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A transposição didática da coesão referencial na Base Nacional Comum Curricular

Didactic transposition of referential cohesion in the Nacional Curricular Common Base (BNCC – Brazil)

RESUMO:

Este artigo tem o objetivo de apresentar uma análise da transposição didática da coesão referencial na BNCC, de modo a fornecer uma compreensão desse objeto no contexto da pedagogia das competências e da concepção de linguagem postulada no documento, bem como dos aspectos psicolinguísticos e psicopedagógicos que tais concepções de educação e de linguagem ensejam. A análise assumiu os seguintes pressupostos teórico-metodológicos: a) a transposição didática é um processo epistemológico, político e técnico realizado pelas didáticas específicas das disciplinas em diálogo constante com as disciplinas científicas e as políticas educacionais; b) a concepção de competência adotada no documento impõe que se adote uma perspectiva de linguagem como ação e de sujeitos como atores que agem de modo situado, fazendo com que sua autonomia seja compreendida como relativa; c) na pedagogia das competências, que orienta o projeto educativo da BNCC, o currículo se estrutura a partir da noção de práticas sociais de referência, em torno das quais são selecionados os gêneros textuais e as habilidades de linguagem, estas distribuídas nos quatro eixos estruturantes da Língua Portuguesa: Leitura, Oralidade, Análise Linguística/Semiótica e Produção de Textos; d) a pedagogia das competências demanda uma nova teoria dos conteúdos baseada nas teorias psicológicas do desenvolvimento humano. Diante desse conjunto de pressupostos, concluiu-se que a opção da BNCC por apresentar os conteúdos sob o rótulo genérico de habilidades dificulta a visualização dos conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais relacionados à coesão referencial e abre um importante campo de pesquisas acerca da transposição didática desse objeto de conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE:
coesão referencial; didática do português; pedagogia das competências; transposição didática

ABSTRACT:

This article aims to present an analysis of the didactic transposition of referential cohesion in the BNCC, in order to provide an understanding of this object in the context of the pedagogy of competences and the conception of language postulated in the document, as well as the psycholinguistic and psychopedagogical aspects that such conceptions of education and language present. The analysis assumed the following theoretical-methodological assumptions: a) didactic transposition is an epistemological, political and technical process carried out by the specific didactics of disciplines in constant dialogue with scientific disciplines and educational policies; b) the concept of competence adopted in the document imposes the adoption of a perspective of language as action and of subjects as actors who act in a situated way, making their autonomy understood as relative; c) in the pedagogy of competences, which guides the educational project of BNCC, the curriculum is structured from the notion of reference social practices, around which textual genres and language skills are selected, distributed in the four structural axes of the Portuguese Language: reading, orality, linguistic/semiotic analysis and textual production; d) the pedagogy of competences demands a new theory of contents based on psychological theories of human development. Given this set of assumptions, it was concluded that BNCC’s option to present the contents under the generic label of skills makes it difficult to visualize the conceptual, procedural and attitudinal contents related to referential cohesion and opens up an important field of research on the didactic transposition of this object of knowledge.

KEYWORDS:
referential cohesion; didactics of Portuguese language; pedagogy of the competences; pedagogical transposition

1 Introdução

A coesão textual é um tema ou objeto antigo e tradicional nas aulas de línguas. Nas gramáticas tradicionais várias regras sintáticas e figuras de linguagem do campo estilístico (sobretudo as de construção: elipse, hipérbato, zeugma etc.), além prescrições ou descrições ligadas ao funcionamento e/ou emprego das classes de palavras estão diretamente envolvidas no processo de coesão textual. Apesar disso, podemos dizer que a coesão foi sempre um objeto difuso na gramática tradicional e que sempre recebeu tratamento intuitivo nas tradicionais aulas de redação, centradas nas formas de composição (narração, descrição e dissertação).

Essa situação muda radicalmente após o surgimento da Linguística Textual. A clássica obra Cohesion in english, de Halliday e Hasan (1976)HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Cohesion in English. Londres: Longman, 1976., representou um marco no campo dos estudos sobre a coesão ao apresentar a primeira tentativa bem-sucedida de sistematização formal e funcional de seus mecanismos. As pesquisas atuais ampliaram consideravelmente a compreensão do tema, ainda que se concentrem mais nos aspectos descritivos que nos enunciativo-discursivos, psicolinguísticos ou psicopedagógicos.

No Brasil, os reflexos dessas pesquisas no ensino de Língua Portuguesa passaram a ser verificados a partir da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, no final da década de 1990, e encontraram uma apresentação mais sistematizada na recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que não apenas realiza uma transposição didática (TD) da coesão, como também organiza sua progressão ao longo do Ensino Fundamental.

A noção de TD teve origem no campo da Didática das disciplinas ( CHEVALLARD, 1985CHEVALLARD, Y. La transposition didactique: Du savoir savant au savoir enseigné,. Grenoble: La Pensée Sauvage Editions, 1985.) e se caracteriza, principalmente, por demarcar as fronteiras entre as ciências didáticas e suas disciplinas científicas de referência, as diferentes formas de relação que esses campos estabelecem com a produção de saberes, além das justificativas e das regras que permeiam a passagem de saberes científicos e práticas socioculturais à condição de saberes didáticos.

A TD, portanto, confere às didáticas específicas das disciplinas o estatuto de ciências aplicadas, com objetos, teorias e métodos próprios de investigação ( DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO, 2014DOLZ, J.; GAGNON, R.; DECÂNDIO, F. R. Uma disciplina emergente: a didática das línguas. In: NASCIMENTO, E. L. (org.). Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de ensino. 2 ed. Campinas: Pontes Editores, 2014. p. 21–50.) e orientadas pelo objetivo geral de melhorar a qualidade da educação e do ensino. Além disso, o caráter aplicado das didáticas específicas fica evidente:

  1. 1.

    na relação que elas mantêm com as políticas educacionais oficiais, responsáveis pela construção da estrutura global das disciplinas, e seus dispositivos curriculares, a exemplo da BNCC, dos currículos municipais e estaduais e dos livros didáticos;

  2. 2.

    na realização de pesquisas sobre o ensino na sala de aula, envolvendo a qualidade dos currículos, a produção/avaliação de materiais didáticos, as metodologias de ensino e a formação de professores.

Esses dois aspectos definidores das didáticas específicas como ciências aplicadas refletem as duas dimensões da TD:

  1. 1.

    a externa, referente à produção teórica e política sobre o ensino e a aprendizagem de objetos disciplinares elaborados por pesquisadores acadêmicos, seja das disciplinas científicas de referência ou das didáticas específicas, e também às orientações curriculares oficiais, que definem os contornos gerais das disciplinas, e aos materiais didáticos delas decorrentes;

  2. 2.

    a interna, que ocorre na sala de aula, através das interações entre professores(as) e aprendizes nas atividades de ensino-aprendizagem.

O objetivo deste artigo é apresentar uma análise da TD externa da coesão referencial na BNCC, de modo a fornecer uma compreensão desse objeto no contexto da pedagogia das competências e da concepção de linguagem assumidas no documento, bem como dos aspectos psicolinguísticos e psicopedagógicos que tais concepções de educação e de linguagem ensejam.

2 O ensino de língua portuguesa na pedagogia das competências

Ao assumir a pedagogia das competências, a LDB nº 9.394/96 se comprometeu a instituir no país um modelo de educação voltado para a funcionalidade dos saberes em práticas sociais situadas ( ZABALA; ARNAU, 2020ZABALA, A.; ARNAU, L. Métodos para ensinar competências. Tradução Grasielly Hanke Angeli. Porto Alegre: Penso, 2020.). É essa perspectiva de educação que justifica a centralidade do texto no ensino de linguagem tal como proposto desde os PCN até a BNCC. Uma vez que as práticas de linguagem se realizam por meio de gêneros textuais, é natural que os conteúdos do ensino de linguagem encontrem no texto sua razão de ser. Mas, de que forma o currículo deve ser estruturado na pedagogia das competências para garantir a funcionalidade dos saberes?

A noção de competência em educação é alvo de muitas controvérsias políticas, ideológicas e epistemológicas ( RAMOS, 2001RAMOS, M. N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001.; DOLZ; OLLAGNIER, 2004DOLZ, J.; OLLAGNIER, E. (org.). O enigma da competência em educação. Tradução Cláudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2004.; , GIMENO SACRISTÁN, 2011GIMENO SACRISTÁN, J. Dez teses sobre a aparente utilidade das competências em educação. In: GIMENO SACRISTÁN, J. et al. Educar por competências: o que há de novo? Tradução Carlos Henrique Lucas Lima. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 13–63.; PERRENOUD, 2013PERRENOUD, P. Desenvolver competências ou ensinar saberes? A escola que prepara para a vida. Tradução Laura Solange Pereira. Porto Alegre: Penso, 2013. GEHARDT, 2019GERHARDT, A. F. L. M. Concepções de aprendizado na BNCC: bases ideológicas e efeitos no ensino de português. In: GERHARDT, A. F. L. M.; AMORIM, M. A. (org.). A BNCC e o ensino de línguas e literaturas. Campinas: Pontes, 2019. p. 87–120.; SZUNDY, 2019SZUNDY, P. T. C. A Base Nacional Comum Curricular e a lógica neoliberal: que língua(gens) são (des)legitimidas? In: GERHARDT, A. F. L. M.; AMORIM, M. A. (org.). A BNCC e o ensino de línguas e literaturas. Campinas: Pontes, 2019. p. 121–152.). A maior parte das divergências políticas e ideológicas tem como ponto nevrálgico a suposta subordinação das competências ao sistema econômico capitalista. Nesse caso, a menos que se implante a revolução socialista defendida por autores do campo da pedagogia (histórico)crítica como Freire (2013)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. e Saviani e Duarte (2015)SAVIANI, D.; DUARTE, N. (org.). Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação escolar. Campinas: Autores Associados, 2015., a mera recusa à pedagogia das competências não seria capaz de mudar o modelo econômico vigente.

Quanto às controvérsias epistemológicas, alega-se que há muita imprecisão teórica sobre a natureza das competências e que isso tornaria essa noção inviável no ensino ( BRONCKART; DOLZ, 2004BRONCKART, J. P.; DOLZ, J. A noção de competência: qual é sua pertinência para o estudo da aprendizagem das ações de linguagem. DOLZ, J.; OLLAGNIER, E. (org.). O enigma da competência em educação. Tradução Cláudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 29–46.; ERARD; SCHNEUWLY, 2005ERARD, S.; SCHNEUWLY, B. La didactique de l’oral: savoirs ou compétences? In: BRONCKART, J.P.; BULEA, E.; POULIOT, M. (org.). Repenser l’enseignement des langues: comment identifier et exploiter les compétences? Villeneuve d’Ascq: Presses universitaires du Septentrion, 2005. p. 69–97.). Perrenoud (2013)PERRENOUD, P. Desenvolver competências ou ensinar saberes? A escola que prepara para a vida. Tradução Laura Solange Pereira. Porto Alegre: Penso, 2013. faz um balanço dessas confusões conceituais e propõe algumas soluções teórico-metodológicas bastante relevantes, mesmo deixando alguns problemas em aberto para serem resolvidas no âmbito das políticas educacionais.

A meu ver, a falta de consenso em torno das competências não constitui em si mesmo um problema para sua utilização como conceito basilar da educação. A questão central a ser enfrentada parece residir na necessidade de coerência entre a concepção de competência assumida, a qualidade do referencial de competências que constitui os objetivos educacionais, a natureza dos conteúdos e sua organização/progressão ao longo da educação básica. Vejamos como isso se deu na BNCC, começando pela perspectiva de competência:

Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.

( BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (versão final), Brasília: MEC, [2018]. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf\> Acesso em: 10 abr. 2023.
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, p. 8).

Em geral, as críticas dirigidas à pedagogia das competências, pelas razões político-ideológicas já expostas, desconsideram o fato de que a BNCC adota uma concepção que, longe de reproduzir uma lógica capitalista ou buscar prioritariamente a formação de mão de obra para o mercado de trabalho, ressignifica e complexifica a compreensão sobre a natureza dos saberes e suas funcionalidades. Os conteúdos disciplinares deixam de ser fins em si mesmos e vinculados unicamente às disciplinas científicas/acadêmicas de referência para serem concebidos de maneira ampliada e articulada com a psicologia cognitiva e do desenvolvimento, compondo uma nova tipologia dos conteúdos ( COLL; POZO; SARABIA; VALLS, 2000COLL, C.; POZO, J. I.; SARABIA, B.; VALLS, E. Os conteúdos na reforma: ensino e aprendizagem de conceitos, procedimentos e atitudes. Tradução Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artmed, 2000.; COLL et al., 2008 COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008.; POZO, 2008POZO, J. I. Aprendizes e mestres: a nova cultura da aprendizagem. Tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2008.; ZABALA; ARNAU, 2020ZABALA, A.; ARNAU, L. Métodos para ensinar competências. Tradução Grasielly Hanke Angeli. Porto Alegre: Penso, 2020.): conceitos, procedimentos, habilidades/capacidades, atitudes e valores que funcionam como recursos a serem mobilizados na vida social por atores competentes.

Uma consequência imediata desses pressupostos para as didáticas específicas consiste na necessidade de redefinição ou transformação das disciplinas escolares a partir da reforma curricular proposta pela BNCC, iniciando pelo reconhecimento de que os saberes disciplinares devem estar alinhados à concepção de competências e, consequentemente, à tipologia dos conteúdos assumidas no documento.

Como se sabe, a BNCC não apresenta qualquer fundamentação teórica explícita dos conceitos ou procedimentos adotados no documento. Como explica Petitjean (2008)PETITJEAN, A. Importância e limites da noção de transposição didática. Tradução Ana Paula Guedes e Zélia Anita Viviani. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 5, n. 2, p. 83–116, 2008. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2008v5n2p83>. Acesso em: 02 dez. 2020.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/for...
, essa ausência corresponde à despersonalização, uma das etapas da TD. A falta de conhecimento dessa operação tem levado muitos analistas e críticos da BNCC a considerá-la um documento vago e pouco preciso em seus fundamentos. Na leitura de Gehardt ( 2019GERHARDT, A. F. L. M. Concepções de aprendizado na BNCC: bases ideológicas e efeitos no ensino de português. In: GERHARDT, A. F. L. M.; AMORIM, M. A. (org.). A BNCC e o ensino de línguas e literaturas. Campinas: Pontes, 2019. p. 87–120., por exemplo, falta ao documento, dentre outras coisas, uma concepção de aprendizagem; na de Rossi e Souza (2019)ROSSI, J. C.; SOUZA, A. C. Concepções de linguagem na Base Nacional Comum Curricular: reflexões para o ensino de língua portuguesa. In: COSTA-HÜBES, T. C.; KRAEMER, M. A. D. (org.). Uma leitura crítica da Base Nacional Comum Curricular: compreensões subjacentes. Campinas: Mercado de Letras, 2019. p. 69–94., há equívocos na concepção de linguagem, provocados pela de falta de alinhamento total com a perspectiva assumida pelo Círculo de Bakhtin.

Ao contrário do que esse tipo de crítica sugere, a despersonalização não compromete, ipso facto, a coerência do projeto educativo nem das disciplinas. O procedimento tem a finalidade de afirmar o caráter efetivamente didático de qualquer conceito, seja ele oriundo de disciplinas científicas ou de práticas sociais. Ele é necessário para assinalar que nenhum conhecimento científico é capaz de cumprir objetivos educacionais, se não for submetido à racionalidade que orienta o processo didático. Por exemplo, se determinado conceito da linguística descritiva é cientificamente pertinente e suficiente para explicar determinada realidade, o mesmo não ocorre quando ele é abordado no campo didático, que não pode negligenciar a dimensão normativa no estudo do funcionamento social da linguagem nem os aspectos psicopedagógicos envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, como analisar o tratamento dado à coesão referencial na BNCC, considerando, por um lado, que sua sistematização teórica é fruto da Linguística Textual como disciplina científica descritiva, e, por outro, sua inserção no currículo escolar fundamentado na pedagogia das competências e numa nova tipologia dos conteúdos?

Na BNCC, as expectativas de desenvolvimento humano são distribuídas em três blocos de competências: gerais ou transdisciplinares, comuns a todas as disciplinas; de áreas ou pluri/interdisciplinares, que agrupam as disciplinas das áreas de linguagens, ciências humanas naturais e exatas; e disciplinares, referentes a cada disciplina específica. Contudo, os recursos mobilizáveis pelas competências – apresentados no documento sob a forma de habilidades – são alocados apenas no quadro das competências disciplinares. Essa situação demonstra os limites da BNCC na determinação da estrutura dos currículos a serem elaborados pelas escolas e secretarias de educação, nos quais devem constar a seleção dos recursos referentes às demais competências. Compete ao documento, conforme estabelecem a Constituição Federal e a LDB nº 9.394/96, selecionar os saberes básicos comuns que configuram os direitos de aprendizagem a serem garantidos a todos os estudantes do território nacional, cabendo aos estados, municípios e escolas do setor privado a inclusão da parte diversificada na elaboração do currículo em sua forma final.

A BNCC estabelece dez competências que sintetizam os objetivos ou as expectativas gerais de aprendizagem de Língua Portuguesa. As aprendizagens específicas – correspondentes aos conteúdos conceituais (fatos, conceitos e princípios), procedimentais (habilidades/capacidades, destrezas, procedimentos, estratégias) e atitudinais (normas, valores, atitudes, representações sociais) – são recursos necessários ao desenvolvimento das competências. Esses tipos de conteúdo fazem parte da composição das habilidades listadas no documento. Mas, a partir de quais critérios são selecionadas as competências e habilidades? Entre os defensores da pedagogia das competências, é unânime a compreensão de que elas devem ter como referência as práticas sociais. Como tais práticas não podem ser diretamente transferidas e/ou reproduzidas na escola, Martinand (1986)MARTINAND, J. L. Connaître et transformer la matière; des objectifs pour l’initiation aux sciences et techniques. Berne: Editions Peter Lang SA, 1986., observando as regras da TD, propõe o conceito de práticas sociais de referência, a partir do qual será possível elaborar os objetivos de aprendizagem e selecionar os conteúdos necessários para alcançá-los.

2.1 A concepção de linguagem na pedagogia das competências

O postulado de que as práticas sociais de referência constituem os parâmetros para a seleção dos objetivos e conteúdos de ensino coloca a ideia de ação ou agência humana no centro do processo educativo, o que exige um alinhamento entre a perspectiva pedagógica assumida, a concepção de linguagem e a de ensino-aprendizagem. Assim, como a mobilização dos saberes, traço definidor das competências, pressupõe um sujeito que age em função de determinados objetivos, a concepção de linguagem adotada na BNCC, longe de reproduzir a lógica de qualquer teoria linguística e observando o processo de TD, coaduna-se com os objetivos de seu projeto educativo:

Assume-se aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, já assumida em outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), para os quais a linguagem é uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua história.

( BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (versão final), Brasília: MEC, [2018]. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf\> Acesso em: 10 abr. 2023.
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, p. 67).

Da forma como exposta, a concepção enunciativo-discursiva de linguagem não se encaixa completamente em nenhuma teoria linguística específica, embora dialogue com várias delas. Não obstante, uma quantidade significativa de acadêmicos e pesquisadores insistem em associá-la à teoria da linguagem do Círculo de Bakhtin – dialogismo, interacionismo, gêneros textuais/discursivos, dentre outros ( COSTA-HÜBES; KRAEMER, 2019COSTA-HÜBES, T. C.; KRAEMER, M. A. D. (org.). Uma leitura crítica da Base Nacional Comum Curricular: compreensões subjacentes. Campinas: Mercado de Letras, 2019.). Esse posicionamento se inspira, sobretudo, na obra de Volóchinov, Marxismo e filosofia da linguagem, e no ensaio Os gêneros do discurso, de Bakhtin.

Contudo, em referência ao primeiro trabalho, cabe questionar se há aproximações entre a estrutura da Língua Portuguesa delineada na BNCC e a filosofia marxista que fundamenta a abordagem de Volóchinov, incluindo o fato de que a metodologia de estudos da linguagem proposta pelo autor apenas de forma muito indireta dialoga com os objetivos e os métodos da pedagogia das competências:

[…] a ordem metodologicamente fundamentada para o estudo da língua deve ser a seguinte: 1) formas e tipos de interação discursiva em sua relação com as condições concretas; 2) formas dos enunciados ou discursos verbais singulares em relação estreita com a interação da qual são parte, isto é, os gêneros dos discursos verbais determinados pela interação discursiva na vida e na criação ideológica; 3) partindo disso, revisão das formas da língua em sua concepção linguística habitual.

( VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 220).

Volóchinov propõe um método marxista para o estudo da linguagem que parte dos tipos de interação discursiva em condições concretas, passando pelos gêneros do discurso determinados pela interação, até o estudo das formas linguísticas. Acontece que, no plano didático, a interação não reproduz as condições concretas em que são produzidos os gêneros textuais, devido ao processo de TD, que tem como um de seus pressupostos psicopedagógicos a necessidade de adequação das práticas de linguagem ao nível de desenvolvimento psicológico em que os estudantes se encontram, obedecendo a um sistema de progressão das aprendizagens que segue uma lógica própria das práticas educativas, conforme será demonstrado na última seção deste texto. Desse modo, a concretude do gênero em sua realidade social não é a mesma verificada em sua realidade pedagógica 1 1 A questão da concretude do gênero textual no contexto pedagógico foi problematizada pelos pesquisadores da Escola de Didática das Língua da Universidade de Genebra, que postulam dois processos que explicam as diferenças entre o funcionamento dos gêneros nas práticas sociais efetivas e no processo de desenvolvimento de capacidades de linguagem: a ficcionalização e a modelização didática de gêneros ( SCHNEUWLY, 2004; DE PIETRO; SCHNEUWLY, 2014). . Quanto à fase três do método de Volóchinov, não se pode dizer que os membros do Círculo de Bakhtin tenham desenvolvido uma teoria linguística descritiva capaz de subsidiar o ensino de linguagem em toda a sua estrutura e complexidade.

Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. observou os mesmos passos metodológicos listados por Volóchinov no desenvolvimento da teoria dos gêneros do discurso: os gêneros são produzidos no interior das esferas de atividades humanas, que determinam seus tipos e seus temas (etapa 1); os gêneros são formas relativamente estáveis de enunciados que apresentam formas composicionais específicas (etapa 2); as esferas de atividades humanas e as formas dos gêneros determinam o estilo de linguagem neles empregado (etapa 3).

Com efeito, a BNCC dialoga com vários conceitos e pressupostos da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, principalmente quando se refere à natureza sócio-histórica dos enunciados/gêneros textuais e ao postulado de que a interação discursiva transforma os atos de linguagem em ações bilaterais, isto é, que são determinados tanto por aquele de quem eles procedem quanto por aquele a quem se dirige. Contudo, a crítica pós-moderna, que fundamenta a discussão sobre a diversidade cultural e seus impactos nas políticas educacionais brasileiras, incluindo a BNCC, recusa o determinismo social que acompanha a concepção de linguagem do Círculo, segundo a qual o enunciado (incluindo seu tema, forma e estilo) e os sujeitos são determinados por fatores externos. Nesse sentido, tal filosofia da linguagem, à semelhança da abordagem estruturalista, exclui as possibilidades de o sujeito ter algum papel autônomo na estruturação dos enunciados e das interações discursivas:

O centro organizador de qualquer enunciado, de qualquer expressão não está no interior, mas no exterior: no meio social que circunda o indivíduo. Somente um grito animal inarticulado é de fato organizado a partir do interior, do aparelho fisiológico de um indivíduo. No entanto, o enunciado humano mais primitivo, pronunciado por um organismo, é organizado fora dele do ponto de vista do seu conteúdo, sentido e significação: nas condições extraorgânicas do meio social. O enunciado como tal é em sua completude um produto da interação social, tanto a mais próxima, determinada pela situação de fala, quanto a mais distante, definida por todo o conjunto das condições dessa coletividade.

O subjetivismo individualista tem razão ao defender que os enunciados singulares são de fato a realidade concreta da língua e possuem nela uma significação criativa.

No entanto, o subjetivismo individualista não tem razão em ignorar e não compreender a natureza social do enunciado, tentando deduzi-lo como uma expressão do mundo interior do falante. A estrutura do enunciado, bem como da própria vivência expressa, é uma estrutura social. O acabamento estilístico do enunciado – o acabamento social e o próprio fluxo discursivo dos enunciados que de fato representa a realidade da língua – é um fluxo social. Cada gota nele é social, assim como toda a dinâmica de sua formação.

( VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 216–217).

As críticas de Volóchinov ao subjetivismo individualista, que atribuía a origem da produção enunciativa à vontade do indivíduo, levou-o a uma solução igualmente extrema, segundo a qual sujeitos e enunciados, na condição de elementos da estrutural social, são socialmente determinados. Como consequência, falta ao postulado da interação uma teoria da subjetividade capaz de explicar a ação de atores competentes que mobilizam recursos para agir intencionalmente nas mais diversas práticas sociais de linguagem. Uma ressalva importante se faz necessária aqui. Não estou afirmando que o Círculo não trata, em absoluto, de subjetividade nem de intencionalidade, mas que lhe falta uma teoria da ação discursiva que permita explicar as motivações sociais dos sujeitos 2 2 Foi justamente a falta de uma teoria da ação discursiva que levou Bronckart (2012) a elaborar o interacionismo sociodiscursivo, a partir de uma articulação entre teoria a bakhtiniana dos gêneros do discurso, a sociologia compreensiva e a psicologia histórico-social de Vygotsky. Embora tenha avançado em questões importantes sobre o desenvolvimento das capacidades de linguagem, a teoria de Bronckart ainda se ressente de uma teoria da ação humana que possa explicar suas motivações e os conflitos sociais que delas decorrem, conforme apontam Bispo, Caldas e Bispo (2021). , um aspecto que não pode estar ausente numa teoria pedagógica que visa formar atores sociais. A rigor, considerando que os textos aqui citados de Volóchinov e Bakhtin apenas apresentam os pressupostos gerais de projetos de pesquisas sobre a natureza social dos enunciados e da interação discursiva, segundo a metodologia marxista, podemos dizer que resta pendente uma teoria geral devidamente desenvolvida dos rituais de interação nas diversas esferas das atividades humanas, no interior das quais se originam e circulam os gêneros do discurso, a exemplo do que faz Goffman (1969GOFFMAN, E. Strategic interaccion. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1969. , 2010GOFFMAN, E. Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos. Tradução Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. Petrópolis: Editora Vozes, 2010. , 2011GOFFMAN, E. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Tradução Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. Petrópolis: Editora Vozes, 2011., 2013)GOFFMAN, E. Encounters: two studies in the sociology of interaccion. Indianapolis: The Bobbs-Merrill Company Inc, 2013. ao elaborar sua teoria da interação social com base nos pressupostos teórico-metodológicos da Psicologia Social.

Ao frisar limitações da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin quanto à explicação da origem social da consciência, da subjetividade, das intencionalidades e das atitudes dos sujeitos no quadro de uma teoria geral da ação social, meu objetivo não é negar sua coerência interna nem a relevância dessas teorias para os estudos da linguagem, e sim preservá-las da imputação de responsabilidades que seus autores não tomaram para si no que diz respeito a questões de natureza educacional, como a explicação de processos de desenvolvimento sociocognitivo, estudados pela Psicologia da Educação, e ao papel da intencionalidade, das crenças e dos afetos na ação humana, aspectos estudados pela Psicologia Social. É para explicar a totalidade e o cruzamento desses objetos no quadro de uma teoria didática que as teorias do Círculo se mostram limitadas. Portanto, minhas críticas se referem não a essas teorias em si, mas ao uso pedagógico que delas se faz, como se fossem suficientes para fornecer todos os fundamentos necessários para orientar o ensino de linguagem. Trata-se, então, de preservá-las de atribuições que estão fora de seu escopo, embora não se possa negar suas importantes contribuições à elaboração do modelo didático proposto pela BNCC.

A concepção enunciativo-discursiva de linguagem assumida na BNCC contempla as dimensões sócio-histórica da linguagem e suas práticas, mas também a dimensão subjetiva ao destacar que os atos de linguagem são guiados por finalidades específicas. Ambas as dimensões têm impacto direto na TD, que precisa relacionar os objetivos do processo de socialização, atravessado pela dimensão sócio-histórica das práticas de linguagem, à aprendizagem progressiva dos conhecimentos, procedimentos/habilidades, atitudes e competências ao longo da educação básica. A compreensão desses saberes exige uma abordagem interdisciplinar envolvendo as ciências da linguagem, as práticas sociais de referência e a Psicologia da Educação.

As práticas sociais de referência representam, ao mesmo tempo, um recorte e uma TD de esferas de atividades humanas e de gêneros textuais que circulam em seu interior, entendidos como instrumentos necessários para promover o desenvolvimento sociocognitivo dos estudantes. Na BNCC, as esferas de atividades, submetidas às regras de TD, são chamadas de campos de atuação, designação que reafirma a dimensão subjetiva das práticas de linguagem, posto que destaca o papel dos estudantes como atores que agem intencionalmente nas interações discursivas.

Diante da impossibilidade de a escola contemplar todos os gêneros que circulam na sociedade, a BNCC selecionou determinadas práticas de referência e as organizou em campos de atuação, elaborados de acordo com propósitos didáticos específicos, definindo-os como parâmetros para a seleção de gêneros textuais. Os campos de atuação funcionam, portanto, como os contextos em que ocorrem as produções discursivas, ou seja, os gêneros textuais, que, por trazerem em sua constituição as marcas contextuais e a atualização das funcionalidades 3 3 Essa expressão se refere ao fato de que, em função das características dos diferentes gêneros textuais, do estilo individual dos atores e de suas intenções, a linguagem empregada nos textos pode apresentar formas e funções específicas. da linguagem, permitem, sempre observando o processo de TD, que sejam selecionadas as habilidades a serem desenvolvidas pelos(as) estudantes na prática educativa. O Quadro 1 apresenta a seleção dos campos de atuação estabelecidos pela BNCC para a educação básica.

Quadro 1 -
Campos de atuação selecionados pela BNCC

No Ensino Médio (EM), o campo da vida cotidiana é substituído pelo da vida pessoal. Os demais são os mesmos dos anos finais do Ensino Fundamental (EF). É importante compreender que a distribuição dos campos pelos níveis de educação não é aleatória ou casual, mas que está diretamente relacionada com os pressupostos da Psicologia da Educação subjacente à pedagogia das competências, dentre as quais se destaca a relação entre a idade dos(as) estudantes e as possibilidades de desenvolvimento sociocognitivo ( PIAGET, 2007PIAGET, J. Epistemologia genética. 3. ed. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2007.; VYGOSTSKY, 2010VYGOTSKY, L. S. Psicologia pedagógica. 3 ed. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.; COLL et al., 2008 COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008.). Isso justifica, por exemplo, a substituição do campo da vida cotidiana, do EF, pelo da vida pessoal, no EM, por ser nessa etapa da vida que os(as) estudantes são instados(as) de maneira mais incisiva a planejar sua inserção na vida adulta. De modo análogo, o campo jornalístico-midiático só aparece a partir dos anos finais do EF, porque se entende que as habilidades demandas pelos gêneros do campo são mais significativas para o desenvolvimento sociocognitivo quando se tornam objetos de ensino-aprendizagem na idade em que os(as) alunos(as) se encontram nesse nível de escolarização.

3 A coesão referencial na BNCC

A Linguística Textual distingue duas modalidades de coesão textual diretamente envolvidas na progressão temática: a referencial, em que a progressão se dá mediante a retomada de objetos discursivos por formas remissivas ou dêiticas, e a sequencial, na qual a progressão se caracteriza pela inserção de novos objetos discursivos no fluxo textual por meio de conjunções e articuladores discursivos.

Os procedimentos coesivos categorizados e descritos pela Linguística Textual não se originaram de uma produção teórica apriorística nem são frutos de uma reflexão puramente abstrata. Antes, foram identificados em diversas práticas de linguagem, sobretudo, escritas. Por essa razão, a coesão sempre esteve presente na escola, na condição de saber prático exigido nas avaliações das produções textuais, apesar da inexistência de um aparato conceitual que pudesse explicar de modo sistemático seu funcionamento. É forçoso reconhecer que, sem esse aparato teórico, a organização do ensino fica bastante comprometida.

No entanto, embora a existência de um aparato teórico-conceitual seja uma condição necessária para orientar o ensino sistemático da coesão, não é uma condição suficiente para garantir sua condição de conteúdo didático. Propostas para o ensino desse objeto como as de Antunes (2014)ANTUNES, I. Gramática contextualizada: limpando “o pó das ideias simples”. São Paulo: Parábola Editorial, 2014. e Cavalcante, Custódio Filho e Brito (2014)CAVALCANTE, M. M.; CUSTÓDIO FILHO, V.; BRITO, M. A. P. Coerência, referenciação e ensino. São Paulo: Cortez, 2014. caracterizam-se pelo objetivo de transferir os conceitos da linguística textual para o ensino. Diferentemente da transferência de teoria, no processo de TD, os conhecimentos científicos são deslocados de seu contexto de produção e da racionalidade que orientou sua elaboração para serem recontextualizados no espaço educacional ( PETITJEAN, 2008PETITJEAN, A. Importância e limites da noção de transposição didática. Tradução Ana Paula Guedes e Zélia Anita Viviani. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 5, n. 2, p. 83–116, 2008. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2008v5n2p83>. Acesso em: 02 dez. 2020.
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), que se orienta por formas de racionalidades pedagógicas que estão a serviço do desenvolvimento sociocognitivo dos(as) estudantes.

Tendo em vista o objetivo de promover o desenvolvimento humano, a TD se realiza em estreita relação com a psicologia da educação, dada a centralidade dessa ciência na teorização sobre a aprendizagem e o desenvolvimento sociocognitivo ao longo de todo o período da escolarização ( COLL et al., 2008 COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008.). Considerando-se ainda que o desenvolvimento humano está diretamente associado à inserção gradativa dos(as) estudantes na sociedade, a TD deve contemplar também uma dimensão sociológica dos saberes escolares ou escolarizados, tendo em vista o contexto social em que os(as) aprendizes serão inseridos como atores. Em resumo, na TD, os conhecimentos científicos são submetidos aos fatores sociocognitivos, socioculturais e políticos que determinam os objetivos educacionais.

3.1 A TD da coesão referencial

A noção de práticas sociais de referência tem implicações incontornáveis na TD dos conhecimentos das ciências da linguagem. Transformar os saberes científicos em didáticos exige que se compreenda, de maneira adequada, as racionalidades que governam esses diferentes saberes. Como se sabe, o funcionamento da linguagem é descrito e caracterizado de forma bastante variável pelas várias teorias linguísticas, e, no caso do funcionamento social, muitos conhecimentos práticos sequer são estudados cientificamente, a exemplo da norma padrão da língua, da escrita do parágrafo etc. Outra questão diz respeito à redução da pluralidade teórica e terminológica que envolve um mesmo objeto no campo científico à unidade que se faz necessária no campo didático.

No processo de TD, a pluralidade de saberes deve passar pelo filtro de uma teoria dos conteúdos escolares capaz de lhe conferir racionalidade didática e unidade teórica e terminológica. Conforme a perspectiva de competência adotada pela BNCC, os conhecimentos científicos e as práticas sociais de linguagem devem ser transformados em conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais. Esse entendimento afeta a relação da didática com as ciências da linguagem, estabelecendo os limites das contribuições desta ao ensino. O Quadro 2 apresenta os campos de conhecimentos referentes à linguagem verbal, tal qual expostos na BNCC.

Quadro 2 -
Campos de conhecimentos da linguagem verbal selecionados pela BNCC

O Quadro 2 reúne elementos de naturezas diversas, incluindo níveis de estruturação da linguagem, o fenômeno transversal da variação linguística e os elementos notacionais específicos da escrita. Embora cada elemento seja apresentado de modo muito superficial, verifica-se que a caracterização deles não se limita a uma reprodução das teorias ditas científicas. O nível fono-ortográfico não se confunde com os estudos fonéticos e fonológicos da linguística, evidenciando seu caráter genuinamente didático. Os demais níveis gramaticais tratam de conceitos inicialmente formulados para descrever especificamente a língua escrita e são fundamentais para a estruturação dos gêneros textuais, mas não são devidamente estudados, sob a ótica enunciativo-discursiva, pelas teorias linguísticas que, em geral, costumam tratá-los pelo viés do objetivismo.

Não é que a interação, na perspectiva enunciativo-discursiva, seja oposta ao tratamento objetivo dos elementos linguísticos. A diferença central da abordagem interacionista para a objetivista é que, enquanto esta se concentra nos aspectos formais da língua, aquela se volta para a compreensão do funcionamento da linguagem nos contextos sociais, sem desconsiderar os fatores subjetivos e actanciais. Por exemplo, as análises sociolinguísticas das regras de concordância enfatizam a descrição objetivista dos fenômenos e buscam demonstrar, pelo princípio da regra variável 4 4 O conceito de regra variável foi criado por Labov (2008) para explicar situações de variação em que diferentes formas linguísticas (variantes) tenham o mesmo conteúdo semântico. Essa equivalência referencial repousa na tese de que todo uso linguístico natural segue regras internas da língua. , que os supostos desvios normativos estão plenamente de acordo com as regras internas, imanentes, do sistema linguístico. Ocorre que, em diversas situações comunicativas, exige-se que, no processo de interação discursiva, os enunciados ou gêneros textuais observem as regras de concordância estabelecidas pela norma padrão.

Do ponto de vista enunciativo-discursivo, embora a normatividade seja estruturante da interação discursiva, seu funcionamento só pode ser adequadamente compreendido se forem considerados os valores sócio-históricos que a atravessa. Dessa forma, a normatividade é um componente das condições enunciativas que, como tal, não pode ser reduzido a um tratamento objetivista restrito aos fenômenos linguísticos ou gramaticais, como tem feito a chamada linguística descritiva, que não deve ser confundida com uma disciplina específica, mas entendida como um paradigma de cientificidade. Assim, as normas que regulam a interação discursiva afetam:

  1. 1.

    a seleção dos temas dos enunciados, que devem observar aquilo que se pode falar em determinada esfera da atividade humana ou campo de atuação;

  2. 2.

    a forma composicional dos gêneros textuais, ou seja, o dizer deve ser encaixado em determinada forma;

  3. 3.

    a adequação estilística, isto é, a observância das normas linguísticas e estéticas exigidas pelos gêneros textuais. Nesse ponto, as coerções normativas não anulam a autonomia do sujeito para selecionar recursos linguísticos dentre aqueles estabelecidos como possíveis em determinado campo de atuação ou situação comunicativa, mas obrigam-nos a entender essa autonomia como relativa.

A coesão referencial, como todos os fenômenos linguísticos estruturantes da atividade discursiva, também deve ser vista a partir dessa compreensão ampliada da normatividade. Embora não haja nas gramáticas normativas, nenhuma abordagem sistemática ou regras explícitas sobre como fazer a coesão nos textos, tal como se verifica com as regras ortográficas, de concordância, regência e colocação pronominal, sociedade e escola sempre impuseram normas para garantir a coesão textual, dentre as quais se destacam com mais ênfase as destinadas a evitar repetições de palavras. Contudo, na linguística textual, a fidelidade ao paradigma descritivista faz com que a coesão não seja tratada como um objeto passível de uma abordagem normativa. Logo, a TD dos conhecimentos produzidos por essa disciplina deve ressignificá-los no contexto da perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem. Vejamos como isso se processa na BNCC.

3.1.1 A coesão referencial como conteúdo didático: conceitos, habilidades e atitudes

No Quadro 2, chama a atenção o fato de a coesão referencial aparecer apenas na coluna do nível sintático que, como sabemos, tem como limite máximo o período. Com efeito, nas gramáticas normativas, muitos fenômenos sintáticos estão direta ou indiretamente ligados aos mecanismos de coesão categorizados e descritos na Linguística Textual, a exemplo da referenciação no aposto (1), da elipse de termos oracionais (2) e da substituição de termos por pronomes (3).

  1. 1.

    Paulo ganhou dois presentes: um relógio e uma bicicleta.

  2. 2.

    As circunstâncias fazem ou [as circunstâncias] descobrem os grandes homens.

  3. 3.

    João não comprou os livros nesta semana, ele os comprou na semana passada.

Nos exemplos acima, verifica-se o funcionamento da coesão referencial no nível da sintaxe, demonstrando, ao contrário do que muitos acreditam, que é necessário tratar da coesão também nos limites do período. Em (1), o numeral “dois” remete aos apostos informados à direta do período. Em (2), o sujeito da segunda oração sofre elipse por ser o mesmo da primeira oração. Em (3), ocorre, na segunda oração, uma dupla substituição de termos mencionados na primeira: o pronome pessoal “ele” substitui o sujeito “João”, e o pronome oblíquo “os” substitui o objeto direto “os livros”.

A Linguística Textual, por sua vez, mesmo sem abordar de modo didaticamente satisfatório a relação entre coesão e sintaxe, já demonstrou fartamente as limitações da oração e do período para explicar o funcionamento dos mecanismos de coesão na progressão textual. Seus estudos abriram novas possibilidades pedagógicas ao demonstrar as interfaces entre a coesão e outros níveis linguísticos, como o semântico e o lexical, em suas descrições sobre os mecanismos de coesão lexical envolvendo sinônimos, antônimos, hiperônimos e hipônimos. Além disso, a interface com a pragmática ampliou a compreensão de processos de referenciação relacionados às funções dêiticas de classes de palavras como pronomes e advérbios. Podemos concluir então que falta à caraterização dos níveis de linguagem proposta pela BNCC, conforme apresentado no Quadro 2, o entendimento de que a coesão não se restringe ao nível sintático e a inclusão de um nível textual no qual seriam alocados conceitos e procedimentos coesivos cujo funcionamento ultrapassa a extensão do período.

Apesar dos avanços no plano da descrição teórica objetiva dos mecanismos de coesão, a transferência desses resultados para o ensino ainda apresenta desafios que devem ser superados no processo de TD. Além do objetivismo, que negligencia o viés interacionista, e da ausência de uma perspectiva pedagógica para orientar as relações entre ciência e educação, falta às propostas de transferência da Linguística Textual para o ensino uma explicação de como a coesão referencial se relaciona com os níveis de estruturação da língua, as classes de palavras, os elementos notacionais da escrita 5 5 A título de ilustração, vários casos de uso da elipse, um mecanismo de coesão, são indicados pelo uso da vírgula. e a variação linguística. Logicamente, esses problemas estão fora do escopo da linguística textual como disciplina científica que tem suas fronteiras rigorosamente delimitadas e o ensino como objeto secundário.

Embora várias disciplinas das ciências da linguagem busquem contribuir com o ensino, todas elas falham quando tentam transferir diretamente seus conhecimentos à prática educativa, sem a devida consideração das diferenças entre as racionalidades científicas e pedagógicas já discutidas neste texto. O ensino é objeto primário da Didática, cujo desenvolvimento recente contempla a criação e institucionalização das didáticas específicas das disciplinas ( ASTOLFI; DEVELAY, 2012ASTOLFI, J. P.; DEVELAY, M. A didática das ciências. 16. ed. Tradução Magda Sento Sé Fonseca. Campinas: Papirus Editora, 2012.; PARRA; SAIZ, 1996PARRA, C.; SAIZ, I. (org.). Didática da matemática: reflexões psicopedagógicas. Tradução Juan Acuña Llorens. Porto Alegre: Artmed, 1996.; SANTOS, 2019SANTOS, M. B. Didática da língua e linguística aplicada: duas perspectivas de construção de objetos de ensino. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 16, n. 4, p. 4229–4249, dez. 2019. DOI: https://doi.org/10.5007/1984-8412.2019v16n4p4229. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2019v16n4p4229\>. Acesso em 02 out. 2021.
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). Nesse contexto, a didática das línguas é uma disciplina emergente que tem o ensino de línguas como objeto ( DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO, 2014DOLZ, J.; GAGNON, R.; DECÂNDIO, F. R. Uma disciplina emergente: a didática das línguas. In: NASCIMENTO, E. L. (org.). Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de ensino. 2 ed. Campinas: Pontes Editores, 2014. p. 21–50.). De acordo com Santos (2019)SANTOS, M. B. Didática da língua e linguística aplicada: duas perspectivas de construção de objetos de ensino. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 16, n. 4, p. 4229–4249, dez. 2019. DOI: https://doi.org/10.5007/1984-8412.2019v16n4p4229. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2019v16n4p4229\>. Acesso em 02 out. 2021.
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, compete à Didática de uma língua específica apresentar uma imagem global desta como disciplina curricular. Para isso, os estudos didáticos devem ser desenvolvidos numa relação estreita com as políticas curriculares oficiais, visto que compete a elas desenhar os contornos gerais das disciplinas escolares, as diretrizes para a elaboração dos materiais didáticos e, consequentemente, as práticas de ensino.

É importante destacar que o fato de a Didática se relacionar com as políticas curriculares não a converte numa disciplina puramente técnica cuja finalidade seria providenciar os meios práticos para viabilizar a implementação das políticas educacionais em sala de aula. Como explica Santos (2019)SANTOS, M. B. Didática da língua e linguística aplicada: duas perspectivas de construção de objetos de ensino. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 16, n. 4, p. 4229–4249, dez. 2019. DOI: https://doi.org/10.5007/1984-8412.2019v16n4p4229. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2019v16n4p4229\>. Acesso em 02 out. 2021.
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, a Didática é uma ciência aplicada que desempenha três funções: a epistemológica, ligada à produção dos conhecimentos didáticos; a política, que envolve a avaliação da TD externa e interna de saberes; e a técnica, relativa à pesquisa e produção de materiais e procedimentos didáticos.

Na análise curricular de qualquer objeto de ensino, essas três funções devem ser executadas de modo articulado, visando a compreensão do currículo, a identificação de possíveis inconsistências e a proposição de alternativas de superação de problemas teóricos e metodológicos envolvidos na implementação das políticas educacionais. A análise deve, portanto, situar o objeto de estudo no contexto global de uma disciplina curricular específica.

Como já foi demonstrado, a pedagogia das competências, tal como entendida na BNCC, impõe que se adote uma concepção enunciativo-discursiva da linguagem, que destaca o papel da interação discursiva na constituição das práticas de linguagem e a importância do sujeito como agente cuja autonomia é relativa, em virtude das coerções sociais que regulam a produção, recepção e circulação dos gêneros textuais.

Esses pressupostos orientam a TD das práticas sociais de referência e dos saberes a ela relacionados e servem como parâmetros para a definição das bases epistemológicas e políticas que fundamentam as relações entre a didática e as ciências da linguagem. A TD representa a submissão das práticas sociais e saberes à racionalidade pedagógica, mediando a elaboração do referencial de competências e a seleção dos recursos (conhecimentos, habilidades, atitudes, valores) por elas mobilizados. Nesse processo, a psicologia da educação desempenha um papel fundamental na teorização da tipologia dos recursos ou conteúdos ( COLL; POZO; SARABIA; VALLS, 2000COLL, C.; POZO, J. I.; SARABIA, B.; VALLS, E. Os conteúdos na reforma: ensino e aprendizagem de conceitos, procedimentos e atitudes. Tradução Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artmed, 2000.; COLL et al, 2008 COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008.; POZO, 2008POZO, J. I. Aprendizes e mestres: a nova cultura da aprendizagem. Tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2008.; ZABALA; ARNAU, 2020ZABALA, A.; ARNAU, L. Métodos para ensinar competências. Tradução Grasielly Hanke Angeli. Porto Alegre: Penso, 2020.).

Para acomodar os conteúdos nessa nova tipologia, a BNCC opera com duas concepções de práticas de linguagem. A primeira se refere à já mencionada noção de práticas sociais de referência, expressas no documento sob a forma de campos de atuação e dos gêneros textuais a eles vinculados. A segunda concerne aos eixos estruturantes da Língua Portuguesa como disciplina escolar: Análise Linguística/Semiótica, Oralidade, Leitura e Produção de textos. Na BNCC, os conteúdos aparecem sob o rótulo genérico de habilidades, selecionadas a partir dos saberes e procedimentos identificados em gêneros dos campos de atuação, estabelecidos e alocadas nos quatro eixos estruturantes da disciplina. Dessa forma, a organização e a progressão dos conteúdos obedecem à seguinte ordem: ano/nível de escolaridade, campos de atuação e gêneros textuais, eixos estruturantes e habilidades. Observando essa sequência, o Quadro 3 apresenta as habilidades da BNCC referentes à coesão referencial, para o EF.

Quadro 3 -
Habilidades de coesão referencial da BNCC para o Ensino Fundamental

Na BNCC, não há definições dos conceitos e processos relativos à coesão referencial que compõem as habilidades selecionadas. Esse procedimento, que se estende aos demais conceitos e procedimentos utilizados na composição de todas as habilidades de Língua Portuguesa, longe de indicar a negação de embasamento científico ou uma abertura indiscriminada a qualquer teoria de escolha dos(as) professores(as), remete ao processo de despersonalização já referido e abre para a didática do português um campo de pesquisas bastante promissor sobre o processo de TD.

Diante disso, embora seja imprescindível o diálogo da didática com a Linguística Textual para a compreensão e descrição dos mecanismos de coesão referencial, é preciso reconhecer suas limitações quanto à falta dos elementos que guiam a TD dos conhecimentos científicos na BNCC: a perspectiva pedagógica (pedagogia das competências), a concepção de linguagem (enunciativo-discursiva), uma tipologia dos conteúdos baseada na psicologia do desenvolvimento (conceituais, procedimentais e atitudinais), a organização e a progressão dos conteúdos ao longo da educação básica. Realizar a convergência e articulação de todos esses fatores na configuração de uma disciplina escolar, por meio de uma elaboração epistemológica, é tarefa das didáticas específicas.

Como se vê no Quadro 3, a coesão referencial aparece como conteúdo curricular a partir do 3º ano, indo até o final do EF. Esse dado é muito significativo porque vários linguistas, sem nenhum embasamento psicopedagógico empírico, defendem que só haja ensino sistemático de gramática ao final do EF e/ou no EM. ( MATTOS e SILVA, 2004MATTOS E SILVA, R. V. Que gramática ensinar, quando e por quê? In: MATTOS E SILVA, R. V. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 79–92.; MENDONÇA, 2006MENDONÇA, M. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (org.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 199–226.). Contudo, sabendo-se que, na condição de recursos a serem mobilizados pelas competências, a coesão referencial se converte, pelo processo de TD, em conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, é preciso compreender adequadamente o que se entende por ensino sistemático de gramática na BNCC e as relações desses conteúdos com a terminologia gramatical. Essas questões serão discutidas mais adiante.

No Quadro 3, verifica-se que, entre os eixos e as habilidades, se interpõe um termo médio: os objetos de conhecimento. Trata-se de um conjunto de conceitos próprios de cada eixo, que exercem uma dupla finalidade: estabelecer o foco ou o escopo das habilidades e organizar sua progressão ao longo dos anos de escolaridade. Dessa forma, um mesmo objeto de conhecimento pode-se repetir por vários anos, gerando diferentes habilidades ou aprofundando outras situadas em anos anteriores. A título de ilustração, as habilidades (EF35LP14) e (EF06LP03), referentes ao objeto de conhecimento “morfologia”, demonstram a progressão por acréscimo ou adição de saberes, enquanto as habilidades (EF05LP27) e (EF67LP36), relativas ao objeto de conhecimento “coesão”, são exemplos de progressão por aprofundamento.

Cumpre destacar ainda que os objetos de conhecimento ampliam a lista de conceitos e processos coesivos listados nos níveis de linguagem constantes do Quadro 2, que situa a coesão referencial apenas no plano sintático. No Quadro 3, as habilidades de coesão se referem a objetos de conhecimento que não se limitam ao nível sintático: léxico/morfologia, semântica, textualização, progressão temática, paragrafação e planejamento textual.

Por outro lado, a compreensão formalista/objetivista da variação linguística explicitada no Quadro 2, caracterizada pela tentativa de transferência direta dos pressupostos teórico-metodológicos da sociolinguística educacional, reproduz nas orientações curriculares oficiais a fragmentação dos saberes e, por isso, se mostra incompatível com a orientação didática assumida na BNCC. A falta de uma abordagem didática adequada da variação linguística pode levar o documento a reproduzir contradições teóricas, como a que se verifica na diferença de tratamento que a sociolinguística e a linguística textual dão aos pronomes demonstrativos de 1ª e 2ª pessoa “este(a)” e “esse(a)”. Enquanto a primeira, baseando-se em estudos de língua falada, assevera que a distinção entre as pessoas gramaticais perdeu sentido/funcionalidade, uma vez que os falantes usam, de maneira generalizada, a forma de segunda pessoa indistintamente, a segunda disciplina, no contexto da língua escrita, destaca a relevância das duas formas pronominais no processo de coesão referencial, classificando o pronome de primeira pessoa como catafórico e o de segunda como anafórico 6 6 Aqui é preciso destacar também um equívoco da linguística textual ao definir, de forma categórica, que o demonstrativo de primeira pessoa é catafórico. Como as gramáticas normativas demonstram, na função distributiva, a primeira pessoa também desempenha uma função anafórica, conforme o exemplo a seguir: A ternura não embarga a descrição nem esta diminui aquela. .

A BNCC acerta ao contemplar a variação linguística, mas não executa bem o processo de TD a seu respeito. Essa conclusão pode ser corroborada através da análise das habilidades (EF08LP15) e (EF09LP10), que tratam, respectivamente, das funções sintático-coesivas dos pronomes relativos e da colocação pronominal. Se, na abordagem objetivista/descritivista da Sociolinguística, o estudo desses fenômenos pode-se limitar à identificação e confronto de variedades linguísticas referentes às estratégias de relativização – padrão, cortadora e com pronome lembrete –, conforme a exposição de Bagno (2001)BAGNO, M. Português ou brasileiro? um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola Editorial, 2001. e Martins e Moura (2014)MARTINS, L. R.; MOURA, A. A. V. Orações relativas e interrogativas: aproximação entre teoria e prática na sala de aula. In: BORTONI-RICARDO, S. M.; SOUSA, R. M.; FREITAS, V. A. L.; MACHADO, V. R. (org.). Por que a escola não ensina gramática assim? São Paulo: Parábola Editorial, 2014. p 109–128., e aos usos dos clíticos na língua falada ( VIEIRA, 2014VIEIRA, S. R. Colocação pronominal. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F. (org.). Ensino de gramática: descrição e uso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014. p. 121–146.), numa abordagem didática que adota a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, é preciso relacionar os fenômenos linguísticos à normatividade social que rege as práticas sociocomunicativas dos diferentes campos de atuação e a natureza dos diferentes gêneros textuais.

Para finalizar a análise didática da coesão referencial na BNCC, considero relevante refletir sobre a questão da terminologia técnica e suas relações com os conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais. O uso de termos técnicos no ensino de linguagem é objeto de controvérsias ( KLEIMAN; SEPULVEDA, 2012KLEIMAN, A. B.; SEPULVEDA, C. Oficina de gramática: metalinguagem para principiantes. Campinas: Pontes Editores, 2012.). Os que se opõem a seu uso negam-lhes relevância no desenvolvimento de capacidades de uso da linguagem. Entre os defensores, muitos os consideram adequados apenas nos anos finais do EF e/ou no EM. Diante disso, cabe a problematização: se todas as disciplinas usam terminologia própria para designar seus objetos de conhecimento e conteúdos desde os anos iniciais da educação básica, por que isso se tornou um problema no ensino de Língua Portuguesa?

Com efeito, desde a alfabetização, as crianças se deparam com os conceitos de letra, som (fonema), consoante, vogal, dígrafo, sílaba, ditongo, tritongo, hiato, palavra, texto, narrativa, descrição, personagem, tempo, enredo, clímax, desfecho, dentre vários outros. Sabendo que esses conceitos estão relacionados às práticas de linguagem tomadas como conteúdos de ensino em função da etapa de desenvolvimento sociocognitivo em que os(as) alunos(as) se encontram, não seria natural que, com a progressão desse desenvolvimento, as novas aprendizagens fossem associadas a novos conceitos? Assim sendo, o problema parece não estar na terminologia em si, mas na compreensão do papel que ela assume no desenvolvimento sociocognitivo dos estudantes.

A Psicologia da Educação elaborou uma teoria bastante sofisticada dos conteúdos conceituais, na qual aquilo que se costumou chamar, de modo bastante simplista, terminologia passa a ser compreendido como um dos elementos centrais do desenvolvimento sociocognitivo, visto que “ajudam a entender a realidade como complexa e ao mesmo tempo ordenada, caótica e também controlável, repetível e denominável; isto é, transformam-na em algo que se pode compreender e controlar e em que se pode intervir para melhorá-la” ( COLL et al., 2008 COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008., p. 306). Dito de outra forma, sem a compreensão da realidade ou dos fatos que constituem os objetos de ensino mediante o processo de TD, limita-se bastante o desenvolvimento de habilidades.

De acordo com essa perspectiva, a complexidade da realidade envolve três dimensões inter-relacionadas: conceitual, procedimental e atitudinal. A conceitual compõe-se de três noções que ampliam consideravelmente o entendimento do que seja a terminologia na abordagem didática e seu papel no processo educativo: fatos, conceitos e princípios.

Falando de forma genérica, um fato diz respeito a algo que acontece em determinado momento e que pode ter suas causas e características devidamente descritos ou explicados. Na condição de conteúdo didático, refere-se a um dado objetivo da realidade reivindicado por uma disciplina, onde os fatos são integrados em sistemas conceituais e teorias.

Os conceitos são nomes ou termos utilizados para designar os fatos tomados como objetos disciplinares. Para Coll et al. ( 2008, p. 308COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008.), “eles ajudam a descrever, interpretar e explicar o mundo, a manifestar a representação que temos e antecipam, orientam e fundamentam a conduta”. Além disso, os autores postulam que os conceitos não podem ser compreendidos de forma isolada, mas de forma articulada com outros conceitos relacionados.

Os princípios, conforme a definição de Coll et al. ( 2008, p. 308COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008.), “são conceitos muito gerais, de um grande nível de abstração, que conformam a base da organização conceitual de um campo abrangente de conhecimento, já que traspassam todos os conteúdos, apesar de não se tornarem sempre explícitos”. Como entendem os autores, os princípios também podem assumir a forma de enunciados que descrevem ou explicam as alterações produzidas em um objeto, fato ou situação. Nesse sentido, “os princípios são utilizados como sinônimos de regra ou lei geral, isto é, compõem teorias explicativas e causais da realidade físico-natural e sociocultural” ( COLL, et al., 2008 COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008., p. 309).

No processo de TD, em Língua Portuguesa, os princípios, como enunciados que expressam teorias explicativas, assumem, primeiramente, a forma de concepção de educação – a pedagogia das competências, no caso da BNCC –, que determina outras concepções como as de linguagem, sociedade, sujeitos, cultura, ensino, aprendizagem etc. São essas concepções que orientam a seleção e a TD de conhecimentos científicos e práticas socioculturais. Esse complexo processo de didatização é responsável pela elaboração dos conceitos abstratos gerais que compõem o quadro teórico e terminológico de um campo de conhecimentos. A elaboração desse quadro conceitual, seu encadeamento e a organização dos conteúdos de Língua Portuguesa em torno de princípios é uma tarefa ainda a ser executada pela Didática. Farei aqui apenas uma ilustração desses procedimentos de TD, usando o conceito de coesão referencial.

Na BNCC, a maior parte das habilidades, incluindo as de coesão textual, correspondem a conteúdos procedimentais, entendidos por Coll et al. ( 2008, p. 314COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008.) como “conjuntos de ações ordenadas que se orientam à realização de uma meta ou de um objetivo”. Nas atividades de leitura e produção textual, o funcionamento dos recursos coesivos é fundamental para a construção dos sentidos dos textos lidos e escritos. Mas isso não significa que a compreensão da funcionalidade dos procedimentos de coesão prescinda, no plano didático, do conhecimento de conceitos acerca dos demais níveis que estruturam a língua em suas modalidades oral e escrita. Por essa razão, boa parte das habilidades de coesão referencial na BNCC contempla conteúdos conceituais referentes a identificação, percepção, reconhecimento e estabelecimentos de relações envolvendo diversos saberes gramaticais (morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos) implicados nos mecanismos coesivos (EF35LP14, EF07LP13, EF08LP15, EF89LP29).

As formas de encaixamento de conteúdos conceituais nos procedimentais não estão claramente explicitadas na BNCC, consistindo em mais uma tarefa a ser realizada pela Didática do Português. Coll et al. (2008)COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008. destacam que, na maioria dos currículos, o campo propriamente conceitual não é facilmente reconhecido. Todavia, não ser facilmente identificável não significa que não existam ou que sejam dispensáveis. Apesar disso, essa aparente falta de clareza tem levado muitos críticos da pedagogia das competências a reputá-la, equivocadamente, como uma perspectiva de educação que desvaloriza o conhecimento em favor de práticas pré-formatadas para atender os interesses do mundo trabalhista. Esse equívoco decorre, sobretudo, do desconhecimento da tipologia de conteúdos implicada na concepção de competências que orienta a BNCC. De acordo com essa tipologia, não é possível falar em habilidades, procedimentos e atitudes sem falar em conhecimentos teóricos: “também foram incorporadas à tipologia dos saberes escolares de fatos conceitos e princípios as dimensões conceitual e factual dos conteúdos procedimentais e atitudinais” ( COLL et al., 2008 COLL, C. et al. Psicologia do ensino. Tradução Cristina Maria de Oliveira. Porto Alegre: Artmed, 2008., p. 307). Nesse sentido, a dimensão conceitual e, portanto, teórica e terminológica referente à coesão referencial deve ser compreendida como transversal ao plano dos conteúdos propriamente conceituais e aos demais, numa trama conceitual elaborada em torno de princípios como as concepções pedagógica e de linguagem.

Como vimos, os princípios, na forma de conceitos gerais abstratos, estabelecem as bases da trama conceitual que compõe os conteúdos de um campo ou objeto de conhecimento. Na BNCC, os objetos de conhecimento são esses princípios ou conceitos abstratos em torno dos quais são selecionadas e organizadas as habilidades de coesão, observando a articulação entre conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais.

No documento, os princípios abarcam conceitos que vão desde níveis de linguagem (léxico, morfologia, semântica) até aqueles próprios do processo de textualização (progressão temática, paragrafação, referenciação e coesão). No entanto, merece destaque a ausência de algum conceito próprio da sintaxe, uma vez que, no Quadro 2, a coesão referencial aparece relacionada apenas a esse nível.

Por outro lado, uma vez reconhecidos os limites do nível sintático no tratamento dos mecanismos de coesão e seu funcionamento nos textos, a inclusão de conceitos concernentes a processos textuais que se desenvolvem em limites superiores ao período entre os objetos de conhecimento na BNCC indica a necessidade de se considerar um nível especificamente textual na caracterização da estrutura da linguagem apresentada no Quadro 2.

Esses problemas evidenciam equívocos na coerência interna do documento, mas não impedem a visualização, nas habilidades selecionadas, da trama conceitual nem da articulação entre os conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais. Por exemplo, a habilidade (EF35LP14)Identificar em textos e usar na produção textual pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, como recurso coesivo anafórico, referente ao objeto de conhecimento “morfologia”, relaciona conceitos atinentes aos conteúdos conceituais e procedimentais. O verbo “identificar”, dirigido aos pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, faz pressupor que o conhecimento prévio de tais classes é uma condição necessária para os conteúdos procedimentais: sua utilização em textos como recursos coesivos. Nesse sentido, todos os conceitos utilizados para designar os mecanismos de coesão se referem a conteúdos procedimentais. A dimensão atitudinal, embora não explícita, segundo o entendimento da normatividade ampliada que caracteriza a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, impõe-se sempre que a coesão referencial seja uma norma da textualidade e do estilo dos gêneros textuais.

Com base nesse tipo de análise, só podemos concluir que o ensino e a aprendizagem da coesão referencial, na abordagem didática da pedagogia das competências, não pode prescindir da terminologia utilizada para designar os fatos de linguagem nela envolvidos. Nesse sentido, a perspectiva de ensino assumida na BNCC se distancia de propostas voltadas unicamente para a transferência das descrições desenvolvidas pela Linguística Textual ao ensino, como as que se encontram em Antunes (2014)ANTUNES, I. Gramática contextualizada: limpando “o pó das ideias simples”. São Paulo: Parábola Editorial, 2014., Koch e Elias (2006KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006., 2010)KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010., Cavalcante, Custódio Filho e Brito (2014)CAVALCANTE, M. M.; CUSTÓDIO FILHO, V.; BRITO, M. A. P. Coerência, referenciação e ensino. São Paulo: Cortez, 2014. e Marquesi, Pauliukonis e Elias (2017)MARQUESI, S. C.; PAULIUKONIS, A. L.; ELIAS, V. M. (org.). Linguística textual e ensino. São Paulo: Contexto, 2017..

A TD da coesão referencial realizada na BNCC não se resume à relação com a Linguística Textual, dado que várias habilidades tratam de conceitos, procedimentos e atitudes que estão fora do escopo dessa disciplina: (EF35LP09), (EF67LP25), (EF08LP15), (EF09LP10). Apesar disso, é inegável a relevância das contribuições dela à construção da trama conceitual do projeto didático oficial. Desse modo, chama a atenção o fato de a BNCC só mencionar nas habilidades os conceitos mais gerais da Linguística Textual, como anáfora, catáfora, coesão lexical e pronominal, correferência e progressão temática, ignorando conceitos que descrevem e explicam com maior nível de detalhes as formas específicas da coesão referencial, tais como dêixis, anáforas diretas, indiretas e encapsuladoras ( CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014CAVALCANTE, M. M.; CUSTÓDIO FILHO, V.; BRITO, M. A. P. Coerência, referenciação e ensino. São Paulo: Cortez, 2014.), anáforas pronominal, zero ou elipse, nominal e associativa, nominalização, adverbialização e pronominalização ( LOPES; CARAPINHA, 2019LOPES, A. C. M.; CARAPINHA, C. Texto, coesão e coerência. Coimbra: Edições Almedina, 2019. (Coleção Celga).).

É possível que os currículos elaborados pelas secretarias estaduais e municipais de educação ou os livros didáticos, como instâncias de TD responsáveis pelo detalhamento e operacionalização pedagógica dos currículos, sejam mais específicos na apresentação dos mecanismos de coesão referencial, usando, para isso, uma terminologia técnica que dificilmente afastar-se-á dos conceitos utilizados pela Linguística Textual. Curiosamente, os próprios pesquisadores evitam utilizar a terminologia da área em suas propostas de ensino. Essa situação abre um importante campo de investigação para a pesquisa empírica no campo da Didática.

4 Considerações finais

Neste trabalho, assumi o pressuposto básico de que o ensino é objeto primário da Didática e apenas secundário das demais ciências que também se interessam por questões ligadas aos processos de ensino-aprendizagem. Esse posicionamento, mais do que uma mera reivindicação burocrática ou institucional pela demarcação de um campo disciplinar, repousa no reconhecimento das diferentes formas de racionalidade que orientam as ciências da linguagem (teóricas e aplicadas) e a Didática (geral e específicas) como ciência aplicada que tem o ensino como objeto de estudo. As primeiras se caracterizam pelas tentativas de transferência dos saberes científicos, produzidos sob a lógica cartesiana da fragmentação e do objetivismo, ao ensino, ignorando o conjunto dos aspectos sociopolíticos, históricos, culturais, psicológicos e científicos envolvidos na prática educativa.

Como foi demonstrado, os saberes didáticos são elaborados segundo uma racionalidade pedagógica, ou seja, não correspondem a uma versão ensinável dos conhecimentos científicos das disciplinas de referência, embora se relacione com eles. De igual modo, aquilo que se tem chamado de ensino real, pautado nas práticas sociais, não pode ser confundido com um realismo pedagógico, através do qual as práticas de ensino reproduziriam a realidade fora da escola. A pedagogia das competências é a perspectiva em torno da qual se constrói a racionalidade pedagógica da BNCC. Para atender aos propósitos de desenvolvimento humano, tal racionalidade se compõe de fatores políticos, socioculturais e científicos, transformados em educativos através do processo de TD.

Ao assumir a pedagogia das competências como parâmetro de racionalidade, a BNCC, a fim de garantir a coerência do projeto educativo, adotou uma concepção de competência que acarretou na seleção de novas perspectivas de linguagem e conteúdos, escolhas que estabeleceram novas balizas para a TD: a concepção enunciativo-discursiva de linguagem e uma compreensão tripartite dos conteúdos – conceituais, procedimentais e atitudinais. A concepção de linguagem como prática situada impôs a seleção de práticas sociais de referência, que, submetidas ao filtro da TD, assumiram no documento a forma de gêneros textuais situados em campos de atuação determinados. A TD se completa com a seleção dos saberes identificados nessas práticas e agrupados sob a forma de habilidades, distribuídas, ao longo da educação básica, nos quatro eixos estruturantes da disciplina Língua Portuguesa: Análise Linguística/Semiótica, Oralidade, Leitura e Produção de Textos. Dessa forma, a análise de qualquer elemento da BNCC precisa observar sua própria racionalidade.

Esses foram os princípios adotados na análise da coesão referencial como conteúdo didático realizada neste trabalho. Nesse sentido, o tratamento do tema não pode ser limitado aos conhecimentos da linguística textual, mesmo reconhecendo a relevância de suas contribuições, sobretudo no âmbito da descrição e explicação dos mecanismos de coesão. A perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, no contexto da pedagogia das competências, assume uma perspectiva ampliada da normatividade que impede uma abordagem meramente descritiva da coesão referencial ou de qualquer objeto de ensino de linguagem.

Porém, a opção da BNCC por apresentar os conteúdos sob o forma genérica de habilidades em lugar de uma exposição detalhada de conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, ao mesmo tempo em que transferiu grandes tarefas para as escolas e secretarias (estaduais e municipais) de educação na elaboração de seus currículos, evidenciou o fosso que separa ciências da linguagem e didática do português, abrindo, com isso, amplos campos de investigações sobre a TD dos conhecimentos científicos e das práticas sociais.

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  • 1
    A questão da concretude do gênero textual no contexto pedagógico foi problematizada pelos pesquisadores da Escola de Didática das Língua da Universidade de Genebra, que postulam dois processos que explicam as diferenças entre o funcionamento dos gêneros nas práticas sociais efetivas e no processo de desenvolvimento de capacidades de linguagem: a ficcionalização e a modelização didática de gêneros ( SCHNEUWLY, 2004SCHNEUWLY, B. Palavra e ficcionalização: um caminho para o ensino da linguagem oral. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais escritos na escola. Tradução e organização Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. p. 129–148.; DE PIETRO; SCHNEUWLY, 2014DE PIETRO, J. F.; SCHNEUWLY, B. O modelo didático de gênero: um conceito da engenharia didática. In: NASCIMENTO, E. L. (org.). Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de ensino. 2. Ed. Campinas: Pontes Editores, 2014. p. 51–81.).
  • 2
    Foi justamente a falta de uma teoria da ação discursiva que levou Bronckart (2012)BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. 2. ed. Tradução Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 2012. a elaborar o interacionismo sociodiscursivo, a partir de uma articulação entre teoria a bakhtiniana dos gêneros do discurso, a sociologia compreensiva e a psicologia histórico-social de Vygotsky. Embora tenha avançado em questões importantes sobre o desenvolvimento das capacidades de linguagem, a teoria de Bronckart ainda se ressente de uma teoria da ação humana que possa explicar suas motivações e os conflitos sociais que delas decorrem, conforme apontam Bispo, Caldas e Bispo (2021)BISPO, M.; CALDAS, G.; BISPO, G. (In)compreensões do interacionismo sociodiscursivo na pesquisa aplicada sobre o ensino de linguagem no Brasil. Educação Em Foco, Juiz de Fora, v. 26, n. especial 03, e26077, 2021. Disponível em: < https://periodicos.ufjf.br/index.php/edufoco/article/view/36370\> Acesso em: 10 abr. 2023.
    https://periodicos.ufjf.br/index.php/edu...
    .
  • 3
    Essa expressão se refere ao fato de que, em função das características dos diferentes gêneros textuais, do estilo individual dos atores e de suas intenções, a linguagem empregada nos textos pode apresentar formas e funções específicas.
  • 4
    O conceito de regra variável foi criado por Labov (2008)LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. Tradução Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. para explicar situações de variação em que diferentes formas linguísticas (variantes) tenham o mesmo conteúdo semântico. Essa equivalência referencial repousa na tese de que todo uso linguístico natural segue regras internas da língua.
  • 5
    A título de ilustração, vários casos de uso da elipse, um mecanismo de coesão, são indicados pelo uso da vírgula.
  • 6
    Aqui é preciso destacar também um equívoco da linguística textual ao definir, de forma categórica, que o demonstrativo de primeira pessoa é catafórico. Como as gramáticas normativas demonstram, na função distributiva, a primeira pessoa também desempenha uma função anafórica, conforme o exemplo a seguir: A ternura não embarga a descrição nem esta diminui aquela.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2021
  • Aceito
    29 Ago 2022
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