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Fatores associados a perfusão cerebral anormal em dependentes de cocaína

Factors related to abnormal brain perfusion in cocaine addicts

Resumos

OBJETIVO: Avaliar a relação entre o padrão de uso da cocaína e a perfusão cerebral de dependentes da substância. MÉTODOS: Estudou-se uma amostra de 30 dependentes de cocaína por meio de tomografia computadorizada por emissão de fóton único (single photon emission computed tomography - SPECT) com hexametil-propileno-amina-oxima, marcada com tecnécio 99 m (99 m-Tc-HMPAO), e comparou-se o padrão de perfusão cerebral com o padrão de consumo da droga. RESULTADOS: Dos dependentes, 80% apresentaram alterações de perfusão cerebral, focais ou difusas, com grau de intensidade variável. Não foram observadas diferenças de perfusão cerebral entre usuários de crack e usuários de cloridrato de cocaína. As alterações tomográficas tampouco permitiram distinguir os dependentes em abstinência dos dependentes na vigência do uso. Não foi possível evidenciar associação entre o relato da quantidade diária de droga utilizada e a perfusão cerebral dos pacientes. Entretanto, foi observada correlação entre o número de meses durante os quais os pacientes consumiram droga e o grau de comprometimento da perfusão cerebral (coeficiente de correlação de Spearman: r=0,45, p<0,05). CONCLUSÃO: Este estudo documenta a freqüência elevada de alterações funcionais cerebrais em dependentes de cocaína, estabelecendo a influência do tempo de consumo da droga no grau de comprometimento do fluxo cerebral dos pacientes.

Cocaína; Cocaína Crack; Drogas ilícitas; Circulação cerebrovascular; SPECT


OBJECTIVE: To evaluate the relationship between the pattern of cocaine use and cerebral perfusion among cocaine addicts. METHOD: A sample of 30 cocaine addicts was studied using 99 m-Tc-HMPAO SPECT (single photon emission computed tomography with injection of 99 m-Tc-hexametilpropilenoamina-oxime). Their cerebral perfusion pattern was then compared with their pattern of cocaine use. RESULTS: Eighty percent of the sample presented some degree of impairment in brain perfusion, either focal or diffuse. There was no difference between sniffers and crack smokers regarding their perfusion patterns. No relationship could be established between the severity of SPECT abnormalities and the amount of drug consumption or period of abstinence. However, length of cocaine use did correlate with the severity of cerebral perfusion (Spearman correlation coefficient: r=0.45, p<0.05). CONCLUSION: This study documents the high frequency of cerebral functional impairment in cocaine addicts and establishes the relationship between length of cocaine exposure and severity of perfusion abnormalities.

Cocaine; Crack cocaine; Street drugs; Cerebrovascular circulation; SPECT


artigo original

Fatores associados a perfusão cerebral anormal em dependentes de cocaína

Factors related to abnormal brain perfusion in cocaine addicts

Dartiu X da Silveiraa, Marcelo Fernandesa, Antonio Barbierib, Eliseu Labigalinia e Evelyn D Silveiraa

a

Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes) do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM, São Paulo, SP, Brasil.

bDisciplina de Diagnóstico por Imagem do Departamento de Radiologia da Unifesp/EPM, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a relação entre o padrão de uso da cocaína e a perfusão cerebral de dependentes da substância.

MÉTODOS: Estudou-se uma amostra de 30 dependentes de cocaína por meio de tomografia computadorizada por emissão de fóton único (single photon emission computed tomography – SPECT) com hexametil-propileno-amina-oxima, marcada com tecnécio 99 m (99 m-Tc-HMPAO), e comparou-se o padrão de perfusão cerebral com o padrão de consumo da droga.

RESULTADOS: Dos dependentes, 80% apresentaram alterações de perfusão cerebral, focais ou difusas, com grau de intensidade variável. Não foram observadas diferenças de perfusão cerebral entre usuários de crack e usuários de cloridrato de cocaína. As alterações tomográficas tampouco permitiram distinguir os dependentes em abstinência dos dependentes na vigência do uso. Não foi possível evidenciar associação entre o relato da quantidade diária de droga utilizada e a perfusão cerebral dos pacientes. Entretanto, foi observada correlação entre o número de meses durante os quais os pacientes consumiram droga e o grau de comprometimento da perfusão cerebral (coeficiente de correlação de Spearman: r=0,45, p<0,05).

CONCLUSÃO: Este estudo documenta a freqüência elevada de alterações funcionais cerebrais em dependentes de cocaína, estabelecendo a influência do tempo de consumo da droga no grau de comprometimento do fluxo cerebral dos pacientes.

Descritores: Cocaína. Cocaína Crack. Drogas ilícitas. Circulação cerebrovascular. SPECT.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To evaluate the relationship between the pattern of cocaine use and cerebral perfusion among cocaine addicts.

METHOD: A sample of 30 cocaine addicts was studied using 99 m-Tc-HMPAO SPECT (single photon emission computed tomography with injection of 99 m-Tc-hexametilpropilenoamina-oxime). Their cerebral perfusion pattern was then compared with their pattern of cocaine use.

RESULTS: Eighty percent of the sample presented some degree of impairment in brain perfusion, either focal or diffuse. There was no difference between sniffers and crack smokers regarding their perfusion patterns. No relationship could be established between the severity of SPECT abnormalities and the amount of drug consumption or period of abstinence. However, length of cocaine use did correlate with the severity of cerebral perfusion (Spearman correlation coefficient: r=0.45, p<0.05).

CONCLUSION: This study documents the high frequency of cerebral functional impairment in cocaine addicts and establishes the relationship between length of cocaine exposure and severity of perfusion abnormalities.

Keywords: Cocaine. Crack cocaine. Street drugs. Cerebrovascular circulation. SPECT.

INTRODUÇÃO

O uso de cocaína tem sido associado a complicações cardiovasculares e neurológicas graves.1,2 Foram relatadas hemorragias intracerebrais e subaracnóideas em situações de abuso dessa substância,3,4 além de infartos provavelmente decorrentes da diminuição da perfusão sangüínea cerebral.5

Alguns estudos sugerem que o uso crônico de cocaína pode acarretar atrofia cerebral,6,7 evidenciada por técnicas tomográficas estruturais (tomografia computadorizada e ressonância magnética). Por essas técnicas, foi igualmente constatado que, mesmo em pacientes assintomáticos, o uso de cocaína pode estar relacionado à presença de infartos cerebrais.4,7

Mais recentemente, vêm sendo preferencialmente utilizadas técnicas tomográficas funcionais, com a vantagem de propiciarem uma avaliação funcional dinâmica do cérebro: tomografia computadorizada por emissão de fóton único (single photon emission computed tomography – SPECT) e tomografia por emissão de pósitrons (positron emission tomography – PET). Essas técnicas envolvem o uso de traçadores marcados com isótopos radioativos, sendo que uma das medidas mais utilizadas é o fluxo sangüíneo cerebral regional. Sendo o fluxo sangüíneo cerebral habitualmente proporcional à atividade metabólica do cérebro, constitui uma medida sensível da função das células nervosas.

Diversos estudos relataram a ocorrência de alterações do metabolismo e do fluxo sangüíneo cerebral em usuários crônicos de cocaína.5,8,9 Embora algumas dessas alterações possam ser reversíveis com a interrupção do uso da droga,10 pelo menos um estudo11 relata a persistência de perfusão cerebral diminuída mesmo após um período de seis meses de abstinência. Nesse mesmo estudo, pôde ainda ser estabelecida correlação entre o desempenho neuropsicológico e a hipoperfusão cerebral em áreas frontal e temporoparietal, tendo sido evidenciados déficits de atenção, concentração, aprendizado, integração visuomotora e memórias visual e verbal. Entre as limitações desse estudo, destacam-se sua realização em uma amostra de apenas oito indivíduos e a ausência de grupo controle. Ainda que a literatura a respeito seja ainda escassa, as evidências de que se dispõe atualmente sugerem que as alterações funcionais cerebrais encontradas nesses pacientes acompanham-se de comprometimento de funções corticais superiores, segundo avaliações realizadas por meio de provas neuropsicológicas.** Silveira ED, Rossi T, da Silveira DX. Avaliação neuropsicológica de farmacodependentes (em fase de publicação). Silveira ED, Rossi T, da Silveira DX. Avaliação neuropsicológica de farmacodependentes (em fase de publicação).

Estudo realizado por Volkow et al10 demonstrou redução significativa da atividade metabólica frontal, localizada sobretudo à esquerda, em pacientes que abusavam de cocaína após período de abstinência de pelo menos três meses.

Estudo envolvendo usuários de crack, realizado por Weber et al12 em 1993, evidenciou freqüência elevada de diminuição da perfusão cerebral pelo SPECT. Entretanto, nesse estudo, não foi possível estabelecer correlação entre gravidade da alteração funcional e freqüência, intensidade ou duração do consumo de crack.

No presente estudo, padrões de funcionamento cerebral foram avaliados em 30 dependentes de cocaína (aspirada e/ou fumada) por meio de técnica tomográfica cerebral (SPECT), utilizando os isômeros d,l da hexametilpropilenoamina-oxima marcados com tecnécio 99 m (99 m-Tc-HMPAO) como marcador de fluxo sangüíneo cerebral regional. Investigou-se a presença de alterações de fluxo sangüíneo cerebral nesses pacientes, e procuraram-se correlacionar os achados tomográficos com variações no padrão de consumo de cocaína desses pacientes.

Esperava-se encontrar uma grande proporção de exames tomográficos alterados nesse grupo de pacientes. Tinham-se ainda como hipóteses que as alterações fossem mais intensas nos dependentes de crack comparativamente aos dependentes de cocaína aspirada; que os pacientes abstinentes por ocasião do exame pudessem apresentar alterações tomográficas menos intensas comparativamente aos pacientes que ainda estavam consumindo droga; e que a intensidade das alterações eventualmente observadas se correlacionassem com a quantidade utilizada e com o tempo de consumo de cocaína.

MÉTODOS

O estudo foi realizado no Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes) do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM, e no Serviço de Diagnóstico por Imagem do Hospital São Paulo.

Os dados foram coletados entre 1998 e 1999, abrangendo uma amostra de 30 indivíduos do sexo masculino que preenchiam os critérios diagnósticos do DSM-IV para dependência de cocaína. Entre os farmacodependentes que procuraram a triagem do Proad no período das entrevistas, 128 eram dependentes de cocaína. Destes, foram excluídos os dependentes de cocaína que usavam drogas injetáveis, tendo em vista o risco de microembolizações inerentes às práticas de injeção. Foram igualmente excluídos os dependentes HIV positivos em decorrência do neurotropismo do vírus da Aids, uma vez que pacientes com complexo demencial relacionado à Aids podem apresentar padrões de perfusão cerebral similares aos observados em dependentes de cocaína.13 Excluiu-se ainda os dependentes de cocaína que, segundo o DSM-IV, preenchiam critérios diagnósticos para dependência ou que haviam feito uso sistemático de outras substâncias de reconhecido potencial neurotóxico (álcool, anfetaminas e solventes). Os dependentes foram submetidos a entrevistas psiquiátricas para coleta de informações referentes a dados sociodemográficos, padrão de uso de substâncias psicoativas e outros transtornos associados. A partir desses critérios de exclusão, dos 128 dependentes de cocaína resultou uma amostra final de 30 indivíduos que foram subseqüentemente encaminhados à disciplina de Radiologia para realização do exame tomográfico cerebral.

Tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT)

Para a realização do SPECT cerebral, foi utilizado como radiotraçador o HMPAO (Ceretec-Amersham) marcado pelo 99 m Tecnécio (99 m-Tc-HMPAO). O HMPAO (isômeros d,l da hexametilpropileno-amino-oxima) apresenta grande instabilidade in vitro e deve ser administrado dentro de um prazo máximo de 30 minutos após sua reconstrução com 99 mTc. O processo de marcação produz um complexo lipofílico neutro e de baixo peso molecular que, após sua administração endovenosa, é rapidamente retirado da circulação durante sua primeira passagem pelo cérebro, onde atravessa a barreira hematoencefálica intacta. Dentro da célula, o complexo torna-se hidrofílico, perdendo a capacidade de se difundir pela célula, ficando portanto retido sob forma estável. Admite-se um clearance menor que 1% por hora.14

Não há necessidade de preparo prévio dos pacientes para a realização da prova. Após explicar ao paciente os procedimentos a serem realizados, é colocado um acesso venoso no braço, mantendo-o em repouso em decúbito dorsal por 30 minutos em ambiente silencioso e com pouca luminosidade. Os pacientes foram instruídos a permanecer calmos e com os olhos fechados. Esses cuidados visam manter o ambiente sob controle, evitando sobrecarga de estímulos cerebrais. Ao término desse período, injeta-se o 99 m-Tc-HMPAO na dose de 740 mBq (20 mCi) e, 10 a 15 minutos após, inicia-se a aquisição das imagens. Tomou-se cuidado especial no posicionamento do paciente, em especial da cabeça, para mantê-la em posição correta, pois a interpretação dos cortes tomográficos depende de sua orientação. Foi adotado um alinhamento orbitomeatal e procurou-se evitar ao máximo qualquer inclinação lateral. Para evitar a movimentação da cabeça durante o exame, ela foi amarrada com uma fita com velcro.

Foi utilizada uma gama-câmera tomográfica de uma cabeça APEX SPX4-HR (Elscint), equipada com um colimador de furos paralelos de baixa energia e alta resolução. O fotópico foi centrado na energia de 140 KeV (quilo elétron-volt) do 99 m-Tc com uma janela simétrica de 20%. As imagens foram adquiridas com matriz de 64x64x16, sem magnificação, durante uma rotação de 360 graus do cabeçote da gama-câmera em torno da cabeça do paciente em uma órbita circular não contínua. Foi adquirido um total de 60 imagens, uma a cada 6 graus, com tempo de aquisição de 20 segundos por imagem e tempo total de aquisição de 20 minutos. As imagens foram armazenadas, para posterior reconstrução, na memória do computador acoplado. A reconstrução utilizou um programa específico, fornecido pelo fabricante, baseado no método de retroprojeção. Foi feita a correção do decaimento radioativo, aplicado um filtro tipo Butterworth com freqüência de corte de 0,25 MHz e fator de ponderação 4, tendo sido também utilizado um programa de correção de atenuação. Foram reconstruídos os cortes nas projeções transversal, sagital e coronal, com espessura de 0,9 cm e dispostos na tela do monitor para interpretação.

Como não se dispunha de um programa de análise semiquantitativa, as imagens foram interpretadas visualmente por três especialistas habituados a esse tipo de imagem e sem informações sobre a procedência ou o diagnóstico dos pacientes. A interpretação foi obtida por consenso dos observadores. Na interpretação, foi avaliada a distribuição da atividade do radiotraçador nos hemisférios e nos lobos cerebrais, identificando as diferentes áreas corticais e as estruturas subcorticais. As imagens foram classificadas segundo a homogeneidade ou não da distribuição do 99 m-Tc-HMPAO, a localização e a intensidade das alterações observadas, tomando-se a atividade do cerebelo como referência. O exame foi considerado normal quando a distribuição do 99 m-Tc-HMPAO foi simétrica entre os hemisférios e com concentração menor do que a do cerebelo. Foi considerado alterado quando se evidenciou alguma área com concentração radioativa assimétrica e diferente daquela do cerebelo. Foram descritas como focais ou difusas segundo o tamanho da área abrangida. A intensidade da alteração foi classificada como leve, moderada e grave.

A extensão, a localização e a intensidade das alterações tomográficas foram comparadas com o padrão de uso de cocaína dos pacientes. Com relação ao padrão de consumo de cocaína pelo grupo de pacientes, avaliou-se: via de administração; tempo de consumo; quantidade diária de droga consumida; e se os pacientes estavam ou não abstinentes na ocasião da avaliação.

Análise estatística

Para o cálculo das medidas de tendência central dos valores das variáveis, optou-se pelo uso da média aritmética com seu respectivo desvio-padrão e mediana. Uma vez que as variáveis contínuas em estudo não apresentavam distribuição normal, utilizaram-se provas não-paramétricas para comparação das amostras independentes (Mann-Whitney). Utilizou-se o coeficiente de Spearman para verificar a existência de correlações entre as variáveis. Foi adotado nível de significância de 0,05 (p<0,05).

Na análise dos dados foi utilizado o programa de computação SPSS.

RESULTADOS

Características sociodemográficas da amostra

Foram estudados 30 usuários de cocaína do sexo masculino. As idades variaram de 20 a 40 anos, com média de 24,9 anos e desvio-padrão de 5,4, sendo a mediana 23 anos (distribuição não-normal). Quanto ao estado civil, 24 (80%) dos indivíduos eram solteiros, 4 (13,3%) casados, e 2 (6,7%) referiram outra condição civil. No que se refere à raça, 26 (86,7%) eram brancos, e 4 (13,3%) eram negros.

Padrão de uso de drogas

No que se refere à via de utilização da cocaína, 20 (66,7%) pacientes utilizavam cocaína exclusivamente aspirada, 6 (20%) a utilizavam apenas sob a forma de crack, e 4 (13,3%) tanto fumavam crack quanto aspiravam cocaína. O tempo de consumo de drogas variou de 11 a 120 meses, sendo a média de 37,3 meses com desvio-padrão de 30,7 e a mediana 22 meses. Considerando-se os 30 dias imediatamente anteriores à entrevista, 12 (40%) pacientes relataram estar abstinentes da droga. Durante os períodos de uso mais freqüente de droga, a quantidade estimada diária de cocaína consumida (aspirada e/ou fumada) variou de 0,5 a 19 gramas, sendo a mediana 3,0 g e a média 4,3 g com desvio-padrão de 5,1 g. A quantidade de crack consumida nesses períodos variou de 1 a 15 gramas por dia, sendo a mediana 3 g, enquanto que a quantidade de cocaína aspirada variou de 0,5 a 10 gramas, sendo a mediana igualmente 3 g.

Imagem tomográfica funcional

Seis (20%) pacientes apresentavam exame tomográfico normal, 11 (36,7%) apresentavam alterações de grau leve, 11 (36,7%) apresentavam alterações de grau moderado, e 2 (6,7%) pacientes apresentavam alterações graves da perfusão cerebral.

Quanto à localização do comprometimento, em 4 (13,3%) pacientes as alterações eram exclusivamente focais, em 8 (26,7%) as alterações eram exclusivamente difusas, e 12 (40%) pacientes apresentavam alterações difusas do fluxo cerebral, sendo, porém, o comprometimento mais intenso em determinadas regiões do cérebro. Quatro (13,3%) pacientes apresentavam hipoperfusão difusa predominantemente no hemisfério esquerdo, e 2 (6,7%) apresentavam comprometimento exclusivo do hemisfério esquerdo. Com exceção do predomínio de alterações de perfusão localizadas no hemisfério esquerdo, não foi observado padrão característico de localização das alterações, visto que 4 (13,3%) pacientes apresentavam hipoperfusão restrita aos lobos frontais bilateralmente, 2 (6,7%) em lobo frontal direito, 2 (6,7%) em região parietoccipital esquerda, 2 (6,7%) em região temporoparietal esquerda e dois (6,7%) hipoperfusão concomitante em região temporal esquerda e frontal bilateralmente.

Apresenta-se a seguir parte dos resultados do exame tomográfico funcional de um dos pacientes dependentes químicos que integraram o estudo. A Figura 1 mostra imagem tomográfica cerebral (SPECT) de um dependente de cocaína e de crack de 22 anos, do sexo masculino, evidenciando distribuição heterogênea do radiotraçador (99 m-Tc-HMPAO) e hipoconcentração focal nos lobos frontais. Comparativamente, a Figura 2 apresenta imagens de um exame tomográfico funcional normal (SPECT).



Examinou-se a possível influência de algumas variáveis no padrão e na intensidade das alterações funcionais evidenciadas pelo SPECT.

Não foram observadas diferenças de perfusão cerebral entre usuários de crack (cocaína fumada) e de cloridrato de cocaína (cocaína aspirada) (prova de Mann-Whitney: U=16,0; Z=-0,912; p=0,438). Tampouco foi possível distinguir, pelas alterações tomográficas, os dependentes em abstinência dos dependentes na vigência do uso (prova de Mann-Whitney: U=19,0; Z=-0,679; p=0,573). A quantidade diária de droga utilizada relatada nos períodos de consumo mais freqüentes não exerceu influência detectável na perfusão cerebral dos pacientes (coeficiente de correlação de Spearman: r=0,225; p=0,439). Das variáveis estudadas, o tempo de consumo da droga foi a única variável para qual foi constatada influência nos padrões de imagem tomográfica encontrados.Observou-se correlação positiva entre o número de meses durante os quais os pacientes cosumiram droga e ograu decomprometimento da perfusão celebral (coeficiente de correlação de Spearman: r=0,45,p<0,05).

DISCUSSÃO

Complicações neurovasculares do uso de cocaína podem ser responsabilizadas pelos elevados índices de morbidade e mortalidade observados em jovens usuários. Embora estejam bem documentados casos de patologia neurovascular em dependentes de cocaína,15,16 os usuários assintomáticos ou aqueles com sintomas neurológicos menos evidentes são mais dificilmente identificados. À semelhança do que é descrito na literatura, neste estudo, o SPECT demonstrou a existência de alterações de perfusão cerebral na maioria dos dependentes de cocaína.

Pode-se considerar que nesses pacientes não se observou um padrão típico de alteração funcional cerebral. Embora tenha sido constatado um predomínio de comprometimento do hemisfério esquerdo, muitos pacientes igualmente apresentaram hipoperfusão à direita. Quanto às áreas comprometidas, dependendo do indivíduo, foram encontradas alterações em localização frontal, parietal, temporal e occipital. Tais achados são consistentes com a literatura, em que se encontram descrições de infartos em ramos das artérias carótidas, vertebrais e basilares.

À semelhança de outros trabalhos,10,11 no presente estudo, os dependentes de cocaína que referiram estar em abstinência não se diferenciaram dos dependentes que relataram ainda estar consumindo a droga. Esses achados sugerem que as alterações tomográficas encontradas provavelmente tenham um caráter mais estável, não se tratando apenas da expressão de exposição recente à substância. Ainda que possa ser questionado o fato de que neste estudo o período de abstinência ter sido de apenas um mês, nos estudos de Volkow et al10 e de Strickland et al,11 os períodos de abstinência utilizados foram de 3 e 6 meses, respectivamente. Ressalta-se, entretanto, que a questão da reversibilidade das alterações funcionais cerebrais em dependentes de cocaína em abstinência é ainda controvertida. Destaca-se ainda que, sobretudo no âmbito da pesquisa científica, é questionável a validade dos relatos desses pacientes no que se refere a períodos de abstinência de drogas.

Contrariamente ao esperado, as alterações de perfusão cerebral não foram mais intensas nos dependentes que faziam uso de crack, comparativamente àqueles que usavam somente cocaína aspirada. Cabe salientar, entretanto, que o tamanho reduzido da amostra dificulta que sejam feitas generalizações a partir desses achados.

Neste estudo, não foi possível estabelecer a influência da quantidade diária de droga utilizada no padrão de perfusão cerebral dos pacientes. No entanto, questiona-se esse dado na medida que pode ter havido problemas relacionados à confiabilidade das informações prestadas. Julga-se pouco provável que os pacientes tenham podido informar com precisão a quantidade de substância utilizada nos períodos de uso mais freqüente. Esse viés de recordação ("recall bias") se torna particularmente importante por se tratar de uma amostra em que 80% dos pacientes apresentaram hipoperfusão cerebral, o que muito provavelmente deve se acompanhar de comprometimento de funções cognitivas. Destaca-se ainda serem extremamente imprecisas as estimativas, referidas pelos pacientes, da quantidade de cocaína efetivamente consumida, em decorrência da grande variabilidade do grau de pureza da substância disponível no mercado negro.

Nesses pacientes, observou-se a existência de correlação entre o tempo de consumo da droga e a intensidade das alterações funcionais cerebrais. Dentro do âmbito do conhecimento dos autores deste estudo, este é o primeiro trabalho na literatura em que foi possível estabelecer nítida relação entre o padrão de consumo de cocaína e o grau de comprometimento da perfusão cerebral. Ressalta-se, entretanto, que a fraca correlação observada (0,45) sugere a existência de outros fatores influenciando a grande variabilidade das alterações funcionais cerebrais observadas, ainda que, no âmbito da especulação, supõe-se que a quantidade de cocaína fetivamente consumida poderia explicar considerável parcela da variabilidade encontrada. Estudos similares, envolvendo maior número de dependentes de cocaína e pelos quais se possa conhecer com maior precisão a quantidade de droga efetivamente utilizada por esses pacientes, muito provavelmente permitirão que se possa verificar a influência no fluxo sangüíneo cerebral da inter-relação entre a quantidade de droga consumida e o período de consumo correspondente.

Diversos outros fatores poderiam influenciar na grande variabilidade das alterações funcionais cerebrais, entre os quais se destacam o uso de outras substâncias psicoativas e a presença de contaminantes na substância consumida. Infelizmente, a metodologia utilizada neste trabalho impede o aprofundamento no exame dessas questões.

O método utilizado na avaliação do grau de severidade das alterações de perfusão cerebral é limitado pela sua subjetividade, sendo algumas vezes difícil qualificar com precisão quando uma área de hipoperfusão deixa, por exemplo, de ser classificada como "leve" e para "moderada". Pesquisas futuras, utilizando métodos quantitativos mais objetivos, poderão ser usadas para verificar com maior acurácia os dados obtidos neste estudo.

O serviço de diagnóstico por imagem, em decorrência de limitações de ordem ética, não autorizou a inclusão de um grupo-controle de voluntários normais, impossibilitando comparar diretamente de forma "cega" as imagens tomográficas cerebrais dos dependentes de cocaína com indivíduos saudáveis, usando a mesma metodologia, o que poderia ter fornecido informações extremamente enriquecedoras.

Ressentiu-se, igualmente, da falta de estudos mais abrangentes que pudessem relacionar padrões de comprometimento funcional cerebral com o desempenho em provas neuropsicológicas específicas.

A utilização da imagem tomográfica funcional abre novo campo no conhecimento do cérebro. Tratando-se de uma técnica que detecta precocemente alterações na perfusão cerebral, sobretudo em pacientes jovens assintomáticos, configura instrumento valioso na compreensão da fisiopatologia da dependência de drogas.

Correspondência

Dartiu Xavier da Silveira

Rua dos Otonis, 887

04025-002 São Paulo, SP, Brasil

E-mail: dartiu@psiquiatria.epm.br

Última versão recebida em 18/9/2000. Aceito em 25/9/2000.

Fonte de financiamento e conflito de interesses inexistentes.

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  • * Silveira ED, Rossi T, da Silveira DX. Avaliação neuropsicológica de farmacodependentes (em fase de publicação).
    Silveira ED, Rossi T, da Silveira DX. Avaliação neuropsicológica de farmacodependentes (em fase de publicação).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Mar 2001

    Histórico

    • Aceito
      25 Set 2000
    • Recebido
      18 Set 2000
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