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Construindo o amanhã

EDITORIAL

Construindo o amanhã

Há alguns dias tivemos a oportunidade de testemunhar, na matéria de editorial emitido na "Folha de São Paulo" o que talvez represente a expectativa coletiva de nossa pobre sociedade em formação.

Comentando o tema da redação solicitado pela Fuvest, o jornalista comenta "desta vez, (A FUVEST) se superou. Exigiu anteontem como tema de redação do vestibular uma dissertação em torno do "Programa para a descatracalização da vida" -isso mesmo. Explico: no ano passado, um grupo de ativistas chamado "Contra Filé" colocou uma catraca velha sobre um pedestal no largo do Arouche, centro de São Paulo. A instalação foi batizada de "monumento à catraca invisível". Era uma maneira de criticar, segundo os próprios autores, o controle "biopolítico, através de forças visíveis e/ou invisíveis", a que estaríamos todos submetidos.Com base nisso, a Fuvest pediu ao estudante que se posicionasse sobre o "excesso de controles, dos mais variados tipos, que se exercem sobre os corpos e as mentes das pessoas. O que pretendiam, afinal, esses examinadores? Que os alunos discorressem sobre o "homem unidimensional" de Marcuse? Que dissertassem a respeito da "microfísica do poder" de Foucault? Que fizessem a apologia do "bom selvagem"? Francamente... Dá vontade de ser um pouco grosseiro: perguntem ao morador de Guaianazes o que ele pensa da descatracalização do "busão" lotado...Pretendendo despertar o senso crítico do pobre aluno, a redação só induz ao devaneio e a clichês sem substância."

Não posso dizer que não fiquei um tanto chocado com a indignação do autor do editorial quanto à proposta de se procurar um sentido alternativo, metafórico, a uma palavra inventada a partir de um fato real. Parece que Guimarães Rosa deixou de ser referência, ao criar, somar, desconstruir palavras e gerar novos sentidos e cores à atividade humana, e se transformou em agente alienante da sociedade. Mas o que isto tem a ver com nossa exígua especialidade? Talvez tenha muito, se colocarmos em perspectiva a nossa estrutura de formação. Seja do médico em sua graduação, seja da especialização ou mesmo pós-graduação. Temos nos baseado em um modelo que se mostrou bastante profícuo e de certa forma, seguro, de promover formação, em que o estilo socrático de tutoria foi se amplificando e modificando, mantendo a transmissão direta dos conhecimentos e a discussão permanente de casos e experiências, mas introduzindo um maior número de alunos e retirando a capacidade de participação dos mesmos em discussões téte-a-téte.

Hoje vivemos num sistema altamente hierarquizado, onde o estudante já entra na faculdade com seu superior determinado na figura do veterano e vai trilhando cada passo de sua graduação com um "tutor" informal, chegando à residência com seu R chefe e ficando no final das contas especializado em receber ordens, muitas vezes, sem contestar. Infelizmente isto acaba se refletindo em nossas reuniões científicas, onde poucos se levantam com dúvidas ou comentários após ou durante as apresentações, onde as discussões se restringem aos participantes das mesas e onde nas próprias mesas alguns não são jamais questionados. Este mesmo modelo submisso se apresenta nos pareceres e revisões científicas da revista brasileira de ORL e nas tréplicas dos autores. Tudo muito morno, sem aprofundamento, sem crítica, sem vida....

Certa vez, Gonzaguinha escreveu "vou a luta com esta juventude que não fica na saudade e constrói a manhã desejada".

Nos dias em que estamos repensando o formato e o conteúdo do ensino de residência médica em nossa especialidade, acredito que temos muito a meditar sobre as maneiras de preparar este profissional para a vida depois do título. O médico foi por muito tempo o homem procurado para conselhos, o exemplo a ser seguido, o padrão de credibilidade de todas as sociedades. Era assim por ter podido ser assim. Filosofar não era proibido, opinar, discutir, participar das decisões importantes e, mais que tudo criar expectativas renovando o status quo a partir da experiência vivida, esculpida por um meditar metafórico e preocupado com o social não era criticado e sim esperado e admirado por seus pares e clientes.

Onde foi parar este médico? Hoje, temos que brigar por honorários, competir por indicações e clientes, temos até que lutar para que sejamos portadores do direito de exercer nossa profissão sem interferências e maledicências de profissões paralelas. Mas isto nos força a não sermos mais justos, responsáveis e honrados? Será que não estamos sendo empurrados a nos prostar e deixarmos nossa postura altiva e soberana sobre nossas atividades justamente por não termos mantido nosso veio humanístico, nossa formação pessoal, nossa opinião?

Muito há para se meditar, de muito já abrimos mão, mas ainda não somos meros técnicos de saúde. Ou somos?

Henrique Olival Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2005
  • Data do Fascículo
    Fev 2005
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