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Reversão da amaurose em caso de retinopatia esclopetária

Resumos

A retinopatia esclopetária é uma manifestação rara de trauma ocular que pode ou não penetrar a órbita. O objetivo desse trabalho é relatar um caso de retinopatia esclopetária após trauma orbitário por bala de arma de fogo com amaurose total inicial no olho acometido, que evoluiu ao longo de semanas com recuperação visual parcial. Relatamos um caso de um paciente com 12 anos, sexo masculino, vítima de ferimento por arma de fogo, que apresentava ao exame oftalmológico inicial do olho direito pupila não reagente com acuidade visual (AV) de sem percepção luminosa (SPL) e diagnóstico de retinopatia esclopetária nesse olho. O olho esquerdo apresentava-se normal. O paciente foi submetido à exérese do projétil alojado na cavidade orbitária. No 14° pós-operatório, o paciente referiu enxergar claridade, apresentava AV de conta dedos a 30 cm. Ao longo dos primeiros meses, o paciente apresentou melhora constante da AV e com oito meses de seguimento, apresentava AV de 0,15. Na retinopatia esclopetária, a AV geralmente é baixa. Ainda não é claro atualmente se a perda visual é ocasionada por lesão à retina, ao nervo óptico, ou um misto dos dois componentes. Casos de amaurose total após trauma geralmente não apresentam prognóstico visual. Porém, alguns pacientes podem apresentar melhora da AV, como no caso aqui descrito. Conclui-se assim que em casos traumáticos contusos em pacientes com baixa AV inclusive SPL, deve-se acompanhar esses pacientes e tratar, se necessário, pela possibilidade de recuperação visual.

Cegueira; Coriorretinite/diagnóstico; Traumatismos oculares; Ferimentos por arma de fogo; Retina/lesões; Relatos de casos


Corioretinitis sclopetaria is a rare manifestation of ocular trauma which may or may not penetrate the orbit. The aim of this study is to report a case of Corioretinitis sclopetaria after orbital trauma by a firearm bullet that had initial total blindness in the affected eye, and evolved over weeks with partial visual recovery. We report a 12 years old boy, victim of firegun injury, who presented a diagnosis of corioretinitis sclopetaria in his right eye. Initial ophthalmologic examination of this eye showed nonreactive pupil and visual acuity of no light perception. The left eye was normal. The patient underwent excision of the firearm bullet located in the orbit. On the early postoperative, the patient reported seeing light and presented visual acuity of counting fingers at 30 cm. The patient showed steady improvement and after eight months his visual acuity was of 0.15 on the affected eye. In corioretinitis sclopetaria, presented visual acuity is generally low. It is still unclear whether visual loss is caused by damage to retina, optic nerve or both components. Patients with total blindness after trauma usually have no visual prognosis. However, some patients may show visual acuity improvement, such as the case described here. Therefore, in patients victims of blunt ocular trauma with low visual acuity, including no light perception, it is important to monitor these patients and treat, if necessary, due to the possibility of visual recovery.

Blindness; Chorioretinitis/diagnosis; Eye injuries; Wounds, gunshot; Retina/injuries; Case reports


INTRODUÇÃO

Diversas lesões retinianas e coroideanas podem surgir após um trauma contuso ocular por arma de fogo. A retinopatia esclopetária é tradicionalmente associada a um trauma orbitário por um projétil de alta velocidade que atinge a órbita, porém não penetra o globo ocular(1Goldzieher W. Beitrag zur Pathologie der orbitalen Schussverletzungen. Z Augenheilkd.1901;6:277-85.,2Mohammadpour M, Soheilian M. Concomitant optic nerve transection and chorioretinitis sclopetaria. BMC Ophthalmol. 2005;5(1):29.). Essa patologia causa uma lesão coriorretiniana de espessura total com perda visual associada(3Ahmadabadi M N, Karkhaneh R, Roohipoor R, Tabatabai A, Alimardani A. Clinical presentation and outcome of chorioretinitis sclopetaria: a case series study. Injury. 2010; 41(1):82-5.).

Goldzieher introduziu o termo de coriorretinite esclopetária para descrever a aparência da rotura de coróide e retina subsequente a uma lesão orbital após um trauma com uma bala de arma em 1901(1Goldzieher W. Beitrag zur Pathologie der orbitalen Schussverletzungen. Z Augenheilkd.1901;6:277-85.).

Achados fundoscópicos descritos incluem proliferação fibrovascular, migração e proliferação do epitélio pigmentado da retina (EPR), formação de membrana epirretiniana, perda de fotorreceptores e atrofia óptica(2Mohammadpour M, Soheilian M. Concomitant optic nerve transection and chorioretinitis sclopetaria. BMC Ophthalmol. 2005;5(1):29.

Ahmadabadi M N, Karkhaneh R, Roohipoor R, Tabatabai A, Alimardani A. Clinical presentation and outcome of chorioretinitis sclopetaria: a case series study. Injury. 2010; 41(1):82-5.
-4Taban M, Sears JE. Ocular findings following trauma from paintball sports. Eye (Lond). 2008; 22(7):930-4.). O descolamento de retina é raro nessa condição dada a proliferação fibrovascular e cicatriz que surge com a evolução da doença(3Ahmadabadi M N, Karkhaneh R, Roohipoor R, Tabatabai A, Alimardani A. Clinical presentation and outcome of chorioretinitis sclopetaria: a case series study. Injury. 2010; 41(1):82-5.).

Classicamente, a retinopatia esclopetária é descrita após trauma por projéteis de alta velocidade que penetram a órbita, mas não penetram o globo ocular. Porém, a retinopatia esclopetária já foi descrita após outros tipos de trauma contuso, sem penetração orbitária, como após trauma com bolas de paintball, airbag, entre outros. Assim, a retinopatia esclopetária é uma manifestação rara de trauma ocular que pode ou não penetrar a órbita(4Taban M, Sears JE. Ocular findings following trauma from paintball sports. Eye (Lond). 2008; 22(7):930-4.).

O objetivo desse trabalho é relatar um caso de retinopatia esclopetária após trauma orbitário por bala de arma de fogo com amaurose total inicial no olho acometido, que evoluiu ao longo de semanas com recuperação visual parcial.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino de 12 anos de idade deu entrada no nosso serviço vítima de ferimento por arma de fogo em face. Apresentava orifício de entrada em pálpebra superior direita, sem orifício de saída. O paciente encontrava-se estável clinicamente. Ao exame oftalmológico do olho direito, apresentava edema, hematoma e laceração palpebral superior. À palpação, era possível sentir parte do projétil na órbita superior. Seu exame apresentava pupila não reagente à direita com acuidade visual (AV) sem percepção luminosa (SPL). À biomicroscopia, havia quemose importante, câmara anterior formada, com hifema inferior, e corectopia. O tônus ocular era normal. Não foi visualizada perfuração ocular. A motilidade ocular externa apresentava redução parcial em todas as posições. Foi difícil avaliar fundo de olho no exame inicial pelo edema palpebral e quemose. O olho esquerdo apresentava exame oftalmológico normal. A tomografia de órbitas revelou projétil de arma de fogo alojado em órbita anterior superior à direita. Foi indicado nesse momento retirada do projétil com exploração cirúrgica escleral superior, dada a possibilidade de perfuração e sutura da laceração palpebral. O paciente foi submetido à exérese do projétil de arma de fogo. Foi realizada exploração cirúrgica sem evidências de perfuração ocular e suturada a pálpebra superior. No primeiro pós-operatório, o paciente mantinha a AV de SPL, edema palpebral intenso, hifema discreto, iridodiálise nasal superior e tônus ocular normal. Era difícil avaliar seu fundo de olho pelo edema palpebral importante. No 14° pós-operatório, o paciente referiu enxergar claridade. Ao exame, apresentava acuidade de conta dedos a 30 cm no campo superior, melhora do edema palpebral, pressão intraocular (PIO) de 18mmHg, e reação inflamatória intensa na câmara anterior. Ao fundo de olho apresenta nervo óptico pálido sem edema e alteração pigmentar retiniana por todo o polo posterior (figura 1). Foi introduzido prednisona via oral 30 mg por dia (1mg/kg de peso). No 21º pós-operatório, o paciente mantinha a AV, com pequena melhora da inflamação intraocular. Foi suspensa a prednisona via oral. Com um mês de pós-operatório, o paciente referiu nova melhora visual. Ao exame apresenta AV de conta dedos a um metro e redução da inflamação da câmara anterior. O fundo de olho mantinha-se estável. Com 2 meses de seguimento, o paciente apresentou nova melhora visual. Ao exame, apresentava AV de conta dedos a 1,5m, sem inflamação de câmara anterior, com iridodiálise nasal superior, início de catarata subcapsular posterior e fundo de olho mantido. Com 4 meses de seguimento, apresentava acuidade visual de 0,1, biomicroscopia mantida e fundo de olho com desenvolvimento de membrana epirretinana temporal superior com pequena tração e fibrose sub-retiniana extensa e fibrose pré-retiniana às 12h. Com 8 meses de seguimento, apresentava AV de 0,15 e o restante do exame ocular mantido.

Figura 1
Retinopatia esclopetária: Retinografia inicial do olho direito

DISCUSSÃO

Traumas por bala de arma de fogo podem levar a lesões oculares penetrantes ou contusas. É importante descartar lesões penetrantes oculares dada a necessidade cirúrgica de reparo da lesão. Diversas lesões traumáticas estão associadas a traumas contusos, como hifema, hemorragia vítrea, commotio retinae, descolamento de retina, neuropatia óptica, retinopatia esclopetária, entre outros. No presente caso, relatamos um paciente vítima de ferimento por arma de fogo que penetrou a órbita, porém não o globo ocular, levando a baixa de acuidade visual por um quadro de retinopatia esclopetária associada provavelmente a algum grau de neuropatia óptica traumática(55 . Wu W, Sia DI, Cannon PS, Selva D, Tu Y, Qu J. Visual acuity recovery in traumatic optic neuropathy following endoscopic optic nerve decompression: a case report. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2011;27(1):e13-e15.).

As lesões traumáticas oculares são mais comuns em homens jovens, como na maioria dos traumas em geral. Nos casos da retinopatia esclopetária, é comum encontrar algum grau de hifema e hemorragia vítrea. À medida que a hemorragia é reabsorvida, é possível notar proliferação fibrosa na região acometida(3Ahmadabadi M N, Karkhaneh R, Roohipoor R, Tabatabai A, Alimardani A. Clinical presentation and outcome of chorioretinitis sclopetaria: a case series study. Injury. 2010; 41(1):82-5.,4Taban M, Sears JE. Ocular findings following trauma from paintball sports. Eye (Lond). 2008; 22(7):930-4.

A lesão retiniana é atribuída a uma onda de choque que se propaga após a passagem do projétil em alta velocidade(3Ahmadabadi M N, Karkhaneh R, Roohipoor R, Tabatabai A, Alimardani A. Clinical presentation and outcome of chorioretinitis sclopetaria: a case series study. Injury. 2010; 41(1):82-5.). Essa onda de choque provoca então uma ruptura coriorretiniana, gerando o aspecto cicatricial difuso da condição.

A mácula é comumente envolvida no casos de retinopatia esclopetária, e algum grau de neuropatia óptica traumática geralmente está associada. A acuidade visual geralmente é baixa pelo desenvolvimento de cicatriz macular, buraco macular, membrana epirretiniana e pelo dano indireto ao nervo óptico(3Ahmadabadi M N, Karkhaneh R, Roohipoor R, Tabatabai A, Alimardani A. Clinical presentation and outcome of chorioretinitis sclopetaria: a case series study. Injury. 2010; 41(1):82-5.

Taban M, Sears JE. Ocular findings following trauma from paintball sports. Eye (Lond). 2008; 22(7):930-4.

5 . Wu W, Sia DI, Cannon PS, Selva D, Tu Y, Qu J. Visual acuity recovery in traumatic optic neuropathy following endoscopic optic nerve decompression: a case report. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2011;27(1):e13-e15.
-6Martin DF, Awh CC, McCuen 2nd BW, Jaffe GJ, Slott JH, Machemer R. Treatment and pathogenesis of traumatic chorioretinal rupture (sclopetaria). American journal of ophthalmology. 1994; 117(2), 190-200.).

No presente caso o paciente apresentava acuidade visual sem percepção luminosa com melhora gradual da visão. Casos de recuperação visual semanas após AV inicial de SPL são bem descritos em literatura após quadro de neuropatia óptica traumática(3Ahmadabadi M N, Karkhaneh R, Roohipoor R, Tabatabai A, Alimardani A. Clinical presentation and outcome of chorioretinitis sclopetaria: a case series study. Injury. 2010; 41(1):82-5.

Taban M, Sears JE. Ocular findings following trauma from paintball sports. Eye (Lond). 2008; 22(7):930-4.
-55 . Wu W, Sia DI, Cannon PS, Selva D, Tu Y, Qu J. Visual acuity recovery in traumatic optic neuropathy following endoscopic optic nerve decompression: a case report. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2011;27(1):e13-e15.,7Wolin MJ, Lavin PJ. Spontaneous visual recovery from traumatic optic neuropathy after blunt head injury. Am J Ophthalmol. 1990;109(4):430-5.).

No atual relato de caso, o paciente apresentava inicialmente acuidade visual de sem percepção luminosa que melhorou parcialmente ao longo do acompanhamento. Relatos de pacientes apenas com neuropatia óptica traumática que apresentam acuidade visual sem percepção luminosa e recuperação visual ao longo de semanas são raros, mas já descritos. Recuperação da amaurose total após esclopetária não apresentam descrições prévias em nosso meio. Conclui-se assim que alguns casos traumáticos apresentam prognóstico visual mesmo com apresentação inicial de SPL, como o observado no caso descrito associado à coriorretinopatia esclopetária.

  • Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil

Referências

  • 1
    Goldzieher W. Beitrag zur Pathologie der orbitalen Schussverletzungen. Z Augenheilkd.1901;6:277-85.
  • 2
    Mohammadpour M, Soheilian M. Concomitant optic nerve transection and chorioretinitis sclopetaria. BMC Ophthalmol. 2005;5(1):29.
  • 3
    Ahmadabadi M N, Karkhaneh R, Roohipoor R, Tabatabai A, Alimardani A. Clinical presentation and outcome of chorioretinitis sclopetaria: a case series study. Injury. 2010; 41(1):82-5.
  • 4
    Taban M, Sears JE. Ocular findings following trauma from paintball sports. Eye (Lond). 2008; 22(7):930-4.
  • 5
    Wu W, Sia DI, Cannon PS, Selva D, Tu Y, Qu J. Visual acuity recovery in traumatic optic neuropathy following endoscopic optic nerve decompression: a case report. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2011;27(1):e13-e15.
  • 6
    Martin DF, Awh CC, McCuen 2nd BW, Jaffe GJ, Slott JH, Machemer R. Treatment and pathogenesis of traumatic chorioretinal rupture (sclopetaria). American journal of ophthalmology. 1994; 117(2), 190-200.
  • 7
    Wolin MJ, Lavin PJ. Spontaneous visual recovery from traumatic optic neuropathy after blunt head injury. Am J Ophthalmol. 1990;109(4):430-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2014
  • Aceito
    11 Jul 2014
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