Resumos
Só recentemente a Psiquiatria Brasileira começou a reconhecer a importância do diagnóstico do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Embora os brasileiros tenham uma alta prevalência de exposição a eventos traumáticos, como acidentes e homicídios, há poucos estudos teóricos e empíricos sobre o TEPT em nosso país. Este artigo tem como foco descrever brevemente o diagnóstico de TEPT, detalhando sua fenomenologia. Após discutir a definição de evento traumático, nós focalizamos nos desafios do exame psíquico desses pacientes. Em seguida enfatiza-se a descrição dos sintomas do TEPT, dando exemplos clínicos para ilustrar os mais importantes conceitos psicopatológicos. Concluímos, salientando a importância do diagnóstico de TEPT para a Psiquiatria, pois ele fornece uma estrutura referencial-conceitual para a pesquisa dos efeitos do estresse e do trauma.
Transtorno de estresse pós-traumático; Diagnóstico; Transtornos de ansiedade
Only recently, Brazilian psychiatry has acknowledged the importance of the diagnosis of posttraumatic stress disorder (PTSD). Despite the fact that Brazilians have a high prevalence of exposure to traumatic events, such as accidents and homicides, there are few theoretical and empirical studies about PTSD in Brazil. This paper provides a brief review of the diagnosis of PTSD. Following a discussion of the main issues on the definition of traumatic event, we focused our discussion on the challenges of the psychiatric examination of patients with PTSD. In the last section of the paper, the authors emphasize the description of the PTSD symptoms and provide clinical vignettes to illustrate important psychopathological concepts. In conclusion, the importance of the diagnosis of PTSD in psychiatry is highlighted inasmuch as it provides an observational framework for investigating the effects of stress and trauma.
Posttraumatic stress disorder; Diagnosis; Anxiety disorders
Diagnóstico do transtorno de estresse pós-traumático
Diagnosis of the posttraumatic stress disorder
Ivan FigueiraI; Mauro MendlowiczII
IDepartamento de Psiquiatria e Saúde Mental. Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIDepartamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Ivan Figueira Rua Dona Mariana, 182 Bloco 1 apto 1503 22280-020 Botafogo, RJ, Brasil
RESUMO
Só recentemente a Psiquiatria Brasileira começou a reconhecer a importância do diagnóstico do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Embora os brasileiros tenham uma alta prevalência de exposição a eventos traumáticos, como acidentes e homicídios, há poucos estudos teóricos e empíricos sobre o TEPT em nosso país. Este artigo tem como foco descrever brevemente o diagnóstico de TEPT, detalhando sua fenomenologia. Após discutir a definição de evento traumático, nós focalizamos nos desafios do exame psíquico desses pacientes. Em seguida enfatiza-se a descrição dos sintomas do TEPT, dando exemplos clínicos para ilustrar os mais importantes conceitos psicopatológicos. Concluímos, salientando a importância do diagnóstico de TEPT para a Psiquiatria, pois ele fornece uma estrutura referencial-conceitual para a pesquisa dos efeitos do estresse e do trauma.
Descritores: Transtorno de estresse pós-traumático. Diagnóstico. Transtornos de ansiedade.
ABSTRACT
Only recently, Brazilian psychiatry has acknowledged the importance of the diagnosis of posttraumatic stress disorder (PTSD). Despite the fact that Brazilians have a high prevalence of exposure to traumatic events, such as accidents and homicides, there are few theoretical and empirical studies about PTSD in Brazil. This paper provides a brief review of the diagnosis of PTSD. Following a discussion of the main issues on the definition of traumatic event, we focused our discussion on the challenges of the psychiatric examination of patients with PTSD. In the last section of the paper, the authors emphasize the description of the PTSD symptoms and provide clinical vignettes to illustrate important psychopathological concepts. In conclusion, the importance of the diagnosis of PTSD in psychiatry is highlighted inasmuch as it provides an observational framework for investigating the effects of stress and trauma.
Keywords: Posttraumatic stress disorder. Diagnosis. Anxiety disorders.
Introdução
Em todas as ocasiões nas quais o espectro da guerra passa a rondar a humanidade, a existência da síndrome do estresse pós-traumático (TEPT) é trazida para o primeiro plano. Foi assim na Guerra Civil Americana (síndrome do coração irritável), na Primeira Guerra Mundial (choque da granada), na Segunda Guerra Mundial (síndrome de esforço, neurose de guerra), na guerra do Vietnam e, mais recentemente, nos atentados do dia 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono. Esse ataque, por exemplo, fez com que o prestigioso New England Journal of Medicine publicasse, em 2002, um editorial1 e uma revisão2 chamando a atenção para a relevância do TEPT.
No Brasil, ironicamente, o diagnóstico de TEPT tem recebido pouquíssima atenção, a despeito dos acidentes automobilísticos e da violência configurarem um problema de saúde pública de grande magnitude e transcendência.3 O Brasil é o terceiro no ranking mundial de mortes por arma de fogo entre jovens de 15 a 24 anos, atrás da Colômbia e de Porto Rico,4 superando as estatísticas de conflitos como o da Palestina. Essa alta prevalência de eventos traumáticos aponta para a necessidade imperiosa de que sejam produzidos revisões e estudos empíricos nacionais sobre o TEPT, que é o principal transtorno psiquiátrico associado aos acidentes e violências.
São duas as características centrais do TEPT: o evento traumático a exposição a um evento que envolva a ocorrência ou a ameaça consistente de morte ou ferimentos graves para si ou para outros, associada a uma resposta intensa de medo, desamparo, ou horror; e a tríade psicopatológica em resposta a este evento traumático, desenvolvem-se três dimensões de sintomas: o re-experimentar do evento traumático, a evitação de estímulos a ele associados e a presença persistente de sintomas de hiperestimulação autonômica.
Definição de evento traumático
Para ser diagnosticada como sofrendo de TEPT, a pessoa exposta a um evento traumático deve, segundo o DSM-IV, satisfazer inicialmente as duas partes do critério "A", destacadas abaixo:
1. A pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que envolveram ameaça de morte ou de grave ferimento físico, ou ameaça a sua integridade física ou à de outros;
2. A pessoa reagiu com intenso medo, impotência ou horror;
O critério A do DSM-IV, referente ao conceito de evento traumático, tem um papel crucial no diagnóstico do TEPT. Ele representa a "porta-de-entrada" para esse diagnóstico. Não ocorrendo um evento traumático, não existe a possibilidade de diagnosticar o TEPT. Mas o entendimento do que é um evento traumático vem sendo revisto constantemente, desde a oficialização do diagnóstico de TEPT com o DSM-III. Essas modificações levaram a uma expansão da latitude do conceito de evento traumático e, em conseqüência, a um aumento na prevalência estimada do TEPT. A seguir, descreveremos as etapas mais importantes da evolução do conceito de "evento traumático".
No DSM-III, o "evento traumático" era visto como um acontecimento catastrófico, raro e externo que diferia qualitativamente "das experiências comuns como o luto, doença crônica, perdas comerciais ou conflitos matrimoniais". Os eventos catastróficos definidos pelo DSM-III incluíam tortura, estupro, agressão física, combate militar, aprisionamento em campo de extermínio, desastres naturais ou industriais, acidentes de carro ou exposição à violência de guerra, violência civil e violência doméstica.
Pesquisas subseqüentes demonstraram que os "eventos traumáticos" não eram raros, nem preponderantemente externos. O fato dos eventos traumáticos não serem raros foi amplamente documentado por estudos epidemiológicos que revelaram elevadas taxas de 40% a 90% na população americana.5 Pode-se supor que países como Brasil, cuja taxa de mortalidade por arma de fogo é das maiores do mundo e é líder em acidentes, provavelmente, têm uma prevalência bem mais elevada de eventos traumáticos do que os EUA.
Verificou-se também que os eventos traumáticos não são apenas eventos externos. Se assim fosse, esperaríamos que as taxas de TEPT fossem similares as dos eventos traumáticos. Mas o que vem intrigando os pesquisadores é que a grande maioria das pessoas expostas a eventos traumáticos catastróficos não desenvolve TEPT, sugerindo que a resistência emocional média das pessoas é elevada. Assim, por exemplo, 91% das mulheres americanas envolvidas em acidentes não apresentam esta síndrome.2 Percebe-se que fatores individuais biopsicossociais podem fazer com que uma pessoa desenvolva TEPT e outra não.
A ênfase das pesquisas tem, portanto, deslocado-se dos fatores puramente externos para os fatores internos/subjetivos das pessoas. Desse modo, a resposta emocional ao evento traumático tem recebido crescente atenção, fato respaldado por dados empíricos. Ou seja, não basta ser exposto a uma situação de risco de vida para se desenvolver o TEPT, faz-se ainda necessário ter reagido a ela com "intenso medo, impotência ou horror" (critério A2 do DSM-IV).
Dificuldades no exame psíquico dos pacientes com TEPT
Para que o diagnóstico de TEPT seja feito, clínicos e pacientes têm que superar diversas barreiras de comunicação. Ambos podem ficar constrangidos em abordar temas que estejam associados ao segredo e à vergonha.2 Caso o clínico não ouse questionar de forma direta, o paciente dificilmente tomará a iniciativa de revelar fatos, tais como, ter sido abusado sexualmente na infância. Mas, uma vez abordado o tema, geralmente o paciente consegue falar sobre ele. Faz parte da sintomatologia do TEPT evitar tocar nestes assuntos traumáticos, cabendo ao clínico abordá-los com tato e respeito, de modo a poder fazer o diagnóstico de TEPT e, assim, melhor tratar seu paciente.
Esse constrangimento em falar sobre eventos traumáticos ocorre principalmente nas mulheres, uma vez que o trauma sexual é a causa mais comum de TEPT no sexo feminino.6 Mulheres com TEPT ainda não reconhecido são amiúde atendidas em unidades de cuidados primários, mas os médicos raramente fazem esse diagnóstico. Desenvolver programas de treinamento para que os clínicos passem a detectar o TEPT e aprendam estratégias de tratamento é, portanto, de fundamental importância.
Uma vez que alguns pacientes com TEPT dificilmente falarão espontaneamente sobre os traumas por ele sofridos, recomenda-se que os clínicos desenvolvam um conjunto de perguntas a serem aplicadas em todos casos "suspeitos". Deve-se considerar casos suspeitos aqueles com maiores probabilidades de apresentar o diagnóstico de TEPT pacientes com sintomas depressivos, ansiosos e/ou com história de uso/abuso de drogas. Não se deve esquecer, tampouco, dos pacientes com queixas somáticas vagas e daqueles que relatam fraturas e machucados "estranhos" (i.e. que podem estar sendo espancados ou abusados sexualmente). As perguntas devem ser feitas dentro de uma abordagem empática, receptiva, sem pré-julgamentos, expressando interesse real pelo paciente. Os eventos traumáticos devem ser abordados de forma direta.
Exemplo de perguntas:
"Você alguma vez já sofreu acidente de carro ou atropelamento?"
"Já sofreu alguma agressão física?"
"Já foi assaltado alguma vez?"
"Alguma vez foi vítima de violência sexual?"
"Você poderia me falar sobre isso?"
Uma resposta positiva deve alertar o clínico para o relacionamento entre esses eventos traumáticos e as queixas físicas e/ou psíquicas atuais do paciente.7 Mesmo quando confrontado com respostas negativas, muitas vezes o médico percebe que algo há de errado com o paciente nesta área. Nesses casos, é preciso esperar pacientemente até ganhar a confiança do paciente e, em seguida, tentar uma abordagem menos direta (e.g. fazendo perguntas do tipo "Você se sente seguro em casa?" para investigar casos suspeitos de violência doméstica).
Formas de apresentação do TEPT na clínica geral
Freqüentemente, os pacientes com TEPT são atendidos em unidades de cuidados primários e ambulatórios de clínica médica, com queixas somáticas mais ou menos vagas. Podem ainda ir a um neurologista, queixando-se de cefaléia, a um gastroenterologista, por conta de uma epigastralgia, ou a um cardiologista, devido a palpitações. Em contrapartida, pacientes com TEPT podem ativamente evitar certos especialistas e modalidades de exames: por exemplo, pacientes vítimas de estupro podem se sentir muito mal apenas com a idéia de se submeterem a um exame ginecológico.2
Pacientes com neoplasias podem desenvolver TEPT ao serem informados a respeito desse diagnóstico e, devido a isso, apresentarem sintomas de evitação, não aderindo aos esquemas de tratamentos e evitando comparecer a suas consultas hospitalares. Essa é uma área nova na pesquisa do TEPT. Só recentemente, percebeu-se que condições clínicas potencialmente graves, como as neoplasias ou as doenças coronarianas, poderiam constituir-se em um evento traumático e resultar na síndrome do TEPT.8
Diagnóstico do TEPT
O TEPT é um transtorno de ansiedade precipitado por um trauma. O traço essencial deste transtorno é que seu desenvolvimento está ligado a um evento traumático de natureza extrema. Uma fração significativa dos sobreviventes de experiências traumáticas irá desenvolver uma constelação aguda de sintomas de TEPT, que pode ser dividida em três grupos: revivescência do trauma, esquiva/entorpecimento emocional e hiperestimulação autonômica. O TEPT é diagnosticado se esses sintomas persistirem por quatro semanas após a ocorrência do trauma e se redundarem em comprometimento social e ocupacional significativos. Os critérios do DSM-IV9 para o diagnóstico de TEPT estão resumidos na Tabela.
Os critérios de TEPT pelo DSM-IV são muito semelhantes aos da CID-10.10 Entretanto, há algumas diferenças importantes entre os dois sistemas. A mais significativa delas diz respeito à ênfase reduzida dada pelo sistema CID-10 aos sintomas de esquiva/entorpecimento e de hiperestimulação.11
Quadro clínico A tríade psicopatológica
Revivescência do trauma
O primeiro grupo de sintomas do TEPT é o relacionado às revivescências do trauma. Esses sintomas de reexperimentação do trauma são específicos do TEPT, não sendo observados em outros transtornos psiquiátricos. As revivescências podem se apresentar sob diversas formas: sonhos vívidos, pesadelos, pensamentos ou sentimentos incontroláveis, flashbacks. O paciente queixa-se de pensamentos, imagens, sentimentos e comportamentos recorrentes relacionados ao evento traumático. Estes fenômenos são dolorosos e tentam repetidamente tornar-se conscientes e dominar a atenção da pessoa. Tais recordações são intrusivas, pois surgem na mente e tendem a permanecer nela, ainda que o paciente tente lutar contra este pensamento (Charcot, 1887, um dos primeiros a descrever as seqüelas de traumas emocionais, chamava essas intrusões de "parasitas da mente").
Às vezes, as intrusões surgem de modo inopinado, torturando o paciente no seu momento de lazer. Por exemplo, quando a imagem do rosto do assaltante aparece enquanto a pessoa está vendo televisão, comendo pipoca e tentando permanecer serena. Essas recordações intrusivas comumente provocam sentimentos de medo, terror, raiva, impotência, vulnerabilidade, vergonha, tristeza e culpa. Os pesadelos são uma modalidade comum de se reviver o trauma. Todo paciente com queixas de pesadelos recorrentes deve ser investigado quanto à existência de eventos traumáticos.
Essa característica peculiar do TEPT a de apresentar exuberante fenômenos psicopatológicos centrados em revivescências intrusivas extremamente dolorosas faz com que alguns autores considerem esse transtorno uma modalidade de patologia da memória. Segundo esses, os pacientes ficariam irremediavelmente presos a um passado perenizado e viveriam um presente esvaziado como se fossem meros autômatos.
Exemplo clínico:
Nas palavras de Sandra, 17 anos, vítima de estupro: "... o pior não foi o estupro em si, mas as inúmeras vezes em que eu vivo a sensação concreta de estar sendo estuprada novamente... inclusive sinto as reações fisiológicas de meu corpo, como se tudo estivesse acontecendo de novo.... sinto aquele bafo repulsivo de bebida.....é horrível!..."
Os flashbacks são geralmente precipitados por estímulos associados ao trauma.
Exemplo clínico:
"Um policial militar, 27 anos, que viu um amigo morrer atingindo por tiros durante uma incursão numa favela do Rio. Esta operação militar foi apoiada por um helicóptero da Polícia Civil. Desde então, mesmo quando está fora de serviço, seja em casa ou na praia, sempre que ouve o ruído de um helicóptero, joga-se ao chão, procurando escapar das balas (imaginárias) dos traficantes. Em algumas ocasiões, chega a ouvir o barulho de tiros com toda a clareza, o que aumenta o seu pavor."
Esse caso ilustra como, durante episódios dissociativos, alguns pacientes podem chegar a apresentar ilusões e fenômenos alucinatórios transitórios, bem como outros sintomas psicóticos.
Esquiva e entorpecimento emocional
Os pacientes usam uma série de estratégias emocionais, cognitivas e comportamentais para minorizarem o sofrimento e o terror causado pelas revivescências traumáticas e pelos sintomas de hiperestimulação autonômica a elas associados. Essas estratégias resultam em comportamentos variados de esquiva e no desenvolvimento de um entorpecimento emocional (anestesia emocional ou numbing).
A esquiva corresponde a uma tentativa desesperada de evitar contato com tudo que relembre o trauma. Classicamente, o paciente evita falar, pensar ou ir a locais associados ao trauma. Em alguns casos, pode ocorrer o fenômeno da amnésia psicogênica.
Exemplo Clínico:
"Carlos, nove anos, testemunhou o assassinato da mãe pelo pai alcoolizado. O menino relatou que se lembrava de que o pai havia chegado bêbado em casa e de que tinha começado a gritar com todos. Não se recordava de nada do que tinha ocorrido nos momentos seguintes, embora uma tia sua tivesse contado que ele presenciara o assassinato, enquanto estava petrificado num canto da sala."
A evitação pode assumir formas sutis. Para fugir das lembranças intrusivas, o paciente pode se drogar (para anestesiar o sofrimento psíquico) ou utilizar mecanismos dissociativos, que servem para manter fora da consciência os pensamentos e sentimentos penosos.12 O paciente pode também apresentar uma redução do interesse ou da participação em atividades que antes lhe eram importantes. Para se fazer o diagnóstico correto, é essencial atentar para coincidência cronológica entre a ocorrência do evento traumático e a mudança do padrão de comportamento.
O entorpecimento psíquico (numbing) é outra manifestação dos mecanismos psicológicos através dos quais os pacientes com TEPT se "anestesiam" para escapar do terror, do pânico e do sofrimento intoleráveis acarretados pelos sintomas de revivescência do trauma.13 O problema é que esse entorpecimento anestesia, não somente as memórias dolorosas, como também as emoções positivas. O paciente passa a ficar indiferente frente a coisas que antes lhe eram prazerosas, como fazer viagens, falar com amigos, ouvir música e brincar com os filhos.
Exemplo Clínico:
"Jonas, 28 anos, auxiliar de enfermagem, era membro de uma equipe de resgate que fazia o atendimento a um traficante ferido numa favela, surpreendido pelo retorno dos traficantes rivais, que o haviam baleado poucos minutos antes. Estes pediram que a equipe de resgate se afastasse e friamente executaram o homem ferido. Jonas, escondido dentro da ambulância, estava aterrorizado com a idéia de que ele e seus colegas seriam também mortos, por terem testemunhado o crime. Contudo, os traficantes foram embora sem molestar (ao menos, fisicamente) a equipe. Porém, nos dias subseqüentes, Jonas não conseguia dormir direito e logo desenvolveu um entorpecimento emocional como seqüela do episódio. Seis meses depois, continuava a apresentar um distanciamento afetivo dos filhos e dos amigos, passando a ser uma pessoa seca e reservada, indiferente a todas as situações, fossem elas agradáveis ou incômodas."
Essa restrição na amplitude dos afetos denomina-se entorpecimento psíquico. Pacientes com TEPT passam a ter dificuldade em rir, chorar, amar, ter ternura, compadecer-se ou sentir atração sexual. Parecem "mortos para a vida", isolando-se dos amigos e dos familiares. Como se pode ver, o "preço" pago pela anestesia dos sentimentos dolorosos é alto. Esses pacientes podem também sentir-se desconectados de si mesmos, de seu ambiente, até de seu futuro, tendo uma sensação de "futuro abreviado". Pode parecer-lhes não haver um porvir. Param de fazer planos de carreira, de viagens, de tudo. Resta somente um presente tenso, constantemente invadido pelas memórias incômodas do passado.
Hiperestimulação autonômica
O último grupo de sintomas da tríade que caracteriza o TEPT é a hiperestimulação autonômica. Esses sintomas são mais facilmente observáveis e incluem a irritabilidade, insônia, sobressalto excessivo e hipervigilância. Mesmo que o paciente controle os efeitos das revivescências por meio do entorpecimento emocional, seu corpo pode hiper-reagir frente a certos estímulos externos como se estivesse permanentemente ameaçado de morte. Nesse estado de hiper-reatividade psicofisiológico o paciente pode estar de tal modo hiperestimulado que estímulos mínimos fazem com que seu coração dispare, sua respiração se acelere e seus músculos se contraiam. Um leve barulho pode causar um sobressalto acentuado.
Esse estado de alerta constante faz com que a concentração caia, afetando o desempenho em tarefas cognitivas como a leitura e o estudo. A irritabilidade constante e a agressividade exacerbada podem passar a ser características de um indivíduo que, antes do trauma, apresentava um temperamento calmo e cordato. Um indivíduo como esse pode se tornar irreconhecível, encolerizando-se e destruindo coisas sem menor contrariedade. Seus amigos e parentes podem ficar intimidados e se afastar dele. A hiperestimulação também pode se expressar através de queixas somáticas tais como fadiga, cefaléias, tremores, hipermotilidade gástrica, pseudo-crises epilépticas e tonteiras,14 freqüentemente levando a exames laboratoriais desnecessários. Por tudo isso, a qualidade de vida dos pacientes com TEPT fica profundamente comprometida.
Conclusão
Rachel Yehuda, uma das mais importantes pesquisadoras das conseqüências mentais dos eventos traumáticos, concluiu sua análise sobre a importância da existência do diagnóstico de TEPT para a Psiquiatria, deste modo:15
"A contribuição do TEPT para a psiquiatria é que ele fornece um referencial para estudo dos efeitos do estresse e do trauma. De uma perspectiva política, o TEPT é um conceito que ajudou muito o reconhecimento dos direitos e necessidades da vítimas que tinham sido estigmatizadas, pouco compreendidas, ou ignoradas pelo campo da saúde mental. A existência deste diagnóstico tem permitido a emergência dos dados muito necessários sobre os efeitos do trauma que antes não existiam e que não podiam ser sistematicamente coletados sem este diagnóstico" (Pg 1712).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Nov 2003 -
Data do Fascículo
Jun 2003