Ter uma conduta única no tratamento de patologias de nossa especialidade foi sempre um sonho de alguns autores e chefes de serviço que felizmente nunca foi atingido.
Temos alguns exemplos de condutas para tratamentos de algumas patologias que, pela clareza de exposição e solidez dos autores, persistiram por anos e atrasaram o desenvolvimento do estudo delas.
A patologia do ombro era resumida a periartrites e ao tratamento em infiltrações por anos, até Neer, em 1982, desenvolver a teoria do impacto e nos explicar o processo mecânico-degenerativo da articulação; o brilhantismo do prof. Henry Dejour atrasou por décadas o desenvolvimento do estudo da patologia femoropatelar, desconhecia no seu genial menu a la carte, para o tratamento da instabilidade femoropatelar, o ligamento femoropatelar medial. Centenas de ortopedistas encantados com a clareza das ideias do mestre francês trataram a instabilidade da articulação femoropatelar sem considerar os ligamentos dessa articulação.
A fratura de tíbia é de tratamento conservador, salvo quando há integridade do perônio, decretou Sarmiento; nem cabe comentário a essa afirmativa nos dias de hoje.
Houve um período em que se alardeou a medicina baseada em evidências, que deu grande impulso às metanálises a ponto de torná-las nível 1 para publicações científicas. Isso significa que um trabalho duplo cego randomizado com seguimento adequado feito por um grupo de cirurgiões ou clínicos envolvidos com os pacientes e responsáveis pela opção terapêutica em estudo, que analise o resultado dessa opção, tem o mesmo valor que um trabalho feito por burocratas em uma sala que selecionam e analisam trabalhos publicados sobre um assunto sobre o qual não tiveram envolvimento. Esses trabalhos produzem as tais evidências, nas quais deveríamos basear as nossas condutas.
Uma vez mais, felizmente o tempo e a prática demonstraram que a medicina deve ser baseada em experiência.
Uma nova tentativa de simplificar a complexa atividade terapêutica surge agora nos chamados consensos que algumas instituições sugerem. Temos alguns exemplos atuais:
- Moseley JB publicou em 2002 um trabalho no prestigioso New England Journal of Medicine no qual fez artroscopias em alguns pacientes e fingiu fazê-las em outros, portadores de artrose do joelho, e decretou que fazer ou não tratamento artroscópico no joelho artrósico dava o mesmo resultado.
Poucas áreas da ortopedia têm tantas variáveis como a artrose, uma afirmação como essa é absurda e sem fundamento, mas encantou o mundo dos limitados e levou vários colegas aos tribunais, em processos baseados nesse trabalho.
- Tratar ou não cirurgicamente a fratura do calcâneo leva aos mesmos resultados. Essa é uma afirmação publicada no British Medical Journal e sugere que um dos importantes avanços na terapêutica da grave fratura do calcâneo fosse abandonado. - A vertebroplastia é fortemente contraindicada. Esse é um dos consensos da American Academy of Orthopaedic Surgeons (AAOS) no tratamento das fraturas osteoporóticas da coluna.
Trabalhos atuais já demonstram que esse conceito está equivocado, assim como esses consensos sugeridos. Imagino que existam vários outros e que vários "chefes" definem dogmas definitivos sobre diversas condutas.
O nosso conhecimento é feito aos passos. Por essa razão insistimos em publicar, além dos trabalhos completos, relatos de casos e notas técnicas, pois podem estimular a pesquisa e a troca de experiências que irão construir esse difícil edifício do conhecimento médico na área terapêutica.
A seleção de trabalhos exclusivamente completos e originais limita o progresso de novas ideias e novas abordagens terapêuticas.
O descobrimento da vacina foi feito graças à observação de um médico inglês. Ele observou que os tratadores de vacas que tinham vaccinia, forma bovina da varíola, não desenvolviam a varíola humana.
A descoberta da penicilina, que mudou a história da medicina, foi feita por Alexander Fleming. Ele observou que as culturas contaminadas pelo penicilium, um gênero de fungo que determina o bolor do pão, não permitiam o crescimento das bactérias naquele meio de cultura.
Foram observações que não se enquadrariam nas rígidas normas de publicação que algumas revistas científicas se impõem, sem falar nas que cobram para publicarmos. Seguramente essas duas importantíssimas comunicações não seriam publicadas nessas revistas.
Embora vários editores sugiram o fim da publicação dos relatos de casos e das notas técnicas nas publicações, a RBO continuará a ser uma revista sem consenso, a publicar tudo que for confiável, sem restrição prévia.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Oct 2016