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Estudo de métodos laboratoriais para o controle de qualidade de unidades transfusionais eritrocitárias no Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná (Hemepar), Brasil

Studies on laboratory quality control methods of erythrocyte units for transfusion in the Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná (Hemepar), Brazil

Resumos

O sistema público de hemoterapia no Brasil está estruturado em hemocentros estaduais e regionais, cujos procedimentos preconizados pelo Ministério da Saúde para a garantia da qualidade envolvem seleção e cuidados com os doadores, produção e preservação de hemocomponentes, análises laboratoriais e procedimentos para garantir a destinação adequada aos receptores. As unidades transfusionais eritrocitárias (UTE) devem ser avaliadas quanto à funcionalidade dos eritrócitos após a transfusão. O presente trabalho visou estudar: porcentual de hemólise, morfologia eritrocitária, teores de meta-hemoglobina (metHb), glutationa reduzida (GSH), adenosina trifosfato (ATP), volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM), concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) e atividade de glicose 6-fosfato desidrogenase (G6-PD). Foram estudadas 19 UTE mantidas em bolsas com salina-adenina-glucose-manitol (SAGM), preparadas a partir de unidades de sangue total (ST), da rotina do Laboratório de Controle de Qualidade de Hemocomponentes do Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná (Hemepar). Os eritrócitos apresentaram índices adequados de morfologia e integridade celular e baixos teores de hemólise. A partir de uma análise do conhecimento científico atualizado, das normas preconizadas pela RDC 153/2004 da Anvisa, das atividades rotineiras praticadas no Hemepar e dos resultados obtidos, recomenda-se o monitoramento da lesão de estoque. Sugere-se a implementação, a cada duas semanas, de preservação das UTE, das determinações de porcentagem de discócitos, índice de hemólise a partir da dosagem de cianometa-hemoglobina extracelular, VCM, HCM, CHCM, metaHb e GSH, considerando-se que, desta forma, se poderá contribuir para a melhoria da qualidade da hemoterapia.

Preservação de sangue; controle de qualidade; transfusão de eritrócitos; serviço de hemoterapia


For quality control, the Brazilian government hemotherapy system is structured in State and Regional Blood Transfusion Services. Quality control includes careful selection of donors, production and preservation of blood components, laboratorial analyses and procedures to guarantee adequate supply to transfusion patients. Red cell units for transfusion should be evaluated for post-transfusion survival of erythrocytes. The aim of this work was to study the percentage of hemolysis, the erythrocyte morphology, methemoglobin (MetHb), glutathione (GSH), and adenosine triphosphate concentrations (ATP), mean corpuscular volume (MCV), mean corpuscular hemoglobin (MCH), mean corpuscular hemoglobin concentration (MCHC), and glucose 6-phosphate dehydrogenase (G6-PD) Activity. Nineteen red cell units maintained in bags containing SAGM, prepared from whole blood units were studied in the Quality Control Laboratory of the Center of Hematology and Hemotherapy of Paraná (Hemepar). The units proved to have appropriate morphology and cellular integrity indexes and low hemolysis rates. Starting from an analysis of recent scientific developments on norms recommended by the Brazilian Health Inspection Service (RDC 153/2004 of the Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa), routine activities of Hemepar and our results, we recommend monitoring for storage degradation. Two-week inspections of red cell units, including an evaluation of discocyte percentages, hemolysis indexes based on the concentration of extracellular cyanomethemoglobin and MCV, MCH and MCHC; metaHb and GSH concentrations, may contribute to the quality of hemotherapy.

Blood preservation; quality control; erythrocyte transfusion; hemotherapy service


ARTIGO ARTICLE

Estudo de métodos laboratoriais para o controle de qualidade de unidades transfusionais eritrocitárias no Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná (Hemepar), Brasil

Studies on laboratory quality control methods of erythrocyte units for transfusion in the Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná (Hemepar), Brazil

Ana Carolina T. Q. TomczakI; Katia T. M. GriloI; Jaqueline M. CastroI; Anália M. B. MachadoI; Maria Suely S. LeonartII; Aguinaldo J. NascimentoIII

IHematologista. Farmacêutica-Bioquímica. Faculdade de Farmácia e Bioquímica da Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Curitiba-PR

IIProfa. Titular da disciplina de Citologia Clínica da Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Curitiba-PR

IIIProf. sênior do Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas da UFPR. Disciplina de Qualidade em Hematologia – Curitiba-PR

Correspondência Correspondência: Aguinaldo José do Nascimento Av. Pres. Kennedy, 811, Ap. 61 80220-201 – Curitiba-PR – Brasil E-mail: ajnasc@ufpr.br

RESUMO

O sistema público de hemoterapia no Brasil está estruturado em hemocentros estaduais e regionais, cujos procedimentos preconizados pelo Ministério da Saúde para a garantia da qualidade envolvem seleção e cuidados com os doadores, produção e preservação de hemocomponentes, análises laboratoriais e procedimentos para garantir a destinação adequada aos receptores. As unidades transfusionais eritrocitárias (UTE) devem ser avaliadas quanto à funcionalidade dos eritrócitos após a transfusão. O presente trabalho visou estudar: porcentual de hemólise, morfologia eritrocitária, teores de meta-hemoglobina (metHb), glutationa reduzida (GSH), adenosina trifosfato (ATP), volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM), concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) e atividade de glicose 6-fosfato desidrogenase (G6-PD). Foram estudadas 19 UTE mantidas em bolsas com salina-adenina-glucose-manitol (SAGM), preparadas a partir de unidades de sangue total (ST), da rotina do Laboratório de Controle de Qualidade de Hemocomponentes do Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná (Hemepar). Os eritrócitos apresentaram índices adequados de morfologia e integridade celular e baixos teores de hemólise. A partir de uma análise do conhecimento científico atualizado, das normas preconizadas pela RDC 153/2004 da Anvisa, das atividades rotineiras praticadas no Hemepar e dos resultados obtidos, recomenda-se o monitoramento da lesão de estoque. Sugere-se a implementação, a cada duas semanas, de preservação das UTE, das determinações de porcentagem de discócitos, índice de hemólise a partir da dosagem de cianometa-hemoglobina extracelular, VCM, HCM, CHCM, metaHb e GSH, considerando-se que, desta forma, se poderá contribuir para a melhoria da qualidade da hemoterapia.

Palavras-chave: Preservação de sangue; controle de qualidade; transfusão de eritró­citos; serviço de hemoterapia.

ABSTRACT

For quality control, the Brazilian government hemotherapy system is structured in State and Regional Blood Transfusion Services. Quality control includes careful selection of donors, production and preservation of blood components, laboratorial analyses and procedures to guarantee adequate supply to transfusion patients. Red cell units for transfusion should be evaluated for post-transfusion survival of erythrocytes. The aim of this work was to study the percentage of hemolysis, the erythrocyte morphology, methemoglobin (MetHb), glutathione (GSH), and adenosine triphosphate concentrations (ATP), mean corpuscular volume (MCV), mean corpuscular hemoglobin (MCH), mean corpuscular hemoglobin concentration (MCHC), and glucose 6-phosphate dehydrogenase (G6-PD) Activity. Nineteen red cell units maintained in bags containing SAGM, prepared from whole blood units were studied in the Quality Control Laboratory of the Center of Hematology and Hemotherapy of Paraná (Hemepar). The units proved to have appropriate morphology and cellular integrity indexes and low hemolysis rates. Starting from an analysis of recent scientific developments on norms recommended by the Brazilian Health Inspection Service (RDC 153/2004 of the Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa), routine activities of Hemepar and our results, we recommend monitoring for storage degradation. Two-week inspections of red cell units, including an evaluation of discocyte percentages, hemolysis indexes based on the concentration of extracellular cyanomethemoglobin and MCV, MCH and MCHC; metaHb and GSH concentrations, may contribute to the quality of hemotherapy.

Key words: Blood preservation; quality control; erythrocyte transfusion; hemotherapy service.

Introdução

A transfusão de componentes do sangue, especialmente na forma de unidades transfusionais eritrocitárias (UTE), é fundamental para a manutenção de muitas vidas em todo o mundo.1 A importância da qualidade das UTE é inquestionável e amplamente discutida.2-4 O estudo da lesão de estoque dos eritrócitos se apresenta como etapa importante no controle de qualidade e tem mostrado correlação significativa com a eficácia do tratamento.2,5,6

No Brasil, a melhoria da qualidade da hemoterapia deve-se ao desenvolvimento da ciência e tecnologia, à implantação do SUS e ao conjunto de preceitos constitucionais e de leis que o sustentam. Neste sentido, a conscientização da população quanto ao seu direito à saúde e ao redobramento de cuidados para se evitar a contaminação por doenças graves bem como o papel dos Hemocentros Estaduais e Regionais são centrais.

O objetivo desse trabalho foi estudar sistematicamente: porcentual de hemólise, morfologia eritrocitária, teores de metaHb, GSH, ATP, VCM, HCM, CHCM e atividades de G6-PD para o controle de qualidade de UTE durante a sua preservação, incluindo determinações laboratoriais empregadas rotineiramente e métodos alternativos e adequados ao controle de qualidade de unidades eritrocitárias, como contribuição para a garantia da qualidade.

Material e Método

Sangue venoso

Foram selecionadas aleatoriamente 19 UTE, obtidas de doadores voluntários que se apresentaram no Hemepar, de fevereiro a junho de 2008, conforme aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos do Setor de Ciências da Saúde da UFPR. Com esta amostragem foi possível obter médias representativas em relação aos parâmetros avaliados para o acompanhamento da qualidade dos eritrócitos durante a preservação

A triagem dos doadores e a coleta de sangue foram realizadas de acordo com as normas técnicas preconizadas pela RDC nº 153/2004 da Anvisa,7 sob rígidos critérios de proteção ao doador e ao receptor e de manutenção da qualidade das amostras.

Coletaram-se amostras de 10 mL de sangue venoso para a realização de testes imuno-hematológicos (tipagem ABO/ Rh0(D) e pesquisa de anticorpos irregulares), testes sorológicos de triagem para hemoterapia, incluindo os específicos para AIDS (Anti HIV-1/2), vírus T-linfotrópico humano (Anti HTLV-1/2), hepatite B (HbsAg e Anti-HBc), hepatite C (Anti-HCV), doença de Chagas e sífilis; e de cerca de 450 mL, em bolsas triplas (63 mL de citrato-fosfato-dextrose (CPD) na bolsa principal, com 100 mL de salina-adenina glicose-manitol (SAGM) em bolsa secundária (Fresenius Kabi®). Para segurança no trabalho, aguardou-se a negatividade da sorologia para se iniciarem as análises.

Separação do sangue em hemocomponentes e preparo das UTE

Empregou-se o método do plasma rico em plaquetas, com a primeira centrifugação a 2.200 x g durante 5 minutos e 30 segundos; e a segunda, a 2.800 x g durante 10 minutos, a 22ºC (Sorvall ® RC3 BP, Rotor H6000 A). A separação de unidades de sangue total em concentrado de hemácias e de plasma rico em plaquetas foi realizada com Extrator Manual de Plasma (Fresenius Hemo Care). A solução SAGM foi adicionada ao concentrado de hemácias na bolsa principal, constituindo uma UTE, sem procedimento especial para a retirada dos leucócitos.

As UTE foram divididas em quatro alíquotas de cerca de 50 mL, em sistema de conexão estéril (SCD®), em bolsas para transferência (JP®), preservadas entre 2ºe 6ºC, monitoradas a cada quatro horas e analisadas nos dias zero, 14, 28 e 42.

Determinações empregadas como rotina no Hemepar

Análise microbiológica – Foi feita pelo sistema Bact Alert ®, por detecção de CO2 produzido por eventual crescimento bacteriano, por mudança da coloração de azul-esverdeada a amarela.

Determinação do volume de sangue total e de hemocomponentes – Foi realizada pelo sistema informatizado (Hemovida®), de acordo com a RDC 153/2004.

Determinação do hematócrito – Foi realizada em centrífuga de micro-hematócrito (Hemata Stat II®) a 840 x g, durante um minuto.

Determinação de potássio no meio extracelular – Foi realizada por potenciometria, em analisador de íon seletivo (AVL®).

Determinação da hemoglobina extracelular – Após centrifugação das bolsas, o sobrenadante límpido, obtido com auxílio do extrator de plasma, puro ou diluído 1:2 ou mais em NaCl 0,85 g/dL, de acordo com o grau de hemólise, foi monitorado espectrofotometricamente a 370, 415, 510, 577 e 600 nm, empregando-se água destilada como branco.

Determinação da hemoglobina total, VCM, HCM e CHCM – Foi realizada no sangue total e nas UTE, em contador automatizado (ABX Micros 60®).

Dosagem da glicose extracelular – Foi realizada por método colorimétrico e enzimático no sobrenadante límpido das UTE (kit Analisa ).

Determinações laboratoriais propostas neste trabalho

Determinação da concentração de metaHb – Foi realizada pelo método de Evelyn & Malloy,8 modificado por Claro et al.9

Determinação da atividade de G6-PD – Retirou-se a camada leucocitária e lavaram-se os eritrócitos três vezes com solução gelada 154 mmoles/L de NaCl (centrífuga HERMLE Z323K®), a 4ºC. Adicionou-se 0,1 mL da suspensão de eritrócitos (VG=40%) a 1,9 mL de solução hemolisante EDTA-β-mercaptoetanol10 (0,5 mL de 7 mmoles/L de β-mercaptoetanol, 10 mL de 0,27 mmoles/L de EDTA neutralizado e água destilada qsp 1000 mL), agitando-se. Em seguida, procedeu-se o ciclo congelamento-degelo, a -20ºC durante 5 minutos e à temperatura ambiente por 5 minutos, repetindo-se o processo. Conservou-se o hemolisado a 4ºC, determinando-se a concentração de Hb por diluição em líquido de Drabkin (1:5) (espectrofotometricamente em 540 nm), bem como a atividade de G6-PD pelo método de Beutler,10 segundo Krukoski et al.11

Porcentagem de hemólise – Analisada pelo método da cianometa-hemoglobina, adaptado para baixas concentrações de Hb.12 O sobrenadante da suspensão de eritrócitos foi diluído (1:3 a 1:110) com reagente de Drabkin,13 de acordo com o grau de hemólise observado visualmente, em relação à faixa de sensibilidade do método (540 nm), calculando-se a porcentagem de hemólise.14

Morfologia eritrocitária – Avaliada pelos critérios morfológicos de Bessis,15 após diluição de uma alíquota da UTE a 1:200 com líquido de Gower (0,106 moles/L de citrato de sódio + 1 mL/L de formalina), em câmara de Neubauer Improved, diferenciando-se discócitos de equinócitos, estomatócitos e esferócitos em 1.000 células, ao microscópio óptico (400x). De acordo com a modificação proposta por Leonart,16 a porcentagem de discócitos incluiu as formas de discoequinócito, discoestomatócito, equinócito I e estomató­cito.16

Determinação de ATP – Após a adição de 1 mL de ácido perclórico a 20% (Merck) a 2 mL de suspensão de eritrócitos, homogeneização e centrifugação a 2.000 x g, transferiu-se 1 mL do sobrenadante para um tubo graduado, neutralizou-se com 3 moles/L de K2CO3 em presença de indicador 0,05% metil-orange. Após centrifugação, o sobrenadante foi ajustado para 1,5 mL com água deionizada, e a concentração de ATP monitorada pelo método de Beutler10 (Valores de referência - 4,23 ± 0,29 e 3,53 ± 0,30 µmoles/g de Hb, em brancos e negros, respectivamente).

Análises estatísticas – Os dados foram submetidos à análise de variância e ao teste de Tukey e análise de regressão. A significância estatística foi considerada para p < 0,05. O tamanho amostral foi escolhido com o uso do pacote estatístico on line http://home. ubalt.edu/ntsbarsh/Business-stat/otherapplets/SampleSize.htm.

Resultados

O volume de sangue total das unidades coletadas para este trabalho variou de 410 a 460 mL e, na maioria delas, foi de 450 mL. A Tabela 1 ilustra o acompanhamento das UTE durante a preservação. Os volumes das UTE variaram de 290 mL a 390 mL, e as concentrações de Hb foram de 18,8 a 21,0 g/dL, sem variações durante 42 dias. A partir destes dados, pode-se inferir que a Hb total das UTE analisadas foi de aproximadamente 55 a 82 g. Pode-se observar que não ocorreram variações significativas para hematócrito, Hb, VCM, HCM e CHCM.

Os resultados obtidos para a porcentagem de hemólise, calculada a partir da determinação da hemoglobina extracelular, ficaram dentro dos limites preconizados pela legislação brasileira e por padrões internacionais de até 1% durante a preservação.7,18

A glicose foi consumida com velocidade constante até os 42 dias de preservação. A constante de velocidade (k) para a reação de primeira ordem foi de 15,3 µg de glicose/dL/dia, com redução de cerca de 50% da glicose em quatro semanas, acompanhada de aumento gradativo da concentração de K+ no meio extracelular e da diminuição da concentração de ATP durante a preservação, da ordem de 60% após 42 dias. A porcentagem de discócitos correlacionou-se positivamente com a concentração celular de ATP, apresentando alto grau de correlação (r = 0,93).

Em relação ao metabolismo oxidativo, observou-se pouca formação de metaHb durante 42 dias de armazenamento em meio SAGM, com valores dentro da normalidade, de até 1%.19 No entanto, os índices de GSH diminuíram gradativamente, chegando a zero após os 42 dias de armazenamento.

Não se observaram indícios de crescimento bacteriano nas UTE avaliadas durante a sua preservação.

Discussão

No Hemepar, no controle de qualidade das UTE, determinam-se volume de sangue total e das UTE, os valores de Hb, hematócrito, grau de hemólise e avaliação microbiológica, recomendados pelo MS e, ainda, concentrações de glicose e potássio.

Nas amostras estudadas, o volume médio de sangue total obtido coincidiu com o recomendado pela RDC nº 153/2004, com valores uniformes e adequados para os volumes das UTE e concentração de Hb total, que manteve a estabilidade durante a preservação, assim como os outros valores do eritrograma (Tabela 1). As porcentagens de hemólise observadas durante a preservação ficaram restritas aos limites preconizados, porém os resultados foram mais representativos quando se empregou uma adaptação do método da cianometaHb para pequenas concentrações.12 A avaliação do consumo de glicose associada ao aumento gradativo da concentração de K+ extracelular e à redução dos níveis de ATP mostrou correlação direta com a diminuição da porcentagem de discócitos, forma normal do eritrócito (Figura 1). Em relação ao metabolismo oxidativo, observou-se uma redução da concentração de GSH, porém não acompanhada de aumento significativo de metaHb (Tabela 1).


Högman & Meryman 17 recomendam uma UTE padrão com ao menos 50 g de hemoglobina, considerando-se perdas devidas à leucorredução.

Apesar da estabilidade verificada para os valores hematimétricos durante a preservação (Tabela 1), uma aparente integridade do eritrócito não exclui o comprometimento de suas funções metabólicas. Leonart16 observou aumento gradativo do VCM com diminuição do CHCM em eritrócitos armazenados em meio ADSOL, explicado pela entrada de água na célula devido à hipertonicidade do meio. Outros autores encontraram estabilidade do VCM e do CHCM durante a preservação17 ou alterações variadas, dependendo do meio e das condições de preservação.19

Desde os primeiros estudos sobre o armazenamento de eritrócitos, considera-se a taxa de hemólise espontânea como um marcador fundamental da qualidade da preservação.17-20 Neste trabalho, melhores resultados foram obtidos com a adaptação proposta por Pelissari et al.,12 que permite medir pequenas concentrações de Hb, de forma simples, exata, reprodutível e com maior sensibilidade, a partir de simples diluições da amostra de acordo com o grau de hemólise observado visualmente, e, portanto, pode ser recomendado para uso rotineiro no estudo da preservação de eritrócitos e, consequentemente, no controle de qualidade das UTE.

Os valores obtidos para o consumo de glicose durante a preservação das UTE foram concordantes com dados descritos por Leonart.16 O aumento gradativo de K+ indica falha no funcionamento da Na+-K+-ATPase da membrana.6 À medida que a glicose é consumida para produção de ATP e consequente manutenção da integridade da célula, acumula-se lactato, produto final da glicólise. Isto provoca uma acidificação do meio, um dos grandes problemas na preservação do eritrócito em condições usuais,14,17,19 e importante fator limitante para sua viabilidade. Assim, a medida de K+ no meio extracelular é um marcador válido para o controle de qualidade durante a preservação.

A redução dos níveis de ATP, sem dúvida, causou a falha na manutenção da bomba de Na+K+. A concentração de ATP é um importante marcador da preservação de UTE por representar a reserva de energia do eritrócito e a sua viabilidade, fato comprovado por sua estreita correlação com a sobrevida pós-transfusional dos eritrócitos (SPT) 24 horas após a transfusão.21 O Conselho Europeu recomenda que a SPT seja de ao menos 75%.22 Outro marcador importante na avaliação das UTE é o 2,3 BPG, que modula a função da Hb na liberação de oxigênio aos tecidos. O fato de ATP e 2,3 BPG se exaurirem em poucas semanas em UTE, em condições usuais, tem levado ao desenvolvimento de novas soluções aditivas que mantêm a viabilidade e a funcionalidade dos eritrócitos por tempos maiores.22,23 As determinações de ATP e 2,3 BPG baseiam-se em técnicas enzimáticas reprodutíveis e bem estabelecidas,24 mas não constam da RDC nº 153/20047 e não são realizadas rotineiramente no acompanhamento de UTE em nosso país, possivelmente por não serem comportadas pelos recursos e infraestrutura disponíveis nos hemocentros e bancos de sangue.

A porcentagem de discócitos nas UTE é obtida a partir da contagem diferencial das formas eritrocitárias feita após uma simples diluição em líquido para contagem de eritrócitos, ao microscópio de luz. Pode-se inferir que a mesma, se empregada alternativamente, representa uma estimativa da concentração de ATP, indicativa da integridade funcional da membrana.6 Esse fenômeno pode constituir uma excelente ferramenta para o controle de qualidade das UTE por estar relacionado com a viabilidade dos eritrócitos durante a preservação. Da mesma forma, Leonart et al.25 apontaram para utilização da porcentagem de discócitos como um marcador para a avaliação dos eritrócitos durante o seu armazenamento em meio ADSOL. Deve-se considerar, porém, que a correlação entre porcentagem de discócitos e ATP estabelecida para eritrócitos em meio ADSOL25 e em SAGM pode não se reproduzir em concentrados de hemácias ou na presença de outras soluções aditivas.

Na literatura, é descrita uma correlação entre os níveis de ATP, manutenção da morfologia eritrocitária e sobrevida pós-transfusional (SPT).26 A determinação da SPT, ou seja, da porcentagem de eritrócitos circulantes no receptor 24 horas após a transfusão representa o grau de sucesso da mesma. Alguns autores estudaram as alterações morfológicas durante a preservação de eritrócitos para hemoterapia, com resultados semelhantes aos deste trabalho, e indicaram o chamado índice morfológico, que representa a proporção de discócitos, como um marcador durante a preservação.6 Observou-se ainda que a depleção rápida de ATP reproduz alterações morfológicas observadas durante o estoque, enquanto a sua restauração as reverte.4,27 Assim, a avaliação morfológica durante a preservação é considerada um parâmetro no estudo de UTE, com resultados semelhantes aos obtidos neste trabalho para eritrócitos mantidos em SAGM.28

Indicações sobre o estado redox dos eritrócitos podem ser obtidas pela avaliação dos teores de metaHb e GSH. A metaHb resulta de degradação oxidativa, pela ação de espécies reativas de oxigênio e outros radicais livres, que ocasionam também a peroxidação lipídica da membrana. Outros autores também encontraram baixas concentrações de metaHb durante a preservação, mesmo sem o emprego de soluções aditivas, com valores menores que 1% em meio CPDA-130 e de até 3% em meio ACD.30,31

O GSH (glutationa reduzida), molécula responsável pela reserva de íons hidrogênio, é essencial para a manutenção do estado reduzido dos tióis de enzimas e proteínas da membrana e remoção de radicais livres. A oxidação do GSH forma glutationa oxidada (GSSG), que pode exaurir os níveis de NADPH e NADH, principais carreadores de elétrons na célula.31

A perda de GSH, a saída de potássio para o meio extracelular e a diminuição dos níveis de ATP e de glicose, associados a alterações morfológicas, indicam alto grau de desenergização celular após 42 dias de preservação. A partir dos resultados obtidos neste trabalho, observou-se que a qualidade das UTE dispensadas no Hemepar obedece a padrões nacionais e internacionais. Recomenda-se a inclusão das determinações de porcentagem de discócitos, índices de hemólise a partir da determinação da concentração de cianometaHb extracelular, VCM, HCM e CHCM, metaHb e GSH. Esses procedimentos poderão contribuir com a melhoria na qualidade da hemoterapia no sistema brasileiro de hemocentros.

Recebido: 26/11/2009

Aceito após modificações: 22/03/2010

Suporte Financeiro: Capes/UFPR

Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas, Universidade Federal do Paraná; Hemepar, Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná – Curitiba-PR.

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: sem conflito de interesse

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  • Correspondência:
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Aceito
      22 Mar 2010
    • Recebido
      26 Nov 2009
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