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“Dentro da noite” e “O bebê de Tarlatana Rosa”, de João do Rio: elementos góticos e fantásticos em tradução

“Into the night” and “the baby in pink Tarlatan”, by João do Rio: gothic and fantastic elements in translation

RESUMO

Este artigo empreende uma análise de traduções dos contos de João do Rio intitulados “Dentro da noite” e “O bebê de tarlatana rosa” para a língua inglesa, com enfoque na transposição de elementos góticos e fantásticos nessas narrativas curtas ficcionais decadentistas. As configurações das redes temáticas do espaço, do medo e dos elementos góticos e fantásticos são analisadas nas traduções, com especial ênfase na transposição do encadeamento desses campos semânticos cotejados entre texto fonte e tradução. O aporte teórico dos estudos da tradução e da literatura comparada, nos textos de Lanzetti et al. (2009), de Berman (2007), de Baker (1992), de Venuti (2002) e de Brunel et al. (2019) são consultados. Os escritos teórico-críticos a respeito das estéticas e da obra de João do Rio, nos estudos de Levin (1996), Tardin (2021), Todorov (2017), Ceserani (2006) e França (2015), embasam as discussões acerca das estéticas e dos seus elementos observados nas traduções. Os textos traduzidos aparentam transpor as redes temáticas e lexicais ligadas a esses campos semânticos e a essas estéticas, resultando em textos-alvos em grande parte estrangeirizadores e portadores das marcas da literatura paulobarretiana para a língua inglesa.

PALAVRAS-CHAVE:
João do Rio; ficção gótica e fantástica; tradução literária.

ABSTRACT

This article carries out analysis regarding the translation of João do Rio’s short stories “Into the night” and “The baby in pink tarlatan” to the English language, with a focus on the transposition of gothic and fantastic elements in these short decadentist fictional narratives. The configurations of thematic webs concerning space, fear as well as gothic and fantastic elements are analyzed in the translations, with particular emphasis on the networks of semantic fields as compared between the source text and its translation. The theoretical bases of Translation Studies and Compared Literature are consulted in the works by Lanzetti et. al. (2009), Antoine Berman (2007), Baker (1992), Venuti (2002) and Brunel et. al. (2019). The theoretical-critical studies concerning João do Rio’s aesthetics and literatry work written by Levin (1996), Tardin (2021), Todorov (2017), Ceserani (2006) and França (2015) supply the framework for discussion around the aesthetics and their elements observed within the translations. The translated texts seem to transfer the thematic and lexical networks connected to those semantic fields and aesthetics, resulting in a foreignizing target text, to a great extent, and bearer of Paulo Barreto’s literary marks to the English language.

KEYWORDS:
João do Rio; gothic and fantastic fiction; literary translation.

João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto) escreveu muitas obras de relevância dentro do polissistema literário brasileiro. Dentre elas, destacam-se suas crônicas jornalísticas, nas quais produziu relatos sobre a cultura e a sociedade cariocas, como no volume A alma encantadora das ruas (1908RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Fundação Biblioteca Nacional, 1908. Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/alma_encantadora_das_ruas.pdf . Acesso em: 12 dez. 2021.
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). De igual relevância são suas peças teatrais, de que exemplos podem ser encontrados em A bela madame Vargas (1912RIO, João do. A bela madame Vargas. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia, 1913. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2917 . Acesso em 15 jul. 2021.
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) e Eva (1915RIO, João do. Eva, peca em três actos: a propósito de uma menina original. Rio de Janeiro: Villas Boas e Cia, 1915. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2534 . Acesso em: 27 jan. 2022.
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), obras dramatúrgicas de sucesso nacional na época do escritor. Além de ser escritor e tradutor de obras de Oscar Wilde, produziu narrativas ficcionais longas e curtas de abrangência nacional.

Apesar de gozar de ampla reputação literária, tradutória e jornalística à sua época, e de ser revisitado com frequência no século XX e mais recentemente no século XXI, sobretudo devido ao marco dos cem anos de sua morte, o autor obteve inexpressiva divulgação no exterior, com especial limitação de traduções de seus livros para a língua inglesa.

Percebendo a riqueza estética, literária e cultural constitutivas de sua escrita e a escassez de publicações dos seus textos em língua inglesa, motivamo-nos a empreender tal projeto tradutório, seguido de uma busca a respeito dessas traduções, suas temáticas e poéticas subjacentes. Fazendo parte de um trabalho de pós-doutoramento em curso, a lacuna tradutória e investigativa foi constatada e, portanto, tradução e pesquisa se concretizam.

Como objeto de estudo, neste trabalho se elencam contos de João do Rio presentes no livro Dentro da Noite (1910RIO, João do. Dentro da noite. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910. 268 p. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2488 . Acesso em: 27 jan. 2022.
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). Recebendo o título do seu primeiro conto, a coletânea apresenta histórias de temáticas variadas, que abordam desde relatos sobre personagens peculiares da sociedade do Rio de Janeiro, relações inusitadas entre figuras de vulto e habitantes das periferias, até manifestações de taras, da hiperestesia, do gótico e do fantástico. Por conseguinte, neste trabalho, os aspectos investigados são marcados nas manifestações do enredo, nas redes lexicais pertinentes ao espaço, ao medo e a seus elementos relacionados, bem como nas nossas traduções das narrativas curtas selecionadas.

Sua ligação com a influência do decadentismo europeu é inegável. Orna Messer Levin (1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p.) explana sobre a tendência literária no Brasil da virada do século XX, o esteticismo decadentista:

[...] notamos que a nascente do decadentismo entre nós esteve atrelada ao gosto pela morte e pelas sensações inusitadas como forma de confrontar o apego burguês pela vida. Era o desejo de escandalizar a sociedade - épater la bourgeoisie - negar as alterações nos costumes locais, enfim, rejeitar o modo de vida burguês derivando um prazer estético da morte e do tédio. Na Europa, durante a década de 1880, esta tendência assinalara o ponto alto de um procedimento estético inovador usualmente considerado como o triunfo dos nervos sobre o sangue. A vitória simboliza, na verdade, a substituição de uma literatura preocupada com as circunstâncias familiares, de hereditariedade e de determinação do meio, por uma literatura dirigida exclusivamente aos estímulos sensitivos e aos impulsos nervosos que definem a personalidade do sujeito a partir da sua singularidade. (LEVIN, 1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p., p. 28).

Apreende-se que João do Rio aproveita essas influências europeias para criar suas narrativas ficcionais do volume. Apesar de contar com a presença do dândi, especialmente na figura do Barão de Belfort, com os ambientes refinados, repletos das personalidades de destaque no contexto da cidade, o autor introduz tópicos mais nebulosos, que perpassam a sombra da alma humana, suas incoerências e seu bizarrismo. Júlio França (2021FRANÇA, Julio. Apresentação. Um gabinete de curiosidades perversas. In: TARDIN, Bruno Oliveira. O mo(n)struário de João do Rio: perversão e modernidade em “Dentro da noite”. Viçosa: UFV, 2021. p. 6-10.), em sua introdução à obra de Tardin, define a estética da obra de Paulo Barreto:

Não é por acaso, portanto, que tantos escritores do período, João do Rio entre eles, ao representarem a cidade como metonímia do profundo mal-estar moderno, vão se valer dos procedimentos artísticos de uma poética especializada em figurar o medo e o desencanto provocados pelo mundo moderno: o Gótico. As narrativas de Dentro da noite exploram a ubiquidade do medo experimentado pelo homem urbano, e, ao transformar a cidade em locus horribilis, inscrevem a obra na tradição gótica novecentista. (FRANÇA, 2021FRANÇA, Julio. Apresentação. Um gabinete de curiosidades perversas. In: TARDIN, Bruno Oliveira. O mo(n)struário de João do Rio: perversão e modernidade em “Dentro da noite”. Viçosa: UFV, 2021. p. 6-10., p. 7).

Portanto, a literatura paulobarretiana não apenas retrata a cidade carioca, mas expõe a riqueza das personagens dessa sociedade. Mergulha nas camadas ocultas da verdadeira alma dessas figuras, que muitas vezes se revela sombria, e questiona a visão estereotipada de uma Belle Époque alegre e satisfeita. Sobre o dândi e outras personagens, Levin (1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p.) esclarece:

[...] a preciosa estabilidade econômica assim criada constrói para o dândi uma falsa solidez, em contraste com a ruína da elite brasileira, de um lado, e com a aparência incógnita da massa de imigrantes, de outro. Os estrangeiros, “figuras de passado estranho”, que tentam se misturar aos políticos fazendeiros, buscando o trabalho e dinheiro, caracterizam o perfil dessa “sociedade em formação” para a qual a literatura quer dar uma identidade. (LEVIN, 1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p., p. 95).

O trecho ressalta a verdadeira constituição dessas personagens de João do Rio. O dândi não é um inocente espectador, mas se realiza na emoção alheia, no sofrimento das outras personagens, conforme caracterizado, por exemplo, nos contos “Emoções” e “História de gente alegre”. Outras personagens vivem suas experiências bizarras e singulares, dando vazão aos seus desejos e aproveitando as situações e os períodos propícios a essas vivências.

Com respeito ao gótico, Menon (2006MENON, Maurício Cesar. Figurações do gótico e seus desdobramentos na literatura brasileira de 1843 a 1932. 2006. Tese (Doutorado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual Londrina, Londrina, 2006. ) revela:

No século XIX, as histórias góticas passaram a ser mais depuradas, evoluindo para as projeções e conflitos do eu-interior unidos à emocionalidade, revelando o lado obscuro dos seres e também passando a explicitar aspectos de decadência social e moral. Os antigos castelos são substituídos por casarões misteriosos, geralmente em ruínas; as florestas obscuras e pantanosas dão lugar às estreitas ruas escuras, cheias de becos, das modernas cidades do século XIX; a entidade sobrenatural, embora bem-vinda, já não se faz necessária como no princípio, pois passa a ser substituída por imagens assustadoras cuja origem está na loucura, alucinações ou pesadelos. [...] Essa espécie de narrativa confunde elementos do fantástico/maravilhoso e do real e afirma que é real o que se está contando, arrancando o leitor desse mundo cômodo e lhe apresentando um mundo estranho, onde os temas estão ligados, normalmente, à invisibilidade, à transformação, ao dualismo e à eterna luta entre o bem e o mal, introduzindo agentes sobrenaturais e irracionais de todo o tipo. (MENON, 2006MENON, Maurício Cesar. Figurações do gótico e seus desdobramentos na literatura brasileira de 1843 a 1932. 2006. Tese (Doutorado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual Londrina, Londrina, 2006. , p. 24-5).

De fato, podemos dizer que os contos de João do Rio ora estudados incluem muitas dessas temáticas. Dentre elas estão a transformação de personagens, por meio de loucura ou mudança de comportamento, a descoberta de criaturas assustadoras, reais ou imaginárias, e a expressão do medo aliado à melancolia, em um contexto que transita em torno da capital carioca do início do século XX.

“Dentro da noite” e “O bebê de tarlatana rosa”: elementos góticos e fantásticos em foco

Em “Dentro da noite”, Rodolfo é o noivo exemplar, enamorado de Clotilde, a meiga moça da sociedade carioca. Repentinamente, o rapaz sente o desejo de espetar os braços de sua prometida com alfinetes. Clotilde, embora ofereça inicial resistência, acaba por ceder à vontade de seu futuro marido por certo tempo. Quando a abominação se revela aos pais e o compromisso com a moça se desfaz, Rodolfo se retira para os subúrbios do Rio de Janeiro com o objetivo de se esconder e de concretizar sua compulsão com mulheres desconhecidas. Ao ser surpreendido por um amigo no trem, revela sua história, que é narrada por um observador que aparenta cochilar no vagão. Tardin descreve o espaço em “Dentro da noite”:

A princípio, o próprio cenário do conto causa certo incômodo por sua natureza, haja vista que, desde 1910, as linhas de trem no Rio de Janeiro haviam sido privatizadas e, à época de João do Rio, ainda estavam em fase de experimentação - além de serem consideradas altamente inseguras, não só por falta de fiscalização, mas também terem se tornado abrigo de criminosos e arruaceiros em geral. Em oportuno acréscimo, vale ressaltar que o protagonista desse conto, Rodolfo - “o mais elegante artista desta terra” - é confrontado por seu amigo e interlocutor, Justino (e pelo narrador catártico da história, uma personagem anônima cuja presença se passa incólume dentro do vagão), “às onze de uma noite de temporal” em um vagão de trem noturno, vindo do centro urbano e partindo para a periferia, um local em tudo oportuno à realização de vícios os mais diversos e aterradores, como se verá em breve. (TARDIN, 2021TARDIN, Bruno Oliveira. O mo(n)struário de João do Rio: perversão e modernidade em “Dentro da noite”. Viçosa: UFV, 2021. 214 p., p. 66).

Além do espaço amedrontador e inseguro, intuímos a mudança da personagem de Rodolfo que inicialmente é cidadão burguês agindo dentro das convenções da sociedade, mas passa a expressar suas vontades ocultas. Nas palavras de Tardin:

Agora oficialmente transgredido o limiar da ordem e da lei de normalidade impingida pela cultura burguesa, Rodolfo passa pelo processo de transformação do “cidadão modelo” ao “tipo monstruoso” [...] A queda de Rodolfo de um tipo respeitável à criatura monstruosa da noite suburbana completa-se quando passa a obter sua satisfação aleatoriamente, “nos tramways, nos music halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas”, por ser um modus operandi descomplicado [...]. (TARDIN, 2021TARDIN, Bruno Oliveira. O mo(n)struário de João do Rio: perversão e modernidade em “Dentro da noite”. Viçosa: UFV, 2021. 214 p., p. 69-71).

Os contos em enfoque podem ser compreendidos pelas categorias dos gêneros do fantástico e do estranho, segundo as leituras de Todorov e Ceserani. Sobre o estranho puro, Todorov (2017TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017. 192 p.) define que “Nas obras que pertencem a este gênero, relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos [...]”. (TODOROV, 2017TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017. 192 p., p. 52)

Encontra-se, no conto elencado, exemplo dessa faceta do estranho proposto por Todorov, nas ações de Rodolfo e na mudança de seu personagem. Ao classificar os elementos e temáticas do fantástico, o teórico ainda nos revela a intertextualidade com texto gótico:

O “manuscrit” oferece-nos uma outra variedade de desejo, próximo do sadismo, com a princesa de Mont-Salerno que conta como se comprazia “em por a submissão de minhas mulheres a todas as provas (...). Eu as castigava seja beliscando-as, seja enfiando-lhes alfinetes nos braços e nas coxas” (p. 208). (TODOROV, 2017TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017. 192 p., p. 141).

À semelhança de Rodolfo, a personagem em questão se realiza no sofrimento de suas companheiras e no fetiche de utilizar o alfinete para esse processo.

Passando à segunda obra curta ficcional, cuja tradução é aqui analisada, citamos a pesquisadora Orna Levin Messer discorrendo sobre os contos de carnaval de João do Rio e suas peculiaridades:

Em inúmeros casos a festa de carnaval serve de moldura da permissividade, da justificativa para abertura de brechas que trazem a manifestação dos pequenos gestos de crueldade. O excesso de folia, no qual o povo mergulha, é um estímulo à alucinação. (LEVIN, 1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p., p. 187).

No conto “O bebê de tarlatana rosa”, Heitor de Alencar é o personagem central que descreve, a um grupo de amigos, uma história assombrosa ocorrida no carnaval do Rio de Janeiro. No gabinete do Barão de Belfort, Maria de Flor e Anatólio de Azambuja ouvem que Heitor participava de uma excursão pelos bairros cariocas durante o feriado, quando conheceu uma figura gordinha e bem torneada, vestida de bebê, em traje feito de tarlatana rosa. Interessara-se pela moça e, após frequentar vários bailes na terça-feira de carnaval, apenas na madrugada da quarta-feira de cinzas a reencontrou em uma região pouco iluminada da praça, quando a atividade carnavalesca já diminuía na cidade.

Sentindo desejo e sendo correspondido, beijou a figura, que portava, além de sua fantasia, um nariz postiço, aparentemente feito de resina. No afã de consumar o ato amoroso e inconformado com a permanência da peça falsa, Heitor subitamente arranca-lhe o nariz e vê, em seu lugar, dois orifícios sangrentos, cobertos por algodão. O bebê então assemelhava-se a uma caveira falante, suplicando por piedade e afeto. Heitor foge e ao chegar à sua casa se surpreende por ainda ter o nariz ensanguentado em sua mão: “Quando parei à porta de casa para tirar a chave, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tarlatana rosa... (RIO, 1910RIO, João do. Dentro da noite. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910. 268 p. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2488 . Acesso em: 27 jan. 2022.
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, p. 163).

Citando Ceserani (2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p.), percebem-se marcas góticas e fantásticas no conto de João do Rio: “A noite, a escuridão, o mundo obscuro e as almas de outro mundo. A ambientação preferida pelo fantástico é aquela que remete ao mundo noturno”. (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p., p. 77). No conto, esse pano de fundo está presente:

- É uma aventura alegre? Indagou Maria.

- Conforme os temperamentos.

- Suja?

- Pavorosa ao menos

- De dia?

- Não. Pela madrugada. (RIO, 1910RIO, João do. Dentro da noite. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910. 268 p. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2488 . Acesso em: 27 jan. 2022.
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/24...
, p. 155-156).

As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfurnadas dos fogos de bengala, caíam em sombras - sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de “confetti”. Oh! A impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços... (RIO, 1910RIO, João do. Dentro da noite. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910. 268 p. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2488 . Acesso em: 27 jan. 2022.
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/24...
, p. 160).

O teórico ressalta que o contraste chiaroscuro, significando o antagonismo entre a luz do sol e a obscuridade da noite, é um recurso característico dessas poéticas, as quais sabemos serem igualmente utilizadas por João do Rio. O estudioso esclarece ainda a respeito do espaço no conto:

Nota-se aqui os traços de uma literatura de moldes decadentistas em João do Rio, no cuidado que tem em aliciar à descrição do espaço o ritmo e a sensação necessários à construção e efetivação do enredo de seu conto. E, contudo, a fábula grotesca que está prestes a se concretizar não se passa entre corredores soturnos de um velho castelo ou em meio às lápides assombrosas de algum cemitério abandonado, mas em meio às ruas abandonadas de uma cidade que, justamente por ter experimentado nos últimos dias um mergulho vertiginoso na amoralidade permissiva das mascaradas, agora faz sentir com muito mais peso o silêncio e a solidão sepulcrais que imperam naquele espaço. É como o próprio Heitor reconhece: “Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes”. (TARDIN, 2021TARDIN, Bruno Oliveira. O mo(n)struário de João do Rio: perversão e modernidade em “Dentro da noite”. Viçosa: UFV, 2021. 214 p., p. 80).

Com respeito ao aparecimento da “caveira com carne” ao final do conto, podemos citar a explicação de Ceserani (2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p.) sobre uma criatura assustadora, geralmente participante das histórias fantásticas:

[...] o equilíbrio da razão, o lobisomem que vaga no mundo arcaico da bestialidade e das transformações dos corpos e das naturezas, o vampiro que se apropria de toda a energia vital; enfim, nos casos extremos e mais inquietantes, há sempre a presença disforme, irreconhecível, impalpável que tenha consistência vaga do pesadelo e a substancial e corpórea animalidade mais inquietante, nefanda e abjeta. (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p., p. 85).

No conto “O bebê de tarlatana rosa”, a fantasmagórica carnavalesca é desmascarada por um Heitor impaciente, que deseja ter a visão completa de sua face:

Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente - uma caveira com carne... [...] Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. (RIO, 1910RIO, João do. Dentro da noite. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910. 268 p. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/2488 . Acesso em: 27 jan. 2022.
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/24...
, p. 162-3).

Acreditamos, dessa forma, que em posse de um conhecimento sobre esses elementos estéticos, narrativos e temáticos, seja possível empreender uma análise de alguns dos trechos acima salientados, em cotejo com sua tradução para a língua inglesa. As motivações e os procedimentos teóricos desse projeto são detalhados a seguir.

A transposição de elementos góticos e fantásticos, do espaço e do medo em tradução

Nesta seção, analisam-se trechos dos contos traduzidos para a língua inglesa, com enfoque na observação das temáticas do medo, do espaço e de elementos góticos e fantásticos nas narrativas em tradução. Verifica-se que os temas são pertinentes para uma investigação, visto que participam efetivamente na constituição das poéticas discutidas anteriormente, o gótico e o fantástico.

Como diz Berman (2007BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras/PGET, 2007. 144 p.) sobre as traduções, “abrir o estrangeiro a seu próprio espaço de língua. Abrir é mais que comunicar: é revelar, manifestar”. (BERMAN, 2007BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras/PGET, 2007. 144 p., p. 97). Acreditamos que uma tradução literária seja exatamente assim, não um ato de comunicação, mas um espaço de transmissão cultural em que se deve permitir a expressão da voz do outro, do estrangeiro. E que, segundo o teórico, a tradução idealmente transportará o novo para a língua de chegada, assegurando a sua potencial novidade.

Isso nos leva a refletir a respeito da tradução da obra paulobarretiana para a língua inglesa, a qual se encontra carregada de indícios culturais de seu tempo, de marcas da sua escrita e de elementos oriundos dos movimentos literários de sua eleição, como no caso dos contos aqui estudados, o decadentismo e o gótico. Coaduna-se com Antoine Berman o teórico Lawrence Venuti quando defende a transferência do resíduo estrangeirizante na tradução:

Minha preferência pela tradução minorizante também se dá a partir de uma postura ética que reconhece as relações assimétricas em qualquer projeto de tradução. A tradução nunca pode ser simplesmente a comunicação entre similares, porque ela é fundamentalmente etnocêntrica. A maioria dos projetos literários tem início na cultura doméstica, onde um texto estrangeiro é selecionado para satisfazer gostos diferentes daqueles que motivaram sua composição e recepção em sua cultura nativa. E a função mesma da tradução é a assimilação, a inscrição de um texto estrangeiro com inteligibilidades e interesses domésticos. Concordo com Berman (1992, p 4-5; cf. sua revisão em 1995, p. 93-4) ao suspeitar de qualquer tradução literária que mistifica essa domesticação inevitável como um ato comunicativo sem problemas. A boa tradução é desmistificadora: manifesta em sua própria língua a estrangeiridade do texto estrangeiro. (VENUTI, 2002VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villel, Marileide Dias Esqueda, Valéria Biondo. Revisão técnica Stella Tagnin. Bauru, SP: EDUSC, 2002., p. 27).

Justamente por aderirmos a uma posição em favor da presença do elemento estrangeiro na tradução de literatura, propomos a realização de uma tradução da obra brasileira para a língua inglesa. Sendo a primeira parte de uma literatura considerada periférica nos contextos hegemônicos e etnocêntricos, e a segunda, um exemplar do veículo de transmissão cultural prevalente nos últimos quase cem anos, vislumbra-se o potencial de novidade e relevância desse empreendimento.

A partir de um projeto tradutório que comporte a veiculação dessa literatura minorizante pelo intermédio de um vernáculo que transita pelas culturas mais grandemente disseminadas, almeja-se possibilitar visibilidade, por meio da tradução, a um texto de grande valor histórico e literário para os brasileiros, aquele de João do Rio. A postura, por nós apoiada, luta contra a atitude em que tais textos são fonte de preconceito e, consequentemente, descartados de um projeto hegemônico maior. Como ressalta Venuti (2002VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villel, Marileide Dias Esqueda, Valéria Biondo. Revisão técnica Stella Tagnin. Bauru, SP: EDUSC, 2002.):

A tradução exerce um poder enorme na construção de representações de culturas estrangeiras. Os textos estrangeiros são, em geral, reescritos para se amoldarem a estilos e temas que prevalecem naquele período nas literaturas domésticas, em detrimento de discursos tradutórios mais caracterizados pela historicidade, que recuperam estilos e temas do passado, inserindo-os nas tradições domésticas. Os padrões tradutórios que venham a ser razoavelmente estabelecidos fixam estereótipos para culturas estrangeiras, excluindo valores, debates e conflitos que não estejam a serviço de agendas domésticas. (VENUTI, 2002VENUTI, Lawrence. Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villel, Marileide Dias Esqueda, Valéria Biondo. Revisão técnica Stella Tagnin. Bauru, SP: EDUSC, 2002., p. 130).

Consequentemente, constata-se a importância da tradução e da divulgação da literatura do período pré-modernista brasileiro, em cujas criações literárias um caldeirão de culturas advindas de várias nações (com a chegada de imigrantes ao Brasil da virada do século XX) e o intercâmbio de literatos e representantes da cultura brasileira deixaram suas marcas.

Particular relevo ganha João do Rio, autor que amalgamou tendências literárias, linguísticas e culturais em seus escritos. Aproveitando-se das poéticas do final do século XIX, do início do XX e até anteriores a isso, como o esteticismo decadentista, do gótico em voga, das influências das culturas francesa e inglesa, bem como de suas manifestações linguísticas, o escritor compôs sua peculiar obra, que neste trabalho recebe especial atenção na forma da tradução de suas narrativas curtas ficcionais de cunho gótico e fantástico.

Importa, então, especificar a linha de análise adotada nesta seção do artigo, a qual se dedica a explorar as temáticas presentes nos contos escolhidos. Examinam-se, assim sendo, as temáticas subjacentes, bem como suas formas de transposição ou transferência desses elementos, por meio da tradução. Brunel et al. (2019BRUNEL, Pierre; PICHOIS, Claude; ROUSSEAU, Andre. O que é literatura comparada? São Paulo: Perspectiva, 2019.) explanam a respeito da pesquisa de temáticas:

De maneira geral, “a forma é o jorrar das profundezas”, como escrevia Jean Rousset. Estaríamos tentados a dizer, jogando com as palavras: jorrar do fundo. Não existe temática a não ser expressa por uma poética, e toda temática é portadora de uma poética virtual. A imaginação, a “rainha das faculdades”, segundo Baudelaire, não traz um material temático neutro, mas um material já ordenado conforme os esquemas estruturais que lhe são próprios. (BRUNEL et al., 2019BRUNEL, Pierre; PICHOIS, Claude; ROUSSEAU, Andre. O que é literatura comparada? São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 110).

Desse modo, compreende-se que a investigação dos temas latentes em um texto é fundamental para a descoberta de suas ideias, suas ideologias, suas poéticas e motivações. No caso da tradução, esses achados servirão de guia para a criação, no novo texto em língua estrangeira, de uma linha mestra em torno da qual gravitarão essas temáticas, a estrutura narrativa e demais elementos literários. Os teóricos da literatura comparatista explanam, ainda, a respeito da ligação desses temas em encadeamento num mesmo texto, bem como de sua conexão com textos externos, numa relação de intertextualidade:

Numa obra tomada isoladamente, um tema não está jamais isolado; interfere em outros, e seria mais justo falar de complexos temáticos. Donde a noção de rede, proposta por Charles Mauron, ou as cadeias de motivos postas em relevo por Jean-Pierre Giusto na obra de Rimbaud [...] Uma explicação comparatista procurará ser até mais completa: à rede temática da obra acrescentará uma rede intertextual que ultrapassa a obra, o autor e o domínio linguístico estudados. (BRUNEL et. al., 2019BRUNEL, Pierre; PICHOIS, Claude; ROUSSEAU, Andre. O que é literatura comparada? São Paulo: Perspectiva, 2019., p.110).

De tal modo, a rede temática, aliada à rede intertextual, determina o local de um dado texto dentro de certa cultura ou literatura. Esse fato é de valia para o tradutor, visto que necessita assegurar sua compreensão ampla dos níveis temáticos, ou abstratos subjacentes, e figurativos, ou aqueles concretos, que determinam quais vestimentas lexicais e linguísticas cobrirão o texto a se traduzir.

Brunel et. al. (2019BRUNEL, Pierre; PICHOIS, Claude; ROUSSEAU, Andre. O que é literatura comparada? São Paulo: Perspectiva, 2019.) citam Gilles Deleuze sobre o quão crucial é essa determinação: “[...] o verdadeiro tema de uma obra não é o assunto tratado, assunto consciente e desejado que se confunde com o que as palavras designam, mas os temas inconscientes, os arquétipos involuntários em que as palavras, e também as cores e os sons tomam seu sentido e sua vida.” (BRUNEL et al., 2019BRUNEL, Pierre; PICHOIS, Claude; ROUSSEAU, Andre. O que é literatura comparada? São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 121).

Portanto, vê-se que somente a descoberta de uma determinada rede temática, subjacente ao texto literário, pode concretizar sua forma. A partir de então, por meio da escolha vocabular, ela se desdobraria em redes lexicais ou campos semânticos relacionados e passíveis de análise. De acordo com Baker (1992BAKER, Mona. In other words. Londres: Routledge, 1992. 320 p.), a coesão textual é naturalmente dependente da coesão lexical:

É de particular relevância a noção de coesão lexical como sendo dependente da presença de redes de itens lexicais, ao invés da definição da classe ou tipo desses itens. Essa (rede) fornece a base para o que Hassan e Halliday denominam “significado instancial, ou significado textual” (1976, p. 289): de forma inconsciente, cada ocorrência de um item lexical carrega consigo seu próprio significado textual, um contexto combinatório específico que se construiu no curso da criação do texto e que determinará o contexto dentro do qual o item estará inserido nesta ocasião particular. O “ambiente” determina o “significado instancial”, ou o significado textual do item, significado que é único para cada ocasião específica.1 1 The notion of lexical cohesion as being dependent on the presence of networks of lexical items rather than the presence of any specific class of type of item is important. It provides the basis for what Hassan and Halliday call instantial meaning, or text meaning (1976:289): Without our being aware of it, each occurrence of a lexical item carries with it its own textual meaning, a particular collocational environment that has been built up in the course of the creation of the text and that will provide the context within which the item will be incarnated on this particular occasion. The environment determines the “instantial meaning” or text meaning, of the item, a meaning which is unique to each specific instance. (Todas as traduções constantes neste artigo foram realizadas pela autora do trabalho). (BAKER, 1992BAKER, Mona. In other words. Londres: Routledge, 1992. 320 p., p. 227, tradução nossa).

Nesse sentido, Baker, teórica da tradução, explana que o texto proverá a conjuntura para a concepção e a interpretação de relações lexicais ou vocabulares e, por sua vez, estas as converterão em auxílio para a elaboração da tessitura desse mesmo texto. Citando Snell-Hornby, Baker (1992) esclarece quão importante é essa abordagem das organizações lexicais subjacentes ao texto: “[…] ao analisar um texto, o tradutor não se ocupará com fenômenos ou itens isolados a fim de estudá-los em profundidade, mas sim com a determinação de uma teia de relações, sendo a importância de cada item determinada por sua relevância e função dentro desse mesmo texto.”2 2 in analyzing a text a translator is nor concerned with isolating phenomena or items to study them in depth, but with tracing a web of relationships, the importance of individual items being determined by their relevance and function in the text (1988:69). (BAKER, 1992BAKER, Mona. In other words. Londres: Routledge, 1992. 320 p., p. 229, tradução nossa).

Compreende-se, por exemplo, que no caso do conto que dá título à coletânea, uma das temáticas ou elementos góticos e fantásticos presentes é aquela da decadência de Rodolfo e dos seus sentimentos de desolação, de luta e contradição. Sobre o tema recorrente da loucura no texto fantástico, Ceserani (2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p.) especifica:

A loucura se transforma em uma experiência a seu modo cognoscitiva e tem o valor pessimista e trágico da descida às profundezas do ser. É a consciência do limite, além do qual reside a laceração, a ruptura da esquizofrenia. A temática da duplicidade adquire desse modo um significado rico e produz grupos de imagens fortemente sugestivas: o tema do louco se liga àquele do autômato, da persona dividida, e também àquele do visionário, do conhecedor de monstros e fantasmas. (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p., p. 83).

Recuperamos de França (2015FRANÇA, Julio. As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas. In: CHIARA, Ana; ROCHA, Fátima Cristina Dias (org.). Literatura Brasileira em Foco VI: em torno dos realismos. Rio de Janeiro: Casa Doze, 2015. p. 133-146.) elementos comuns na ficção gótica brasileira do final do século XIX e início do século XX que estabelecem relação com as temáticas e problemáticas tradutórias abordadas neste trabalho:

Dos muitos elementos comuns entre as poéticas realistas brasileiras e a ficção gótica, há pelo menos cinco pontos que entendemos serem fundamentais: (i) a construção de espaços narrativos, exóticos ou familiares, que são descritos como loci horribiles; (ii) a relação fantasmagórica com o passado, que ressurge para assombrar o presente; (iii) a caracterização de personagens como monstruosidades, por conta da própria natureza humana ou de psicopatologias; (iv) o desenvolvimento de enredos que exploram, tanto no plano da diegese quanto no da recepção, efeitos melodramáticos e emocionais; (v) a utilização contínua de campos semânticos relacionados à morte, à morbidez e à degeneração física e mental. (FRANÇA, 2015FRANÇA, Julio. As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas. In: CHIARA, Ana; ROCHA, Fátima Cristina Dias (org.). Literatura Brasileira em Foco VI: em torno dos realismos. Rio de Janeiro: Casa Doze, 2015. p. 133-146., p. 6).

O terceiro elemento mencionado pelo pesquisador, relativo à monstruosidade devido à natureza humana ou psicopatologia, pode em muito se relacionar à conduta de Rodolfo. Igualmente, o quarto e o último aspecto, ligados aos efeitos emocionais e à degeneração mental, parecem se aplicar à luta interna do personagem em seu “turbilhão de emoções negativas”. Encontra-se, na tabela 1, um excerto representativo desses campos semânticos do conto, marcados no texto fonte e em sua tradução.

Tabela 1 -
Tradução de trechos do conto “Dentro da noite”

Constata-se que o conto de João do Rio oferece narrativa densa e rica, em que a ambientação de suspense e de pavor constrói o tecido do texto gótico. Destacam-se algumas das expressões: “O caos da minha alma”, “o maelstrom (turbilhão) de angústias”, “a luta da razão e do mal” e “o alfinete pavoroso”, que são traduzidos nas formas “the chaos of my soul”, “the maelstrom (swirl) of anguish”, “the struggle between reason and evil” e “the ghastly pin”. A força dos substantivos em encadeamento semântico em torno da temática da desorientação e do sofrimento do personagem em “chaos”, “struggle” e “Maelstrom”, na língua inglesa, aparenta transportar a intensidade crescente do debate interno de Rodolfo na tentativa de evitar a realização da loucura de sua tara nos braços de Clotilde.

Da mesma forma, a tradução de “o alfinete pavoroso”, “the ghastly pin”, procura transpor a ideia de medo absoluto do protagonista, que usa o instrumento para sua satisfação apesar de sabê-lo ser algo assombroso. As definições do verbete “ghastly” constantes do Merriam Webster’s DictionaryMERRIAM-Webster’s Dictionary. Disponível em: https://www.merriam-webster.com/ . Acesso em: 26 fev. 2022.
https://www.merriam-webster.com/...
apresentam cinco acepções:

  1. terrifying, horrible to the senses, frightening;

  2. intensely unpleasant, disagreeable or objectionable;

  3. resembling a ghost;

  4. obsolete: filled with fear;

  5. very great: a ghastly mistake.

As acepções (a) e (b) parecem atender ao sentido do adjetivo “pavoroso” presente no texto fonte. Visto ser o alfinete peça chave do conto, pois sintetiza a loucura de Rodolfo, este termo é transferido na tradução, para a língua inglesa, de maneira significativamente conectada à carga imagética desse objeto.

Desse modo, a organização lexical acima descrita, e transposta na tradução inglesa desse excerto, indica o crescente pavor e o sofrimento de Rodolfo até o momento em que este desfere o afiado golpe no braço de sua amada. As manifestações dessa rede temática são realizadas por meio da adjetivação cuidadosa e dos sintagmas nominais relacionados ao medo da personagem de suas próprias ações e da louca criatura que gradualmente se torna.

Todorov (2017TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017. 192 p.) menciona a relação do medo com a construção fantástica: “[...] o estranho realiza, como se vê, uma só das condições do fantástico: a descrição de certas reações, em particular do medo; está ligado unicamente aos sentimentos das personagens e não a um acontecimento material que desafie a razão [...]”. (TODOROV, 2017TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017. 192 p., p. 53).

Além das questões apresentadas, imprescindível se faz observar que há, na tradução, uma tentativa de levar um pouco do estilo de João do Rio, marcado nos longos trechos sem o uso de muita pontuação, com exceção da ocasional vírgula, no uso de repetições, como em “ir agir, ir agir” / “set to action, set to action”, e na preferência por uma linguagem hiperbólica, repleta de adjetivação peculiar, formando seu idioleto, visto em “o caos da minha alma / the chaos of my soul”, “saltar-me à garganta / spring to my throat”. O desejo aqui foi, ao menos parcialmente, deixar transparecer no texto traduzido um pouco da estrangeiridade da literatura paulobarretiana que, além de tratar de temáticas e estéticas universais, o realiza por meio de seus modos de escrita peculiar.

No próximo trecho, selecionado e apresentado na tabela 2, as temáticas se relacionam com aspectos mais funestos e deprimentes da narrativa, além de trazerem o medo, transfigurado na personagem de Rodolfo, próxima da loucura.

Tabela 2 -
Tradução de trechos do conto “Dentro da Noite”

No trecho destacado acima, emergem expressões relacionadas às temáticas típicas do gótico, na conversão de Rodolfo, o rapaz correto e obediente às leis anteriormente, em um tipo renegado, o que gera sentimentos negativos naqueles que o cercam. Os termos escolhidos na escrita de João do Rio e na tradução elencada carregam essas noções de desolação e decadência da personagem e das mentes de seus convivas.

De maneira semelhante ao trecho anterior, temos nesta seleção uma tradução aproximada dessas redes temáticas e de seus termos constituintes. Sabemos que a tradução idêntica é intangível e tampouco desejável, e as noções de equivalência e correspondência também oferecem auxílio limitado. Os teóricos Lanzetti et al. (2009LANZETTI, Rafael; BESSA, Danielle; GUEDES, Fabiana; FREITAS, Rosana; MOURA, Vinicius Cruz. Procedimentos técnicos de tradução: uma proposta de reformulação. Revista do ISAT, São Gonçalo, n. 7, p. 1-20, 2009.) instruem a respeito dessa aproximação:

O procedimento de equivalência é dividido em duas subcategorias - equivalência de expressões idiomáticas, ditados e provérbios; e equivalência funcional. A equivalência de expressões idiomáticas, ditados e provérbios ocorre quando há, na língua de chegada, uma expressão idiomática, ditado ou proverbio com o mesmo valor semântico e que use os mesmos símbolos ou alusões da expressão idiomática da língua-fonte. [...] A equivalência funcional ocorre quando a expressão idiomática, provérbio ou ditado da língua-fonte não possui correspondente na língua-alvo com os mesmos símbolos e referentes, mas utiliza outros para chegar ao mesmo valor semântico. Possuem, portanto, a mesma função semântica. (LANZETTI et al., 2009LANZETTI, Rafael; BESSA, Danielle; GUEDES, Fabiana; FREITAS, Rosana; MOURA, Vinicius Cruz. Procedimentos técnicos de tradução: uma proposta de reformulação. Revista do ISAT, São Gonçalo, n. 7, p. 1-20, 2009., p. 9-10).

Como consequência, o único objetivo concretizável seria uma tentativa de aproximação recontextualizada na tradução dos campos semânticos e de seus itens lexicais relacionados. Vê-se em “the unexpected transformation” e “Some mystery”, a experiência de se transmitir o caráter dúbio da personagem de Rodolfo e a surpresa dessa modificação na família de Clotilde e em seus amigos, gerando medo e apreensão.

França e Silva (2012FRANÇA, Julio; SILVA, Pedro Puro Sasse. O mal e a cidade: o “medo urbano” em Dentro da noite, de João do Rio. Revista e-escrita, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 32-45, 2012.) explica a respeito do sentimento gerado por uma figura do medo, como Rodolfo:

Em “Dentro da noite”, conto que abre a coletânea, há a construção de uma das mais recorrentes figuras do medo urbano, o psicopata. Indistinguível de um cidadão de bem, este indivíduo percorre, camuflado, as ruas da cidade em busca de suas vítimas. A ficção de medo está cheia de histórias de maníacos, estupradores e assassinos seriais. Em João do Rio, porém, temos a oportunidade de ver a gênese dessa personagem arquetípica do horror contemporâneo. (FRANÇA; SILVA, 2012FRANÇA, Julio; SILVA, Pedro Puro Sasse. O mal e a cidade: o “medo urbano” em Dentro da noite, de João do Rio. Revista e-escrita, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 32-45, 2012., p. 40).

Da mesma maneira, os sintagmas “deep mourning”, “creative spirits” e “dreadful tragedies” imprimem no texto traduzido um encadeamento semântico com a sensação de que algo não vai bem e de que a conduta de Rodolfo concorrerá para um desfecho trágico. A opção pelos termos “mourning”, “spirits” e “tragedies” passou pela tentativa de se manter, na tradução, a rede lexical conectada à morte. No caso de “mourning”, temos dicionarizado, no Merriam Webster’s:

  1. the act of sorrowing;

  2. a. an outward sign (such as black clothes or an armband) of grief for a person’s death.

  3. b. a period of time during which signs of grief are shown.

No exemplo de nossa tradução, o sentido (1) e o sentido (2b) parecem corresponder à acepção de luto expressa no trecho. Em seguida, nossa opção por “spirits” para “espíritos” se deveu ao caráter gótico do termo. Encontram-se as seguintes significações na língua inglesa:

  1. an animating or vital principle held to give life to physical organisms;

  2. a supernatural being or essence: such as

  1. Holy Spirit;

  2. Soul;

  3. An often malevolent being that is bodiless but can become visible

A combinação ou sintagma nominal munido de adjetivação ou qualificação (no inglês “collocation”) “creative spirits”, fornecida para “espíritos imaginosos”, pareceu ligar-se à temática geral do texto e à acepção (c) dicionarizada. Estando os membros dessa sociedade frequentada por Rodolfo e Clotilde, bem como sua família, imaginosos do que ocorrera com o casal, passam a criar os “dramas horrendos” como desfecho da situação. Há, na tradução, a combinação “dreadful tragedies”, a fim de significar:

  1. Dreadful

  1. inspiring dread; causing great and oppressive fear;

  2. extremely bad, distasteful, unpleasant or shocking.

  1. Tragedy

  1. a disastrous event: calamity;

  2. misfortune

Apesar de o trecho aparentar leveza no diálogo de Rodolfo e seu amigo, a desolação permeia o texto e anuncia o sinistro relato de sua perdição. Essa rede lexical refere-se a sentimentos e ocorrências nada auspiciosos, indicando, muito possivelmente, a ruína da personagem e sendo característicos da manifestação do decadentismo e do gótico.

Em seguida, tratamos do espaço gótico, presente no conto, e no próximo trecho selecionado. Sobre esse elemento constitutivo do gênero, Julio França (2013FRANÇA, Julio. A alma encantadora das ruas e Dentro da noite: João do Rio e o medo urbano na literatura brasileira. In: GARCÍA, Flávio; FRANÇA, Júlio; PINTO, Marcello de Oliveira (org.). As arquiteturas do medo e o insólito ficcional. Rio de Janeiro: Caetés, 2013. p. 66-78.) explana:

Na literatura do medo, as descrições espaciais quase nunca pretendem ser meramente referenciais. Pelo contrário, costumam vir acompanhadas de adjetivações que não apenas informam o leitor sobre as características físicas, sensorialmente perceptíveis, dos locais, mas também contribuem para persuadir o leitor dos perigos inerentes àquele lugar [...]. (FRANÇA, 2013FRANÇA, Julio. A alma encantadora das ruas e Dentro da noite: João do Rio e o medo urbano na literatura brasileira. In: GARCÍA, Flávio; FRANÇA, Júlio; PINTO, Marcello de Oliveira (org.). As arquiteturas do medo e o insólito ficcional. Rio de Janeiro: Caetés, 2013. p. 66-78., p. 2).

No fragmento destacado a seguir, a ambientação do trem situa o leitor no drama vivido pelas personagens. Sendo um meio de transporte novo, instável e inseguro, não fornece a estabilidade e o conforto a Rodolfo. A descrição da paisagem chuvosa e melancólica, aliada aos elementos do próprio trem, como um sino e o apito, das casas ao longo dos trilhos, encharcadas, confere o clima de medo e desolação e potencializa os sentimentos de angústia suscitados pela narrativa. Morais (2016MORAIS, Aline Pires. João do Rio e o medo no espaço da cidade. Anais do CENA, Uberlândia, v. 2, n. 1, p. 1-11, 2016.) discorre sobre esse espaço narrativo no conto:

A opção pelo trem enquanto espaço central da narrativa coopera com os efeitos de recepção almejados uma vez que este meio se torna como uma prisão entre cada estação, constituindo-se como fonte de claustrofobia e impotência para quem está nele. João do Rio revela toda a importância deste espaço para a literatura de medo que o conto além de ser construído por descrições entremeadas deste cenário, ainda é encerrado com imagens do trem: “E a frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme silvo reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e delírio”. (MORAIS, 2016MORAIS, Aline Pires. João do Rio e o medo no espaço da cidade. Anais do CENA, Uberlândia, v. 2, n. 1, p. 1-11, 2016., p. 5).

Por conseguinte, o campo semântico da melancolia e da desolação constrói o encadeamento da rede lexical de termos conexos. Apresentam-se na tabela 3 os fragmentos do texto fonte e da sua tradução, seguidos pelas discussões acerca da tradução dessa rede vocabular e semântica.

Tabela 3 -
Tradução de trechos do conto “Dentro da Noite”

No segmento acima, com sintagmas relacionados ao espaço gótico, construtor da ambientação melancólica e desoladora, sobressai-se “The train had torn across darkness with a depressing hiss”, em relação a “O trem rasgara a treva num silvo alanhante”. Verifica-se o ameaçador e intenso movimento do trem em relação à escuridão da noite, como uma tentativa de Rodolfo escapar da situação obscura em que se encontra. A tradução praticamente literal de “had torn across” para “rasgara” tenta manter a velocidade claramente alucinante e precária do trem. O vocábulo “treva”, de significado próximo a “total ausência de luz, escuridão”, se assemelha ao termo traduzido, pois este encontra dicionarizada a definição:

  1. the quality or state of being dark: such as

  2. the total or near total absence of light

O sintagma nominal “silvo alanhante”, constituído de termos mais representativos do português arcaico da época de João do Rio, significando o assovio opressivo, vem traduzido em “a depressing hiss” e consegue transpor o sofrimento da personagem representado no som melancólico do trem. Outros elementos constitutivos da rede lexical relacionada às temáticas da melancolia e do espaço são: “A huge bell went on with its chimes”, “the disgraceful rain”, “its endless veil of tears”, “the doomed crisis” e “miserable lunatic”.

Assim, o espaço melancólico e desesperador se configura na tradução desses termos e permite assegurar o encadeamento do campo semântico, ou rede lexical, na tradução, como fica exemplificado no excerto. Em seguida tratamos da análise da tradução dos excertos provenientes do conto “O bebê de tarlatana rosa”, mais uma narrativa curta ficcional de cunho gótico e fantástico presente na coletânea.

Levin (1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p.) descreve a atmosfera da escrita decadentista e gótica do autor:

[...] o gosto por temas macabros desde E. A. Poe punha ênfase sobretudo no potencial criativo do intelecto. Ou seja, o desprendimento da elaboração estética exige do artista um trânsito livre, o que se efetua no uso apenas sugestivo da realidade. Pois bem, é de máximo interesse ver que isto indiretamente se mantém na maneira como João do Rio focaliza a experiência perversa da elite numa atmosfera de orgia carnavalesca. (LEVIN, 1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p., p. 187)

No conto em questão é exatamente nesse frenesi que a narrativa se desenvolve e que o protagonista encontra mais do que esperava no embate amoroso com o bebê de tarlatana rosa. No trecho analisado, junto à sua tradução na tabela 4, o enfoque está na ambientação ou no espaço gótico descrito pelo narrador, que se consolida na tradução com especial ênfase no encadeamento temático dos seus elementos.

Tabela 4
Tradução de trechos do conto “O bebê de tarlatana rosa”

O traço marcante é a presença ou o surgimento de figuras fantasmagóricas, quase espectros materializados em mascarados, em sombras e nas próprias fantasias que, nessas horas apagadas, pareciam criar vida e produzir sons aterradores para Heitor, o protagonista. Nas formas das traduções, o encadeamento do campo semântico da ambientação gótica criada por essas estranhas criaturas parece preservado, com escolhas vocabulares significativas dentro de cada sintagma ou expressão.

A transferência da rede temática relacionada à ambientação da escuridão sinistra foi realizada com os termos “shadows,accomplice shadows of the urban night,in the semi-shadow of the dead hours” e “emerging from the darkness into pieces”, conferindo à passagem um tom gótico próximo daquele idealizado pelo escritor carioca. E a rede temática das figuras fantasmagóricas e espectrais foi construída com os vocábulos “kissing masks”, “some costumes clinging their rattles”, “these unreal figures”, e “elusive, vague, enormous thing”, como entes participantes dessa atmosfera fantástica e estranha.

Ceserani (2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p.) menciona o ensaio de Bloch a respeito do gosto pelo fantástico e a presença dessas figuras espectrais:

Épocas anteriores se sentiam incrivelmente habitadas por espectros. Um a cada três habitantes da zona rural tinha o seu gnomo em casa; em cada canto se temia o outro mundo. À noite os diabos se escondiam e faziam barulho nas paredes do quarto: ora aparecia um olho, ora uma língua, só as orações conseguiam impedir que o demônio surgisse inteiramente. Nos bosques habitavam espíritos, selvagens e leves; nas encruzilhadas, homens sem cabeça, moças maltrapilhas cobertas de musgo, a quem satanás perseguia. Também nas cidades existiam espectros noturnos. (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p., p. 78).

E justamente uma dessas criaturas vem a se revelar por trás da fantasia do bebê de tarlatana rosa. Sobre o tema do amor nos textos fantásticos, Ceserani (2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p.) revela:

Ainda a respeito desse grande tema, a literatura fantástica assumiu uma tarefa crítica. Assim, nos seus textos encontram-se todos os limites e todas as aberrações do amor romântico: os excessos da projeção individual do objeto de amor sobre um objeto que não é digno dele ou nem mesmo se apercebe dele, e as sublimações que chegam a encarnar o objeto de amor em uma imagem pictórica ou até mesmo em um fantasma. (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR, 2006. 158 p., p. 88).

No exemplo do excerto selecionado, esse objeto de amor fantástico se encarna na figura cadavérica revelada do bebê. A tabela 5 apresenta o desfecho desse conto e sua correspondente tradução.

Tab. 5
Tradução de trechos do conto “O bebê de tarlatana rosa”

A tradução dos itens lexicais relativos ao bebê fantasmagórico procurou levar ao texto em língua inglesa tanto as características estilísticas do texto fonte de João do Rio como suas escolhas vocabulares. Os sintagmas “two eyes that fury and terror seemed to merge”, “a strange head, a head without a nose, with two bloody holes stuffed with cotton”, “a fleshened skull”, “skull facing towards me” e “her abnormal nose holes” constroem o alinhamento dessa rede temática. Dessa forma, elaboram a ambientação do clímax da trama, na revelação da figura cadavérica do bebê.

O último excerto para nossa análise, presente na Tabela 6, demonstra a reação dos ouvintes de Heitor e, especialmente, do Barão de Belfort.

Tab. 6
Tradução de trechos do conto “O bebê de tarlatana rosa”

O enfoque temático aqui está no sentimento gerado pelo relato da história de terror ocorrida no carnaval. As personagens expressam diversas reações ao final dessa narrativa, mas todas elas concorrem para a ambiência gótica, marcadas nos sintagmas “a horror contraction on her face”, “looked sick”, “sweat droplets on his forehead”, e “an anguished silence”.

A opção “sweat droplets on his forehead” a partir de “a camarinhar-lhe a fronte” passou pelo significado do substantivo “camarinha” cujo verbete no dicionário Aurélio indica “gotículas redondas”, ex. camarinhas de suor. O termo “droplet” porta no Merriam Webster’s a acepção “a tiny drop (as of a liquid)”, portanto sendo apropriado a preencher nossa lacuna vocabular gerada pela necessária mudança sintática da frase. Passa então de “O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor” para “Even our narrator showed some sweat droplets on his forehead”, dada a inexistência de verbo correspondente a “camarinhar” na língua inglesa, algo como “cobrir de gotículas”. Realizou-se aqui o procedimento da transposição que, segundo Lanzetti et al. (2009LANZETTI, Rafael; BESSA, Danielle; GUEDES, Fabiana; FREITAS, Rosana; MOURA, Vinicius Cruz. Procedimentos técnicos de tradução: uma proposta de reformulação. Revista do ISAT, São Gonçalo, n. 7, p. 1-20, 2009.), consiste em: “mudança da ordem sintática de um ou dois elementos sintáticos do texto-fonte. Ocorre por razões de obrigatoriedade sintática ou pragmática da língua de chegada”. (LANZETTI et al., 2009LANZETTI, Rafael; BESSA, Danielle; GUEDES, Fabiana; FREITAS, Rosana; MOURA, Vinicius Cruz. Procedimentos técnicos de tradução: uma proposta de reformulação. Revista do ISAT, São Gonçalo, n. 7, p. 1-20, 2009., p. 8)

Interessante notar que a sequência dessas expressões ligadas aos sentimentos de pânico das personagens contrasta com a reação blasé do Barão de Belfort, que simplesmente pede bebidas para os convidados e neutraliza o relato de horror de Heitor como uma “bela história”. Sobre essa postura Levin (1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p.) interpreta:

O dândi se apossa da morte, capitaliza o sofrimento, detém a palavra final em proveito do novo que ele anuncia. Em forma de comentários, ele revitaliza o velho. A independência da reflexão, o desprendimento da perversidade, coincide com a reivindicação básica de renovação do método literário. Daí o dândi vir sempre a contrapelo trazendo o novo quando a morte já é um dado. Exatamente do pensamento livre, dos elementos soltos, da substância fluida que o dândi tira a norma e, pelo contrário, de todo fato cristalizado, tanto pelo modismo quando pelo arcaísmo, e rompe o vício e a maldade. (LEVIN,1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p., p. 190).

Logo, sua excitação gerada pela narrativa de Heitor transmite, em nossa tradução, seu entusiasmo ao sorver o relato de mais uma aventura de carnaval: “Quite an adventure, my friends, a fine adventure. Who has not had their carnival adventure? This one is exciting nonetheless”.

Considerações finais

Este artigo empreendeu uma análise de traduções dos contos “Dentro da noite” e “O bebê de tarlatana rosa” para a língua inglesa, com enfoque no exame das formas de transposição de elementos góticos e fantásticos nessas narrativas curtas ficcionais. Para tal, utilizou-se da definição de redes temáticas e lexicais, que desenvolvem teias vocabulares em torno dos temas subjacentes e aparentes de uma narrativa. Os campos semânticos do medo, do espaço gótico e dos elementos góticos e fantásticos, como os sentimentos da melancolia, da decadência e da loucura, serviram de direção para a investigação de trechos dos contos.

As traduções realizadas receberam análises semânticas, linguísticas e contextuais no par linguístico, de forma a contemplar as escolhas embasadas nas fontes internas e externas, como o repertório lexical próprio e a dicionarização de muitos dos termos. Os postulados teóricos dos estudos da tradução serviram de base inestimável para este empreendimento, especialmente no que tange à realização do projeto maior aqui representado, de traduzir obra de um escritor brasileiro do início do século XX, com enfoque na preservação de suas marcas literárias.

As poéticas decadentista, gótica e fantástica aqui estudadas com o auxílio dos pensadores consultados representam o mergulho de João do Rio em movimentos literários e temáticas bastante complexas, desmistificando a visão de que o dândi não exerce seu papel crítico e social. Os achados desta pesquisa nos revelam um João do Rio denso e profundo, cuja literatura gótica poderia figurar entre os livros traduzidos, adaptados para outras mídias e amplamente divulgados na contemporaneidade. Ficamos com as palavras de Messer (1996) sobre João do Rio, o dândi escritor:

As viagens e alucinações um tanto eufóricas do escritor assinalam os caminhos por onde o velho foi sendo permanentemente reciclado. Atrás do antigo, do gasto e do atrasado, que as caras amassadas dos foliões e as cinzas da quarta-feira carnavalizam, está o reaproveitamento da matéria bruta ao qual o dândi se atém. O esteticismo de João do Rio se empenhou em escapar do marasmo criando para o país um destino literário. Este ciclo estético do dândi, com suas limitações e originalidades, inovou a tradição literária brasileira (veja-se o tratamento da perversidade) e mostrou por tudo isto o enorme fascínio do escritor pela modernidade. (LEVIN, 1996LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas, SP: Unicamp, 1996. 240 p., p. 190).

Esperamos, deste modo, ter apresentado o potencial tradutório da obra ficcional de João do Rio, bem como da perspectiva de divulgação de suas estéticas e estilo por meio da tradução de seus escritos para a língua inglesa. Além disso, vislumbra-se a possibilidade de contato do leitor estrangeiro com a literatura brasileira de período e autoria tão marcantes, o pré-modernismo de João do Rio, pelo intermédio de futuros trabalhos sobre tradução literária desta natureza.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    The notion of lexical cohesion as being dependent on the presence of networks of lexical items rather than the presence of any specific class of type of item is important. It provides the basis for what Hassan and Halliday call instantial meaning, or text meaning (1976:289): Without our being aware of it, each occurrence of a lexical item carries with it its own textual meaning, a particular collocational environment that has been built up in the course of the creation of the text and that will provide the context within which the item will be incarnated on this particular occasion. The environment determines the “instantial meaning” or text meaning, of the item, a meaning which is unique to each specific instance. (Todas as traduções constantes neste artigo foram realizadas pela autora do trabalho).
  • 2
    in analyzing a text a translator is nor concerned with isolating phenomena or items to study them in depth, but with tracing a web of relationships, the importance of individual items being determined by their relevance and function in the text (1988:69).

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2022
  • Aceito
    15 Maio 2022
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