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Necrose tecidual após injeção de diclofenaco de sódio

CARTAS AO EDITOR LETTERS TO THE EDITOR

Necrose tecidual após injeção de diclofenaco de sódio

José Marques Filho

Reumatologista da Santa Casa de Misericórdia de Araçatuba, SP. Conselheiro do Cremesp

Em agosto de 2001, no exercício da função de Conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), fomos designados para realizar sindicância e parecer em relação à denúncia de um caso de lesão cutânea e muscular causada pelo uso de diclofenaco de sódio intramuscular.

Tratava-se de uma paciente de 37 anos de idade, cor branca, submetida ao procedimento de videohisteroscopia para retirada de pólipo endometrial. Ainda na sala de recuperação pós-anestésica, foi medicada com uma ampola (75 mg) de diclofenaco de sódio intramuscular aplicada corretamente no quadrante superior externo da nádega direita, em razão da queixa de cefaléia. Em poucas horas desenvolveu reação local caracterizada por placa eritematosa, dor em queimação, evoluindo com intenso processo inflamatório. Após alguns dias, segui-se de necrose tecidual atingindo pele, tecido celular subcutâneo e músculo. Não apresentou na evolução sinais de infecção, sendo tratada com cuidados locais e desbridamentos cirúrgicos, resultando, após aproximadamente 60 dias, em lesão cicatricial extensa e inelástica.

Em levantamento feito nos arquivos do Cremesp, encontramos quatro outros casos bastante semelhantes no período de 1995 a 2002. As indicações para o uso de diclofenaco de sódio injetável nesses pacientes foram: cólica renal, trauma em cotovelo direito, lombalgia aguda e trauma em punho esquerdo. Em dois desses casos, a medicação foi feita no músculo deltóide, sendo que um dos pacientes tinha 13 anos de idade. Em três casos foram lavrados Boletim de Ocorrência (B.O.) com conseqüente inquérito policial. Todas as cinco sindicâncias foram arquivadas no Cremesp por inocorrências de infrações técnicas ou éticas por parte dos médicos envolvidos.

Em nosso meio, Golcman et al.(1) e Giovannetti et al.(2) relataram, respectivamente, quatro e sete pacientes com quadros de necrose tecidual após injeção intramuscular de diclofenaco de sódio com características muito semelhantes aos casos levantados por nós no Cremesp. Há na literatura internacional raras citações dessa ocorrência(3,4). A fenilbutazona é o antiinflamatório mais freqüentemente relacionado à necrose tecidual(5), com manifestações semelhantes à encontrada em nosso meio.

O diclofenaco de sódio é um antiinflamatório não-hormonal derivado do ácido fenilacético que apresenta potente ação analgésica, antiinflamatória e antipirética. Seu uso pode ser feito via oral, retal ou intramuscular. Em virtude de suas características, esse medicamento tem sido largamente utilizado nas afecções reumáticas inflamatórias e/ ou degenerativas, assim como nas inflamações pós-traumáticas, analgesia pós-cirúrgica e processos dolorosos em geral. A tolerabilidade desse fármaco é considerada boa, sendo raros os casos de efeitos colaterais graves. A apresentação comercial para a aplicação intramuscular é ampolas de 3 ml contendo 75 mg do fármaco.

Golcman et al.(1) enumeram os cuidados para a prevenção dessa ocorrência:

1. As aplicações só devem ser feitas por pessoas que conheçam as normas fundamentais que norteiam essa técnica.

2. Escolha adequada do local da aplicação, dando-se preferência à região glútea, que tem maior massa muscular e é menos passível de vasopunção que o músculo deltóide, sob cuja borda posterior passam os vasos circunflexos e suas principais tributárias. Esses vasos são os mais atingidos nos casos de acidente.

3. Aspiração do êmbolo após a introdução da agulha para certificar-se de que ela está posicionada fora da luz vascular. Após essa constatação, manter a agulha imóvel durante toda a aplicação. A presença de sangue na seringa exige interrupção imediata da aplicação.

A caracterização da etiopatogenia da lesão é importante não só para melhor compreensão do processo em si, mas também para fins terapêuticos e médicos-legais. Do ponto de vista médico-legal, é importante saber se a lesão decorreu em razão de falha técnica do profissional que aplicou a injeção ou se foi conseqüência de uma reação própria do fármaco.

A maioria dos autores acredita que a fisiopatologia da lesão deve-se à associação de três fatores: angioespasmo, trombose e embolia(6). A embolia e a trombose seriam causadas pela injeção do medicamento na luz vascular, enquanto o angioespasmo poderia ser causado por uma série de fatores, como compressão dos vasos (pelo líquido injetado ou por hematoma), por lesão direta do vaso ou por reflexo do tipo artero-arterial ou veno-arterial.

Alguns autores defendem que a causa do evento é o fenômeno imunoalérgico(7). A ação do fármaco como um hapteno desencadearia ação do tipo vasculite, com deposição de imunocomplexos, ativação de complemento e quimiotaxia dos neutrófilos. O resultado dessas alterações vasculares seria uma trombose que se manifestaria clinicamente por necrose.

Golcman et al.(1) sugerem que, na eventualidade de um acidente, deve-se utilizar anticoagulantes, vasodilatadores e espamolíticos aos primeiros sinais de embolia (dor muito intensa, alteração da cor da região, paralisia etc.) na tentativa de minimizar o dano tecidual. Opinam que a validade do uso de corticosteróide é questionável.

Em 1994, em editorial nesta revista, Famaey(8) mencionou que a administração intramuscular de antiinflamatórios não-hormonais leva a um mais rápido efeito da droga e menor variação, comparada com a via oral ou com a via retal. Farmacologicamente, a administração intramuscular é responsável por um Tmáx precoce. No entanto, esse fato provavelmente não é tão importante para aqueles antiinflamatórios não-hormonais facilmente absorvidos pelo intestino e que atingem seu pico de concentração muito rapidamente após administração oral, como é o caso do diclofenaco de sódio, tendo esse fármaco, inclusive, uma meia-vida curta.

Quaresma et al.(9), também em 1997 em editorial nesta revista, relataram a escassez de evidências na literatura que confirmassem a superioridade de um antiinflamatório nãohormonal sobre outro e preconizaram uma adequada avaliação do risco-benefício, orientando, inclusive, para uma criteriosa avaliação econômica (custo-eficácia, custo-efetividade e custo-benefício) na prescrição desses fármacos.

Acreditamos que temos evidências suficientes para sugerir a não-utilização de fenilbutazona e diclofenaco de sódio por via intramuscular, substituindo-os por outros antiinflamatórios não-hormonais (cetoprofeno, tenoxicam, meloxicam, por exemplo) ou mesmo por analgésicos comuns, no caso de dores menos intensas. Assim agindo, mesmo não sendo estatisticamente significante a ocorrência aqui discutida, pode-se afirmar que estaremos melhorando o padrão de qualidade de nosso atendimento e, certamente, diminuindo a possibilidade de ações judicantes tanto na área policial quanto na ético-disciplinar.

  • 1
    Golcman B, Golcman R, Castro LGM, Mizoguchi M: Necrose Tecidual após injeção intramuscular de diclofenaco de sódio. An Bras Dermatoe 66: 65-69, 1991.
  • 2
    Giovannetti M, Marcel ACM, Borrelli Jr M, Ikejiri CI, Alonso N, Bianco PD: Necrose tecidual: efeito colateral do diclofenaco de sódio, relato de casos e discussão da fisiopatologia. Rev Hosp Clin Fac Med S Paulo 48: 39-42, 1993.
  • 3
    Tweedie DG: Un Unusual Reaction to diclofenac. Anaesthesia 44:932-35, 1989.
  • 4
    Ali MT, Mathias IM: Continued problems with diclofenac injection. Anaesthesia 46: 1089-92, 1991.
  • 5
    Müller Vahl H: Adverse reactions after IM Injections. Lancet 1:1050-54, 1983.
  • 6
    Thomaz JB, Baltar CAF: Acidente isquêmico no membro superior produzido por injeção intramuscular de penicilina benzatina. Arq Bras Med 62: 175-78, 1988.
  • 7
    Bertelli R, Negri A, Virgília A, Frotta F: Periarterite nodosa e diclofenaco sódico. Observazzione di due casi. Arch Sc Med 143:337-40, 1986.
  • 8
    Famaey JP: The interest of intramuscular administration of NSAIDS (Editorial). Rev Bras Reumatol 34: 153-54, 1994.
  • 9
    Quaresma MR, Natour J, Ferraz MB: Antiinflamatórios nãohormonais (AINHS): para drogas de efeitos benéficos e colaterais similares é justificável um custo adicional para o paciente? (Editorial). Rev Bras Reumatol 37: 125-28, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 2003
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