RESUMO:
Conhecendo a abrangência da televisão para a disseminação de informações, entretenimento e ideologias, este trabalho investiga a caracterização das falas de personagens de duas obras da teledramaturgia brasileira, O Sétimo Guardião ( 2018O SÉTIMO guardião. Direção: Rogério Gomes. Rio de Janeiro: Rede Globo, 2018.) e Verdades Secretas ( 2015VERDADES secretas. Direção: Mauro Mendonça Filho e Amora Mautner. Rio de Janeiro: Rede Globo, 2015.), buscando (re)conhecer se a representação pode encaminhar os telespectadores a uma avaliação negativa desses personagens devido à sua forma de se expressar pela fala, ou se a representação legitima os falares como marcas de identidade. Os estudos da sociolinguística fundamentam as análises, sobretudo teóricos como Labov ( 2008LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.), Pagotto ( 2004PAGOTTO, E. G. Variação e (´) identidade. Maceió: Edufal, 2004.), Bortoni-Ricardo ( 2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009., 2011BORTONI-RICARDO, S. M. Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. São Paulo: Parábola, 2011.) e Bagno ( 2015BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2015.). Por meio de uma pesquisa qualitativa que utilizou como método a proposta de Bortoni-Ricardo ( 2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009.), em que se alocam os falantes analisados em pontos de linhas imaginárias de acordo com sua expressão linguística, em especial na alocação dos falantes no “contínuo de urbanização”, foi possível concluir que uma das narrativas televisivas se mostra repleta de traços caricaturais, oportunizando avaliações negativas enquanto a outra traz representatividade por apresentar as identidades representadas com fidedignidade.
PALAVRAS-CHAVE:
preconceito linguístico; novelas televisivas; identidade; estereótipo; contínuo de urbanização
ABSTRACT:
Knowing the scope of television for the dissemination of information, entertainment, and ideologies, this paper investigates the characterization of two characters’ speech features from two Brazilian soap opera works: O Sétimo Guardião ( 2018O SÉTIMO guardião. Direção: Rogério Gomes. Rio de Janeiro: Rede Globo, 2018.), and Verdades Secretas ( 2015VERDADES secretas. Direção: Mauro Mendonça Filho e Amora Mautner. Rio de Janeiro: Rede Globo, 2015.), seeking to recognize if the representation can lead viewers to a negative evaluation of characters based on how they express themselves by speaking, or if the representation legitimizes speech as mark of identity. We based the analyses on the Sociolinguistics studies, especially those of Labov ( 2008LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.), Pagotto ( 2004PAGOTTO, E. G. Variação e (´) identidade. Maceió: Edufal, 2004.), Bortoni-Ricardo ( 2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009., 2011BORTONI-RICARDO, S. M. Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. São Paulo: Parábola, 2011.), and Bagno ( 2015BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2015.). By using qualitative research following the method proposed by Bortoni-Ricardo ( 2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009.), in which the analyzed speakers are allocated in points of imaginary lines according to their linguistic expression, especially in the “urbanization continuum”, we could conclude that one of the television narratives brings caricature traits, providing opportunities for negative evaluations, whereas the other brings out representation since it reliably shows the represented identities.
KEYWORDS:
linguistic prejudice; television soap operas; identity; stereotype; urbanization continuum
Introdução
O poder de abrangência da televisão é uma certeza inquestionável: chega a lugares próximos e distantes, levando adiante informações, entretenimento e ideologias. No Brasil, país de dimensões continentais, ela alcança a todos. De norte a sul, seja qual for o estatuto econômico, social e cultural dos indivíduos, é comum a televisão estar inserida em seu cotidiano, com um espaço privilegiado.
Vale ressaltar o viés democratizante que, em um primeiro olhar, parece se sobressair quando pensamos em televisão. Se chega para todos, leva todas as formas de ver e entender o mundo, favorecendo o olhar crítico. No entanto, quando notamos o monopólio do controle dos meios de comunicação no país e o favorecimento, dessarte, da manipulação da opinião pública por meio dos produtos que circulam nesse espaço, entendemos que não é o que acontece. Mas isso é tema para outra discussão, pois aqui objetivamos nos concentrar em questões linguísticas.
Interessa-nos, neste trabalho, um gênero específico: a novela televisiva que, entre os produtos disponibilizados por esse instrumento de comunicação de massas, está entre os mais consumidos. Por ela, são difundidas opiniões, pontos de vistas, modos de agir, de pensar, enfim, disseminam-se formas de viver que podem influenciar os espectadores que se sentam diante dos aparelhos para apreciar esses produtos culturais.
E é essa capacidade disseminadora que nos chama a atenção. Olhamos, em especial, para a maneira como são espargidas as formas de falar. Preocupa- nos a caracterização dada às variedades linguísticas por personagens nas obras representadas pelo gênero.
As novelas, desde sua primeira versão, em 1951, ainda pelo rádio, são pauta de conversas nas mais variadas formas de interação e em contextos também vários. Os diálogos que se materializam nas narrativas televisivas trazem recortes de nossas práticas sociais e representam momentos sócio-histórico-culturais – a novela Beto Rockfeller, apresentada na TV Tupi, em 1968, trouxe, pela primeira vez, diálogos coloquiais pela boca de um personagem estereotipado: o malando carioca que serve de título para a trama ( HAMBURGUER, 2014HAMBURGUER, E. Beto Rockfeller, a Motocicleta e o Engov. Significação, São Paulo, v. 41, n. 41, p. 14-36, 2014.).
Inseridas no campo da arte, as telenovelas têm a mímese, de Aristóteles, como princípio, ou seja, são possíveis interpretações da realidade, o que, por essa ideia de verossimilhança, podem resultar nos expectadores tanto amor quanto ódio, a depender da maneira como tais princípios são solidificados. Assim, (re) conhecer a maneira como os falantes são concebidos e materializados por meio de personagens pode facilitar a percepção sobre a perpetuação de um mal que nos assola: o preconceito linguístico.
É por isso que refletimos, aqui, sobre como se dá a personificação linguística de personagens em duas narrativas televisivas veiculas pela Rede Globo de Televisão em seu horário nobre, observando se as falas colocadas na boca dos personagens podem não só identificá-los, mas também caricaturizá-los. Para isso, identificamos, no corpus composto pela transcrição de diálogos e monólogos dos personagens Marilda, Eurico e Valentina, da novela O Sétimo Guardião ( 2018O SÉTIMO guardião. Direção: Rogério Gomes. Rio de Janeiro: Rede Globo, 2018.), e de Arlete/Angel, Carolina e Fanny, da macrossérie Verdades Secretas ( 2015VERDADES secretas. Direção: Mauro Mendonça Filho e Amora Mautner. Rio de Janeiro: Rede Globo, 2015.), variantes linguísticas típicas de falares rurais ou rurbanos ( BORTONI-RICARDO, 2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009.), além de outras marcas passíveis de avaliação, refletindo se a caracterização é identitária ou se vem carregada de traços caricaturais, oportunizando julgamentos negativos.
Nosso intento é, portanto, interpretar as falas e a avaliação que recai sobre elas, buscando (re)conhecer se a representação pode encaminhar os telespectadores a uma avaliação negativa desses personagens devido à sua forma de se expressar pela fala, ou se a representação legitima os falares como marcas de identidade, tendo como base autores basilares da sociolinguística, como Labov, com seus estudos relevantes para toda a comunidade científica e para a sociedade como um todo, e pesquisadores que se debruçam sobre a fala brasileira, como Pagotto ( 2004PAGOTTO, E. G. Variação e (´) identidade. Maceió: Edufal, 2004.), Bortoni-Ricardo ( 2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009., 2011BORTONI-RICARDO, S. M. Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. São Paulo: Parábola, 2011.) e Bagno ( 2015BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2015.), entre outros.
Para melhor sistematização, dividimos nossa conversa em partes: logo depois desta breve introdução, trazemos as teorias que nos embasam; na sequência, a metodologia pela qual caminhamos; a terceira parte traz os resultados encontrados, as análises, reflexões e comentários, com base na literatura apresentada, sobre os dados; fechamos o trabalho, sem, no entanto, encerrar as discussões, no tópico que preferimos chamar de “algumas considerações”, por entender que há muito a ser ainda discutido sobre a temática.
2Fundamentos e bases
A relação passional dos brasileiros com o gênero telenovela é inegável, assim como são apaixonadas as noções de erro quando se trata de língua falada. O mito de “fala errada” que perpassa o imaginário nacional é ampliado e difundido em programas diversos, sobretudo humorísticos, ao apresentar, por exemplo, nordestinos com sotaques exagerados, “jecas tatus” na versão feminina e masculina, gaúchos burlescos, cariocas com “chiados” excessivos. As novelas têm, também, participado da perpetuação do senso comum.
Nessa perspectiva, Silva (2000SILVA, F. L. Dois casos de preconceito linguístico na mídia. In: SILVA, F. L.; MOURA, H. M. M. (org.). O direito à fala: a questão do preconceito linguístico. Florianópolis: Insular, 2000. p. 53-62.) apresenta, em um trabalho intitulado “Dois casos de preconceito linguístico na mídia”, resultados relevantes para o que discutimos aqui. Analisando a expressão linguística dos personagens da novela A Escrava Isaura, percebe que a representação dos falantes da casa grande e dos falantes escravizados é marcada pelo que ele chama de “língua imaginária” ( SILVA, 2000SILVA, F. L. Dois casos de preconceito linguístico na mídia. In: SILVA, F. L.; MOURA, H. M. M. (org.). O direito à fala: a questão do preconceito linguístico. Florianópolis: Insular, 2000. p. 53-62., p. 61).
O termo “imaginária”, aqui empregado, reproduz o mito de uma língua perfeita expressada pelos falantes brancos, em que não há a influência do contato com outros falares e, assim, uma língua ideal, ao mesmo tempo que promove uma caricaturização dos falantes escravizados ao usar variantes em que o exagero se materializa. Essa representação, segundo o autor, não só promove o preconceito linguístico, como também leva a um prejuízo identitário e cultural.
Compactuamos com as observações de Silva (2000SILVA, F. L. Dois casos de preconceito linguístico na mídia. In: SILVA, F. L.; MOURA, H. M. M. (org.). O direito à fala: a questão do preconceito linguístico. Florianópolis: Insular, 2000. p. 53-62.) pelo fato de os falantes sofrerem avaliação constantemente, em todos os seus momentos de fala. Labov (2008LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008., p. 21) nos dá suporte para essa afirmação ao destacar que essa avaliação ocorre “não de algum ponto remoto no passado, mas como uma força social imanente agindo no presente vivo”. Assim sendo, a representação dada a personagens pode ser potenciadora de avaliações negativas ou de supervaloração de falares, agindo como um perpetuador de mitos e do preconceito linguístico.
Em se tratando de avaliação, Labov (2008LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.) apresenta três categorias pelas quais uma expressão linguística pode ser tomada, de acordo com o nível de consciência que há sobre as variantes utilizadas na fala: indicadores, marcadores e estereótipos. O autor entende como indicadores os traços linguísticos que refletem a variação social sem provocar julgamento quanto ao status social dos falantes; os marcadores são formas, muitas vezes inconscientes, utilizadas pelos falantes, que marcam variações estilísticas e sociais. Já estereótipos são traços marcados socialmente de forma consciente. Esses traços podem corresponder ao comportamento linguístico real ou não e são muito utilizados para criar caricaturas de falantes, – assim, nosso olhar se volta para essa categoria de avaliação.
Labov (2008LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.) lembra, ainda, que a difusão desses traços não é uniforme. Havendo reação social negativa a determinadas marcas de estereótipo, estigmatizando-as, a sua eliminação pode ser rápida, ao passo que, em comunidades cujos traços sejam vistos de maneira positiva, poderá haver aceitação, o que gera a mudança linguística. Exemplos dessa discussão são apresentados pelo autor em suas pesquisas em Nova Iorque, quanto à pronúncia do /r/, e em Martha’s Vineyard, quanto à centralização de ditongos.
No Brasil, são inúmeros os estudos sob essa perspectiva. A título de exemplo, Leite (2015LEITE, C. M. Estudo da variação linguística dos róticos no falar campineiro. Alfa, São Paulo, v. 59, n. 1, p. 129-155, 2015.) e Corrêa (2018CORRÊA, T. R. A. Estereótipo, estigma e preservação de faces: a realização africada de oclusivas alveolares seguidas de glide palatal em uma comunidade escolar de Aracaju/SE. Caderno Seminal Digital Especial, Rio de Janeiro, v. 30, n. 30, p. 316-344, 2018.) empreenderam pesquisas neste prisma. Leite apresenta resultados de pesquisas com falantes do interior de São Paulo e em propagandas televisivas, em que se conclui que o /R/ retroflexo é um estereótipo estigmatizado, para o qual se atribuem rótulos como “feio”, “marcado”, “puxado” e “pronúncia carregada”. Corrêa (2018CORRÊA, T. R. A. Estereótipo, estigma e preservação de faces: a realização africada de oclusivas alveolares seguidas de glide palatal em uma comunidade escolar de Aracaju/SE. Caderno Seminal Digital Especial, Rio de Janeiro, v. 30, n. 30, p. 316-344, 2018.), ao analisar uma comunidade de práticas no interior do Sergipe, observa também estigma no estereótipo em que há realização africada das oclusivas alveolares /t/ e /d/ antecedidas por glide palatal, como em /muito/ e /doido/.
Esses exemplos são importantes para nossa pesquisa, uma vez que são variantes produtivas na expressão dos falantes representados pelos personagens aqui analisados, configurando-se como marcas de identidade não só individuais, como de comunidades de fala.
Importa ressaltar que a noção de estereótipo de Labov (2008LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.) não é a mesma do senso comum. Para o autor, estereótipo é tudo o que é recorrente, que pode levar a estigma, ou não. Um exemplo disso é a vocalização das laterais, comum a quase todos os falantes brasileiros e, por isso, com aceitação social no país, mas que pode ser visto como um traço estranho por falantes de variedades do português europeu, por exemplo.
A noção de estereótipo tem uma relação estreita com questões identitárias, uma vez que traços linguísticos podem ser avaliados negativa ou positivamente, o que implica ajuizamentos das identidades dos indivíduos, gerando preconceito e podendo levar à discriminação.
De acordo com Pagotto (2004PAGOTTO, E. G. Variação e (´) identidade. Maceió: Edufal, 2004.), há dois movimentos relacionados à identidade. O primeiro refere-se à identidade histórica ideológica, por meio da qual o sujeito se coloca como integrante de determinada época, modo de ver o mundo e suas relações. O segundo movimento é aquele em que o “sujeito da ideologia se encontra passando de posição a posição, de uma formação a outra” ( PAGOTTO, 2004PAGOTTO, E. G. Variação e (´) identidade. Maceió: Edufal, 2004., p. 89), ou seja, variando de acordo com o papel assumido na sociedade, pois, como assevera Bortoni-Ricardo ( 2005BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e educação. São Paulo: Parábola, 2005., p. 176) “quando falamos, movemo-nos num espaço sociolinguístico multidimensional e usamos os recursos da variação linguística para expressar essa ampla e complexa gama de identidades distintas”.
Le Page (1980LE PAGE, R. Projection, Focusing and Diffusion. York Papers in Linguistics, Heslington, v. 9, p. 9-31, 1980.) vê cada ato de fala como um ato de identidade, considerando a linguagem como o índice identitário por excelência, visto que as regras linguísticas utilizadas pelo falante, na busca de aproximação com os membros do grupo com o qual deseja se identificar, são criadas no momento da enunciação, por meio de escolhas linguísticas inconscientes que se associam às múltiplas dimensões formadoras da identidade social e aos papéis que assumem dentro da gama de redes sociais de interação em que se inserem.
Nesse sentido, voltamos à ideia de avaliação já mencionada. Se os atos de fala são identitários, a valoração é subjetiva. Não há, linguisticamente, nenhuma regra ou norma que possa apoiar o juízo de uma variante como “feia”, por exemplo. Em termos de língua, nada corrobora o preconceito existente sobre algumas formas de falar em detrimento de outras. Como vemos em nosso corpus, a personagem Arlete/Angel sofre chacota por sua forma de falar, e é ridicularizada por outros personagens, em especial pelo uso do /R/ retroflexo, uma marca do falar rural.
Para Moreno Fernández (1998MORENO FERNÁNDEZ, F. Principios de sociolingüística y sociología del lenguaje. Barcelona: Ariel, 1998.), tais apreciações são manifestações do costume social dos indivíduos em relação à língua e suas variedades, o que ele denomina “atitudes linguísticas”, uma vez que as línguas transmitem significados ou conotações sociais, além de valores sentimentais, por isso, valorações subjetivas, como mencionamos.
Dependendo da valoração de que um grupo desfruta socialmente, a variedade por ele praticada pode ter uma posição de alto ou de baixo valor. Como vemos em Moreno Fernández (1998MORENO FERNÁNDEZ, F. Principios de sociolingüística y sociología del lenguaje. Barcelona: Ariel, 1998., p. 181, tradução nossa),
a mesma variedade pode ser objeto de atitudes positivas ou negativas, dependendo da avaliação que se faz do grupo no qual se fala: as atitudes são geralmente a manifestação das preferências e convenções sociais acerca do status e do prestígio dos falantes 1 1 No original: “una misma variedad puede ser objeto de actitudes positivas o negativas dependiendo de la valoración que se haga del grupo en que se habla: las actitudes suelen ser manifestación de unas preferencias y unas convenciones sociales acerca del status y el prestigio de los hablantes”. .
A noção sociolinguística, ainda de acordo com Moreno Fernández (1998MORENO FERNÁNDEZ, F. Principios de sociolingüística y sociología del lenguaje. Barcelona: Ariel, 1998.), seria uma das bases em que se apoia a atitude linguística, pois as atitudes são forjadas por indivíduos a partir desta ciência dos fatos sociais e linguísticos que os afetam, uma vez que conhecem as preferências linguísticas, os usos linguísticos que sua comunidade prefere, elegendo aqueles capazes de ajudá-los a se inserirem nos grupos almejados.
Os estudos sociolinguísticos vêm mostrando não haver variedade melhor que outra, uma vez que toda forma de falar atende perfeitamente à comunidade que a utiliza. Essas questões levam a um outro ponto importante nessa análise: o preconceito linguístico, que se trata, de acordo com Bagno (2015BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2015.), de toda reprovação, aversão ou mesmo de desrespeito e ataque às variedades linguísticas de menor prestígio social. Essa avaliação, comumente, volta-se às variantes ligadas aos falantes pertencentes a classes sociais menos favorecidas, cujo acesso à educação formal é minorado.
O preconceito linguístico deriva da ideia de uma língua padrão, geralmente utilizada pela elite econômica e cultural, e considerada como a única legítima. Nessa concepção, todos que não se expressam de acordo com esse padrão são excluídos, marginalizados ou mesmo execrados. Mas o grande problema, como relata Bagno (2015BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2015.), é que essa forma de preconceito é invisível. Não se erguem bandeiras contra o preconceito linguístico – nem mesmo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que norteia o ensino no país, que traz em seu teor elencadas algumas formas de preconceito, cita a discriminação pelos usos linguísticos.
É preciso que as agências hegemônicas, como a escola, a igreja, os órgãos oficiais atuem no sentido de dar valor a todas as variedades linguísticas praticadas, que legitimem todas as vozes. Uma maneira crucial para isso é, também, mostrar respeito por essas vozes nos meios de comunicação, na imprensa, enfim, na mídia de uma maneira geral – e as novelas, dada a abrangência mencionada, têm um papel de extremada relevância neste sentido, o que nos levou a essa pesquisa.
3Passos e procedimentos
A sociolinguística, em seu âmbito macro, ao analisar os dados com um foco qualitativo, nos dá seus pressupostos. Como método, utilizamos a proposta de Bortoni-Ricardo (2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009.), em que se alocam os falantes analisados em pontos de linhas imaginárias de acordo com sua expressão linguística. Neste artigo, concentramo-nos em posicionar os falantes no “contínuo de urbanização”, a partir de variantes apresentadas em suas falas, por entender que tal passo estabelece um panorama mais completo da expressão destes personagens.
Bortoni-Ricardo (2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009.) assevera que, ao longo desse contínuo dialetal, podem ser alocados todos os falantes, mediante sua aproximação ou seu afastamento dos polos, estando em um extremo os falares rurais isolados e, em outro, o falar urbano comum às classes privilegiadas, encontrando-se no meio dessa linha os falares rurbanos, variedades “usadas por falantes de classes mais baixas, não alfabetizadas ou semialfabetizadas, que vivem na cidade, mas que, na maioria dos casos, têm antecedentes rurais, e pela população que vive em áreas rurais, onde já se vê introdução de tecnologia” ( BORTONI-RICARDO, 2011BORTONI-RICARDO, S. M. Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. São Paulo: Parábola, 2011., p. 21). A Figura 1 traz a representação desse contínuo:
Bortoni-Ricardo (2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009.) ainda alerta para as fronteiras fluidas que separam os falantes nos pontos deste contínuo, pois a alocação vai depender do uso frequente de dois tipos de regras variáveis: as formas graduais, ou variantes presentes na fala de praticamente todos os brasileiros, dependendo do grau de monitoramento, e as descontínuas, que são aquelas marcas que apontam os falares regionais e sociais mais estigmatizados, passíveis de preconceito e discriminação.
Em nossa análise, levamos emconsideração, em especial, autilização de variantes consideradas traços descontínuos, como a iotização, o rotacismo e a ausência de concordância canônica entre sujeito e verbo/nome (concordância verbal).
O corpus desta pesquisa foi extraído de falas de sete personagens, três da novela O Sétimo Guardião – Marilda (Letícia Spiller), Eurico (Dan Stulbach) e Valentina (Lilia Cabral) –; e três da macrossérie Verdades Secretas – Arlete/Angel (Camila Queiroz), Carolina (Drica Moraes) e Fanny (Marieta Severo) – a partir da assistência de capítulos e da análise das falas, tanto as que trazem marcas dos falares rurais quanto avaliações sobre esses falares por parte dos personagens analisados ou mesmo de outros na trama, sendo este último um fator preponderante para a escolha das obras, ou seja, entre as interações, as obras trazem valorações sociolinguísticas.
Os três personagens da novela têm a mesma origem, realidade econômica similar e apresentam diferenças culturais. Marilda e Eurico foram escolhidos por sua provável variedade rural; Valentina, por ter saído da zona rural e ter vivido na cidade. As personagens da macrossérie Arlete/Angel e Carolina foram selecionadas devido à propensão à variedade rural; Fanny, por ser representante da variedade urbana. A diferença entre os personagens é cultural e econômica.
Os capítulos foram assistidos por cinco pesquisadores da área de sociolinguística, os quais selecionaram as cenas nas quais as interações expressavam avaliações sobre os falares dos personagens analisados e, no caso específico da personagem Marilda, passagens em que o exagero foi mais contundente. Selecionadas as cenas, essas foram recortadas do arquivo original e ouvidas a partir do recorte, para que ficassem menos propensas à interferência de outros personagens. As audições foram feitas a partir do notebook da coordenadora da pesquisa, em um ambiente com menor incidência de ruídos, embora numa sala comum, uma vez que não há laboratórios ou equipamentos apropriados para este tipo de análise no campus Arapiraca. Não foram utilizados programas específicos para as audições ou para as análises.
Importa ressaltar que as produções tiveram destaque na Rede Globo em horário de grande audiência: a faixa das 21 e das 23 horas, um dado a ser observado na análise, uma vez que pode ser um diferencial na caricaturização ou não das personagens.
Em relação ao conteúdo, a novela apresenta um apelo que remete ao realismo fantástico, pois traz o insólito como marca principal ( FURTADO, 1980FURTADO, F. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.). Na trama, alguns guardiões, inclusive um gato que ganha vida, precisam defender uma fonte em cujas águas está o elixir da eterna juventude. O enredo pode permitir, inclusive, uma caracterização linguística irreal, como traz a personagem Marilda, a qual será detalhada nas análises.
Na macrossérie, a temática é mais realística. Trata-se da vida por trás da glamourização que a profissão de modelo aparenta, tratando, inclusive, de temas complexos como prostituição, incesto e drogas. Nesta, as falas são mais denotativas, apresentando uma busca mais aproximada de imitação do real.
Na sequência, apresentamos os resultados de nossas análises.
4Olhares e reflexões
Pela fala, é possível identificar importantes características identitárias de indivíduos: origem, idade, grau de acesso ao(s) letramento(s), em especial o escolar, entre outros. Por isso, essa importante fonte identitária é o principal instrumento de caracterização de personagens em qualquer produto cultural ou midiático, o que acontece na novela O Sétimo Guardião (doravante apenas novela) e na macrossérie Verdades Secretas (de ora em diante, apenas macrossérie), nossas fontes de pesquisa.
O público, o horário, o gênero e o formato podem influenciar na caracterização das variedades linguísticas em programas televisivos, como as novelas e as séries.
Mas a visão de mundo, a ideologia e as crenças de autores, diretores e atores/atrizes também podem pesar nas escolhas, mais uma vez mostrando a relevância da noção de valoração proposta por Moreno Fernández (1998MORENO FERNÁNDEZ, F. Principios de sociolingüística y sociología del lenguaje. Barcelona: Ariel, 1998.).
A primeira constatação a que chegamos, a partir de nossa observação, foi quanto ao horário de apresentação: a novela, apresentada em horário nobre, de maior audiência, apresentou falas caricaturizadas; a série, exibida mais tarde, para um público mais selecionado, foi fidedigna.
Ao apresentar, em momentos cujo público é mais numeroso, uma representação caricaturizada da fala de uma personagem – no caso Marilda, da novela – a possibilidade de inculcar nos assistentes uma ideia controversa da identidade linguística de determinada comunidade linguística é grande, tornando- se algo passível de estigmatização, gerando o preconceito linguístico. Reconhecido por Bagno (2015BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2015.) como um mal invisível, por não ter claramente posicionamentos contrários, nem militância expressa, mas se trata de uma forma de discriminação tão cruel como qualquer outra.
Em relação às personificações da fala dos personagens, a diferença entre a novela e a série é relevante. Na novela, há caracterização linguística é inapropriada por dois motivos: primeiramente, por haver falantes com variedade muito próximas do falar urbano, com grande influência da cultura letrada, em uma novela que se passa no interior do estado de São Paulo, ainda que fictícia. Ou seja, encenada em uma cidade interiorana, somente uma personagem se expressa trazendo marcas características do falar rural/rurbano ( BORTONI-RICARDO, 2011BORTONI-RICARDO, S. M. Do campo para a cidade: estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. São Paulo: Parábola, 2011.) e, ainda, – nossa segunda verificação – a única falante de uma variedade mais próxima do rural não é representativa, beirando à caricatura.
Selecionamos três personagens na novela para uma discussão mais apurada, pelo fato de comporem um núcleo familiar: (1) Marilda; (2) Eurico, marido de Marilda e cunhado de Valentina; (3) Valentina, irmã de Marilda e cunhada de Eurico.
Observando os diálogos e monólogos dos três personagens, é possível posicioná-los em diferentes pontos do contínuo de urbanização: Marilda em um ponto rurbano, direcionado para o polo rural, e Eurico e Valentina em pontos mais próximos do extremo urbano, de acordo com falas como:
Cena 1: Marilda flagra Eurico e Valentina deitados na cama – Cap. 03/01/2019
Marilda: — Exijo uma explicação! Agora!
Valentina: — Licença, Eurico. Deixa de [ˈde] ser [ˈseɾ] escandalosa,
ô, Marilda. — Dá licença!
Marilda: — Mas o que, mas… é muita cara de [de] pau! Você entra aqui na minha casa, eu pego você e meu marido de [de] pijama, nos teus braço, na nossa cama e você quer [ˈkeɻ] que eu aja como uma leide [ˈlejde] inglesa!
Valentina: Para de fazer [faˈzeɾ] drama! Ele é seu marido, mas é meu cunhado também! E depois eu entrei aqui e ele estava na maior [ˈmaioɾ] depressão […] eu só tentei acalmá-lo.
Marilda: — Oh, claro, e pra [pɻa] isso você tinha que deitar [deiˈtaɻ] na minha cama e coloca[Ø] o rostinho dele nos seus peito!
E você, vai fica[Ø] com essa cara de palerma [paˈleɻma], não tem nada pra me dize[Ø]?
Eurico: — Tenho. Eu vou toma[Ø] um banho. Obrigado por ter [ˈteɾ] me ajudado.
Cena 2: Valentina conversa com uma amiga ao telefone – Cap. 16/11/2018
Amiga: — Você vem passar [paˈsaɾ] uns tempos aqui em Cerro Azul?
Valentina: — Isso mesmo! Uma temporada de descanso. Amiga: — Mas, e seu juramento, criatura […]?
Valentina: — Depois destes anos todos, eu descobri que os juramentos foram feitos por [ˈpoɾ] uma única razão. Sabe qual é? Para serem quebrados. Um enviado meu chegará aí o mais depressa possível para ajudá-la nesta missão.
Nenhum dos personagens apresenta as marcas descontínuas elencadas como critérios de análise, mas a alocação de Marilda em um ponto distanciado dos outros personagens, mais próximo do polo rural, justifica-se por ela apresentar traços fonéticos extravagantes, como a pronúncia do /R/ exageradamente retroflexo e o alongamento nas vogais finais. Estas marcas na fala da personagem, além de justificarem tal posição, comprovam a caricaturização, pois expressões exageradas como essas são incaracterísticas na fala de brasileiros.
A realização retroflexa do /R/ em coda silábica, o chamado “R caipira” ( AMARAL, 1982AMARAL, A. O dialeto caipira: gramática, vocabulário. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1982.) e foneticamente representado pelo símbolo [ɻ], é encontrada no interior de São Paulo, em cidades de Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, conforme sinalizam os dados do Projeto Atlas Linguístico Brasileiro (ALiB) 2 2 Disponível em: https://alib.ufba.br/. Acesso em: 11 fev. 2022. . Pesquisas de Aguilera e Silva (2015AGUILERA, V. A.; SILVA, H. C. Uma nova configuração do caipira: ecos do /r/ retroflexo. Revista da Abralin, Campinas, v. 14, n. 1, p. 171-194, 2015.) e Silva (2012SILVA, H. C. O /R/ caipira no Triângulo Mineiro: um estudo dialetolico e de atitudes linguísticas. 2012. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.) mostram, no entanto, que o fenômeno vem se expandindo pelo Brasil, sobretudo por encontrar representatividade entre o público jovem.
Dessa maneira, a maioria dos personagens – ao menos os nascidos na cidade, sem ter nunca saído dela – teriam de trazer esses traços em sua expressão linguística. Não é o que acontece, e, por isso, a identidade linguística dos falantes é negada. Nenhum falante interiorano tem sua “cara sociolinguística”, nas palavras de Faraco (2015FARACO, C. A. Norma culta brasileira: construção e ensino. In: ZILLES, A. M. S.; FARACO, C. A. (org.). Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015. p. 19-30.), reconhecida por aquilo que os falantes televisivos expressam.
Marilda apresenta uma marca que não acontece na expressão dos outros personagens analisados: a ausência de concordância entre nome e seus adjuntos – a concordância nominal canônica. Embora, de acordo com Bortoni-Ricardo (2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009.), traços graduais como esse estejam presentes em todas as variedades de todos os brasileiros e, ainda que não seja foco desta análise, com isso presume-se que a variação estilística seja, também, incaracterística neste corpus. Tal observação reforça a caricaturização da personagem Marilda, uma vez que, como observa Camacho (1988CAMACHO, R. G. A variação linguística. In: SÃO PAULO. Secretaria de Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Subsídios à Proposta Curricular de Língua Portuguesa para os 1º e 2º graus: coletânea de textos. São Paulo: SE/CENP, 1988. p. 29-41. v. 1., p. 33),
efetivamente, não há falante de região e meio social homogêneos que fale sempre da mesma forma. Numa comunidade linguística em que todos os membros tenham nascido e vivido no mesmo local e no mesmo âmbito social, a simples observação de sua atividade revela diferenças notáveis de estilo, de acordo com a variação das circunstâncias em que o ato se produz.
Outro fato relevante é a normalidade presumida nas cenas em relação à expressão linguística da personagem Marilda. Não há julgamentos, por parte dos filhos e do marido, quanto à diferente forma de se expressar praticada pela esposa/ mãe. É muito natural para todos haver essa discrepância entre as falas, ou seja, a atitude dos familiares em relação ao que se apresenta pela figura materna é neutra.
Cena 3: Marilda chega em casa reclamando da irmã e os filhos; Geandro e Junior interpelam-na – Cap. 10/12/2018
Marilda: — Desde que a ex-Marlene [maɻˈlene] chegou na cidade [siˈdade] que nada mais dá certo [ˈceɻto] pra mim, Senhor! [seˈɲoɻ]
Geandro: — Que aflição é essa, mãe. O que foi que houve?
Júnior: — Anda falando com as paredes, é?
Marilda: — Eu não tava falando [falɐdo], eu tava rezando! [rezɐdo]
Além de não haver estranhamentos dos filhos nesta expressão da personagem, uma das mais caricatas, vimos em Pagotto (2004PAGOTTO, E. G. Variação e (´) identidade. Maceió: Edufal, 2004.) que os papéis representados estão entre os fatores preponderantes para a escolha de variantes a serem utilizadas na expressão linguística, daí a ideia de “identidades”, no plural. Ademais, como mencionamos anteriormente, são comuns traços graduais em momentos de interação descontraída, assim como, comumente, há busca por variantes mais bem aceitas socialmente em falas monitoradas. Isso não acontece nas falas apresentadas por Marilda e os filhos aqui, sobretudo do personagem Geandro com o verbo “haver” – as falas são lineares, sempre com a mesma escolha lexical, sonora e sintática.
A personagem Valentina, no entanto, falante de uma variedade que mostra os eventos de letramento escolar e culto a que teve acesso, possivelmente fruto de sua mudança para a capital ainda na juventude, é a única, num universo de mais de vinte personagens, que parece avaliar a variedade praticada pela irmã Marilda. Em algumas cenas, ela imita a pronúncia exagerada da irmã:
Cena 4: Valentina chantageia Marilda – Cap. 03/12/2018
Marilda: — Desculpe, mas já tá muito tarde [ˈtaɻde] […] eu preciso ir [ˈiɻ]
Valentina: — Isso, vai lá pro aconchego do [ˈdo] seu lar [ˈlaɻ] […]
Cena 5: Valentina, Marilda e Laura conversam sobre um lavabo – Cap. 05/12/2018
Valentina: — Aquele lavabo é um horror [oˈroɻ]! Vou mandar [mɐˈdaØ] refazer [reˈfazeɻ]
Noutra cena, critica seu jeito de se expressar:
Cena 6: Valentina e Marilda conversam sobre a cidade – Cap. 05/12/2018
Valentina: — Marilda, minha irmã querida, você é a primeira-dama dessa cidade, comporte-se, que fala mais caipira é essa?
Aguilera (2008AGUILERA, V. A. Crenças e atitudes linguísticas: o que dizem os falantes das capitais brasileiras. Revista Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 105-112, 2008., p. 106) lembra que “a atitude linguística de um indivíduo é o resultado da soma de suas crenças, conhecimentos, afetos e tendências a comportar-se de uma forma determinada diante de uma língua ou de uma situação sociolinguística”, o que pode justificar esta única passagem a trazer qualquer tipo de atitude em relação ao falar “diferenciado” da personagem Marilda, em mais de uma centena e meia de capítulos.
Essa caracterização não passou despercebida pelos telespectadores da novela. Muitas discussões foram empreendidas nas redes sociais e em mídias destinadas a essas temáticas, como é retratado, por exemplo, no excerto: “Na atual trama, a mulher do prefeito é a única a ter sotaque em Serro Azul. Ela fala como uma caipira paulista, com toques de mineira e até algumas notas de gaúcha. Um verdadeiro sambalelê!” ( BRAVO, 2018BRAVO, Z. De frente para TV: Letícia Spiller é o grande destaque de “O sétimo guardião”. Extra, Rio de Janeiro, 25 nov. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/telinha/de-frente-para-tv-leticia-spiller-o-grande-destaque-de-setimoguardiao-23252434.html . Acesso em: 11 fev. 2022.
https://extra.globo.com/tv-e-lazer/telin...
).
Outra discussão apresenta o mesmo estranhamento ao relatar que só a personagem Marilda “fala daquele jeito” e completa mencionando o estranhamento do público em relação a essa forma de falar, que seria, segundo a matéria, “uma mistura de sotaque carioca com caipira e mais alguma coisa que ninguém mais entende, só Letícia e a equipe do folhetim da Globo” ( FRANDOLOSO, 2018FRANDOLOSO, R. Sotaque de Letícia Spiller na novela O sétimo guardião ainda causa estranhamento. TV Foco, São Paulo, 30 dez. 2018. Disponível em: https://www.otvfoco.com.br/sotaque-de-leticia-spiller-na-novela-o-setimo-guardiao-ainda-causaestranhamento/. Acesso em: 11 fev. 2022.
https://www.otvfoco.com.br/sotaque-de-le...
). E, para fechar, outra observação vai ao encontro de nossa impressão ao relatar que “o sotaque caipira de Marilda (Letícia Spiller) resvalou para a caricatura” ( GOES, 2018GOES, T. Estreia de ‘O sétimo guardião’ mistura clichês com algum mistério. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 nov. 2018. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/colunistas/tonygoes/2018/11/estreia-de-o-setimo-guardiao-mistura-cliches-com-algum-misterio. shtml. Acesso em: 11 fev. 2022.
https://f5.folha.uol.com.br/colunistas/t...
).
Cena 7: Marilda e Eurico conversam – Cap. 19/12/2018
Marilda: — Você não tinha assuntos pra tratar [traˈtaɻ] lá na periferia, meu amor [aˈmoɻ]?
Destarte, entendemos que a novela, com a personificação empreendida em O Sétimo Guardião, pode colaborar para a estigmatização dos falantes rurais ou rurbanos, ao caricaturizar uma falante do interior, pois, embora tenha havido uma discussão problematizando a questão, isso não passou para ambientes mais amplos, o que permite o entendimento de que todos os falantes rurais têm essa caracterização. Levando em conta, ainda, o alcance internacional que as novelas têm, esse entendimento pode ser ainda mais prejudicial.
Partindo para as análises na macrossérie Verdades Secretas, o que logo se desponta é a questão rural/urbano, mote que também permeia a trama exibida em 2015. A origem interiorana da personagem Arlete (Angel) não passa despercebida e, ao contrário do que se vê na novela, a alusão ao fato é recorrente. Nos capítulos iniciais, a personagem é vítima de preconceito linguístico por parte de outros personagens, os quais a julgam pela maneira como concretiza a língua. Expressões como “fala caipira”, “linguajar de pobre”, “puxando o /R/” são utilizadas.
As primeiras cenas a mostrarem a avaliação negativa da fala da garota vinda do interior se passam na escola, pois a personagem Arlete (Angel) é julgada, inicialmente, pela aparência e condição social, como na Cena 8:
Cena 8: Giovana e duas alunas veem Arlete/Angel no corredor da escola – Temp. 1 – Ep. 1
Giovana: — O que é aquilo, aquela? Nossa, olha a camisa, tipo lixão! Aluna 2: — Gente, e o cabelo?! Nem para Haloween!
Giovana: — Pelo jeito, essa veio da perifa! Ei, você, aluna nova? (dirigindo-se à Arlete/Angel).
Arlete/Angel: — Sou. Minha mãe e meu pai acabaram de seu separar e eu me mudei pra São Paulo…
Giovana: — Helooo, amor, eu não pedi sua biografia! […]
Arlete/Angel: — Só queria me explicar, não sei nem qual é minha turma ainda.
Giovana: — Já deu pra ver que é bolsista.
Arlete/Angel: — Como é que cê sabe?
Giovana: — Amor, tá na cara, né? No layout.
Essa avaliação extrapola as questões de aparência e origem, atingindo a questão linguística, sobretudo em relação ao /R/ praticado pela personagem Arlete/Angel. A sequência da cena traz isso claramente:
Cena 9: Giovana e duas alunas conversam com Arlete/Angel no corredor da escola – Temp. 1 – Ep. 1
Giovana: — Pera aí, pera aí! Meu, como é que é teu nome?
Arlete/Angel: — Arlete. [aɻˈlɛte]
Giovana: — Repete! Ar… [aɻ], Arlete [aɻˈlɛte]? Total nome de pobre. Ainda fala caipirez. Porta, [ˈpɔɻta], porteira [poɻˈteira]… você é piada pronta! Arlete [aɻˈlɛte]!
Logo na sequência, uma nova apreciação do /R/ da personagem acontece, entretanto, apenas constatadora. Os personagens Arlete/Angel e Guilherme se encontram e o seguinte diálogo acontece:
Cena 10: Arlete/Angel e Guilherme se encontram no banheiro – Temp. 1 – Ep. 1
Arlete/Angel: — […] eu entrei correndo, tava fora de mim, só vim lavar [laˈvaɻ] o rosto.
Guilherme: — […] Interior? Pelo ‘va[ɻ]’ é, sim, do interior
Arlete/Angel: — Cê vai me zoar [zoˈaɻ] também? Vou embora.
Guilherme: — Não, não! Os meus pais têm fazenda no interior, aí eu saco o /R/ de longe. Fizeram piada de você?
Arlete/Angel: — Me chamaram de piada pronta.
Como na primeira testagem identitária, dessa vez, a falante confirma, sem qualquer constrangimento, sua procedência, mantendo a identidade original. O que podemos considerar é que a personagem tem, neste momento, orgulho de sua origem. Bortoni-Ricardo (2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009., p. 33) mostra que “toda variedade regional ou falar é, antes de tudo, um instrumento identitário, isto é, um recurso que confere identidade a um grupo social”. Esse sentimento, no entanto, será posto em xeque no decorrer da história.
Ademais, ainda no início da trama, as identidades deixam de ser apenas uma constatação de origem ou mesmo um fator de riso, pois passam a ser vistas também como obstáculo para a passagem de um lugar sociocultural para outro. Quando a personagem Arlete/Angel começa a trabalhar como modelo, suas identidades se tornam empecilhos para o sucesso. Inicialmente, seu nome é alterado para outro, mais “comercial:
Cena 11: Arlete/Angel, Fanny e Carolina conversam sobre carreira –Temp. 1 – Ep. 1.
Fanny: — Gente, mas, olha, tem um problema. Carolina, Arlete, é que no mundo da moda as pessoas, algumas, costumam usar nomes artísticos, nomes diferentes, exóticos. Não que Arlete seja um nome feio…
Arlete/Angel: — Pode falar [faˈlaØ], lá na escola, todo mundo fala que é nome de pobre!
Carolina: — Que é isso, garota, sua vó não era paupérrima, não!
Fanny: — Não é isso! É que é um nome comum, e nós precisamos de um nome especial […] Um nome que diga quem você é. E você é um anjo… Angel! De agora em diante, seu nome é Angel!
Outrossim, o preparador da agência a aconselha a apagar a forma interiorana de falar, pois, segundo ele, esse seria um passaporte para a personagem ser “chique”, ou seja, seria preciso desfazer-se de seu /R/ original e, não fazendo isso, poderia apenas não ter sucesso, como vemos na cena transcrita a seguir:
Cena 12: Angel e Visky conversam sobre a carreira – Temp. 1 – Ep. 4
Visky: — Ai, me desculpa! Desculpa, mas eu tenho que te falar uma coisa séria, séria. Olha só, esse jeito que você fala meio do interior, não se ofende, porque eu também já falei assim. Você precisa se livrar desse /R/, fazendo (sons). Isso, treina bastante que alguma hora incorpora, faz! (sons) Vai!
Angel: — Parece que eu estou gargarejando [gaɻgareˈʒɐdo]!
Visky: — Gargarejando [gaɻgareˈʒɐdo], não! Gargarejando! [gaɾgareˈʒɐdo] […]
Começa, a partir desse aconselhamento, um treinamento fonoaudiológico informal e os traços linguísticos identitários vão se perdendo no decorrer da trama, pois a personagem passa a ter como referência outro grupo, ou, como observa Bortoni-Ricardo (2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009., p. 49), outras pessoas, que não necessariamente precisam interagir com a personagem física ou virtualmente, mas que passam a servir “como modelo[s] para sua conduta”, o que ocasiona uma mudança nos padrões da linguagem da personagem.
Temos em Angel um exemplo do que Orlandi (1998ORLANDI, E. P. Identidade linguística escolar. In: SIGNORINI, I. (org.). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p. 203-212.) entende como um lugar marginal na identificação. A personagem se coloca em uma “relação conflituosa com identidades sociais diferenciadas” ( ORLANDI, 1998ORLANDI, E. P. Identidade linguística escolar. In: SIGNORINI, I. (org.). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p. 203-212., p. 163): nem urbana, nem rural; nem cosmopolita, nem interiorana; nem um, nem outro. Mesmo mudando seu jeito de falar para poder se adequar ao novo contexto social no qual é inserida, ela se mantém na borda pela avaliação de outros personagens, que a discriminam por isso, configurando o preconceito linguístico.
Cena 13: Angel e Visky conversam sobre a carreira – Temp. 1 – Ep. 4
Visky: — Quer ser chique, borboletinha, faz o /R/ (sons). Vai, vai. Se não só vai desfilar em festa de peão de boiadeiro!
Um fator já observado na novela se repete na macrossérie: a expressão estilística uniforme. Tanto Angel quanto Carolina e Fanny interagem sempre utilizando a mesma forma, o que corrobora que sermos “portadores de várias identificações”, como assevera Chnaiderman (1998CHNAIDERMAN, M. Língua(s)-linguagem(ns)-identidade(s)-movimento(s): uma abordagem psicanalítica. In: SIGNORINI, I. (org.). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado das Letras, 1998. p. 47-68., p. 49), não é um dado considerado na criação de qualquer dos personagens da trama. Em momentos íntimos, familiares, profissionais, impessoais, enfim, as interações, mesmo variadas, apresentavam-se homogêneas, como se falássemos da mesma maneira em qualquer dos papéis sociais assumidos.
Se inserirmos esses falantes no contínuo de monitoração estilística ( BORTONI-RICARDO, 2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009.) teremos todos alocados em pontos muito próximos do polo de maior monitoração, ou seja, de fala cuidada, nunca descontraída. E sabemos que, na fala natural, isso não acontece.
De qualquer modo, um ponto positivo é a fidedignidade na representação da fala interiorana – até porque a própria atriz que faz a personagem, Camila Queiroz, tem essa origem, pois nasceu e viveu até a adolescência em Ribeirão Preto, cidade do interior de São Paulo – bem como a mudança gradativa de uma variedade inserida em pontos mais próximos do rural, para um falar mais próximo do urbano durante a trama, conforme se vê na personagem Arlete (Angel).
Cena 14: Arlete/Angel conversa com os pais, na mesa de café da manhã – – Temp. 1 – Ep. 1
Arlete/Angel: — Pai, mãe, o cara da agência, o booker [bʊˈkeɻ]…
Pai: — Booker? O que que é booker? […]
Arlete/Angel: — Então, ele adorou minhas fotos e disse que eu posso morar [moˈraɻ] em São Paulo com mais menina, tipo numa república, sabe?
Cena 15: Guilherme visita Angel na casa do pai, na mesa de café da manhã – Temp. 1 – Ep. 64
Madrasta: — […] Se arruma que tem visita pra você.
Guilherme: — Você tá bem?
Angel: — Do jeito que dá… mas eu tô surpresa [suɾˈpɾeza]! Como é que você descobriu que eu tava aqui?
Guilherme: — Sua vó me deu o endereço e eu resolvi arriscar. Vim… (Angel, em resposta ao pai, na mesma cena)
Angel: — É verdade [veˈdade], pai, ele é rico.
Bortoni-Ricardo (2005BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e educação. São Paulo: Parábola, 2005.), utilizando a noção de social networks proposta por Milroy (1980MILROY, L. Language and Social Network. Oxford: Blackweel, 1980.) para analisar os processos de variação e mudança linguística, lembra que as interações podem ser classificadas como densas ou frouxas, a depender dos vínculos estabelecidos no interior das redes de interação. Tal fator tem um peso importante na mudança por que passa a personagem, visto que “quando o indivíduo consegue ascender socialmente, sua rede de interação torna-se mais heterogênea e, consequentemente, de tessitura mais frouxa” ( BORTONI- RICARDO, 2005BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e educação. São Paulo: Parábola, 2005., p. 88), o que leva à aproximação com falantes alocados em pontos mais próximos do polo urbano no contínuo de urbanização.
O que se conclui, também, pelas avaliações negativas expressadas contra uma falante do interior, estudante bolsista, diante de uma questão fonético- fonológica como a pronúncia de um fonema, é também a relevância da questão social para a inclusão e a exclusão, corroborando que o preconceito é social, antes de tudo, como acredita Bagno (2015BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2015.).
5Algumas considerações
Discorrer sobre identidade e preconceito linguístico é sempre relevante, visto ser pela língua que nos constituímos como sujeitos e pela fala que mostramos quem somos, de onde viemos, com quem e como interagimos.
Neste artigo, analisamos a personificação linguística dada a personagens de narrativas televisivas e, embora as personagens analisadas não trouxessem em sua expressão os traços descontínuos aqui tomados como critérios de análise, outras marcas linguísticas apresentadas em suas falas, sobretudo traços fonéticos, mas também morfossintáticos, como a realização não canônica da concordância nominal, tornaram possível concluir que a novela apresentou traços caricaturais, favorecendo avaliações negativas pelos que a assistiram, ao passo que a macrossérie trouxe representatividade.
O Sétimo Guardião, com a personagem Marilda, pecou pelo exagero, criando um perfil burlesco e irreconhecível por qualquer falante do Brasil. Tal configuração pode estar, por hipótese, relacionada ao fantástico presente na obra, o que não é possível afirmar. Outras investigações poderão responder a esta hipótese.
A macrossérie Verdades Secretas destacou a fala como um degrau para a ascensão social. Fidedignamente, descortinou as avaliações negativas por que comumente passam falantes do interior, sobretudo por um traço identitário: a pronúncia do /R/. Mostrou, também, a necessidade de mudança da identidade linguística para aceitação social em meios cuja variedade urbana de prestígio se sobrepõe.
É necessário entender como essas representações chegam até os telespectadores e qual a dimensão disso para a perpetuação ou não do preconceito linguístico, uma vez que uma reprodução caricata pode levar quem assiste, sobretudo a audiência internacional, ao entendimento equivocado sobre a forma de se expressar de toda uma comunidade de fala, e, por isso, trabalhos mais aprofundados devem ser realizados com essa perspectiva, já que, aqui, não foi possível dado o escopo deste trabalho. Entretanto, apontamos para essa lacuna urgente de respostas. Outras pesquisas, outros trabalhos e novos olhares precisam se voltar para ela.
Cabe, ainda nessas considerações, frisar a expressiva questão do preconceito linguístico como impeditivo para a emancipação de falantes que se expressam por uma variedade linguística não padrão. Como vemos em Bagno (2015BAGNO, M. Preconceito linguístico. 56. ed. São Paulo: Parábola, 2015.), ainda é trivial alguém não ser contratado para exercer determinados cargos devido à variedade linguística pela qual se expressa. O ideário de “fala errada”, “fala caipira” é um muro que breca e obstrui avanços socioculturais.
Representar as identidades de forma adequada deve ser uma preocupação para qualquer tipo de mídia, uma vez que é uma das maiores condutoras desse tipo de discriminação social. Ao caricaturizar a fala dos personagens, as novelas e outros programas televisivos perpetuam o preconceito linguístico, um tipo de avaliação negativa que, em embora ocorra todos os dias e com muita gente, não é combatida.
Não se veem bandeiras e punhos erguidos contra o preconceito linguístico, não há leis que o criminalizem, por isso, o cuidado com a representação deve ser apurado.
O trabalho em prol da valorização e da legitimação de todas as variedades linguísticas deve estar na essência dos estudos da linguagem, como esclarece Bortoni-Ricardo (2009BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2009., p. 105), quando supõe que “se valorizarmos menos as regras prescritivas, se dermos asas a nossa criatividade, vamos encontrar muitas formas de refletir sobre o português brasileiro e de usá-lo com satisfação e confiança”, porque, ainda nas palavras da autora, se o temos como língua materna, somos competentes nele para usá-lo, com eficiência, na fala e na escrita, em todas as situações e contextos de interação.
- AGUILERA, V. A. Crenças e atitudes linguísticas: o que dizem os falantes das capitais brasileiras. Revista Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 105-112, 2008.
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- BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e educação. São Paulo: Parábola, 2005.
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No original: “una misma variedad puede ser objeto de actitudes positivas o negativas dependiendo de la valoración que se haga del grupo en que se habla: las actitudes suelen ser manifestación de unas preferencias y unas convenciones sociales acerca del status y el prestigio de los hablantes”.
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Disponível em: https://alib.ufba.br/. Acesso em: 11 fev. 2022.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Dez 2022 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2022
Histórico
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Recebido
06 Jun 2021 -
Aceito
02 Fev 2022