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Políticas setoriais e inovação: entraves e incentivos ao automóvel elétrico no Brasil

Sectorial policies and innovation: barriers and incentives to the electric car in Brazil

RESUMO

Tendo o fenômeno da eletrificação dos meios de transporte como pano de fundo, o presente artigo volta-se para a análise da infraestrutura institucional do setor automotivo brasileiro para compreender o modesto desempenho do país face a economias líderes em eletrificação. Mais detidamente, debruça-se sobre algumas políticas centrais na trajetória recente do setor automotivo e suas implicações para a mudança tecnológica. Para tanto, buscou analisar, a partir do conceito de Sistema Tecnológico de Inovação (STI), a maneira como essas políticas se relacionam à implementação do automóvel elétrico, produzindo situações de alinhamento institucional, ou não, que acabam por atuar como mecanismos de indução ou bloqueio à inovação. A análise das políticas revela uma infraestrutura institucional pouco alinhada ao STI em questão.

PALAVRAS-CHAVE
Automóvel elétrico; Sistema tecnológico de inovação; Políticas de inovação

ABSTRACT

Having the electrification of means of transport phenomenon as a backdrop, the present article analyzes the institutional infrastructure of the Brazilian automotive sector, to understand the country's modest performance vis-à-vis leading electrification economies. More in detail, it looks at some central policies in the recent trajectory of the automotive sector and its implications for technological change. To do so, it sought to analyze, from the concept of Technology Innovation System (TIS), a way in which these policies relate to the implementation of the electric car, producing trends of institutional alignment, or not, which end up acting as mechanisms for inducing or blocking innovation. The analysis of these policies reveals an institutional infrastructure that is poorly aligned with the TIS in question.

KEYWORDS
Electric car; Technological innovation system; Innovation policies

1. Introdução

A transição para a mobilidade elétrica já pode ser considerada uma realidade em países como Noruega (86%), Suécia (43%) e Holanda (30%), onde o percentual de elétricos vendidos anualmente já atinge patamares relevantes (INTERNATIONAL ENERGY AGENCY, 2022INTERNATIONAL ENERGY AGENCY – IEA. Global EV Outlook 2022, securing supplies for an electric future. Paris: IEA, 2022.). Com mais de 3,3 milhões de elétricos vendidos em 2021, a China representa quase metade da frota global de automóveis elétricos. O que a torna, seguida pelos Estados Unidos, o maior mercado de elétricos em termos absolutos (INTERNATIONAL ENERGY AGENCY, 2022INTERNATIONAL ENERGY AGENCY – IEA. Global EV Outlook 2022, securing supplies for an electric future. Paris: IEA, 2022.).

O Brasil, apesar de sua longa tradição no setor automotivo e de algumas iniciativas isoladas, apresenta um desempenho tímido na venda de elétricos quando comparado a esses países – cerca de 1,7% dos automóveis vendidos, em 2021, eram elétricos, incluindo híbridos convencionais, segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (2021)ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS FABRICANTES DE VEÍCULOS AUTOMOTORES – ANFAVEA. Anuário da Indústria Automobilística Brasileira. São Paulo: AutoData Editora, 2021.. O que revela certa inércia do mercado automotivo brasileiro, face a uma possível transição tecnológica para a mobilidade elétrica, e suscita a questão sobre os motivos desta inércia.

Para responder a essa indagação é preciso, antes de qualquer coisa, ponderar sobre os fatores que influenciam uma mudança tecnológica desta dimensão e complexidade. Mais que simples vontade política, ou demanda de mercado, a eletrificação automotiva envolve interesses de grandes corporações, trajetórias tecnológicas, estratégias geopolíticas nacionais, além de expectativas relacionadas aos problemas de mobilidade urbana e à redução de emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE).

No caso brasileiro, pesa positivamente o fato de sermos considerados uma potência climática (com grande parte da matriz elétrica composta por fontes renováveis) e possuir um parque industrial automotivo consolidado, com centros de pesquisa, campos de provas e uma engenharia automotiva considerada referência na América Latina. Entretanto, outros fatores como 1) a relação corporativista dos principais atores da indústria automotiva; 2) a elevada dependência decisória/tecnológica internacional; 3) o estabelecimento de uma rota tecnológica alternativa em relação à eletrificação da mobilidade (etanol como combustível de baixa emissão); e 4) um conjunto vago de políticas acerca da transição tecnológica, tendem a afetar nosso desempenho nessa área (WOLFFENBUTTEL, 2021WOLFFENBUTTEL, R. A produção social da inovação: o automóvel elétrico e as redes de inovação no Brasil. Porto Alegre: Cirkula, 2021.).

Isso fica relativamente claro quando mobilizamos o conceito de Sistema Tecnológico de Inovação (STI) para analisar a questão. Entendido como “[...] uma rede de atores que interagem numa determinada área econômica/industrial, no contexto de uma determinada infraestrutura institucional e que estão envolvidos na produção, difusão e utilização de tecnologia” (CARLSSON; STANKIEWICZ, 1991CARLSSON, B.; STANKIEWICZ, R. On the nature, function and composition of technological systems. Journal of Evolutionary Economics, Berlin, v. 1, n. 1, p. 93-118, 1991., p. 93), o conceito presta-se à análise de fluxos cognitivos e experienciais que influenciam mudanças tecnológicas específicas, como o caso do automóvel elétrico no contexto nacional. Este enfoque sobre a tecnologia e os elementos que interagem em torno desta, permite apreender as dinâmicas de incentivo e bloqueio à implementação da inovação a partir das interações entre os atores do sistema e sua relação com a infraestrutura institucional.

Tendo essa perspectiva como referência, o presente artigo volta-se para a análise da infraestrutura institucional1 1 Aqui entendidas como o conjunto de regras formalmente instituídas e consideradas, garantidas por aparato administrativo – tais como leis, decretos, normas, acordos e regulações. Regras em sua dimensão institucional regulatória, voltadas para constranger e regular interações. em que operam os atores das redes de inovação do automóvel elétrico. Mais detidamente, debruça-se sobre duas políticas centrais na trajetória recente do setor automotivo e suas implicações para mudança tecnológica. Políticas setoriais que, teoricamente, envolveram atores interessados e discussões sobre os rumos da indústria automotiva no longo prazo, o Inovar-Auto (2013-2017) e o Rota 2030 (2018-2032).

Tal como realizado em outros estudos (JACOBSSON; LAUBER, 2006JACOBSSON, S.; LAUBER, V. The politics and policy of energy system transformation: explaining the German diffusion of renewable energy technology. Energy Policy, Guildford, v. 34, n. 3, p. 256-276, 2006.; JOHNSON; JACOBSSON, 2001JOHNSON, A.; JACOBSSON, S. Inducement and blocking mechanisms in the development of a new industry: the case of renewable energy technology in Sweden. In: COOMBS, R. et al. (Org.). Technology and the market: demand, users and innovation. Cheltenham e Northhampton: Edward Elgar, 2001.), buscou-se analisar a forma como a infraestrutura institucional se relaciona com a implementação da tecnologia em um sistema tecnológico emergente (JACOBSSON; BERGEK, 2011JACOBSSON, S.; BERGEK, A. Innovation system analyses and sustainability transitions: contributions and suggestions for research. Environmental Innovation and Societal Transitions, Amsterdam, v. 1, n. 1, p. 41-57, 2011.), produzindo situações de alinhamento, ou não, que acabam por atuar como mecanismos de indução ou bloqueio à inovação. A pesquisa foi realizada com base em entrevistas realizadas com diferentes atores envolvidos em iniciativas voltadas para a implementação do automóvel elétrico no contexto nacional e informações coletadas junto a um banco de dados sobre o tema, elaborado pelo autor, a partir de fontes secundárias. Esses dados foram categorizados e analisados de maneira a produzir um panorama sobre a infraestrutura institucional e seu alinhamento com a tecnologia do automóvel elétrico.

Além desta introdução, o artigo está dividido em mais cinco seções. A próxima seção destina-se à exposição dos conceitos mobilizados para a análise do STI do automóvel elétrico no contexto nacional e sua infraestrutura institucional. Posteriormente são analisadas as políticas setoriais automotivas: Inovar-Auto e Rota 2030 e o seu conteúdo vinculado à mobilidade elétrica, bem como as demais políticas relacionadas à mobilidade elétrica. Por fim, nas considerações finais, são retomados os principais aspectos do STI e a contribuição de sua configuração institucional para o desenvolvimento e a introdução do automóvel elétrico no Brasil.

2. O conceito de sistema tecnológico e o automóvel elétrico

A constatação de que os grandes problemas ambientais atuais - como mudanças climáticas, perda de biodiversidade e esgotamento de recursos - exigem mudanças radicais para novos tipos de sistemas sociotécnicos, tem estimulado o campo de estudos das Transições Sociotécnicas para a Sustentabilidade (KÖHLER et al., 2019KÖHLER, J. et al. An agenda for sustainability transitions research: state of the art and future directions. Environmental Innovation and Societal Transitions, Amsterdam, v. 31, p. 1-32, 2019.). Um dos referenciais teóricos fundamentais neste campo de estudos transdisciplinar é a abordagem dos Sistemas Tecnológicos de Inovação (STI).

Segundo Bergek et al. (2008)BERGEK, A. et al. Analyzing the functional dynamics of technological innovation systems: a scheme of analysis. Research Policy, Amsterdam, v. 37, p. 407-429, 2008., os STIs abrangem não apenas componentes exclusivamente dedicados à tecnologia em foco, mas todos os componentes que influenciam o processo de inovação vinculado a essa tecnologia. Logo, trata-se de um sistema no sentido de um grupo de componentes (atores, redes e instituições) vinculados ao processo de implementação de uma tecnologia específica. Porém, isso não significa ausência de conflitos ou interação inteiramente planejada e coordenada entre os componentes. Pelo contrário, os atores do sistema não necessariamente compartilham do mesmo objetivo, ou se compartilham isso não significa que trabalham conscientemente nesta direção (JACOBSSON; BERGEK, 2004JACOBSSON, S.; BERGEK, A. Transforming the energy sector: the evolution of technological systems in renewable energy technology. Industrial and Corporate Change, London, v. 3, n. 5, p. 815-849, 2004.).

Essa proposta tem a vantagem de compreender, além das características estruturais e dinâmicas do STI, processos-chave que influenciam diretamente o desenvolvimento, difusão e uso de novas tecnologias e, portanto, o desempenho do sistema (BERGEK et al., 2008BERGEK, A. et al. Analyzing the functional dynamics of technological innovation systems: a scheme of analysis. Research Policy, Amsterdam, v. 37, p. 407-429, 2008.). Segundo uma extensa revisão da bibliografia sobre o tema (JOHNSON; JACOBSSON, 2001JOHNSON, A.; JACOBSSON, S. Inducement and blocking mechanisms in the development of a new industry: the case of renewable energy technology in Sweden. In: COOMBS, R. et al. (Org.). Technology and the market: demand, users and innovation. Cheltenham e Northhampton: Edward Elgar, 2001.; BERGEK et al., 2008BERGEK, A. et al. Analyzing the functional dynamics of technological innovation systems: a scheme of analysis. Research Policy, Amsterdam, v. 37, p. 407-429, 2008.) os sete principais processos-chave, ou funções, dos STIs seriam: i) a produção e difusão do “novo” conhecimento; ii) a influência na direção da busca entre usuários e fornecedores da tecnologia; iii) a experimentação empresarial possibilitada pela entrada de novos atores; iv) a formação de mercados emergentes; v) a legitimação da tecnologia; vi) a mobilização de recursos como capitais e competências; e vii) a criação de externalidades positivas, mediadas, ou não, pelo mercado. Processos esses que serão mobilizados nas seções seguintes para investigar a relação entre o propósito das políticas e os interesses dos atores do STI.

Desse modo, é possível perceber nesses processos uma dinâmica sistêmica de interdependência, cujo desenvolvimento da tecnologia é interdependente das decisões econômicas, técnicas e políticas que ocorrem, gradualmente, na economia. Por seu turno, esta interdependência pode ser uma interação recíproca e construtiva entre tecnologias, mas pode também impedir o desenvolvimento de outras tecnologias (COWAN; HULTÉN, 1996COWAN, R.; HULTÉN, S. Escaping the Lock-in: the case of the eletrical vehicle. Technological Forecasting and Social Change, Amsterdam, v. 53, n. 1, p. 61-79, 1996.), o que aponta para a existência de mecanismos de bloqueio e incentivo à inovação no interior dessas dinâmicas.

Antes de explorar as características desses mecanismos, torna-se importante esclarecer que a noção de STI, aqui mencionada, não se refere a uma perspectiva funcionalista, em que os atores de um sistema em particular existem para servir a uma função determinada ou que são guiados, de maneira exclusiva, por essa função. Na realidade, a ideia de explorar os aspectos sistêmicos do desenvolvimento de uma tecnologia serve para ressaltar a referida interdependência com outros setores e o papel dos atores no processo, como também para captar as dinâmicas de evolução da inovação, a partir de suas transformações ao longo do tempo.

Isso envolve assumir que a inovação dispõe de uma dinâmica evolutiva vinculada ao seu grau de desenvolvimento. Não por acaso, o período formativo de uma novidade tecnológica, como o automóvel elétrico, possui implicações diferentes, principalmente em termos de mecanismos de indução e bloqueio, que um período de maior consolidação, em cujo mercado esta tecnologia já se encontra estabelecida e em expansão.

Dentre os mecanismos de indução e bloqueio, as políticas públicas, novas ou já existentes, aparecem como uma das formas mais conhecidas e documentadas. Sobre este aspecto, Edler e Fagerberg (2017EDLER, J.; FAGERBERG, J. Innovation policy: what, why, and how. Oxford Review of Economic Policy, Oxford, v. 33, n. 1, p. 2-23, 2017.) demonstram a crescente popularização do termo “políticas de inovação” a partir da década de 1990 e o fortalecimento de políticas públicas como algo relevante para a inovação. Para a perspectiva dos STIs, as políticas governamentais são analisadas como mecanismos de indução ou bloqueio à inovação, a fim de compreender a forma com que essas políticas atuam sobre os processos-chave que influenciam diretamente o desenvolvimento, difusão e uso de novas tecnologias.

Seja estimulando processos, como a produção e difusão de novos conhecimentos, a mobilização de recursos, ou a formação de mercados, grande parte dessas políticas de inovação possuem objetivos claros e metodologias de avaliação dos resultados. Porém, a análise das políticas como mecanismo de indução ou bloqueio deve considerar, também, o processo de alinhamento institucional. Isto é, a forma como o conjunto de regras formais que compõe a política se relaciona com os interesses e propósitos dos atores que suportam a inovação. Assim, o alinhamento institucional ocorre quando os interesses articulados dos atores engajados na inovação se encontram alinhados às políticas governamentais estabelecidas, em outras palavras, quando desenvolvimento, produção, comercialização e utilização da inovação se encontram formalmente regulados ou, até mesmo, estimulados por um conjunto de normas e regras formais.

Isso não significa que apenas o alinhamento a políticas concebidas para a inovação possa ser considerado mecanismo de indução. Devido ao caráter interdependente e histórico do desenvolvimento tecnológico, nada impede que políticas voltadas para outros setores econômicos e sociais atuem no sentido de estimular determinadas inovações. Políticas de saúde pública ou urbanismo, por exemplo, podem induzir ao estabelecimento de novidades tecnológicas na área de mobilidade, como no caso do sistema de compartilhamento de veículos elétricos.

O mesmo princípio de interdependência vale para as políticas governamentais que atuam como mecanismos de bloqueio. Em ambos os casos, o importante a ser ressaltado é a forma como as políticas alinham-se, ou não, aos propósitos articulados da rede e as consequências disso para o desenvolvimento do sistema. Se o quadro institucional não está alinhado com a nova tecnologia, várias funções do sistema podem ser bloqueadas. Não por acaso, empresas em um STI competem no mercado não apenas por bens e serviços, mas também para obter influência sobre o quadro institucional (JACOBSSON; BERGEK, 2004JACOBSSON, S.; BERGEK, A. Transforming the energy sector: the evolution of technological systems in renewable energy technology. Industrial and Corporate Change, London, v. 3, n. 5, p. 815-849, 2004.).

Cabe destacar o caráter relacional desta dinâmica de alinhamento, pois sua efetuação não depende apenas da ordem jurídica instituída, mas da capacidade de articulação dos atores interessados na inovação. É essa capacidade de articulação dos diferentes interesses que possibilita a atuação coordenada de uma rede de interação, o estabelecimento de ligações com atores importantes e a formação de coalizações de apoio à tecnologia, voltadas para políticas que favoreçam o desenvolvimento da inovação.

Por outro lado, as políticas públicas também podem atuar como mecanismos de bloqueio ao interferirem no grau de incerteza relacionado à atividade inovativa. Por tratar-se da introdução de novidades e da alteração de contextos estabelecidos, a inovação envolve sempre a realização de escolhas operadas em condições de profunda incerteza, pouco apropriadas ao cálculo probabilístico e maximizante dos atores atomizados. Quanto maior o acúmulo de vantagens históricas e externalidades positivas de uma tecnologia concorrente, maior o grau de incerteza, o que tende a desestimular a entrada de novos atores no sistema.

Da mesma forma, um conjunto de regras formais desfavorável – ou até mesmo um direcionamento claro para investimentos em uma tecnologia alternativa – também é capaz de gerar grandes incertezas em relação a investimentos e pesquisas futuras, bloqueando processos importantes para o STI. Pois, uma vez que se trata de tecnologias em disputa, o alinhamento de políticas com a tecnologia consolidada, através de regulamentações, políticas fiscais e investimentos diretos, tende a produzir um bloqueio ao desenvolvimento de inovações desafiantes, principalmente nos momentos iniciais do processo de implementação, quando são mais evidentes as desvantagens em relação à tecnologia estabelecida e a rede de inovação se encontra pouco articulada.

Este tipo de bloqueio vincula-se à ausência de legitimidade da tecnologia, isto é, à ausência de um entendimento compartilhado, mais ou menos difuso, sobre a validade e a utilidade da tecnologia em questão. Em outras palavras, para uma inovação se estabelecer e dar origem a um processo de mudança tecnológica é necessário que ela seja aceita e compreendida como importante e confiável por um número considerável de atores (RAO, 2004RAO, H. Institutional activism in the early American automobile industry. Journal of Business Venturing, New York, n. 19, p. 359-384, 2004.).

Desse modo, a ausência de legitimidade pode implicar em diversas dificuldades para o estabelecimento da inovação, porque sem esta aceitação e compreensão, fontes de recursos podem tornar-se escassas, fornecedores e usuários podem não compreender a relevância da tecnologia e, em muitas instâncias, podem ser enfrentadas leis hostis à tecnologia (ZIMMERMAN; ZEITZ, 2002ZIMMERMAN, M. A.; ZEITZ, G. J. Beyond survival: achieving new venture growth by building legitimacy. Academy of Management Review, Ohio, v. 27, n. 3, p. 414-431, 2002.). Em alguns casos extremos, a ausência de legitimidade pode gerar situações de contestabilidade social acentuada, o que implica num questionamento sistêmico e organizado da tecnologia, além de uma generalização e autonomização das críticas que levam à produção de um estigma, como ocorreu nos casos da energia nuclear em diversos países, ou de organismos geneticamente modificados na Europa Ocidental (HOMMEL; GODARD, 2005HOMMEL, T.; GODARD, O. Contestação social e estratégias de desenvolvimento industrial: aplicação do modelo da gestão contestável a produção industrial de OGM. In: VARELLA, M. D.; BARROS-PLATIAU, A. F. (Org.). Organismos geneticamente modificados. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 251-284.).

O caso do automóvel elétrico e seu ressurgimento ocorre em meio a uma série de questões sociais, políticas e econômicas que têm pressionado o mercado automotivo e seu modus operandi. Essas questões vinculam-se ao desenvolvimento de novas tecnologias e produtos que se propõem a desafiar competidores nesse mercado, assim como a uma série de problemas ambientais, de mobilidade urbana e de saúde pública, advindos da constante expansão do atual padrão de produção em massa e uso individual de veículos leves movidos a combustão interna.

Preocupados com essas questões, mas também atentos às possibilidades de desenvolvimento tecnológico, muitos governos nacionais e empresas passaram a ver na transição para a sustentabilidade (GEELS, 2019GEELS, F. Socio-technical transitions to sustainability: a review of criticisms and elaborations of the multi-level perspective. Current Opinion in Environmental Sustainability, Amsterdam, v. 39, p. 187-201, 2019.), principalmente na área de energia, uma via estratégica para o crescimento econômico. Segundo Consoni et al. (2018)CONSONI, F. L. et al. Estudo de governança e políticas públicas para veículos elétricos. Campinas: LEVE/ DPCT/ UNICAMP, 2018., um dos fatores da expansão do mercado de elétricos em alguns países seria o conjunto de metas ambiciosas e políticas de incentivo aos veículos com baixa emissão de poluentes. Essas políticas vão desde subsídios para compra de veículos elétricos, redução de impostos de propriedade, isenções de taxas para estacionamento, além de áreas de circulação exclusivas para veículos elétricos e projetos de instalação de carregadores públicos.

Implementados de diferentes formas e com a participação de diferentes atores locais, esses conjuntos de políticas conformam distintos arranjos institucionais e configurações de sistemas tecnológicos para o estabelecimento do automóvel elétrico. Em alguns países, esses sistemas contam com envolvimento de montadoras de elétricos desafiantes e de marcos regulatórios de eletrificação a longo prazo para a formação do mercado, como é o caso do programa Zero Emission Vehicle (ZEV) na Califórnia e em alguns outros Estados norte-americanos2 2 A partir de 2011 o ZEV se tornou uma iniciativa intergovernamental com a adesão progressiva de outros estados norte-americanos - Califórnia, Connecticut, Maryland, Massachusetts, Nova Jersey, Nova York, Oregon, Rhode Island, Vermont e Washington. . Em outros, como a China, o sistema conta com o apoio direto do Governo Central, principal articulador dessa transição tecnológica (MAZZUCATO, 2015MAZZUCATO, M. O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo: Portfólio-Penguin, 2015.), no fornecimento de recursos para a pesquisa, atraindo empresas estrangeiras, incentivando as empresas nacionais e promovendo a realização de joint-ventures, com o claro objetivo de acabar com a dependência tecnológica das montadoras chinesas e fomentar um novo paradigma tecnológico.

O Brasil, não obstante os esforços de algumas iniciativas, apresenta um STI incipiente, com um marco institucional vago e poucas redes de atores engajados no automóvel elétrico. O que reflete o desempenho tímido na eletrificação da mobilidade no país quando comparado a outras economias com menos tradição no setor. Em parte, como será visto, isto se deve a aspectos de sua infraestrutura institucional que tendem a dificultar a atuação das redes de inovação e operar como bloqueios a entrada de tecnologias alternativas ao automóvel a combustão interna no mercado.

As referidas redes são formadas, em sua maioria, por atores externos ou secundários ao mercado automotivo, como empresas do setor elétrico, fornecedores de equipamentos elétricos, associações civis de consumidores, institutos de pesquisa e administrações públicas subnacionais. Tais iniciativas derivam, em geral, de projetos de pesquisa e de projetos pilotos, voltados para a exploração e demonstração tecnológica do automóvel elétrico. Entre essas, destaca-se o Projeto Veículo Elétrico (VE) da Itaipu, o Projeto Ecoelétrico Curitiba, o Sistema de Compartilhamento de Elétricos Vamo Fortaleza, o Projeto Emotive da CPFL Energia, além de algumas startups de veículos elétricos de baixa velocidade, como HITECH, Electric Dreams, Mobilis, JAD Motors e Grilo Mobilidade.

Em relação a infraestrutura institucional, que aqui nos interessa diretamente, cabe ressaltar a elaboração de duas recentes políticas setoriais automotivas e outras políticas relacionadas à mobilidade elétrica, incluso o programa nacional de controle da poluição do ar. Todavia, como será visto a seguir, trata-se de políticas que, em diversos aspectos, encontram-se fracamente alinhadas com as propostas de implementação de automóveis elétricos, ou, até mesmo, atuando como mecanismos de bloqueio aos processos-chave necessários para o desenvolvimento da tecnologia em questão.

3. O protecionismo como estratégia de eficiência energética do Inovar-Auto

Em 2011, quando a discussão sobre automóveis elétricos começava a ganhar força no cenário internacional, as vendas de automóveis importados no mercado brasileiro cresceram cerca de 30%, alcançando uma participação de 21% nas vendas internas. Frente a esse assédio estrangeiro o Governo Federal alterou, significativamente, as alíquotas do imposto sobre produtos industrializados (IPI), aumentando em até 30 pontos percentuais, o valor do IPI para automóveis importados de países com os quais o Brasil não tivesse acordo comercial (LUCINDA; PEREIRA, 2017LUCINDA, C. R.; PEREIRA, L. M. S. Efeitos da política de redução do IPI sobre o mercado de automóveis novos. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS CENTROS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA, 45., 2017, Natal. Anais... Niterói: ANPEC, 2017.).

Com o claro objetivo de proteger a indústria nacional e fortalecer o setor de autopeças, esta política de majoração do IPI para importados, supostamente, deveria vigorar até o final de 2012. Porém, com o lançamento da nova política setorial, o Inovar-Auto, esta estratégia governamental foi estendida como forma de aproximar os carros comercializados e produzidos no país da fronteira tecnológica global.

Denominado pelo governo de Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores, o Inovar-Auto era um regime automotivo que buscava construir “condições para o aumento de competitividade no setor automotivo, produzir veículos mais econômicos e seguros, investir na cadeia de fornecedores, na engenharia, na tecnologia industrial básica, na pesquisa e no desenvolvimento e capacitação de fornecedores” (BRASIL, 2012BRASIL. Lei nº 12.715, de 17 de setembro de 2012. Diário Oficial da União, 18 set. 2012. Disponível em: <http://www.mdic.gov.br/index.php/competitividade-industrial/setor-automotivo/inovar-auto>. Acesso em: 29 maio 2020.
http://www.mdic.gov.br/index.php/competi...
). Em vigor entre 2013 e 2017, tratava-se, essencialmente, de um regime tributário que isentava as empresas habilitadas do aumento de 30 pontos percentuais na alíquota do IPI para automóveis importados.

Para a habilitação no regime, as montadoras de automóveis e comerciais leves deveriam realizar, no mínimo, 8 de 12 etapas fabris necessárias no Brasil em, pelo menos, 80% dos veículos fabricados. Além disso, as empresas deveriam atender, no mínimo, a dois dos requisitos de um total de três disponíveis: 1) realização pela empresa, no país, de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação; 2) realização pela empresa, no país, de dispêndio em engenharia, tecnologia industrial básica e de capacitação de fornecedores3 3 Todos os dispêndios deveriam corresponder a percentuais mínimos, incidentes sobre a receita bruta total de venda de bens e serviços, conforme o calendário. ; e 3) adesão da empresa ao programa de etiquetagem veicular de âmbito nacional.

Criado pela Lei n° 12.715/2012, o intuito principal do regime não era apenas proteger a indústria nacional, mas impulsionar os processos produtivos e os investimentos em inovação e engenharia, a fim de elevar o patamar da produção nacional e obter automóveis melhores, mais eficientes e com menos emissão de carbono. Em relação às metas de eficiência energética, a habilitação no programa dependia do compromisso das montadoras em alcançar um consumo médio de 17,26 km/l com gasolina e 11,96 km/l com etanol, o que proporcionava o abatimento de 1% do IPI nos veículos comercializados. Em 2013, o consumo médio de combustível no país era de 14 km/l nos veículos abastecidos com gasolina e 9,71 km/l quando no uso do etanol (COSTA, 2017COSTA, J. O. P. Normalização para a inovação: o programa brasileiro de etiquetagem veicular (PBE-V). In: RAUEN, A. T. (Org.). Políticas de inovação pelo lado da demanda no Brasil. Brasília: Ipea, 2017. p. 121-177.).

Regulamentado pelo Decreto Presidencial nº 7.819/2012, o Inovar-Auto foi elaborado com a participação de poucas e poderosas entidades representativas de interesses (sindical e patronal). Tanto a associação de fabricantes quanto os sindicatos dos metalúrgicos participaram de debates com o Governo Federal sobre o programa e promoveram esferas de discussão da política. O que tendeu a priorizar os interesses das empresas estabelecidas e beneficiar os regimes tecnológicos existentes em detrimento dos interesses de possíveis novos entrantes.

Como resultado, o programa consistiu em uma estratégia do Governo Federal para proteger a produção nacional, face ao constante aumento da importação e à entrada de novas montadoras asiáticas no mercado, garantir os níveis de emprego e estimular o desenvolvimento da economia. Como contrapartida, as montadoras deveriam investir no desenvolvimento de processos e produtos mais eficientes e seguros, fomentando o setor de autopeças e elevando o patamar tecnológico dos autoveículos nacionais, o que implicaria em incrementos na qualidade dos automóveis para os consumidores domésticos e na maior competitividade no mercado internacional.

Não obstante o desempenho fraco do mercado no período – o triênio 2014-2015-2016 foi marcado pela queda nos indicadores de produção nacional, no licenciamento de veículos novos, nos empregos do setor e no faturamento das empresas (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS FABRICANTES DE VEÍCULOS AUTOMOTORES, 2021ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS FABRICANTES DE VEÍCULOS AUTOMOTORES – ANFAVEA. Anuário da Indústria Automobilística Brasileira. São Paulo: AutoData Editora, 2021.) – o regime provocou mudanças tecnológicas significativas na produção de automóveis. Para atingir as metas estabelecidas, diversas montadoras investiram em tecnologias mais eficientes, como motores com turbo compressores, injeção direta e práticas de downsizing. Segundo estudos realizados pela Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), houve uma melhora média de 15,4% na eficiência energética da frota nacional de veículos leves, no período.

Estas mudanças estimularam o Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBE-V), do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (INMETRO) e melhoraram os índices de consumo dos automóveis produzido no país. Lançado em 2008 como um programa de adesão voluntária, o programa de etiquetagem ganhou força com o Inovar-Auto e atualmente é obrigatório a todos os automóveis vendidos no país. Trata-se da realização de testes desempenho dos automóveis novos e de posterior etiquetagem conforme resultados. A etiqueta reúne dados úteis sobre consumo de combustível e emissões de gases com potencial para ii)4 4 A itemização refere-se aos sete processos-chave descritos na seção 2. influenciar na direção da busca de consumidores e produtores, de forma a favorecer o STI do automóvel elétrico.

Como política setorial voltada para o upgrade tecnológico e para a melhor eficiência energética dos veículos, o Inovar-Auto pode ser considerado um marco importante. Porém, considerando a meta de fortalecer as capacidades locais de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, não é possível atribuir o mesmo sucesso à política, pois, mesmo com taxas mínimas de investimento, os esforços realizados pelas empresas se concentraram, principalmente, na adaptação local de componentes disponibilizados por intermédio de transferência de tecnologia oriunda das matrizes (IBUSUKI; BERNARDES; CONSONI, 2015IBUSUKI, U.; BERNARDES, R.; CONSONI, F. New Brazilian automotive industrial policy: Analysis of the consequences for local R&D based on new comer’s strategies. International Journal of Automotive Technology and Management, Milton Keynes, v. 15, n. 63, p. 63-79, 2015.). Em outras palavras, como política voltada para o adensamento das atividades de pesquisa e desenvolvimento de inovações no setor, o Inovar-Auto teria alcançado resultados modestos.

Em relação aos automóveis elétricos, a política apresentou uma concepção protecionista (PASCOAL et al., 2017PASCOAL, E. et al. The new Brazilian automotive policy and its impact on the competitiveness of multinational automobile and auto parts manufacturers. International Journal of Automotive Technology and Management, United Kingdom, v. 17, n. 3, p. 225-247, 2017.) e relativamente conservadora. Apesar de as metas de eficiência energética incluírem megajoules por quilômetro (MJ/Km) como unidade de medida, não há na política qualquer percentual mínimo de veículos com emissão zero de gases, como no caso do Zero Emission Vehicle. Ademais, não há em sua redação qualquer incentivo específico para o desenvolvimento de tecnologias relacionadas a fontes de energia alternativas, como motores elétricos, híbridos e células de combustível.

Essas ausências, além de representarem entraves à realização de processos-chave para o STI do automóvel elétrico – como iii) entrada de novos atores iv) formação de um mercado embrionário, v) legitimação da tecnologia, e vi) mobilização de recursos – acabaram por favorecer a produção de externalidades positivas para o motor de combustão interna e reforçar seu domínio. Como consequência, o Inovar-Auto não produziu nenhum efeito expressivo sobre a produção, venda ou desenvolvimento de pesquisas relacionadas a automóveis elétricos e híbridos no sistema tecnológico.

Por seu turno, a alteração na política tributária dos automóveis elétricos – o Imposto de Importação (II), que era de 35%, passou para 0% em veículos a propulsão elétrica ou movidos a hidrogênio, e para 0% a 7% em veículos híbridos, conforme o nível de eficiência energética5 5 Conforme Resoluções Camex nº 97/2015, 27/2016, publicadas no Diário Oficial da União. – influiu de forma ambígua no STI. Por um lado, atuou como mecanismo de indução à iii) formação do mercado, inclusive contando com a participação de atores envolvidos com iniciativas voltadas para a implementação de automóveis elétricos no contexto nacional6 6 Atores envolvidos em projetos como Ecoelétrico Curitiba e Vamo Fortaleza. . Por outro, estimulou a importação de veículos, o que prejudicou vi) a mobilização de recursos como capitais e competências da indústria local.

Desta forma, o Inovar-Auto, ao dificultar a entrada de novos atores e estimular o desenvolvimento incremental do motor a combustão interna, por meio de metas de eficiência energética gerais, produziu mecanismo de bloqueio a processos importantes do STI dos elétricos. O debate sobre tecnologias alternativas chegou a ser realizado no âmbito do programa, mas não houve resultados relevantes nesse sentido. Com isso, questões vinculadas à transição energética, à eletrificação da mobilidade e às novas vanguardas tecnológicas ficaram suspensas, à espera de uma nova política setorial.

4. Novas expectativas entram em cena com o Rota 2030

Com o fim do Inovar-Auto previsto para dezembro de 2017, iniciaram-se as tratativas para a elaboração da nova política setorial. Neste ínterim, tendências em desenvolvimento se consolidaram no mercado automotivo internacional, transformando a eletrificação dos veículos, os sistemas de compartilhamento e a expansão da conectividade em realidade.

No âmbito dos acordos internacionais, o Brasil assumiu o compromisso de reduzir em 43% suas emissões de gases de efeito estufa até 2030, tendo 2005 como ano-base, na Convenção das Partes ocorrida em Paris (COP 21). Compromisso que pressionou ainda mais a indústria automotiva, uma vez que o setor de transportes é responsável por uma parte considerável das emissões brasileiras, sendo, dentro do setor energético, o que mais emite gases de efeito estufa (FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, 2017FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS – FGV. Carros elétricos. Cadernos FGV Energia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 1, 2017.). Com isso, aumentaram as expectativas sobre novos esforços realizados para reduzir as emissões no setor de transportes, principalmente em relação aos limites legais e aos padrões tecnológicos exigidos pelo Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (PROCONVE).

Criado em 1986, pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e instituído em 1993, pela Lei nº 8.723, o PROCONVE é um importante instrumento para a redução da contaminação atmosférica provocada por veículos automotores. Apesar das consideráveis evoluções no combate às emissões, ao longo dos últimos anos, em termos de limites definidos e de seu monitoramento, a regulação brasileira ainda é considerada branda em comparação com os padrões internacionais (CONSONI et al., 2018CONSONI, F. L. et al. Estudo de governança e políticas públicas para veículos elétricos. Campinas: LEVE/ DPCT/ UNICAMP, 2018.) e sem vínculo direto com a emissão de gases do efeito estufa, o que torna tímido o estímulo ao i) desenvolvimento e a aplicação de novos conhecimentos relacionados a tecnologias propulsoras mais limpas, uma vez que as metas atuais podem ser facilmente alcançadas por intermédio de melhoramentos incrementais no motor a combustão.

As novas e mais rígidas fases do Programa, P8 (pesados) e L7 (leves), chegaram a ser regulamentadas no final de 2018 e agendadas para entrar em vigor a partir de 2022 – Resoluções nº 490 e 492 do CONAMA. Porém, a ANFAVEA já solicitou ao Ministério do Meio Ambiente o estudo de adiamento das próximas fases, tendo em vista a dificuldade em atender aos novos limites máximos de emissão de poluentes no prazo estipulado.

O conjunto dessas questões, somado às movimentações externas de países e novas montadoras, contribuiu para a geração de uma série de instabilidades no mercado automotivo. Novas expectativas e demandas engendraram oportunidades para a criação de políticas de inovação, para a entrada de novas empresas e possíveis reacomodações no interior do espaço de relações e disputas. Frente a estas iminentes mudanças, os principais atores do mercado automotivo nacional buscaram se organizar de forma a defender seus interesses e influenciar nos rumos e nos ritmos destas transformações.

Foi nesse contexto que tiveram início as discussões sobre o Programa Rota 2030 – Mobilidade e Logística, nova política industrial para o setor automotivo. Concebido para ocupar o lugar deixado pelo Inovar-Auto, o Rota 2030 também se pretende um regime de aceleração tecnológica da indústria automotiva nacional, porém, sem o viés protecionista propiciado pelos 30 pontos percentuais adicionados ao IPI para veículos importados. Aliás, esse ponto do Inovar-Auto foi condenado pela Organização Mundial do Comércio (OMC), em agosto de 2017, após protestos junto ao órgão, feitos pela União Europeia e pelo Japão.

Outros aspectos que diferenciam o Rota 2030 do programa anterior são: a) um período de vigência maior, 15 anos divididos em 3 ciclos quinquenais (2018-2022; 2023-2027; 2028-2032) com renovação da política a cada ciclo; b) regras básicas de melhoria de eficiência energética, etiquetagem e segurança veicular para todas as empresas que produzem ou importam carros no Brasil, sob a pena de pagarem multas sobre a receita das vendas caso não cumpram as metas, e com direito a benefícios fiscais caso as superem; c) benefício fiscal para as empresas que investirem em P&D, porém em caráter facultativo e sobre o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e, em relação à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), os investimentos poderão ser realizados sob a forma de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação e programas prioritários de apoio ao desenvolvimento industrial e tecnológico para o setor automotivo e sua cadeia; d) redução na alíquota de IPI em até dois pontos percentuais para veículos que atenderem requisitos de eficiência energética e até um ponto percentual para os veículos que atenderem a requisitos específicos de desempenho estrutural associado a tecnologias assistivas à direção; e e) os veículos híbridos flex devem ter uma redução de, no mínimo, três pontos percentuais na alíquota do IPI em relação aos veículos convencionais, de classe e categoria similares, equipados com esse mesmo tipo de motores.

Com base nesses pontos, identifica-se o intuito em estimular processos-chave como i) o desenvolvimento de conhecimento por meio da adesão facultativa a projetos de P&D, a iii) a mobilização de recursos, através de benefício fiscal às montadoras e iv) a formação de mercado, por meio de políticas de consumo. Porém, novamente, são medidas voltadas para a eficiência energética geral, que acabam favorecendo o predomínio do motor a combustão interna, em especial, os automóveis híbridos flex.

Marcado por uma série de atrasos e reviravoltas, finalmente, o programa foi sancionado pela Lei nº 13.755, de 10 de dezembro de 2018. Segundo integrantes dos grupos de discussões, parte do entrave ocorreu devido à questão dos incentivos tributários para aqueles que cumprissem as metas de eficiência energética e proteção veicular e realizassem investimentos em P&D – com o Ministério da Fazenda assumindo uma posição pouco inclinada ao benefício e o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) favorável à medida. Por fim, prevaleceram os incentivos e a instituição do programa foi vista de forma positiva pela ANFAVEA7 7 Vide entrevista do presidente da Anfavea Antonio Megale a revista Automotive Business (KUTNEY, 2019). , que se ressentia de uma política setorial clara e previsível para a realização de suas estratégias industriais.

No bojo dessas discussões foram alteradas, via decreto (Decreto nº 9.442, de 5 de julho de 2018), as alíquotas de IPI incidentes sobre veículos equipados com motores híbridos e elétricos conforme a eficiência energética e o peso dos automóveis prontos para rodar8 8 No regime tarifário anterior os veículos elétricos pagavam uma alíquota de 25%, enquanto os híbridos eram taxados entre 7% e 25%, de acordo com a capacidade volumétrica do motor. O Decreto nº 9.442 de 5 de julho de 2018 reduziu estas alíquotas para faixas que vão de 9% a 20% para híbridos e 7% a 18% para elétricos. . Neste mesmo decreto foram reduzidas em dois pontos percentuais (2%) as alíquotas do IPI sobre automóveis híbridos que possuam um motor combustível flex.

Constata-se nesse decreto um aparente mecanismo de indução à iii) entrada de novos atores e à iv) formação do mercado, porém há uma discussão em relação à efetividade desta política tributária em estimular o consumo de elétricos. Pois, as mudanças nas alíquotas do IPI não beneficiarem de forma expressiva os automóveis elétricos e híbridos maiores, uma vez que o cálculo da alíquota leva em conta a massa dos automóveis, que geralmente são mais pesados que os veículos convencionais em função das baterias (REIS, 2018REIS, A. Fizemos as contas: governo prometeu “reduções”, mas tem modelo que vai até pagar mais do que atualmente. UOL, 3 set. 2018. Disponível em: <https://carros.uol.com.br/noticias/redacao/2018/09/03/ficou-bom-novas-regras-para-ipi-nao-significam-carro-eletrico-mais-barato.htm>. Acesso em: 29 maio 2020.
https://carros.uol.com.br/noticias/redac...
).

Em meio a intensos debates e incertezas, as discussões sobre o programa levaram quase dois anos e contaram com a participação de diversos grupos e atores da sociedade civil, para além dos tradicionais representantes do setor automotivo. Um dos motivos para esta heterogeneidade dos participantes foi a criação de um grupo de discussão sobre eletromobilidade, que não estava previsto originalmente.

Novos atores, como a Associação Brasileira dos Proprietários de Veículos Elétricos Inovadores9 9 Primeira associação de proprietários de veículos elétricos e híbridos plug-in do país, a ABRAVEi foi fundada em 2017 como uma associação voltada para a manutenção e troca de experiência entre usuários de VEs, mais recentemente passou a atuar na realização eventos, na promoção do veículo elétrico e na reivindicação de políticas públicas para a mobilidade elétrica. (ABRAVEi) e a Associação Brasileira de Veículos Elétricos10 10 Fundada em 2006, a ABVE é uma associação privada sem fins lucrativos que atua na promoção do veículo elétrico através da organização do Congresso e Salão Latino Americano de Veículos Elétricos e do cadastramento das empresas do segmento dos VEs, a fim de formar uma rede integrada de parcerias de negócios entre as empresas. (ABVE), atuaram como empreendedores institucionais (RAO, 2004RAO, H. Institutional activism in the early American automobile industry. Journal of Business Venturing, New York, n. 19, p. 359-384, 2004.) dos veículos elétricos. Isto é, no sentido de assegurar a v) legitimidade dos elétricos, assumindo riscos ao aderir à novidade tecnológica e promovendo sua utilidade e viabilidade em demonstrações públicas de funcionamento, como carreatas, encontros de elétricos e inauguração de eletropostos, mas também através de lobby privado, organização de feiras e eventos.

Percebe-se, com isto, a participação de novos atores, organizados em redes, no STI do automóvel elétrico. Ainda assim, o conteúdo do Rota 2030 encontra-se fracamente alinhado às expectativas destes entrantes (isonomia tributária, investimentos em infraestrutura de recarga, na cadeia de fornecedores de componentes, e previsibilidade) o que acaba bloqueando processos como a ii) influência na direção da busca, a v) legitimação da tecnologia e a vii) produção de externalidades positivas.

Além disso, os impactos da mudança tecnológica na economia nacional e à forma como o país vai se integrar a esse novo paradigma tecnológico produtivo não foram diretamente abordados pelo Rota 2030. De fato, trata-se novamente de uma política que prioriza a eficiência energética e a redução nas emissões, porém sem apoiar a tecnologia do motor elétrico em específico e, consequentemente, sem incentivar diretamente processos-chave essenciais para o desempenho do sistema tecnológico.

Em parte, essa debilidade da política se deve a outro mecanismo de bloqueio, o comportamento ambíguo de empresas estabelecidas (JACOBSSON; BERGEK, 2004JACOBSSON, S.; BERGEK, A. Transforming the energy sector: the evolution of technological systems in renewable energy technology. Industrial and Corporate Change, London, v. 3, n. 5, p. 815-849, 2004.) e ao fato de uma parte relevante dessas empresas não estar interessada em uma transição rápida para a eletrificação dos automóveis. Pois, um conjunto amplo e consistente de políticas que favorecesse claramente a tecnologia do automóvel elétrico colocaria em jogo diversos interesses de atores consolidados, tais como os investimentos recentemente realizados em estruturas produtivas, as redes de fornecedores e manutenção consolidadas11 11 Uma das questões mais complicadas da transição para mobilidade elétrica para as empresas fornecedoras e os trabalhadores do setor, no caso dos elétricos a bateria, é o fato destes veículos possuírem muito menos autopeças na sua composição e exigirem menos manutenção (FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, 2017). , e os projetos de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias relacionadas à eficiência energética dos motores de combustão.

Não por acaso, a referida ausência de uma política clara e específica para os automóveis elétricos se encontra em consonância com a estratégia das montadoras de oferecer poucos modelos elétricos no mercado nacional. Os modelos disponíveis são todos importados, com exceção dos Toyotas Corolla e Cross. Outro aspecto que chama a atenção são os valores dos automóveis, bem distantes do valor médio dos automóveis populares do país. Isto é, entre as 16 montadoras de automóveis com fábricas no país, a única que produz automóveis elétricos em escala comercial é a Toyota para a montagem dos modelos híbridos flex. Além disso, a maioria dos modelos disponíveis para importação (com exceção do Renault Zoe, Nissan Leaf, Chevrolet Bolt) são modelos de luxo, utilitários esportivos de alta performance, distantes dos populares hatchs médios nacionais.

Esses dados reforçam a tese de que não há, no Brasil, de parte das montadoras, uma inserção coordenada e direcionada à promoção e à difusão de automóveis elétricos. Antes, percebe-se uma estratégia de inserção pontual, principalmente de modelos destinados à população de renda elevada, e uma tendência a privilegiar os automóveis híbridos, tendo em vista a possibilidade de explorar e desenvolver modelos flex fuel. Isto é, na atual configuração do STI, as montadoras consolidadas demonstram um comportamento ambíguo, sem se comprometer explicitamente com a tecnologia do automóvel elétrico.

5. Uma dinâmica interdependente

Para além da política setorial automotiva, destacam-se na infraestrutura institucional brasileira outras políticas recentes de estímulo à produção e ao consumo de veículos elétricos. Porém, ressalta-se um baixo nível de articulação entre as políticas de mobilidade (COELHO; ABREU, 2019COELHO, P.; ABREU, M. Transição sociotecnológica para a mobilidade urbana sustentável no Brasil. Revista de Administração da UFSM, Santa Maria, v. 12, p. 1227-1241, 2019.), com predomínio de ações exploratórias na área de ciência e tecnologia – que não se traduzem em produtos tangíveis para o mercado – instrumentos incipientes no fomento à produção, ausência de definições sobre padrões para a infraestrutura e poucos incentivos ao consumo de tecnologias de baixa emissão, com exceção do consumo de veículos pesados (ônibus elétricos), para cuja aquisição existem linhas de crédito específicas (CONSONI et al., 2018CONSONI, F. L. et al. Estudo de governança e políticas públicas para veículos elétricos. Campinas: LEVE/ DPCT/ UNICAMP, 2018.).

A propósito, tanto do ponto de vista dos esforços dos atores produtivos, quanto das políticas públicas, pode-se afirmar que, em comparação com os veículos leves, o processo de eletrificação dos pesados encontra-se num estágio mais avançado no país. Isso fica evidente ao observar os esforços produtivos de empresas como VWCO, BYD, Mercedes-Benz, Eletra e WEG; e políticas pioneiras como a Lei do Clima da cidade de São Paulo (art. 50) e Lei 16802/2018, que impõe a redução de 50% da emissão de CO2 no transporte público da cidade até 2028 e 100% até 2038.

Além das referidas políticas de estímulo à produção e ao consumo, o setor elétrico tem contribuído com importantes iniciativas vinculadas à mobilidade elétrica, que tendem a atuar como mecanismos de indução ao STI. A Resolução Normativa Aneel 819, ao regulamentar a atividade de recarga, estimula não apenas a entrada de novos atores no sistema e a iv) formação de um mercado de recarga, mas contribuí com a v) legitimidade da tecnologia ao favorecer o desenvolvimento da infraestrutura de recarga e reduzir as expectativas relacionadas. Não obstante esse estímulo regulatório, não há nenhuma política nacional robusta, com metas e prazos específicos, para a construção de uma infraestrutura de recarga em pontos estratégicos, aspecto que certamente contribuiria para a redução do grau de incerteza vinculado a recarga e autonomia dos automóveis elétricos.

Por seu turno, a Chamada Estratégica 22, do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento P&D da Aneel, é o mais vultuoso mecanismo de indução12 12 Recentemente, a Medida Provisória nº 998/2020 reduziu o montante de recursos destinados aos programas de P&D e eficiência energética da Aneel ao remanejar parte relevante desses recursos para a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético). à vi) mobilização de recursos e ao desenvolvimento de inovações tecnológicas para o sistema. São mais de R$ 620 milhões aportados em projetos de pesquisa para a geração de negócios e soluções de mercado para mobilidade elétrica, até 2024 (PLATAFORMA NACIONAL DE MOBILIDADE ELÉTRICA, 2020PLATAFORMA NACIONAL DE MOBILIDADE ELÉTRICA – PNME. Anuário Brasileiro da Mobilidade Elétrica. Rio de Janeiro, 2020.). O que ressalta, novamente, a dinâmica interdependente do STI e a possibilidade de indução de processos importantes através de setores diferentes do automotivo.

A análise desse conjunto de políticas (Quadro 1) mostra que algumas delas, como padrões de emissões, de eficiência energética, benefícios fiscais na compra dos veículos e regulamentação da atividade de recarga foram elaborados no âmbito Federal, alcançando abrangência nacional. Já os incentivos de circulação, licenciamento, imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA), e dispensa sobre restrições de acesso, são decididos nos níveis locais.

QUADRO 1
Políticas públicas brasileiras de incentivo aos veículos elétricos

Ainda que essas políticas induzam a realização de alguns processos-chave para o STI, elas não são suficientemente articuladas para estimular, de forma sustentada e abrangente, o desenvolvimento e a difusão do automóvel elétrico no contexto nacional atual, em que os atores consolidados do mercado automotivo se encontram pouco dispostos a grandes investimentos nesse sentido. Isso pode ser constatado na ausência do vii) desenvolvimento de externalidades positivas para o sistema. Processo que pode ser considerado um indicador da dinâmica geral do sistema, pois depende dos outros processos e faz referência a transbordamentos típicos de sistemas maduros (mercados de trabalho em comum, bens intermediários e prestadores de serviço especializados, e fluxos de informação e conhecimento).

Outro aspecto a ser ressaltado nesse conjunto de políticas é a ausência de uma meta clara, de longo prazo, para a eletrificação da mobilidade. Ausência que contrasta com as estratégias de banimento de veículos a combustão interna, em diversos países, nos próximos anos13 13 Japão, Sri Lanka, Dinamarca, França, Alemanha, Groelândia, Irlanda, Holanda, Noruega, Portugal, Eslovênia, Espanha, Suécia, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos são alguns dos países que anunciaram metas de vendas de 100% de automóveis elétricos para os próximos anos (INTERNATIONAL ENERGY AGENCY, 2021). . Sobre esse ponto, convém ressaltar que o conteúdo das políticas descritas não aponta para a supressão do motor a combustão, como uma direção a ser seguida por consumidores e fornecedores. Pelo contrário, o conjunto de incentivos é voltado para uma melhora generalizada na eficiência energética dos motores, com melhores padrões de emissão de poluentes e benefícios fiscais a veículos elétricos, inclusos os híbridos que possuem motor de combustão interna, e benefícios maiores àqueles híbridos capazes de utilizar etanol.

Isto é, um conjunto de políticas que prioriza a eficiência energética e a redução nas emissões, porém sem apoiar a tecnologia do motor elétrico em específico. Esta estratégia pode ser constada na fala da diretora do Departamento das Indústrias para Mobilidade e Logística do MDIC, Margarete Gandini: “A visão do governo é que temos de caminhar para uma matriz cada vez mais limpa de transportes com uma convivência com essas diferentes tecnologias”, em uma audiência realizada, em 04/07/2018, na Comissão de Transportes da Câmara dos Deputados para a discussão de incentivos aos carros elétricos e híbridos (BRASIL, 2018BRASIL. Câmara dos Deputados. Governo prevê redução do IPI para carros elétricos e híbridos. Agência Câmara de Notícias, 4 jul. 2018. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/TRANSPORTE-E-TRANSITO/559935-GOVERNO-PREVE-REDUCAO-DO-IPI-PARA-CARROS-ELETRICOS-E-HIBRIDOS.html>. Acesso em: 3 jun. 2020.
https://www2.camara.leg.br/camaranoticia...
).

Logo, trata-se de um conjunto de políticas, amplo e pouco ambicioso, que aponta uma direção, mas não se compromete, de maneira firme e convicta, com a transição para nenhuma tecnologia específica. O que acaba por reforçar a trajetória tecnológica dominante ao não impor desafios técnicos aos produtores e não estimular a produção de novos conhecimentos e geração de externalidades positivas. Desta forma, as montadoras tendem a priorizar áreas já dominadas e inovações incrementais, como novos investimentos em etanol como combustível alternativo.

Soma-se a isto, a ausência de políticas industriais relevantes voltadas para o setor de componentes elétricos (bateria, motores), a competente articulação dos atores ligados ao STI dos biocombustíveis e seu alinhamento institucional, expresso na publicação da nova Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio). Lei nº 13.576, de 26 de dezembro de 2017, entrada em vigor 2020, que busca reduzir as emissões de GEE e contribuir para o cumprimento dos compromissos do país no âmbito do Acordo de Paris, por intermédio da expansão dos biocombustíveis na matriz energética nacional.

A referida política reforça a trajetória do etanol como combustível alternativo às fontes fósseis, ao promover a expansão da produção dos biocombustíveis através da definição de metas compulsórias anuais de redução de emissão de GEE para os distribuidores de combustíveis, ao longo de 10 anos. O objetivo destas metas é expandir a produção, garantir a regularidade no abastecimento do biocombustível e gerar certa previsibilidade para o mercado de combustíveis. O que acaba por fortalecer o setor sucroalcooleiro14 14 Uma das principais entidades interessadas e atuantes na promulgação do RenovaBio foi a União da Indústria de Cana de Açúcar (UNICA). e a rota tecnológica do motor a combustão flex.

6. Considerações finais

As políticas analisadas são indicativas da infraestrutura institucional do STI do automóvel elétrico no contexto brasileiro e do desalinhamento institucional que acaba por atuar como mecanismo de bloqueio à inovação. Esse bloqueio fica mais claro quando observada a ausência, ou a debilidade, de processos fundamentais para o desenvolvimento sustentado do sistema. Ainda que se encontrem presentes na análise, não há articulação entre: produção e difusão de novos conhecimentos relacionados à mobilidade elétrica; formação de mercados embrionários locais; mobilização contingente de recursos; e estímulo à experimentação empresarial. Ademais, os processos de influência na direção da busca e legitimação da tecnologia carecem de uma perspectiva clara e duradoura sobre a transição tecnológica.

No caso das políticas setoriais automotivas (Inovar-Auto e Rota 2030), prevalecem incentivos à produção e comercialização de veículos mais eficientes energeticamente, por meio de renúncia fiscal. Como consequência, ao invés de estimularem a mobilização de recursos e o desenvolvimento de novos conhecimentos vinculados à eletrificação, as políticas tendem a privilegiar a trajetória tecnológica dominante, o motor a combustão, como o principal vetor para o desenvolvimento de veículos de baixa emissão. Um posicionamento pouco alinhado com STI do automóvel elétrico, pois não impõe grandes desafios técnicos à indústria automotiva e influí apenas em áreas já dominadas pelas empresas estabelecidas, favorecendo inovações incrementais, como o automóvel híbrido flex fuel.

Por seu turno, as políticas mais relevantes para o desenvolvimento de processos importantes para o sistema são oriundas da mobilidade urbana e do setor elétrico. São elas, principalmente, que estimulam a produção de novos conhecimentos, a legitimação da tecnologia e a formação de mercado em contextos subnacionais. Em grande medida, essas políticas contam com o apoio de atores externos ou secundários ao mercado automotivo, que se articulam em redes políticas como forma de buscar fomentos e regras mais favoráveis à implementação do automóvel elétrico. Esforços que são traduzidos em marcos regulatórios para a recarga, incentivos de circulação, licenciamento, imposto sobre a propriedade, dispensa sobre restrições de acesso e, mais recentemente, políticas de P&D, mas que não são suficientemente articulados, até o momento, para estimular o desenvolvimento de externalidades positivas e subsidiar a pesquisa, a produção e o consumo em larga escala de tecnologias vinculadas ao automóvel elétrico.

Cabe ainda ressaltar o alinhamento de políticas setoriais, como o Rota 2030 e o RenovaBio, com a tecnologia dos biocombustíveis, como forma de responder às demandas de redução de emissões e uso de fontes de energia renováveis no mercado automotivo nacional. O que tende a enfraquecer o STI do automóvel elétrico e desestimular a alocação de recursos em pesquisa e desenvolvimento de competências vinculadas à tecnologia, além de dificultar a atuação de redes de atores engajados com a inovação.

Por fim, constata-se uma infraestrutura institucional pouco alinhada ao STI em questão, com algumas políticas atuando como mecanismos de incentivo a processos importantes. Porém, sem a coordenação e a clareza necessária para desenvolver o sistema de forma sustentada. Essa ausência ocorre, em parte, devido ao comportamento ambíguo de empresas estabelecidas e à articulação de atores de sistemas tecnológicos concorrentes, como os biocombustíveis.

APÊNDICE 1 Apêndice Metodológico

A pesquisa foi realizada com base na análise do escopo das principais políticas que integram a infraestrutura institucional do Sistema Tecnológico da Inovação (STI) e na análise de conteúdo de entrevistas efetuadas com diferentes atores envolvidos em iniciativas voltadas para o automóvel elétrico no contexto nacional. No total foram realizadas 16 entrevistas semiestruturadas, entre agosto de 2018 e março de 2020, com representantes de diversas organizações que integram a rede de atores engajados com a inovação tecnológica em questão (Quadro A1). Os interlocutores foram selecionados a partir de uma amostragem intencional (FLICK, 2009FLICK, U. Desenho da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. 164 p.), baseada em dois fatores: relação com alguma iniciativa de implementação do automóvel elétrico e pertencimento a organizações de diferentes naturezas institucionais (empresa privada; administração pública; organização não governamental; institutos de pesquisa). As entrevistas foram organizadas e categorizadas através da análise de conteúdo, o que possibilitou identificar, junto a esses atores, seus “interesses e objetivos”, os principais “desafios e dificuldades” encontrados, bem como as “políticas públicas, linhas de crédito, agências de fomento acessadas”. Com base nesses dados e nos conceitos de mecanismo de indução/bloqueio à inovação, foi investigada a relação de alinhamento, ou não, entre as políticas e os interesses dos atores da rede e as consequências disso para processos-chave do STI.

QUADRO A1
Interlocutores por cargo, instituição e natureza institucional

Agradecimentos

O autor agradece aos colegas Sandro Ruduit Garcia e Raphael da Costa Lima pelas considerações e sugestões.

  • 1
    Aqui entendidas como o conjunto de regras formalmente instituídas e consideradas, garantidas por aparato administrativo – tais como leis, decretos, normas, acordos e regulações. Regras em sua dimensão institucional regulatória, voltadas para constranger e regular interações.
  • 2
    A partir de 2011 o ZEV se tornou uma iniciativa intergovernamental com a adesão progressiva de outros estados norte-americanos - Califórnia, Connecticut, Maryland, Massachusetts, Nova Jersey, Nova York, Oregon, Rhode Island, Vermont e Washington.
  • 3
    Todos os dispêndios deveriam corresponder a percentuais mínimos, incidentes sobre a receita bruta total de venda de bens e serviços, conforme o calendário.
  • 4
    A itemização refere-se aos sete processos-chave descritos na seção 2.
  • 5
    Conforme Resoluções Camex nº 97/2015, 27/2016, publicadas no Diário Oficial da União.
  • 6
    Atores envolvidos em projetos como Ecoelétrico Curitiba e Vamo Fortaleza.
  • 7
    Vide entrevista do presidente da Anfavea Antonio Megale a revista Automotive Business (KUTNEY, 2019KUTNEY, P. Indústria automotiva toma o rumo da Rota 2030: Rota 2030 estimula a evolução tecnológica nas linhas de produção no País. Automotive Business, 15 abr. 2019. Disponível em: <http://www.automotivebusiness.com.br/noticia/29055/industria-automotiva-toma-o-rumo-da-rota-2030>. Acesso em: 29 maio 2020.
    http://www.automotivebusiness.com.br/not...
    ).
  • 8
    No regime tarifário anterior os veículos elétricos pagavam uma alíquota de 25%, enquanto os híbridos eram taxados entre 7% e 25%, de acordo com a capacidade volumétrica do motor. O Decreto nº 9.442 de 5 de julho de 2018 reduziu estas alíquotas para faixas que vão de 9% a 20% para híbridos e 7% a 18% para elétricos.
  • 9
    Primeira associação de proprietários de veículos elétricos e híbridos plug-in do país, a ABRAVEi foi fundada em 2017 como uma associação voltada para a manutenção e troca de experiência entre usuários de VEs, mais recentemente passou a atuar na realização eventos, na promoção do veículo elétrico e na reivindicação de políticas públicas para a mobilidade elétrica.
  • 10
    Fundada em 2006, a ABVE é uma associação privada sem fins lucrativos que atua na promoção do veículo elétrico através da organização do Congresso e Salão Latino Americano de Veículos Elétricos e do cadastramento das empresas do segmento dos VEs, a fim de formar uma rede integrada de parcerias de negócios entre as empresas.
  • 11
    Uma das questões mais complicadas da transição para mobilidade elétrica para as empresas fornecedoras e os trabalhadores do setor, no caso dos elétricos a bateria, é o fato destes veículos possuírem muito menos autopeças na sua composição e exigirem menos manutenção (FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, 2017FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS – FGV. Carros elétricos. Cadernos FGV Energia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 1, 2017.).
  • 12
    Recentemente, a Medida Provisória nº 998/2020 reduziu o montante de recursos destinados aos programas de P&D e eficiência energética da Aneel ao remanejar parte relevante desses recursos para a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético).
  • 13
    Japão, Sri Lanka, Dinamarca, França, Alemanha, Groelândia, Irlanda, Holanda, Noruega, Portugal, Eslovênia, Espanha, Suécia, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos são alguns dos países que anunciaram metas de vendas de 100% de automóveis elétricos para os próximos anos (INTERNATIONAL ENERGY AGENCY, 2021INTERNATIONAL ENERGY AGENCY – IEA. Global EV Outlook 2021, accelerating ambitions despite the pandemic. Paris: IEA, 2021.).
  • 14
    Uma das principais entidades interessadas e atuantes na promulgação do RenovaBio foi a União da Indústria de Cana de Açúcar (UNICA).
  • Fonte de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2021
  • Revisado
    27 Maio 2022
  • Aceito
    01 Ago 2022
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