosóficas a essas áreas. Segundo Leite (2005Leite, L. O. (2005). Jesuítas cientistas no sul do Brasil. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos.), o professor que orientou Schrader durante seu curso, na área da matemática, foi Franz Xaver Kugler9 9 Franz Xaver Kugler (27 de novembro de 1862 - 25 de janeiro de 1929) foi um químico alemão, matemático, assiriólogo e padre jesuíta. Kugler nasceu em Königsbach, Palatinado, então parte do Reino da Baviera. . Os estudos de Schrader na Holanda contam com uma interrupção, tratando-se de sua vinda ao Brasil, estabelecendo-se em São Leopoldo de 1904 até 1908, quando regressa a Valkenburg para cursar Teologia e tornar-se sacerdote. Schrader cursou Teologia de 1908 a 1911, na Alemanha, retornando ao Brasil em 1912, onde permaneceu por dois anos no Seminário Provincial de São Leopoldo.
Entendemos que essa formação privilegiada foi condição para as contribuições que Padre Godofredo daria, no seu percurso docente, para a sistematização e o ensino de matemática. Na sua trajetória como professor, foram identificadas como sendo de sua autoria e mobilizadas para a pesquisa as seguintes obras: Compêndio de trigonometria elementar, Compêndio dos elementos de geometria e trigonometria e Compêndio de geometria plana, construtiva, trigonométrica, esteriométrica e analítica.
As publicações do professor Schrader, identificadas na área da matemática, datam das décadas de 1920 e 1930, período em que esteve no Colégio Catarinense.
Sobre a pesquisa em livros didáticos, Choppin (2004Choppin, A. (2004). História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa - FEUSP, 30(3), 549-566.) e Schubring (2003Schubring, G. (2003). Análise histórica do livro didático de matemática: notas de aula. Campinas, SP: Autores Associados.) afirmam que o número de autores de livro-texto excede em muito o número de pesquisadores, ocasionando algumas dificuldades para se avaliar a originalidade da contribuição se comparada com a pesquisa matemática stricto sensu. Sobre esse aumento, Choppin (2004) acredita que pode ter sido desencadeado por diversos fatores, dentre os quais o crescente interesse manifestado pela história ou por historiadores profissionais em relação às questões da educação, área cuja demanda social se torna cada vez maior, já que inúmeras populações buscam criar ou recuperar uma identidade cultural, dadas as incertezas em relação ao futuro do livro impresso.
Para análise dos livros didáticos, tomamos como base as categorias de Choppin (2004Choppin, A. (2004). História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa - FEUSP, 30(3), 549-566.): referencial, instrumental, ideológica, cultural e documental. Com isso, apresentamos as obras analisadas nesta pesquisa.
Com relação ao Compêndio de trigonometria elementar elaborado por Godofredo Schrader, S. J., a 1ª edição é datada de 1926Schrader, G. (1926). Compêndio de trigonometria elementar. Florianópolis, SC.. O livro é do tipo brochura, contém 77 páginas internas, capa dura, e é escrito à mão. O exemplar conta com alterações feitas à caneta pelo autor, antes de sua publicação. Para Valente (2008Valente, W. R. (2008). Livro didático e educação matemática: uma história inseparável. Zetetiké, 16(30), 139-162.), durante a análise de livros didáticos na área da matemática, o pesquisador deve estar atento a diversos fatores, dentre eles alterações realizadas até o momento de chegar às mãos de alunos e professores.
A contracapa conta com elementos que chamam atenção, como o título Compendio de trigonometria elementar. Inicialmente identificamos a alteração que o autor realizou de ‘Manuscrito’ para ‘Compendio’. Segundo o Dicio10 10 Dicionário on-line de português. Acessado em https://www.dicio.com.br/. , Dicionário Online de Português, a definição para ‘manuscrito’ é dada como um “[...] texto ou documento original, geralmente escrito à mão, antes de ser finalizado e/ou editado [...]”, enquanto ‘compêndio’ é a “[...] síntese de uma teoria, de ideias fundamentadas, de conhecimentos etc.”. As definições de manuscrito e compêndio auxiliam a entender que inicialmente se tratava de um documento em desenvolvimento e, posteriormente, com as devidas correções sinalizadas, passava a ser um compêndio com as fundamentações teóricas devidamente revisadas.
Na contracapa, consta que o documento tem como foco o estudo da trigonometria elementar, remetendo ao estudo das medidas dos lados, ângulos e outros elementos dos triângulos. Para identificar o autor do livro, é feita a seguinte referência: ‘Pe. Godofredo Schrader S. J., Lente para geometria e trigonometria’. O termo ‘lente’ era entendido como professor titular da disciplina. Nessa perspectiva, o livro didático é datado de 1926, especificando o local de sua publicação, Florianópolis, e alinhando-se ao período estabelecido, destacando Schrader como professor do Gymnasio Catharinense. Os detalhes trazidos na contracapa apresentam diversos elementos sobre o documento e o autor, pois direcionam a sua posição na instituição, o período de trabalho e sua área de conhecimento dentro da matemática. A contracapa conta com o carimbo do Arquivo da Província do Brasil Meridional - Societas Iesu (Figura 1 e 2).
O prefácio desenvolvido inicialmente pelo autor aborda alguns aspectos que permitem discussões, pois Schrader faz a correção para a versão final do prefácio. O autor aborda assuntos importantes para este trabalho em seu prefácio; optamos por apresentar na íntegra o texto elaborado por Schrader.
Estes manuscritos foram compostos para o uso particular dos alunnos do Gymnasio Catharinense. Antes de mandar imprimir, o autor espera as criticas dos seus distintos collegas nesse ramo das sciencias. Desde já se confessa grato pelas observações com as quais o ajudarem. Vali-me nestes manuscritos, por motivos de concisão, de clareza e facilidade na expressão das lettras gregas para representar ângulos, e de muitas outras abreviaturas, indicadas no fim do índice (pag. 3). Facilitar o ensino e o estudo da trigonometria em harmonia com o movimento progressivo no ensino das outras sciencias, é o que deseja o autor (Prefácio manuscrito, 1926).
De acordo com as palavras de Schrader, pode-se verificar que a publicação visava atingir apenas os alunos do Gymnasio Catharinense - como visto anteriormente, instituição onde o Padre atuava como professor na área. As críticas dos demais docentes da instituição que atuavam na mesma área, solicitadas pelo autor, mostram a proposta de uma discussão de temas matemáticos, possivelmente visando à busca por melhorias no ensino. A utilização de letras gregas para representar ângulos e demais abreviaturas é sinalizada para que o leitor se atente. No parágrafo final, o autor comenta sobre um movimento progressivo na área do ensino das ciências.
A imagem acima apresenta a correção do prefácio, que aparece abaixo dele e riscado pelo autor, podendo-se inferir que se trata de correções realizadas. Nessa nova versão do prefácio, identificam-se diversas alterações quando comparada à anterior (Figura 3).
Em muitos compendios de trigonometria o calculo logarithmico dos triangulos rectangulos como dos obliquangulos segue no fim da parte theorica pela simples razão, porque o calculo dos numeros e dos logarithmos das funções pressupõe a goniometria. Com isto não fica excluído que haja outros motivos, não menos bem fundados, para abandonar essa ordem para antecipar o calculo logarithmico dos triangulos rectangulos, presuppondo os números e logarithmos das funções trigonometricas como dados; pois assim o alunno, percebendo logo as grandes vantagens da trigonometria, começa a interessar-se por ella, muitas formulas goniometricas podem ser applicadas ao calculo de exemplos praticos e a necessidade das formulas de transformação fica evidente. A suspeita duma usurpação subreptícia de numeros e logarithmos não examinados pelos alunnos lhes completamente pelos exemplos simples das funções de 30º, 45º e 18º, que facilmente podem ser calculados pelos alunnos e depois verificados na taboa dos logarithmos. Além disto as formulas goniometricas, embora sirvam para indicar os methodos pelos quaes se partem para achar os numeros das funções naturaes, contudo não servem praticamente para o calculo delles nos casos particulares, pois para esse fim tem-se as taboas. Por motivos de concisão, de clareza e facilidade na expressão empregam-se nesse compendio as letras gregas para representar ângulos e muitas outras abreviaturas, indicadas no fim do índice. Está em preparação o manuscrito (mimeografado só para o uso do mestre) contendo todas as soluções dos problemas da presente obra, junto com muitos outros problemas tambem resolvidos, que se manda a pedido dos diretores dos gymnasios. Facilitar o ensino e o estudo da trigonometria, em harmonia com o movimento progressivo no ensino das outras sciencias, é o que deseja o autor (Schrader, 1926Schrader, G. (1926). Compêndio de trigonometria elementar. Florianópolis, SC.).
Quando comparamos o prefácio descrito acima com o primeiro, fica evidente que existe uma ampliação do público-alvo que poderia vir a fazer uso de seu compêndio. As modificações também revelam uma inversão na ordem do desenvolvimento dos conteúdos. O autor acreditava que antecipar o ensinamento de problemas trigonométricos que envolvessem cálculos com logaritmos poderia despertar o interesse do aluno, pois seria possível visualizar a utilização do conteúdo para desenvolver os exercícios de maneira mais simples. O autor manteve a atenção sobre as letras gregas para tratar sobre ângulos e outras abreviaturas, indicadas no índice.
Schrader (1926Schrader, G. (1926). Compêndio de trigonometria elementar. Florianópolis, SC.) faz referência à solicitação de auxílio dos colegas da área, posteriormente retirada na correção, mostrando que o documento estaria no caminho para se tornar um compêndio. Isso está de acordo com as ideias de Schubring (2003Schubring, G. (2003). Análise histórica do livro didático de matemática: notas de aula. Campinas, SP: Autores Associados.) sobre o fato de que o livro é parte de contexto social mais amplo e se trata de uma produção de conhecimento da comunidade científica em geral. Schubring (2003) utiliza o artigo ‘o’ entre aspas ao citar ‘o’ autor, pois para ele a autoria de um livro consiste em um grupo maior que o mencionado nas capas ou folhas de rosto, a autoria representa uma coletividade de colaboradores.
Schubring (2003Schubring, G. (2003). Análise histórica do livro didático de matemática: notas de aula. Campinas, SP: Autores Associados.) alerta para o fato de que a coletividade na construção de um livro tem estado ligada, desde o final do século XVIII, a um contexto institucional, moldado pelas restrições e demandas sociais das próprias instituições, por meio de seus programas, tipologias de conhecimento e tradições. Dentro dessa perspectiva, o autor acredita que esses espaços institucionais devam ser considerados um fator determinante para constituição da coletividade de autores de livro.
Na correção do prefácio, o autor menciona a preparação de um manuscrito mimeografado, para uso dos docentes, contendo todas as soluções dos problemas da presente obra e outros problemas, com as resoluções apresentadas, de acordo com a solicitação dos diretores dos ginásios. Tal afirmação remeteu-nos ao estudo realizado por Schubring (2003Schubring, G. (2003). Análise histórica do livro didático de matemática: notas de aula. Campinas, SP: Autores Associados.) sobre a produção de livros na Alemanha, inicialmente destacando o incentivo à criação de livros de autoria do próprio professor e, posteriormente, adotando livros concisos, que funcionavam como complemento e que tenham agregado uma coleção de exercícios. O livro elaborado por Schrader é conciso e, segundo o prefácio, preocupa-se com o desenvolvimento de exercícios. Entretanto, o manuscrito com as resoluções e os problemas extras não foi localizado.
A seguir, identificamos o índice do livro, dividido em 10 capítulos e em duas partes. Os conteúdos abordados seguem uma ordem de desenvolvimento, ampliando a gama de conhecimentos de maneira gradativa. Os teoremas utilizados nos cálculos são demonstrados, discutidos e apresentados em exemplos. Como mencionado no prefácio, o professor faz a inversão de atividades que envolvem o estudo de cálculos trigonométricos no triângulo retângulo com o auxílio de funções naturais e logaritmos para a parte inicial do livro. As alterações que poderão ser desenvolvidas posteriormente estão marcadas no índice, com a inclusão e exclusão de conteúdos.
No final da segunda página do índice, identificamos um asterisco seguido da seguinte nota: ‘o asterisco indica que o respectivo capitulo ou paragrapho pode ser omitido’. Consequentemente, identificamos os seguintes capítulos ou parágrafos com o indicativo de asterisco: Capítulo 4 (subcapítulo e); Capítulo 5 (subcapítulos b, c); Capítulo 6 (subcapítulo d); II Parte. Os acréscimos são mencionados, como, por exemplo, no Capítulo 3, em que no título foi inserido o tema ‘Linhas Trigonométricas’. Ao longo do livro, o autor faz diversas interferências, acrescentando exemplos e conceitos. Durante a pesquisa, buscamos por exemplares na área da Trigonometria, publicados por Schrader, entretanto não foram encontrados para possível análise de partes suprimidas ou acrescentadas, de acordo com os asteriscos mencionados.
Diante das informações identificadas no índice, pode-se fazer algumas relações com o Decreto nº 2.857, de 30 de março de 1898 (Decreto nº 2.857, 1898), publicado no Diário Oficial de 10 de abril de 1898 (Vechia & Lorenz, 1998Vechia, A., & Lorenz, K. (1998). Programa de ensino da escola secundária brasileira: 1850-1951. Curitiba, PR: Ed. do Autor.), aprovando e regulamentando o Gymnasio Nacional e o ensino secundário nos estados. Segundo o art. 1º, o Gymnasio Nacional tinha como objetivo proporcionar a instrução secundária e fundamental, necessária e suficiente para o bom desempenho dos deveres de cidadão e também para a obtenção de matrículas nos cursos de ensino superior. O 3º artigo afirma que o ensino no Gymnasio Nacional estava dividido em dois cursos simultâneos: curso propedêutico ou realista (duração de 6 anos); curso clássico ou humanista (duração de 7 anos).
Na área da matemática, o curso realista inicia apenas com o estudo da aritmética, ampliando para álgebra e posteriormente para geometria e trigonometria. No curso clássico, a matemática é identificada no 1º ano, com as mesmas disciplinas do curso realista, e no 7º ano, com as mesmas disciplinas cursadas pelo 6º ano do curso realista.
O Capítulo IV, no art. 19 do Decreto, destaca que os programas deveriam empregar o método intuitivo, priorizando o ensino prático e teórico, cabendo ao professor ater-se à parte científica sobre as explicações dos princípios fundamentais. Sobre a matemática, o Capítulo VI, no art. 19, traz a necessidade de se incluir o estudo completo da aritmética e da álgebra elementar, da geometria preliminar e trigonometria retilínea e da geometria espacial.
O livro elaborado por Schrader discute, especificamente, a Trigonometria. Nesse sentido, o autor aborda, na Parte I do seu livro, a trigonometria retilínea, trabalhando com resoluções analíticas a partir de triângulos retilíneos. Schrader destrincha no índice os temas que serão trabalhados dentro do conteúdo a ser abordado, facilitando a compreensão do leitor. Posteriormente, na Parte II, trabalha com a trigonometria esférica, desenvolvendo questões sobre a resolução dos triângulos esféricos. O estudo de funções trigonométricas é abordado pelo autor, destacando os teoremas relacionados seno, cosseno e tangente.
O programa de ensino de 1898 traz os mesmos conteúdos, entretanto os temas não são destrinchados, destacando os títulos de maneira ampla, como, por exemplo, estudo das linhas trigonométricas e dedução de suas fórmulas, enquanto Schrader apresenta as funções que serão trabalhadas dentro do assunto.
O programa de ensino do Colégio Pedro II, datado de 1926, apresenta a trigonometria no 4º ano com títulos amplos, trazendo os mesmos temas desenvolvidos por Schrader e pelo Decreto de 1898: definições de linhas trigonométricas, redução ao primeiro quadrante, fórmulas fundamentais da trigonometria, uso das tabelas trigonométricas, resolução de triângulos retângulos e triângulos quaisquer.
Diante dos dados apresentados sobre os conteúdos mencionados no Decreto de 1898 e os conteúdos trabalhados no Colégio Pedro II, identifica-se a convergência para os seguintes estudos mencionados no índice do livro de Schrader: linhas trigonométricas e suas fórmulas; variações e limites, por meio do estudo das relações e funções trigonométricas; construção e uso das tabelas trigonométricas, pelo estudo da determinação geral dos valores numéricos das funções e do uso da tabela trigonométrica; resolução de problemas envolvendo triângulos com a utilização de fórmulas trigonométricas e cálculos de área. Vale ressaltar que o estudo sobre trigonometria esférica, abordado por Schrader, consta no Decreto de 1898, porém não é identificado no programa de ensino do Colégio Pedro II.
Como apresentado anteriormente, existem mais duas publicações de Schrader na área de Geometria. O livro Geometria e trigonometria, datado de 1932Schrader, G. (1932). Compêndio dos elementos de geometria e trigonometria. Florianópolis, SC., escrito de próprio punho, não conta com a assinatura do professor em suas páginas, porém estava arquivado em seu nome. Foi publicado em Florianópolis/SC, no mesmo período em que o professor exerceu atividades no Colégio Catarinense. O documento traz em sua contracapa a denominação Compendio dos elementos de geometria e trigonometria plana e espherica, adotando a ideia de que a edição estava finalizada para publicação. Analisando os documentos disponíveis para pesquisa, percebemos que este livro estava diretamente relacionado à obra Compêndio de geometria plana, construtiva trigonométrica, estereométrica e analítica, publicada pela editora do Globo em 1936, em função dos temas explicitados.
Ao explorar as capas, é possível perceber a diferença no título; o manuscrito de 1932 chama-se Geometria e trigonometria, enquanto a edição de 1936 é denominada Compêndio de geometria plana, construtiva trigonométrica, estereométrica e analítica (Figura 4 e 5).
Diferentemente do livro Trigonometria, de 1926, essas duas publicações não contam com prefácio; após o índice, o conteúdo é iniciado, sem que ocorra um diálogo explicativo sobre o livro, diretamente com o leitor.
A edição publicada pela livraria do Globo apresenta um indicativo sobre as orientações dos temas, ao destacar que o livro segue os programas oficiais de 1931 para 3º, 4º e 5º anos ginasiais. Essa referência remete à Reforma Francisco Campos (Decreto nº 19.890, 1931), que estabeleceu uma organização nacional sobre os conteúdos educacionais a serem desenvolvidos. Segundo Dallabrida (2009Dallabrida, N. (2009). A reforma Francisco Campos e a modernização nacionalizada do ensino secundário. Educação, 32(2), 185-191.), a Reforma Francisco Campos determinou, nacionalmente, a modernização do ensino secundário brasileiro, imprimindo organicidade por meio de estratégias escolares, dentre as quais a seriação do currículo, a frequência discente obrigatória, a imposição detalhada que regularizava o sistema de avaliação discente e a reestruturação do sistema de inspeção federal. Com isso, pesquisamos os conteúdos trabalhados na área da matemática, especificamente de geometria, pela Reforma Francisco Campos, permitindo que se analisasse os livros com base nos conteúdos mínimos exigidos no período de sua publicação.
De acordo com os índices dos livros, o manuscrito tem um menor número de páginas, bem como alguns conteúdos suprimidos. O livro publicado pela editora do Globo explana aspectos da Geometria Analítica por meio de representações gráficas, explorando a equação da reta, circunferência, esfera, cilindro, cone, parábola, elipse e hipérbole.
Como mencionado por Choppin (2004Choppin, A. (2004). História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa - FEUSP, 30(3), 549-566.), a análise do referencial se torna fundamental, para se discutir diretamente com o programa da época, realizando reflexões acerca de temas abordados. O livro impresso pela livraria do Globo destaca os capítulos referentes a cada série:
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a) 3ª série: do Capítulo 1 ao 13;
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b) 4ª série: do Capítulo 14 ao 22 e do 27 ao 31;
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c) 5ª série: do Capítulo 23 ao 26 e do 33 ao 41.
Schrader (1936Schrader, G. (1936). Compêndio de geometria plana, construtiva, trigonométrica, esteriométrica e analítica. Porto Alegre, RS: Livraria do Globo.) alerta que o Capítulo 32, referente à trigonometria esférica, não faz parte do programa do ensino ginasial.
As orientações trazidas no livro auxiliam a análise junto ao programa. Os conteúdos referentes à 3ª série do Programa de Matemática do Curso Fundamental do Ensino Secundário constam na Reforma Francisco Campos e dialogam diretamente com os capítulos mencionados por Schrader, pois o autor inicia com a definição de geometria, partindo para as noções fundamentais de corpos geométricos, de acordo com a proposta do programa. Assim, Schrader explica o estudo de retas, simetria, homotetia, triângulos, polígonos, círculo, dentre outros.
Na 4ª série, também é possível identificar relações entre a proposta do autor e a do programa, pois o estudo de polígonos, áreas, circunferência, ângulos, trigonometria, funções trigonométricas, estereometria, ângulos poliedros, poliedros, corpos redondos, dentre outros temas, estão presentes no livro de Schrader, bem como no programa idealizado.
Os conteúdos mencionados para a 5ª série convergem no estudo sobre triângulos, entretanto as noções de limite, derivada, séries e volume não estão destacadas no índice do livro. Ao analisar a obra por completo, percebe-se que o estudo desses conteúdos não foi trabalhado pelo professor, deixando uma lacuna em relação ao programa proposto.
Diante das informações organizadas, é possível perceber que as fases nas quais o livro está inserido seguem uma ordem proposta para o raciocínio geométrico, tendo como foco inicial a aprendizagem da geometria dedutiva por meio de teoremas e noções geométricas estudadas nas séries anteriores. O programa de ensino de 1931 descreve os objetivos das séries de ensino, destacando que o estudo dedutivo da Geometria deveria ter o cuidado em fazer com que o aluno sentisse como se dava o desenvolvimento de uma demonstração, utilizando fatos inferidos no curso preparatório.
O desenvolvimento do estudo fundamentava-se em enunciar proposições, realizar as demonstrações e suas aplicações, fazendo com que o aluno compreendesse e apreciasse o raciocínio dedutivo. Essas fases de aprendizagem deveriam ser realizadas com exposição clara e sucinta do encadeamento lógico das ideias e da memória matemática. O livro publicado por Schrader explora as demonstrações de teoremas e suas aplicações, detalhadamente, utilizando-se de frases que chamavam atenção do aluno para questões matemáticas.
A fim de discutir conteúdos trabalhados nos livros de Schrader, buscamos por outros documentos que dialogassem diretamente com os materiais elaborados pelo professor. Além dos documentos já salvaguardados pela instituição, o acervo do Museu Anchieta também recebe materiais doados, com o objetivo de auxiliar em estudos, pesquisas ou simplesmente para serem expostos à comunidade.
No ano de 2019, a instituição recebeu 13 cadernos escolares, doados por Renato Soprana Pecoits, pertencentes a seu pai, Conrado Pecoits, ex-aluno do Colégio Anchieta na década de 1930; esses cadernos forneceram as pistas que faltavam sobre a circulação dos livros.
Sobre os cadernos, Mignot (2008Mignot, A. C. V. (2008). Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita. Rio de Janeiro, RJ: Eduerj.) lembra que passamos por eles despreocupadamente, sem perceber que esses documentos falam dos alunos, dos professores, dos pais, dos projetos pedagógicos, das práticas educativas, dos valores disseminados em palavras e imagens. Para a autora, os cadernos escolares também trazem prescrições e interdições que determinam sua produção, circulação e usos.
Dentre os cadernos escolares doados, destacaremos o caderno de Trigonometria, diretamente relacionado aos conteúdos trabalhados por Schrader. O caderno de Trigonometria é produzido pela Livraria Selbach, localizada em Porto Alegre/RS. O documento possui 36 páginas escritas e diversas em branco. No material, não foram localizados carimbos de espaços arquivísticos, não constam datas nem indicativos do nível de ensino. O caderno se baseia em conceitos envolvendo relações trigonométricas, alicerçado em demonstrações e exercícios, e funções trigonométricas, trabalhadas com o desenvolvimento de esboços gráficos.
Sobre o conteúdo de relações trigonométricas, são desenvolvidos exercícios com abordagens práticas. Foi identificado um exercício envolvendo uma situação-problema a ser resolvida, o enunciado estava composto por um desenho, facilitando a interpretação. O registro do desenho mostra uma torre, distante 250 m de um possível teodolito, tendo 15º16’’8’ como ângulo de elevação, formando entre eles um triângulo retângulo, o que possibilita o cálculo de altura da torre. As resoluções não aparecem com correções ou interferências do professor. Sobre as questões trabalhadas, Viñao Frago (2003Viñao Frago, A. (2003). La Historia de la Educación ante el siglo XXI: tensiones, retos y audiencias. Etnohistoria de la escuela. In Anais do 12º Coloquio Nacional de Historia de la Educación (p. 1063-1074). Burgos, ES.) lembra que o caderno reflete a cultura própria do nível de ensino no qual foi utilizado. Nesse sentido, o autor ressalta que, no ensino secundário, é comum identificar cadernos por matérias, por haver uma configuração das disciplinas como saber autônomo e independente. Como visto, os cadernos aqui analisados tratam de conteúdos abordados de maneira separada.
O caderno de trigonometria contém atividades que dizem respeito às relações trigonométricas envolvendo a lei dos senos, a lei dos cossenos, a lei das tangentes e as relações de arcos duplos. As abordagens realizadas no documento dialogam diretamente com os estudos mencionados no livro de Schrader. Estabelecendo a relação entre cadernos escolares e livros didáticos, Viñao Frago (2008Viñao Frago, A. (2008). Os cadernos escolares como fonte histórica: aspectos metodológicos e historiográficos. In A. C. V. Mignot. Cadernos a vista: escola, memória e cultura escrita (p. 15-33). Rio de Janeiro, RJ: UERJ.) relembra que estes são materiais que criam, objetivam e sustentam o código disciplinar de matérias distintas, sendo possível que os cadernos nos remetam a livros, possibilitando, desse modo, identificar os livros e como eram utilizados. No caso apresentado, essa relação foi possível de ser estabelecida.
O caderno inicia pelo cálculo do seno, cosseno e tangente, de ângulos notáveis (30º, 45º e 60º), enquanto o livro acrescenta os ângulos de 15º e 75º como notáveis em suas exemplificações. Sobre as relações trigonométricas, tanto o livro quanto o caderno desenvolvem demonstrações relativas às leis de seno, cosseno e tangente.
O ato de cotejar o conteúdo do livro e do caderno nos permite inferir que os livros de Scherer circulavam nas escolas Jesuítas e eram utilizados pelos professores da área. Nos dois documentos, a demonstração inicia por um triângulo qualquer, a partir da identificação das alturas. Os professores apresentam a demonstração de maneira semelhante, porém o livro desenvolve as etapas minuciosamente, traçando as três alturas a partir dos vértices do triângulo, enquanto no caderno a altura é traçada a partir de um vértice.
As listas de exercícios no livro e nas atividades do caderno priorizam ângulos com medidas que necessitam de minutos e segundos. Para esse tipo de estudo, Schrader (1926Schrader, G. (1926). Compêndio de trigonometria elementar. Florianópolis, SC.), dialoga com os leitores sobre a lei dos senos, enfatizando que “[...] faz-se uso da fórmula do seno, quando são dados: a, um lado e 2 ângulos, ou b, 2 lados e um ângulo oposto”.
Em uma das atividades propostas, tinha-se a medida de dois ângulos internos, 50º12’ e 80º10’, permitindo o raciocínio do terceiro, pois a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180º, resultando em 49º38’ a medida do terceiro ângulo, utilizado na realização da atividade.
Nessa atividade o aluno utilizou o conhecimento de logaritmos para resolver o problema proposto, conceito mencionado na Reforma Francisco Campos - “[...] resolução de triangulos retangulos; prática de taboas de logaritmos” (Decreto nº 19.890, 1931, art. 10) - e defendido por Schrader no prefácio de seu livro, destacado no índice e desenvolvido no decorrer de sua produção. As propriedades dos logaritmos foram aplicadas e desenvolvidas juntamente com as introduções de seno, cosseno e tangente. A utilização de tábuas de logaritmos era usual no período; o acervo do Museu conta com um exemplar, datado de 1942, desenvolvido por Marc Chollet.
Os conteúdos trabalhados no caderno não mantêm a linearidade imaginada, já que, logo após a abordagem sobre relações trigonométricas, está o estudo envolvendo binômio de Newton, seguido pelo estudo de funções. O conceito de função tem foco nas funções de 1º grau, exponenciais, logarítmicas, circulares e inversas. Nas páginas finais do caderno, encontramos uma folha anexa na qual estava presente o triângulo de Pascal/Tartaglia, sendo relacionado com operações envolvendo binômio de Newton.
Considerações finais
A partir das fontes identificadas, analisamos determinadas práticas e o percurso de atuação do padre Godofredo Schrader S. J., entre os anos de 1905 a 1945, no sentido de compreender os processos de produção de conhecimento na área de matemática. Identificamos e analisamos a produção impressa e manuscrita, relacionada ao conteúdo de Geometria, sistematizada pelo professor Jesuíta Godofredo Schrader, e sua circulação nos colégios da Província Sul-brasileira da Companhia Jesus. Foi possível compreender que o padre jesuíta em questão tinha uma sólida formação acadêmica, o que repercute nos seus escritos e na sua atuação como docente.
No processo de contextualização histórica da Cia de Jesus, chegamos aos arquivos organizados, mas também a espaços de salvaguarda em que diferentes artefatos vinculados à educação estão guardados em caixa, prateleiras e gavetas ainda sem uma sistematização, isso não impediu, no entanto, nosso acesso e a utilização como empiria dessa investigação. Por meio desse processo de garimpo, localizamos manuscritos e impressos na forma de livros e cadernos que nos permitiram algumas das inferências que salientamos a seguir.
O ato de cotejar o conteúdo de um livro e do caderno de um aluno nos permitiu inferir que os livros escritos pelo professor Godofredo Schrader S. J. circularam para além do colégio catarinense, espaço para o qual foram destinados em um primeiro momento; e foram, de fato, utilizados por professores de matemática, embora inicialmente tenham sido pensados para o uso dos alunos. O indício que corrobora essa afirmação está no prefácio do primeiro manuscrito de 1926, quando Schrader convida os colegas a participar, para que, aprimorando a obra, esta possa ser publicada; e na análise de um conjunto de cadernos do Conrado Pecoits, que estudou, na década de 1930, no Colégio Anchieta de Porto Alegre. O exame dos cadernos indica que o livro fazia parte do conteúdo trabalhado na instituição, uma vez que coincidiam totalmente.
Se foram abrangidas, além dessas duas citadas, outras escolas, não é possível afirmar; no entanto desconfiamos que sim, uma vez que o impresso foi encomendado para o professor Godofredo pelo diretor da província, que solicitou que o conteúdo estivesse em acordo, à época, com aqueles previstos na legislação. Ainda, no prefácio do manuscrito, Schrader (1926Schrader, G. (1926). Compêndio de trigonometria elementar. Florianópolis, SC.) anuncia que, “[...] a pedido do diretor do gymnasio [...]”, em sua obra, deveriam constar todas as resoluções de problemas, o que indica que seria utilizada por docentes.
Percebemos que os conteúdos de geometria foram sistematizados, em um primeiro momento, na forma de livros manuscritos; e foram ampliados depois do diálogo com outros pares, algo perceptível pelas anotações de Schrader. Analisando as produções, observa-se que há diferenças entre a de 1926Schrader, G. (1926). Compêndio de trigonometria elementar. Florianópolis, SC., a de 1931, as manuscritas e a de 1936, impressa pela livraria do Globo.
Esses documentos indicam um profundo conhecimento dos conteúdos de matemática por parte do autor, bem como manifestam práticas curriculares relativas a essa disciplina. As práticas dizem respeito ao uso de materiais didáticos como o livro; o uso de cadernos para reprodução do conteúdo presente no livro e para resolução dos exercícios. Em algumas atividades específicas, os exercícios propostos requerem conhecimento para além do encontrado nos livros didáticos. Nesse sentido, percebe-se que o aluno utilizou o conhecimento de logaritmos para resolver os problemas indicados; o conteúdo relacionado aos logaritmos era mencionado na Reforma Francisco Campos, e a utilização de tábuas de logaritmos era usual no período. O acervo do Museu Anchieta conta com um exemplar, datado de 1942, desenvolvido por Marc Chollet.
Percebemos que ainda há adequação do conteúdo de matemática das escolas Jesuítas, em conformidade com a Reforma Francisco Campos, de 1931 (Decreto nº 2.857, 1898), que orientou, em nível nacional, o processo de modernização do ensino. Schrader destaca, na capa do livro, que estava seguindo os programas oficiais de 1931 para 3º, 4º e 5º anos ginasiais; para tanto, menciona os capítulos para cada série de ensino: 3ª série, do Capítulo 1 ao 13; 4ª série, do Capítulo 14 ao 22 e do 27 ao 31; 5ª série, do Capítulo 23 ao 26 e do 33 ao 41.
É ainda possível identificar a relação com os conteúdos trabalhados no Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, espaço que era a referência nacional em termos de currículo secundarista. Nesse sentido, cotejamos os conteúdos do livro de Schrader, 1926Schrader, G. (1926). Compêndio de trigonometria elementar. Florianópolis, SC., com o programa de ensino do Colégio Pedro II do mesmo ano. O programa de ensino convergiu com todos os conteúdos abordados por Schrader. A única divergência identificada foi sobre o estudo de trigonometria esférica, presente no Decreto nº 2.857, de 30 de março de 1898, publicado no Diário Oficial de 10 de abril de 1898, que aprova e regulamenta o Gymnasio Nacional e o ensino secundário nos estados. O estudo de trigonometria, no entanto, não foi identificado no programa de ensino do Colégio Pedro II.
Importa dizer que esses colégios eram frequentados por uma elite econômica à época, o que torna relevante retomar os conceitos de Chartier para refletir sobre os aspectos sociais, escolares e políticos em que foram produzidas essas práticas.
Enfatizamos, assim, a contribuição de Godofredo Schrader, S. J. na produção e sistematização do conhecimento matemático para as escolas Jesuítas e alguns indícios de sua circulação nessas instituições. Ele comunicou ideias que estavam vinculadas ao contexto político-social do período em estudo. Esse jesuíta, assim como os padres S. J. Pedro Browe, Luiz Schuler e Germano Dieckmann, colaboraram, por meio de suas obras e de suas práticas, para a divulgação dos conteúdos da matemática, presentes na legislação vigente, e para a ampliação das discussões acerca da Didática da Matemática - aspectos que serão trabalhados em outros artigos.
Referências
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- Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.
- Certeau, M., Girard, L., Mayol, P. (2012). A invenção do cotidiano 2: morar e cozinhar (17a ed., Ephraim Ferreira Alves, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes .
- Chartier, R. (2002). História e literatura. In R. Chartier. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes (p. 12-26). Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS.
- Choppin, A. (2004). História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa - FEUSP, 30(3), 549-566.
- Cícero, A. (2006). Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro, RJ: Record.
- Dallabrida, N. (2009). A reforma Francisco Campos e a modernização nacionalizada do ensino secundário. Educação, 32(2), 185-191.
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Rodadas de avaliação:
R1: três convites; duas avaliações recebidas. -
Nota:
Este estudo faz parte do projeto produtividade CNPq intitulado ‘Nos traços da cultura escrita, os rastros da cultura escolar: o estudo de manuscritos e impressos na História da Educação (Vale dos Sinos/RS, séc. XIX e XX)’ e é um recorte da tese de Juliana Mercedes Rheinheimer. -
Financiamento:
A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). -
Licenciamento:
Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).
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A Companhia de Jesus estende-se por todo o mundo, organizada em províncias e regiões. A Cúria Geral encontra-se em Roma. A organização em províncias geralmente é dada com base no número de jesuítas e obras em um determinado território; uma província pode ser formada somente por uma parte do território de um país, ou pode coincidir justamente com as suas fronteiras; mas também pode ser formada por vários países.
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2
Perspectiva Moderna, aqui, é entendida como uma racionalidade que inicia na Idade Moderna, século XVI, e se estabelece e se consolida com os preceitos iluministas, no sec. XVIII, de cientificidade, verdade, sujeito unificado e razão, dentre outras características produzidas nesse período. Além disso, se constituiu e se perpetua na lógica do pensamento social, adentrando a Idade Contemporânea.
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Em 1999 foi criada a Região do Mato Grosso, desmembrando da Província do Sul os estados do Mato Grosso e Rondônia.
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Para aprofundamento, consultar: Klein (2015).
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A Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (Plano e Organização de Estudos da Companhia de Jesus), conhecida como Ratio Studiorum, trata de um conjunto de normas criadas para regulamentar o ensino nos colégios jesuíticos. Tinha por finalidade ordenar as atividades, as funções e os métodos de avaliação nas escolas jesuíticas.
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Primeiro colégio de instrução secundária, foi criado em 1837 para ser referência de ensino no Brasil. Bernardo Pereira de Vasconcelos, à época Ministro da Justiça e do Império, foi responsável pela transformação do antigo Seminário de São Joaquim em ‘collégio de instruçcção secundária’.
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Companhia de Jesus, em latim, Societas Iesu, S. J.
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8
Companhia de Jesus, em latim, Societas Iesu, S. J.
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9
Franz Xaver Kugler (27 de novembro de 1862 - 25 de janeiro de 1929) foi um químico alemão, matemático, assiriólogo e padre jesuíta. Kugler nasceu em Königsbach, Palatinado, então parte do Reino da Baviera.
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Dicionário on-line de português. Acessado em https://www.dicio.com.br/.
Editado por
Editor-associado responsável:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
28 Ago 2022 -
Aceito
30 Jan 2023 -
Publicado
12 Jul 2023