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Interferentes eritrocitários e ambientais na anemia falciforme

Erythrocytes and environmental interferences on sickle cell anaemia

Resumos

A anemia falciforme tem um desenvolvimento clínico extremamente variável que se caracteriza principalmente por diferentes graus de intensidade da anemia hemolítica. As razões dessa variabilidade são parcialmente conhecidas na expressão fenotípica da doença. Apesar de ter um mesmo defeito genético, a anemia falciforme pode estar associada com níveis diferentes de Hb Fetal e interações com talassemia alfa que atuam como modeladores genéticos da doença. Entretanto, outros defeitos genéticos dos eritrócitos, com destaques para a deficiência de G-6PD, a esferocitose e as deficiências de enzimas anti-oxidantes (SOD, GPx e catalase) certamente interferem no curso clínico da doença. Os diferentes haplótipos da Hb S denominados por Banto, Benin, Senegal, Camarões e Asiático, tem sido apontados também como possíveis causas da heterogeneidade fenotípica da anemia falciforme. Toda essa diversidade que caracteriza a anemia falciforme está, em parte, relacionada à sua origem multicêntrica e que envolvem populações com diferentes anormalidades genéticas de proteínas e enzimas eritrocitárias. Por outro lado, além desses fatores caracterizados como interferentes eritrocitários, há os interferentes do meio ambiente em que está inserido o doente com anemia falciforme. Entre os interferentes ambientais destacam-se as situações sociais, econômicas e culturais do doente, e que tem influência no curso de sua doença. Diante desse quadro complexo e interativo, o presente artigo mostra a influência de certos interferentes eritrocitários e ambientais na anemia falciforme. Ao finalizar o artigo é proposto um protocolo de monitoramento laboratorial das síndromes falcêmicas, com destaque para a anemia falciforme.

anemia falciforme; interferentes eritrocitários; interferentes ambientais


Sickle cell anaemia runs na extremely variable clinical course. At one end of spectrum, it is characterized by a crippling haemolitic anaemia, interspersed with severe exacerbations, or crises, yet it may be an extremely mild disorder, which is found only by chance on rotine haematological examination. The reasons are only partly understood for these remarkable differences in phenotypic expression of what appears to be the same genetic defect: they include the level of Hb Fetal, coinheritance of the alpha thalassaemia and of other genetic variants that has influence as genetic modulation in sickle cell anaemia. However, other genetics abnormalities of erythrocytes: G-6PD deficiency, spherocytosis and deficiencies of anti-oxidant enzymes (SOD, GPx and Catalase) probably interfere on the clinical course of sickle cell anaemia. The haplotypes of the chromosome (Bantu, Benin, Camaroon and Arab-Indian) bearing the sickle gene is associated with assorted haematological and clinical features that are likely, at least in part, to be mediated throgh effects on Hb Fetal concentration. Beyond these factors characterizes as erythrocytes interferents, there are the environmental interferents. Between environmental interferents become detached the socio-economic and cultural situation of each patient. These aspects have influence on the life of affected individuals including social interactions, family relations, peer interaction, intimate relationships, education, enployment, violence, spiritual attitudes and navigating complexities of the health care system, providers and their ancillary functions. As a result of this article it is proposed a protocol of laboratorial management of sickle cell syndrome with detach to sickle cell anaemia.

Sickle cell anaemia; Erythrocytes interferences; Environmental Interferences


Artigo Especial

Interferentes eritrocitários e ambientais na anemia falciforme

Paulo C. Naoum

A anemia falciforme tem um desenvolvimento clínico extremamente variável que se caracteriza principalmente por diferentes graus de intensidade da anemia hemolítica. As razões dessa variabilidade são parcialmente conhecidas na expressão fenotípica da doença. Apesar de ter um mesmo defeito genético, a anemia falciforme pode estar associada com níveis diferentes de Hb Fetal e interações com talassemia alfa que atuam como modeladores genéticos da doença. Entretanto, outros defeitos genéticos dos eritrócitos, com destaques para a deficiência de G-6PD, a esferocitose e as deficiências de enzimas anti-oxidantes (SOD, GPx e catalase) certamente interferem no curso clínico da doença. Os diferentes haplótipos da Hb S denominados por Banto, Benin, Senegal, Camarões e Asiático, tem sido apontados também como possíveis causas da heterogeneidade fenotípica da anemia falciforme. Toda essa diversidade que caracteriza a anemia falciforme está, em parte, relacionada à sua origem multicêntrica e que envolvem populações com diferentes anormalidades genéticas de proteínas e enzimas eritrocitárias. Por outro lado, além desses fatores caracterizados como interferentes eritrocitários, há os interferentes do meio ambiente em que está inserido o doente com anemia falciforme. Entre os interferentes ambientais destacam-se as situações sociais, econômicas e culturais do doente, e que tem influência no curso de sua doença. Diante desse quadro complexo e interativo, o presente artigo mostra a influência de certos interferentes eritrocitários e ambientais na anemia falciforme. Ao finalizar o artigo é proposto um protocolo de monitoramento laboratorial das síndromes falcêmicas, com destaque para a anemia falciforme.

Palavras-Chave: anemia falciforme, interferentes eritrocitários, interferentes ambientais

Introdução

A doença falciforme agrupa um conjunto de genótipos diferentes caracterizados pela concentração da Hb S estar acima de 50%, conforme mostra a tabela 1. Nesse grupo destaca-se a anemia falciforme, geneticamente determinada pela homozigose da hemoglobina S (Hb SS), que além de ser a forma mais prevalente entre as doenças falciformes é, em geral, a que apresenta maior gravidade clínica e hematológica (tabela 2). A Hb S, quimicamente representada por , é uma variante da hemoglobina normal, a Hb A (), devido a uma mutação genética que ocorreu há milhares de anos e que afetou uma das bases nitrogenadas do DNA que compõe o gene que sintetiza a globina beta. Por ser uma anomalia da globina beta, as características clínicas desta doença somente podem ser percebidas após a estabilização da produção das globinas, fato que ocorre por volta do sexto mês de vida, quando a síntese da globina gama (atuante na fase fetal) é interrompida, enquanto que o gene beta sintetiza em sua plenitude globinas beta normais. No gene da globina beta S há a substituição de uma base nitrogenada do códon normal GAG para GTG, resultando na substituição do sexto aminoácido da globina beta - o ácido glutâmico (GAG) - por outro aminoácido diferente - a valina (GTG) - conforme mostra a figura 1. O ácido glutâmico é um aminoácido que tem sua cadeia lateral (grupo R) carregada negativamente, com ponto isoelétrico (pI) de 2,77. A valina tem seu pI de 5,97 e portanto é classificada como um aminoácido sem cargas, ou neutro. Essa troca de aminoácidos envolvendo a saída de um com carga negativa (ácido glutâmico) e a entrada de outro sem carga elétrica ou neutro (valina) resulta na perda de cargas negativas da Hb S em relação à Hb A, fato que causa a mobilidade eletroforética mais lenta da Hb S (figura 2).



A anemia falciforme têm importância clínica, hematológica, bioquímica, genética, antropológica e epidemiológica, entre outras, devido à sua morbidade e alto índice de mortalidade. A Organização Mundial da Saúde estima que anualmente nascem no Brasil perto de 2.500 crianças com doença falciforme, das quais cerca de 1.900 têm anemia falciforme (1). Em recente avaliação efetuada no Centro de Referência de Hemoglobinas da UNESP de São José do Rio Preto, envolvendo 101 mil análises de amostras de sangue de 65 cidades brasileiras, obteve-se resultados que indicam que a prevalência do heterozigoto falcêmico (Hb AS) é de 2,1%. Esses resultados confirmam a importância de testes de identificação de Hb S em nossa população, pois para cada 3,0 milhões de crianças que nascem anualmente no Brasil, cerca de 63 mil serão portadoras de Hb AS (2, 3, 4).

A anemia falciforme destaca-se também pela sua diversidade clínica e hematológica, motivando extensos estudos e pesquisas na busca do seu entendimento. Muitos desses estudos apresentam-se direcionados para determinados fatores, com destaques a para concentração de Hb Fetal do doente falcêmico, interação com talassemia alfa, ou a diferenciação da Hb S conforme seu haplótipo - ou seja, a composição das bases nitrogenadas que compõe o agrupamento de genes beta, delta, gama-alanina, gama-glicina e epsilon, no cromossomo 11 (5).

Este artigo busca na literatura e na nossa experiência ao longo de trinta anos de pesquisas, respostas abrangentes para explicar os interferentes eritrocitários e ambientais que influenciam na diversidade clínica e laboratorial da anemia falciforme. Para que se faça uma sequência lógica do presente assunto, consideraremos tópicos importantes como a origem e dispersão do gene Beta S, os efeitos físico-químico da molécula de Hb S, a degradação oxidativa da Hb S, a concentração de Hb Fetal, as interações da Hb SS com talassemia alfa, deficiência de G-6PD e esferocitose, os diferentes haplótipos de Hb S, e os interferentes ambientais. Ao finalizar o artigo, será apresentado um protocolo de monitoramento laboratorial da anemia falciforme.

A origem e dispersão da Hb S

Estudos antropológicos associados às análises biomoleculares, sugerem que o gene anormal para a síntese da Hb S pode ter ocorrido entre os períodos Paleolítico e Mesolítico, aproximadamente há 50 e 100 mil anos, nas regiões centro-oeste da África, Índia e leste da Ásia. A causa que motivou a mutação do gene da hemoglobina normal (Hb A) para o gene da Hb S ainda permanece desconhecida (3, 6). Admite-se, porém, que a origem da Hb S foi multi-regional, atingindo populações com diferentes características genéticas. Estudos realizados em populações africanas mostram que a expansão do gene da Hb S se deu efetivamente no período pré-Neolítico entre 10 mil e 2 mil anos antes de Cristo, e foi marcada pela miscigenação entre os povos da região do Saara. Nesse período o Saara era composto por terras férteis, com agricultura desenvolvida para o abastecimento de suas populações. No período Neolítico (3.000 - 500 anos a.C.) ocorreu a transmissão da malária causada pelo Plasmodium falciparum proveniente da região que hoje corresponde à Etiópia. Destaca-se durante esse período o aumento do processo migratório, o assentamento de grupos populacionais e o estabelecimento de grandes centros de civilização no vale do rio Nilo, bem como na Mesopotâmia, Índia e sul da China. No continente africano, a malária se propagou da costa oriental para a costa ocidental formando uma faixa coincidente com a alta prevalência de Hb AS. Esse fato levou Allison, em 1954, a estabelecer uma relação entre o efeito protetivo da Hb S em portadores heterozigotos (Hb AS) frente ao desenvolvimento da malária causada pelo Plasmodium falciparum (4).

Com a desertificação do Saara ocorrida no período Neolítico posterior (2.000 a 500 anos a.C.), suas populações migraram para outras regiões da África, atingindo aquelas banhadas pelo mar Mediterrâneo, fato que facilitou sua introdução no continente europeu notadamente no sul da Itália e Grécia. No período Medieval, entre os séculos 1 e 15, o gene da Hb S se expandiu para o leste e sudeste europeu (6). A introdução da Hb S nas Américas e no Brasil se deu com maior intensidade entre os séculos 16 e 19, motivado pelo tráfico de escravos africanos (7).

A trajetória dos negros africanos para o Brasil foi heterogênea, uma vez que o tráfico de escravos se desenvolveu ao longo de 300 anos, carreando escravos de quase toda a costa ocidental da África. Acredita-se que nesse período entraram pelos portos da Bahia e Rio de Janeiro, pelo menos 3,6 milhões de negros africanos, conforme pode ser verificado na tabela 3. Por outro lado, a migração européia e asiática para o Brasil também foi diversificada destacando principalmente os imigrantes portugueses, italianos e espanhóis, além de várias outras raças de origens européia e asiática, conforme mostram as tabelas 4 e 5. Admite-se, portanto, que esses contingentes populacionais também portadores de alterações genéticas, contribuíram para a introdução de vários tipos de hemoglobinas variantes, talassemias, enzimopatias e doenças de membrana eritrocitária, entre outras. Os processos miscigenatórios entre os diferentes povos que constituem a atual população brasileira ocorreram de forma gradual ao longo dos séculos, tornando-se abrangentes a partir do século 20. Este fato pode ser avaliado na literatura disponível (1, 2, 3, 4, 7), entre outras, bem como em censos demográficos, de tal forma que até os anos 80 nossa população era composta por 54,2% de brancos, 39,2% de mistos (pardos e mulatos), 5,8% de negros, 0,6% de asiáticos e 0,2% de índios (tabela 6). Por essas razões, o gene da Hb S dispersou-se amplamente na população brasileira, interagindo geneticamente com outras hemoglobinas variantes, talassemias, enzimopatias e esferocitoses.

Os efeitos fisiopatológicos da DEOXI-Hb S

O processo mutacional que deu origem à Hb S é a causa das profundas alterações fisiopatológicas que afetam a molécula no seu estado desoxigenado, e que são desencadeadas por meio da forma de polímeros de Hb S, degradação oxidativa da Hb S com precipitação de corpos de Heinz, e geração de radicais livres oxidantes. Todas essas três formas de agressões intra-eritrocitárias atuam contra a estrutura e o desempenho fisiológico da membrana do eritrócito falcêmico, provocando lesões e perda da sua maleabilidade.

A polimerização da Hb S ocorre sequencialmente em três níveis: molecular, celular e circulatório. No nível molecular o desenvolvimento do processo da falcização se dá a partir do momento em que a oxi-Hb S perde o oxigênio e se torna deoxi-Hb S. A deoxi-Hb S promove a formação de pontes de hidrogênio entre os aminoácidos valina da posição número 1 da globina betaS, que é normalmente sintetizada para esta posição, e a valina mutante que substituiu o ácido glutâmico na posição 6 da mesma globina. A formação dessas pontes de hidrogênio modifica a estrutura espacial da molécula de Hb S e promove contatos inter-moleculares com outros aminoácidos da globina beta S que participam da formação do tetrâmero. Os principais aminoácidos envolvidos são a fenilalanina da posição 85 e a leucina da posição 88. Como consequência, formam-se agregados desses filamentos que se polimerizam e alteram a estrutura globular das moléculas de Hb S, modificando também a morfologia discóide do eritrócito para formas bizarras, das quais a mais conhecida é o afoiçamento (figura 3). As variáveis que interferem na formação e na cinética da polimerização da Hb S são o oxigênio, a concentração da hemoglobina (Hb S) corpuscular média - ou C[Hb S] CM, a temperatura e outras hemoglobinas normais e variantes (4, 8, 9). O oxigênio é o elemento mais importante, pois somente a deoxi-Hb S se polimeriza, e qualquer fator que o estabilize (ex.: a queda do pH sanguíneo e o aumento da concentração do 2,3 di-fosfoglicerato) reduzirá a afinidade pelo oxigênio, perpetuando o estado desoxigenado da Hb S e a sua polimerização (8, 9). A C[Hb S] CM é normalmente superior ao limite da solubilidade da Hb S em condições experimentais, fato que pode explicar sua facilidade em cristalizar-se e formar polímeros. A redução da temperatura desfaz a polimerização em condições experimentais. As hemoglobinas normais, principalmente a Hb A, seguida da Hb Fetal, tem um maior efeito inibidor da polimerização que outras hemoglobinas variantes. As Hb variantes que melhor se co-polimerizam com a Hb S são as seguintes, em ordem decrescente: C, D, O Arábia e J (8). No nível celular, os homozigotos para Hb S (ou Hb SS) conservam seus eritrócitos com a forma bicôncova se o nível de saturação de oxigênio da Hb S estiver acima de 65% ca. e retornam à forma discóide quando oxigenadas, porém acumulam-se gradativamente produtos de degradação celular provenientes da falência parcial das bombas de sódio, potássio, cálcio e ATPase. Com a perda de potássio e da água a C[Hb S] CM se eleva e favorece a polimerização, que se intensifica com a falência da bomba de cálcio/ATPase, alterando a permeabilidade da membrana eritrocitária (Figura 4). Esse processo deletério é a principal causa dos eritrócitos que se tornam irreversivelmente falcizados. A membrana eritrocitária é muito afetada durante a falcização, caracterizada por desarranjos das proteínas espectrina-actina, diminuição das glicoproteinas, geração de radicais livres oxidantes e orientação anormal dos fosfolipídeos, apresentando deformações sob forma de escavações na membrana dos eritrócitos (figura 5). No nível circulatório a alteração da plasticidade normal dos eritrócitos desencadeada pelos efeitos polimerizantes da Hb S tornam os eritrócitos falcêmicos com maior possibilidade de aderirem ao endotélio vascular. Esta aderência decorre de interações entre as células endoteliais e os eritrócitos falcêmicos, com a participação de antígenos de superfície celular (CD36 e CD44) e integrinas - proteínas de membranas que juntamente com fibronectina e laminina se ligam às células falcêmicas. As proteínas plasmáticas também participam da ligação dos eritrócitos falcêmicos com as células endoteliais, com destaques para o fator de Willebrand, trombospondina, fibrinogênio e fibronectina (8). As células endoteliais interagem com CD36, lamininas, glicoproteina 1B, molécula de adesão vascular e receptor Fe, conforme resume a figura 6. Como conseqüência da elevada adesividade do eritrócito falcêmico ao endotélio vascular dos capilares, ocorre a estase venosa que desencadeia a hipoxia tecidual, fato que leva mais moléculas de Hb S ao estado de deoxi-Hb S, exarcebando uma situação circulatória já desfavorável e lesando os tecidos perfundidos por esses capilares. Eventualmente pode ocorrer oclusão total dos capilares (vaso-oclusão) com trombose, e desencadeamento de mecanismos da coagulação. Os tecidos malperfundidos sofrem infartos com necrose e formação de fibrose, principalmente no baço, medula óssea e placenta. Todos esses eventos provocam lesões teciduais agudas, com crises de dores e lesões crônicas de órgãos, conforme mostra as seqüências de eventos desencadeados a partir da desoxigenação de Hb S esquematizados na figura 4. (3, 8, 9, 10).





A degradação oxidativa da Hb S

O processo de desoxigenação da Hb S favorece a metahemoglobinização da Hb S, aumentando sua concentração e superando a ação da enzima meta Hb-redutase, fato que causa a formação de hemicromos e precipitação de globina S sob forma de corpos de Heinz promovendo o desalinhamento da proteína banda-3 da membrana do eritrócito. Os eritrócitos falcizados e com alterações na estrutura da membrana alteram a distribuição das moléculas de imunoglobinas G(IgG) em suas superfícies, cujas concentrações elevadas em determinadas regiões dos eritrócitos facilitam as ligações com os receptores Fc das células endoteliais e, dessa forma, induzem a ação fagocitária dos macrófagos no sistema retículo endotelial (SRE), causando hemólise e anemia (figura 4). Em recente pesquisa realizada no Centro de Referência de Hemoglobinas da UNESP de São José do Rio Preto, evidenciou-se que a simples presença de Hb S, independente do genótipo e de sua concentração, é suficiente para produzir a metahemoglobinização desta hemoglobina. Nesse estudo, o genótipo SS apresentou maior concentração média de meta-Hb (3,97%), seguido da interação Hb S / Tal. Beta (2.67%) e da Hb AS (1,07%) (11). A mesma pesquisa revelou que a intensidade da presença de corpos de Heinz apresenta relação direta com o aumento da concentração da Hb S nos eritrócitos, assim, no genótipo SS o índice médio de presença de eritrócitos com corpos de Heinz foi de 22 células positivas para cada mil analisadas, enquanto que para Hb S / Tal. beta foi de 14 por mil, na Hb AS 4 por mil, e no grupo controle Hb AA 1 por mil (11).

A geração de radicais livres nos eritrócitos com Hb S ocorre quando a oxi-Hb S se muda para a forma deoxi-Hb S. A liberação do oxigênio o torna suscetível ao ataque de elétrons que se encontram no interior da célula. Para evitar que o oxigênio fique eletrizado e se transforma em ion superóxido (O2), a enzima anti-oxidante eritrocitária conhecida por superóxido dismutase (SOD) atua no sentido de mudar o radical superóxido para peróxido de hidrogênio (H2O2). O peróxido de hidrogênio, que também é um radical livre, sofre a ação anti-oxidante de outras duas enzimas eritrocitárias: a glutationa peroxidase (GSH-Px) e a catalase, transformando-o em moléculas de água (figura 4). A deficiência hereditária de enzimas anti-oxidantes tem sido relatada em diversas populações, e quando associada à anemia falciforme contribui ainda mais na oxidação da Hb S, elevando a formação de produtos de degradação desta hemoglobina, fatos que causam a redução da vida média do eritrócito falcêmico, aumento do grau de hemólise e intensificação da anemia (11, 12). De uma forma geral, as proteínas da membrana celular podem ser alvos dos ataques de radicais livres quando estes estão dentro ou fora das células em altas concentrações, desnaturando-as. O acúmulo de proteínas desnaturadas interfere nas funções celulares. Vários aminoácidos de importância para a função protéica são suscetíveis às lesões causadas pelos radicais livres: metionina, triptofano, histidina, cisteina e tirosina. As proteínas lesadas por radicais livres podem dar origem a outros radicais, por exemplo: radicais hidroxila (HO) gerados do acúmulo de H2O2 na presença de ferro proveniente da degradação da hemoglobina S; entre os radicais livres intermediários destacamos hidroperóxidos lipídicos que ao reagirem com ferro geram os radicais alcoxil (RO•) e peroxil (ROO•). A geração desses radicais amplificam as lesões celulares devido aos contínuos processos de novos ciclos de peroxidação lipídica, resultando na liberação de alcanos (malonaldeidos) e alquenos (4-hidroxinonenal), causando lesões irreversíveis nos eritrócitos falcizados e tendência a deformações, conforme mostra a figura 4. Como se pode observar, todos os efeitos deletérios aos eritrócitos com Hb S ocorrem no momento em que a oxi-Hb S se transforma em deoxi-Hb S, desencadeando três processos fisiopatológicos caracterizados pela formação de polímeros de Hb S, metahemoglobinização da Hb S, e liberação de radicais livres de oxigênio. Os produtos e sub-produtos provenientes desses processos fisiopatológicos atacam a membrana do eritrócito com Hb S lesando-a biologicamente, fato que propicia além da redução da vida da célula, outros eventos fisiopatológicos que caracterizam a doença falciforme. No caso da anemia falciforme, o genótipo SS é suscetível à maior intensidade de degradação oxidativa, que laboratorialmente podem ser demonstradas pela alta concentração de metahemoglobina e precipitação intra-eritrocitária de corpos de Heinz (11).

Concentração de Hb fetal na anemia falciforme

A concentração máxima de Hb Fetal no sangue de uma pessoa com idade superior a seis meses é variável de 1 a 2%, dependendo do método usado para sua avaliação, e está restrita a poucos eritrócitos identificados por células-F. Cerca de 3 a 7% dos eritrócitos contém Hb Fetal e cada um deles têm 4 a 8 picogramas (pg) de Hb Fetal juntamente com 22 a 26 pg de Hb A. O número de células-F de um indivíduo está sob controle genético, embora não se sabe se é do tipo monogênico ou poligênico. Tanto o número de células-F e a quantidade de Hb Fetal em cada célula-F pode estar aumentado em várias condições genéticas ou adquiridas. Entretanto, as duas principais situações em que o nível de Hb Fetal está elevado são a persistência hereditária de Hb Fetal (PHHF) e nas diversas formas de talassemias beta. Em ambos os casos as alterações hematológicas avaliadas laboratorialmente são diferentes (tabela 7). Por outro lado, o aumento de Hb Fetal causada por situação adquirida se deve especialmente ao uso de determinadas drogas, como se verá adiante.

Na PHHF a síntese de Hb Fetal continua mesmo após o sexto mês de vida, com valores cujas elevações são variáveis entre 1 a 100%. As duas principais causas da PHHF se devem a diferentes deleções que atingem os dois genes gama (glicina e alanina) do cromossomo 11, e às mutações que não são por deleção (mutações de não-deleção). Entre as pessoas de raça negra, a PHHF se deve às deleções nos genes gama, com concentrações de Hb Fetal variáveis de 5 a 30% entre os heterozigotos, e os portadores são clínica e hematologicamente normais (tabela 8). Na PHHF homozigota os níveis de Hb Fetal podem chegar entre 90 e 100%, e apesar dos portadores serem saudáveis é comum a presença de eritrocitose (devida à baixa afinidade da Hb Fetal pelo oxigênio) associada à microcitose e a hipocromia, com valores hematimétricos similares ao da talassemia beta menor (4, 12). Os portadores de PHHF por mutações de não-deleção têm eritrócitos normais e ausência de manifestações clínicas. A elevação de Hb Fetal nesses casos é muito variável e, da mesma forma, a distribuição intraeritrocitária pode ser pancelular ou heterocelular (tabela 9).

O significado clínico da associação da PHHF na anemia falciforme se mostra favorável hematologicamente conforme mostra a tabela 1, pois nesta interação Hb SS/PHHF as células-F têm baixas concentrações de Hb S, fato que inibe a polimerização da Hb S bem como o desencadeamento da falcização dos eritrócitos. Assim, admite-se que a concentração intra- eritrocitária da Hb Fetal seja particularmente útil na proteção contra o processo de falcização por não interagir com a Hb S quando esta se insolubiliza. Testes realizados "in vitro" em soluções desoxigenadas contendo Hb A + Hb S, mostraram que ocorre a insolubilização e precipitação somente da Hb S, e ao se redissolver o precipitado se detecta ambas hemoglobinas A e S. O mesmo experimento realizado em soluções contendo Hb Fetal e Hb S mostraram que a Hb Fetal não se precipita como a Hb S, e este fato sugere que as globinas gama exercem um efeito inibidor sobre a polimerização das globinas beta S, evitando a falcização (8, 13).

As evidências de que a elevação de Hb Fetal em pacientes com anemia falciforme seja um fator moderador das conseqüências clínicas do processo da falcização, fizeram com que muitos pesquisadores se interessassem em conhecer as situações fisiológicas e terapêuticas capazes de elevarem a síntese de Hb Fetal. Assim, um dos primeiros trabalhos nesse sentido se deu pela observação de que gestantes a partir do segundo trimestre de gestação apresentavam níveis elevados de Hb Fetal. Com base nesses dados, Beutler, em 1969, administrou gonadotrofina coriônica humana (hCG) em pacientes com anemia falciforme e obteve discretas elevações no nível de Hb Fetal (14). Da mesma forma, a progesterona foi administrada em pacientes com Hb SS, cujos resultados divulgados em 1969 por Beutler, e em 1982 por De Ceulaer e cols, mostraram outra vez que a Hb Fetal apresentava-se com discretas elevações de seus níveis em relação ao nível basal de cada paciente (14, 15). Os estudos na busca de medicamentos que elevassem os níveis de Hb Fetal continuaram com De Simone e cols em 1982 de forma experimental em babuinos anêmicos, que passaram a receber por via sub-cutânea a droga 5-azacitidina (Aza-C) (16). Os animais que receberam a Aza-C tiveram elevações de síntese de Hb Fetal entre 70 e 80% do conteúdo total de hemoglobina e o aumento de células-F em 90% dos eritrócitos, enquanto que reciprocamente a síntese de globina-betaS diminuía. Esses primeiros relatos promoveram buscas incessantes de medicamentos que pudessem ser aplicados de forma terapêutica em pacientes com doenças graves causadas por anormalidades de síntese de globina-beta. A partir desses relatos vários pacientes com talassemia maior e anemia falciforme foram estudados por Ley e cols em 1982 e 1983, e Charache e cols em 1983 (17, 18, 19). Esses pacientes após terem recebido Aza-C por via intravenosa, apresentaram aumento na concentração de Hb Fetal e no número de células F, geralmente nos primeiros 2 e 3 dias, e atingindo níveis máximos de elevação entre quatro e sete vezes acima do valor da Hb Fetal dosada antes do tratamento. As avaliações das células falcêmicas desses pacientes mostraram que o número de células densas diminuíram, bem como o grau de hemólise. Estudos realizados com outros agentes quimioterápicos como a citosina arabinosídeo (ARA-C) e efetuados por Papayannopoulo e cols em 1984, a vinblastina por Veith e cols em 1985, e mileran por Liu e cols em 1990, também mostraram efetivo estímulo na síntese de Hb Fetal (20, 21, 22). Apesar da eficácia dessas drogas em elevar a síntese de Hb Fetal, os efeitos citotóxicos, e inclusive sua potencialidade carcinogênica, fizeram com que as mesmas fossem abandonadas como uso terapêutico na anemia falciforme e talassemia beta. Paralelamente a esses estudos, as pesquisas desenvolvidas com a hidroxiuréia (HU) - um agente quimioterápico usado desde os anos 60, passaram a ser mais promissores. Primeiramente porque esta droga não é incorporada ao DNA, como são os casos de Aza-C, Ara-C e mileran, e sua ação decorre por inibir a ribonucleotídeo-redutase, uma enzima que converte ribonucleotídeos em desoxiribonucletídeos para a síntese de DNA (23). Embora a HU tenha modestos efeitos em vários tipos de tumores, o seu uso clínico em oncologia está limitado ao controle das fases crônicas da leucemia mielóide crônica e na rápida redução do número de células blásticas em pacientes com leucemias agudas durante a fase inicial de tratamento, além do uso também no tratamento da policitemia primária ou policitemia vera (23). Os primeiros resultados dos efeitos positivos da HU, caracterizados pela elevação dos níveis de Hb Fetal em pacientes com anemia falciforme surgiu em 1984. Embora a HU também tenha efeitos tóxicos, se bem que menor que as drogas anteriormente citadas, estudos efetuados em 299 pacientes falcêmicos, americanos e canadenses, mostraram que os episódios de crises dolorosas diminuíram significativamente ao longo de um ano de rigorosa avaliação (23, 24). Apesar disso, estudos multicêntricos estão levantando os resultados do uso da HU associada com várias características clínicas, genéticas e de efeitos terapêuticos. Finalmente, a busca de outras drogas que elevam os níveis de Hb Fetal, como são os casos da eritropoietina (Epo) e butiratos, ainda apresentam grandes diversidades de resultados, fatos que tornam suas eficácias ainda inconclusivas. A tabela 10 apresenta as principais drogas capazes de elevarem os níveis de Hb Fetal em humanos.

Os haplótipos da anemia falciforme

Todo cromossomo é constituído por enormes sequências de quatro bases nitrogenadas conhecidas por adenina (A), guanina (G), citosina (C) e timina (T), que formam macromoléculas de ácido desoxiribonucleico, o DNA, Nesta estrutura macromolecular há segmentos em que seqüências de bases nitrogenadas são reconhecidas por RNA ribossomicos e traduzidas em aminoácidos, e há outros segmentos em que este reconhecimento não ocorre. Os segmentos do DNA que codificam os aminoácidos, e consequentemente sintetizam as proteínas, são denominados por genes. No caso específico da Hb S, a mutação de apenas uma base nitrogenada no gene beta da globina causou a troca do sexto aminoácido, o ácido glutâmico, pela valina, dando origem a uma hemoglobina variante cujas combinações entre Hb S e outras hemoglobinas determinaram diferentes genótipos, por exemplo SS, AS, SF, SD etc. Estes genótipos são facilmente caracterizados por eletroforeses de hemoglobinas em pH alcalino e ácido, e dosagem de Hb Fetal. Assim, diferentemente dos genótipos que expressam o produto final da síntese de proteínas, os haplótipos são caracterizados por sequências de bases nitrogenadas que compõe o DNA do grupamento de genes que sintetizam as proteínas. A análise de haplótipos se faz por meio da utilização de enzimas específicas extraídas de bactérias, também conhecidas como enzimas de restrição. Há uma variedade dessas enzimas que se diferenciam pela sua especificidade em fragmentar o DNA em pedaços, conforme as seqüências de bases nitrogenadas reconhecidas.

Um exemplo da ação dessas enzimas é a endonuclease de restrição Eco RI que fragmenta o DNA quando identifica a seguinte seqüência de bases nitrogenadas guanina-adenina-adenina-timina-timina-citosina, ou G-A-A-T-T-C, ou o seu inverso C-T-T-A-A-G (9, 12). Dessa forma, com a utilização de técnicas de biologia molecular no estudo da anemia falciforme, por meio da ação de seis diferentes enzimas de restrição: Hinc I, Hinc III, Xnm I, Hinf I, Hpa I, e Bam HI, foi possível identificar cinco haplótipos de Hb SS denominados conforme a origem de sua procedência geográfica: Asiático (ou Indiano-Asiático), Senegal, Benin, Banto, e Camarões (figura 1). Estudos realizados em diferentes regiões da África, países do Mediterrâneo, Caribe, USA, Arábia Saudita, Índia, Portugal e Brasil, indicaram que os haplótipos Senegal, Benin e Banto foram os mais difundidos nas Américas devido ao tráfico de escravos, enquanto que o Asiático (ou Árabe ¾ Indiano) se restringe principalmente à região da Arábia Saudita e Oriente Médio, e o haplótipo Camarões está circunscrito em determinadas regiões da África. Estudos realizados com técnicas de biologia molecular tem relacionado os haplótipos com grau de gravidade ou benignidade da anemia falciforme, que indiretamente também estão relacionadas com a concentração de Hb Fetal e interação com a talassemia alfa. Os portadores de haplótipos Senegal e Asiático, por exemplo, que apresentam menor gravidade do quadro clínico da anemia falciforme, tem também altas taxas de Hb Fetal devido à maior intensidade da persistência hereditária de Hb Fetal. Da mesma forma, os portadores de haplótipo Asiático com anemia falciforme sem gravidade tem alta prevalência interativa com talassemia alfa. Os portadores de haplótipos Benin, Banto e Senegal, por sua vez, apresentam níveis menores de Hb Fetal, e consequentemente a gravidade clínica da anemia falciforme é maior. A tabela 11 resume a relação entre haplótipos de Hb S, nível de Hb Fetal e gravidade clínica. Deve-se, destacar também, que essas relações são muito complexas, pois além da influência dos níveis de Hb Fetal e da interação com talassemia alfa nas diferentes populações africanas ¾ base da dispersão do gene da Hb S - ocorreu também a miscigenação entre os diferentes haplótipos. Assim, especialmente no Brasil, as pessoas com anemia falciforme apresentam predomínio de haplótipos heterozigotos, com prevalência de 66% do haplótipo Banto, 32% de Benin e 2% de Senegal (4, 9, 12).

Finalmente, é importante destacar que as referências que se fazem relacionando a gravidade clínica da anemia falciforme com os haplótipos da Hb S devem ser interpretadas com ressalvas, pois pelo menos dois fatores hereditários apresentam-se como interferentes, como são os casos do aumento da concentração de Hb Fetal e a interação com talassemia alfa, e que estão associados aos haplótipos de Hb S. Diante do exposto, e considerando as limitações técnicas e econômicas que restringem a implantação de análises de biologia molecular na grande maioria dos laboratórios clínicos e hematológicos, é importante que a avaliação da concentração de Hb Fetal e a pesquisa de talassemia alfa em pacientes com anemia falciforme sejam realizadas para que se possa estabelecer com segurança os seus genótipos.

Hb SS e talassemia alfa

A talassemia alfa é uma situação de origem genética, caracterizada pela falha na síntese de globinas alfa, devido à lesão molecular de um ou mais genes alfa dos quatro normalmente dispostos nos dois cromossomos 16 (µµ/µµ) de cada pessoa, Especialmente nos negros, a talassemia alfa resulta geralmente da deleção de um gene alfa (-µ/µµ) ou de dois genes alfa (-µ/-µ). Cerca de 1/3 da maioria das populações negras examinadas tem talassemia alfa e, assim, são frequentes as interações entre anemia falciforme e talassemia alfa (9). Na presença dessa interação observa-se a redução do volume corpuscular médio (VCM) dos eritrócitos, reticulocitoses menores, abrandamento dos episódios hemolíticos, e maior concentração de hemoglobina, quando comparado com indivíduos apenas com a anemia falciforme (Hb SS-µµ/µµ), conforme pode ser observado na tabela 12. A interação anemia falciforme com talassemia alfa reduz a concentração da Hb S corpuscular média, a C[Hb S]CM, diminuindo consequentemente a intensidade da Hb S em formar polímeros. Além disso, a diminuição da C[Hb S]CM reduz o número de células densas, permitindo que os eritrócitos retornem com facilidade à sua forma normal. Esses fatos contribuem para a diminuição do grau de hemólise e da anemia (4, 9, 12).

Os relatos da literatura científica mostram que os efeitos fisiopatológicos da falcização ainda são inconclusivos, conforme mostra a avaliação abaixo:

- Os eventos vaso-oclusivo não diminuem;

- Maior ocorrência de episódio de dores;

- Maior ocorrência de doenças ósseas;

- Diminuem as úlceras nos membros inferiores;

- Diminuem as doenças vasculares de retina;

- Aumentam as chances de necrose asséptica do fêmur.

Hb SS e deficiência de G-6PD

A deficiência de G-6PD é uma alteração genética recessiva ligada ao cromossomo X, cujo grau de heterogeneidade clínica e hematológica está na dependência de um dos cinco tipos em que é classificada (tabela 13). A deficiência de G-6PD tem elevada prevalência na África, alcançando valores de 30% em determinadas regiões (25), se distribui coincidentemente no continente africano na mesma faixa da Hb S e, da mesma forma que no traço falcêmico, há evidências de que o portador desta enzimopatia seja também resistente ao desenvolvimento do ciclo da parasitose do Plasmodium. No Brasil a prevalência da deficiência de G-6PD é variável entre 1 e 4% nas pessoas brancas e entre 9 e 15% entre as pessoas negras (26, 27). Por essas razões não é rara a observação da associação entre anemia falciforme e deficiência de G-6PD numa mesma pessoa. As vantagens ou desvantagens seletivas nessas associações ainda são discutíveis, mas por outro lado há evidências comprovadas de que sob circunstâncias que desencadeiam a oxidação da hemoglobina, como são os casos do uso de drogas oxidantes, ocorrem graves crises hemolíticas, quando há associação entre anemia falciforme e deficiência de G-6PD (28). Entretanto, há de se considerar a heterogeneidade da hemólise e anemia causadas pela deficiência dessa enzima devido aos diferentes tipos (tabela 13), fato que certamente interfere em graus diversos quando associados à anemia falciforme.

Hb SS e esferocitose hereditária

A esferocitose hereditária é uma doença geneticamente heterogênea do tipo dominante, causada por alterações nas composições proteicas da membrana eritrocitária. A associação entre anemia falciforme e esferocitose hereditária está, portanto, na dependência dos interferentes da própria anemia falciforme (exemplo: talassemia alfa, Hb Fetal, etc.) e o grau de lesão proteíca causadora da esferocitose hereditária. Entretanto, de forma geral, a simples associação entre essas duas patologias causa anemia hemolítica com maior intensidade e esplenomegalia, do que usualmente se verificam na anemia falciforme. Presume-se, assim, que a piora do quadro hematológico se deve à combinação dos efeitos hemolíticos das duas doenças. Por outro lado há relatos de pacientes com Hb SS e Hb Fetal elevada (entre 13 e 20%) que, apesar da associação com a esferocitose, apresentavam poucas crises de hemólises (8, 29).

Principais conseqüências dos interferentes ambientais na anemia falciforme

Os principais interferentes ambientais que certamente têm influência nas conseqüências fisio-patológicas da anemia falciforme podem ser agrupados em três classes distintas, muitas vezes indissociáveis, e aqui identificados por: (a) meio ambiente, (b) deficiência alimentar e qualidade nutricional inadequada e (c) deficiência nas assistências médica, social e psicológica.

Como se sabe, a grande maioria dos doentes falcêmicos e, notadamente aqueles com anemia falciforme, no Brasil, têm sua origem proveniente dos negros africanos. Historicamente os negros foram introduzidos como escravos nesse país e, mesmo com a libertação desse regime, seus descendentes tiveram poucas oportunidades de se desenvolverem social e economicamente como seria de se desejar. Nesse contexto, a maioria da população negra brasileira e, consequentemente os doentes falcêmicos, habitam as regiões mais pobres e carentes das nossas cidades. Os aspectos ambientais desses locais de moradias se caracterizam, em geral, pelas deficiências de saneamento básico, poluição ambiental, violência, qualidades inadequadas do ar, da água, de transportes e de higiene, entre outros.

A pobreza a que estão subjugados a maioria da população negra em nosso país, determina uma situação nutricional deficiente e desbalanceada, notadamente de proteínas e vitaminas. As águas contaminadas por nitritos e microorganismos provenientes de dejetos humanos e animais são fatores que concorrem para acentuar a mortalidade dos pacientes falcêmicos.

As deficiências nos atendimentos médico e social, por sua vez, são determinantes para a queda da expectativa de vida e falta de auto-estima do doente falcêmico. O atendimento médico especializado para o falcêmico está restrito a pouquíssimos centros, fato que o torna inexpressivo em nosso país. Somam-se a esta situação o desconhecimento médico e paramédico no que se refere à clínica, ao tratamento, ao diagnóstico clínico e laboratorial, e ao acompanhamento adequado e seguro do doente. Por outro lado, os atendimentos social e psicológico sofrem idênticas insuficiências acima expostas.

Todos esses fatores listados como interferentes ambientais contribuem com as diversidades clínicas e hematológicas da anemia falciforme. Um exemplo específico dos interferentes decorre da oxidação da Hb S por gases poluentes (NOx e SOx), bem como dos alimentos e água contaminados por nitritos. A susceptibilidade à oxidação da hemoglobina é muito maior em pessoas com deficiências de enzimas anti-oxidantes, como são os casos de superóxido dismutase (SOD) glutatião peroxidase (GPx) e catalase. Assim, é de se esperar que na Hb SS a deficiência de uma dessas enzimas anti-oxidantes tenha influência na destruição precoce do eritrócito, e essa destruição poderá ser muito maior se o ambiente em que vive o paciente falcêmico contém gases poluentes oxidantes. Dessa forma, é importante para os profissionais médicos e paramédicos que se dispõe a prestar assistência médica, social, psicológica e laboratorial, tenham também amplo conhecimento da história relatada de cada um dos pacientes falcêmicos, com referências ao seu modo de vida, dos ambientes em que vivem e trabalham, bem como das suas dificuldades diárias (transportes, alimentação, desemprego, violência, etc.).

Conclusão

Os constantes relatos médicos das diversidades clínicas e laboratoriais da anemia falciforme podem estar relacionados principalmente com um conjunto de situações que foram expostas neste artigo como interferentes eritrocitários e ambientais. Ambos podem estar associados durante toda a vida ou durante determinados períodos da vida de uma pessoa com anemia falciforme. Os diferentes fatores que compõem esses interferentes certamente influenciam na diversidade clínica da doença, na morbidade e na mortalidade. Para que se possa entender cada vez mais a anemia falciforme é importante que se estabeleça condutas de monitoramento para cada paciente, incluindo, além da clínica e da conduta terapêutica, as suas condições sociais e psicológicas bem como uma eficiente ficha laboratorial que contêm a determinação conclusiva do genótipo, avaliação periódica de determinados testes e a avaliação do perfil eritrocitário interativo. Sob o ponto de vista laboratorial a diversidade clínica da anemia falciforme pode ter as seguintes variações:

a) Dentro de um mesmo haplótipo ¾ por exemplo: SS - Benin, onde não se tem certeza da sua homozigose (SS-Benin/Benin, ou SS ¾ Benin/Bantu), e das associações com enzimopatias eritrocitárias e esferocitose.

b) Dentro de um mesmo genótipo ¾ por exemplo: Hb SS associado a persistência hereditária de Hb Fetal, à talassemia alfa, à deficiência de G-6PD, à esferocitose, entre outros.

c) Entre diferentes populações ¾ por exemplo: proveniências de pacientes com diferentes condições sociais, incluindo qualidade de vida, de alimentação e de higiene.

d) No mesmo indivíduo em diferentes fases da vida.

Diante dessas possibilidades a tabela 14 apresenta uma proposta de monitoramento laboratorial para a anemia falciforme, que também poderá ser aplicada para as demais doenças falcêmicas, desde que o genótipo seja bem estabelecido.

O monitoramento laboratorial das síndromes falcêmicas e em especial da anemia falciforme deve-se pautar por conclusiva determinação do genótipo. A determinação do genótipo pode ser efetuada por meio de eletroforeses alcalina e ácida (em agar) de hemoglobina, dosagens das frações separadas na eletroforese, dosagem bioquímica da Hb Fetal e pesquisa da Hb H (por eletroforese a citológica) e pesquisa da distribuição intraeritrocitária de Hb Fetal. Determinado o genótipo, é importante que se faça o estudo familial, preferencialmente do pai e da mãe, para que o mesmo possa ser geneticamente estabelecido.

O monitoramento periódico da anemia falciforme deve incluir os testes do ítem 2 da tabela 14. Nessas avaliações periódicas destacaria a dosagem de metahemoglobina e pesquisa de corpos de Heinz, pela importância que ambos representam como marcadores biológicos da oxidação eritrocitária.

A avaliação do perfil interativo merece destaques específicos para cada item citado. A determinação da deficiência do G-6PD no paciente com anemia falciforme pode ser realizada inclusive quando se pretende determinar o genótipo. Entretanto, se faz necessária a sua determinação quando os níveis de metahemoglobina estão elevados, bem como quando a presença de corpos de Heinz se encontra acentuada. Da mesma forma, quando o paciente ao ser medicado com drogas oxidantes apresenta hemólise e icterícia, a determinação da deficiência de G-6DP deve ser realizada. Nos falcêmicos com acentuada presença de corpos de Heinz, a avaliação das deficiências de enzimas anti-oxidantes (geralmente de origem hereditária) pode ser a explicação para quadros hemolíticos constantes.

Finalmente, a curva de fragilidade osmótica também poderia ser realizada quando da determinação dos genótipos. Há, porém, que ficar atento ao realizar a curva de fragilidade nos pacientes com anemia falciforme uma vez que o eritrócito falcêmico é menos frágil que o eritrócito normal. Assim, é possível que a associação da Hb-SS com esferocitose hereditária resulte num traçado gráfico normal da curva de fragilidade osmótica.

Erythrocytes and environmental interferences on sickle cell anaemia

Abstract

Sickle cell anaemia runs na extremely variable clinical course. At one end of spectrum, it is characterized by a crippling haemolitic anaemia, interspersed with severe exacerbations, or crises, yet it may be an extremely mild disorder, which is found only by chance on rotine haematological examination. The reasons are only partly understood for these remarkable differences in phenotypic expression of what appears to be the same genetic defect: they include the level of Hb Fetal, coinheritance of the alpha thalassaemia and of other genetic variants that has influence as genetic modulation in sickle cell anaemia. However, other genetics abnormalities of erythrocytes: G-6PD deficiency, spherocytosis and deficiencies of anti-oxidant enzymes (SOD, GPx and Catalase) probably interfere on the clinical course of sickle cell anaemia. The haplotypes of the chromosome (Bantu, Benin, Camaroon and Arab-Indian) bearing the sickle gene is associated with assorted haematological and clinical features that are likely, at least in part, to be mediated throgh effects on Hb Fetal concentration. Beyond these factors characterizes as erythrocytes interferents, there are the environmental interferents. Between environmental interferents become detached the socio-economic and cultural situation of each patient. These aspects have influence on the life of affected individuals including social interactions, family relations, peer interaction, intimate relationships, education, enployment, violence, spiritual attitudes and navigating complexities of the health care system, providers and their ancillary functions. As a result of this article it is proposed a protocol of laboratorial management of sickle cell syndrome with detach to sickle cell anaemia.

Key-words: Sickle cell anaemia. Erythrocytes interferences. Environmental Interferences.

Recebido: 25/01/2000

Aceito: 29/02/2000

Professor Titular do Departamento de Biologia

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, SP

Correspondência para: Paulo Cesar Naoum

Departamento de Biologia. IBILCE-UNESP Rua Cristovão Colombo, 2265. CEP: 15050-000. São José do Rio Preto. SP

E-mail: a.c.t.@zaz.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2003
  • Data do Fascículo
    Abr 2000

Histórico

  • Aceito
    29 Fev 2000
  • Recebido
    25 Jan 2000
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