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Oportunidade e desafio: a situação da saúde mental da infância e adolescência no Brasil

EDITORIAL

Oportunidade e desafio: a situação da saúde mental da infância e adolescência no Brasil

Christian KielingI; Myron BelferII

IDepartment of Psychiatry, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

IIDepartment of Psychiatry, Children's Hospital Boston, Harvard Medical School, Boston, MA, EUA

O campo da saúde mental da infância e da adolescência é relativamente novo entre outras especialidades médicas. O crescimento apresentado pela disciplina nas últimas décadas, porém, não se deu de maneira uniforme em todas as regiões geográficas. Certamente houve avanços em termos da descrição de problemas emocionais, comportamentais e intelectuais entre os jovens. As classificações diagnósticas (CID-10 e DSM-IV) se mostraram construtos úteis para a identificação de indivíduos portadores de problemas de saúde mental - embora discussões recentes no contexto das revisões demonstrassem fraquezas na captura da complexidade dos transtornos e alguns investigadores tenham sugerido uma ênfase maior em abordagens dimensionais, especialmente no que diz respeito transtornos de crianças e adolescentes. O desenvolvimento de intervenções para o tratamento de transtornos mentais de crianças e adolescentes tem sido muito produtivo, com intervenções psicossociais, psicofarmacológicas e combinadas já descritas para muitos transtornos, porém o desafio do momento consiste em ampliar a base de evidências das intervenções aceitas. A adoção mais recente de uma perspectiva desenvolvimental enfatizou a necessidade de identificação precoce dos indivíduos em risco e da elaboração de estratégias preventivas para reduzir a carga de transtornos mentais, não apenas na infância e na adolescência, como também em todo o ciclo vital. O maior desafio continua a ser o fato de que a maioria esmagadora das 2,2 bilhões de crianças e adolescentes em todo o mundo, especialmente em países de renda baixa e média, não têm acesso a um diagnóstico adequado e a cuidados médicos apropriados.

Os problemas de saúde mental são reconhecidos atualmente como sendo responsáveis por uma proporção significativa da carga global de doença. Um transtorno mental diagnosticável está presente em pelo menos uma de cada dez em crianças e adolescentes,1 constituindo uma importante causa de morbimortalidade em todo o mundo. Entre jovens com idade de 10-24 anos, os transtornos neuropsiquiátricos são responsáveis por 45% dos anos de vida ajustados para incapacidade.2 Ao mesmo tempo, crescem as evidências demonstrando que uma proporção significativa dos diagnósticos psiquiátricos identificados em adultos têm suas raízes na infância e na adolescência.3 Embora uma certa proporção dos problemas de saúde mental remeta-se após a infância e a adolescência, um grande número de indivíduos vai continuar a apresentar transtornos semelhantes (continuidade homotípica) ou novos (continuidade heterotípica) depois de chegar à idade adulta. Nesse sentido, pode-se argumentar que grande parte da carga de doença imposta por transtornos mentais, neurológicos e por uso de substâncias em todo o mundo pode ser atribuída à incidência desses transtornos cedo da vida e à sua persistência até idades mais avançadas.

Esse número da Revista Brasileira de Psiquiatria apresenta dois artigos que enfatizam a relevância de se melhorar o cuidado de crianças e adolescentes com problemas de saúde mental. Como parte do World Health Organization - World Mental Health Survey Consortium, o São Paulo Mental Heath Survey estimou uma prevalência em toda a vida de 44,8% para indivíduos com idade acima de 18 anos, fornecendo dados por métodos comparáveis aos de levantamentos realizados em todo o mundo. O estudo de Viana e Andrade4 não apenas traz informações valiosas à área da epidemiologia da saúde mental de adultos ao realizar um levantamento na maior área metropolitana da América Latina como também confirma o fato de que os transtornos mentais têm início precocemente na vida: metade de todos os diagnósticos identificados no levantamento foi relatada como já estando presente na infância e na adolescência; um quarto deles antes dos 9 anos. Em metade de todos os casos de transtornos ansiosos foi relatada uma idade de início anterior aos 13 anos. Os transtornos de controle de impulsos também apresentaram um início muito precoce, com 75% dos indivíduos relatando o início antes dos 18 anos. No que diz respeito aos transtornos afetivos, 25% dos casos tiveram início antes dos 23 anos.

Em um artigo especial, Cristiane Paula e colegas apresentaram e discutiram o contexto brasileiro da saúde mental da infância e da adolescência.5 A escassez de serviços dedicados à promoção da saúde mental de crianças e adolescentes, especialmente no setor público, é evidente. Embora a criação dos Centros de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPSi) tenha sido uma iniciativa muito bem vinda do setor público, o número reduzido de unidades em todo o país e o foco nos casos mais graves ainda deixam sem assistência a grande maioria dos jovens com problemas de saúde mental. Os autores também discutiram as disparidades sem termos de recursos humanos. É evidente que os 300 psiquiatras da infância e adolescência no país (distribuídos de maneira não uniforme pelas regiões geográficas) vão ter de colaborar com outros profissionais treinados a lidar com problemas de saúde mental da infância e da adolescência. É urgentemente necessária a implementação de serviços tanto de cuidado primário quanto de cuidado especializado (indo além do modelo CAPSi). Como diferentes níveis de cuidado deveriam ser capazes de colaborar uns com os outros, uma expansão conjunta pode alavancar oportunidades de parceria dentro do setor de saúde e fora dele. O Brasil está em uma posição singular no mundo por um continuum sem paralelo de modelos e estratégias de serviços. A presença dos Conselhos Tutelares, CAPSi, ESF e NASF propicia grande parte do arcabouço básico necessário para a expansão de um cuidado de qualidade e sensibilidade a crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais. O desafio para o Brasil está em encontrar bases comuns para a justificativa e a vontade política de alocar os recursos necessários para que se veja esses serviços necessários providos de maneira equitativa em todo o país.

References

1. Kieling C, Baker-Henningham H, Belfer M, Conti G, Ertem I, Omigbodun O, Rohde LA, Srinath S, Ulkuer N, Rahman A. Child and adolescent mental health worldwide: evidence for action. Lancet. 2011;378(9801):1515-25.

2. Gore FM, Bloem PJ, Patton GC, Ferguson J, Joseph V, Coffey C, Sawyer SM, Mathers CD. Global burden of disease in young people aged 10-24 years: a systematic analysis. Lancet. 2011;377(9783):2093-102.

3. Kessler RC, Angermeyer M, Anthony JC, DE Graaf R, Demyttenaere K, Gasquet I, DE Girolamo G, Gluzman S, Gureje O, Haro JM, Kawakami N, Karam A, Levinson D, Medina Mora ME, Oakley Browne MA, Posada-Villa J, Stein DJ, Adley Tsang CH, Aguilar-Gaxiola S, Alonso J, Lee S, Heeringa S, Pennell BE, Berglund P, Gruber MJ, Petukhova M, Chatterji S, Ustün TB. Lifetime prevalence and age-of-onset distributions of mental disorders in the World Health Organization's World Mental Health Survey Initiative. World Psychiatry. 2007;6(3):168-76.

4. Viana MC, Andrade L. Lifetime prevalence, age and gender distribution and age of onset of psychiatric disorders in the São Paulo metropolitan area, Brazil: results from the São Paulo Megacity Mental Health Survey. Rev Bras Psiquiatr. 2012;34:[ePub ahead of print].

5. Paula C, Ribeiro E, Wissow L, Lawrence, Bordin I, Evans-Lacko S. How to improve the mental health care of children and adolescents in Brazil: actions needed in the public sector. Rev Bras Psiquiatr. 2012;34:[ePub ahead of print].

1. Kieling C, Baker-Henningham H, Belfer M, Conti G, Ertem I, Omigbodun O, Rohde LA, Srinath S, Ulkuer N, Rahman A. Child and adolescent mental health worldwide: evidence for action. Lancet. 2011;378(9801):1515-25.

2. Gore FM, Bloem PJ, Patton GC, Ferguson J, Joseph V, Coffey C, Sawyer SM, Mathers CD. Global burden of disease in young people aged 10-24 years: a systematic analysis. Lancet. 2011;377(9783):2093-102.

3. Kessler RC, Angermeyer M, Anthony JC, DE Graaf R, Demyttenaere K, Gasquet I, DE Girolamo G, Gluzman S, Gureje O, Haro JM, Kawakami N, Karam A, Levinson D, Medina Mora ME, Oakley Browne MA, Posada-Villa J, Stein DJ, Adley Tsang CH, Aguilar-Gaxiola S, Alonso J, Lee S, Heeringa S, Pennell BE, Berglund P, Gruber MJ, Petukhova M, Chatterji S, Ustün TB. Lifetime prevalence and age-of-onset distributions of mental disorders in the World Health Organization's World Mental Health Survey Initiative. World Psychiatry. 2007;6(3):168-76.

  • 1. Kieling C, Baker-Henningham H, Belfer M, Conti G, Ertem I, Omigbodun O, Rohde LA, Srinath S, Ulkuer N, Rahman A. Child and adolescent mental health worldwide: evidence for action. Lancet. 2011;378(9801):1515-25.
  • 2. Gore FM, Bloem PJ, Patton GC, Ferguson J, Joseph V, Coffey C, Sawyer SM, Mathers CD. Global burden of disease in young people aged 10-24 years: a systematic analysis. Lancet. 2011;377(9783):2093-102.
  • 3. Kessler RC, Angermeyer M, Anthony JC, DE Graaf R, Demyttenaere K, Gasquet I, DE Girolamo G, Gluzman S, Gureje O, Haro JM, Kawakami N, Karam A, Levinson D, Medina Mora ME, Oakley Browne MA, Posada-Villa J, Stein DJ, Adley Tsang CH, Aguilar-Gaxiola S, Alonso J, Lee S, Heeringa S, Pennell BE, Berglund P, Gruber MJ, Petukhova M, Chatterji S, Ustün TB. Lifetime prevalence and age-of-onset distributions of mental disorders in the World Health Organization's World Mental Health Survey Initiative. World Psychiatry. 2007;6(3):168-76.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Out 2012
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