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Amiloidose-mieloma múltiplo apresentando-se como pseudomiopatia

Resumos

Amiloidose é uma designação genérica para se referir à deposição de fibrilas amiloides nos tecidos corporais. Ela apresenta-se, frequentemente, após os 40 anos de idade, com envolvimento localizado ou sistêmico, associada a mieloma múltiplo ou a doenças inflamatórias crônicas, podendo mimetizar diferentes síndromes reumatológicas. Relata-se o caso de uma paciente com amiloidose associada a mieloma múltiplo cuja apresentação inicial simulava miopatia.

miosite; mieloma múltiplo; amiloidose


Amyloidosis is a generic term that refers to the deposition of amyloid fibrils in bodily tissues. Its onset is usually after 40 years of age, with localized or systemic involvement associated with multiple myeloma or chronic inflammatory diseases, and can mimic various rheumatic syndromes. We report the case of a patient with amyloidosis associated with multiple myeloma, showing clinical characteristics of pseudomyopathy

multiple myeloma; myositis; amyloidosis


RELATO DE CASO

Amiloidose-mieloma múltiplo apresentando-se como pseudomiopatia

Mário Sérgio F. SantosI; Bianca SoaresII; Osvaldo MendesIII; Cintia Moura CarvalhoIV; Rossana Fonseca CasimiroIV

IMédico Reumatologista Doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo - USP

IIMédica Hematologista pela USP

IIIOrtopedista; Professor-Adjunto da Universidade Federal do Piauí - UFPI; Mestre em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

IVAcadêmica de Medicina pela Faculdade Integral Diferencial - FACID

Correspondência para Correspondência para: Mário Sérgio F. Santos. Avenida Kennedy, 4560 - Morros. CEP: 64062-100. Teresina, PI, Brasil. E-mail: m.cla@uol.com.br

RESUMO

Amiloidose é uma designação genérica para se referir à deposição de fibrilas amiloides nos tecidos corporais. Ela apresenta-se, frequentemente, após os 40 anos de idade, com envolvimento localizado ou sistêmico, associada a mieloma múltiplo ou a doenças inflamatórias crônicas, podendo mimetizar diferentes síndromes reumatológicas. Relata-se o caso de uma paciente com amiloidose associada a mieloma múltiplo cuja apresentação inicial simulava miopatia.

Palavras-chave: miosite, mieloma múltiplo, amiloidose.

INTRODUÇÃO

Amiloidose é uma designação genérica para deposição de fibrilas amiloides nos tecidos corporais. Na amiloidose de cadeia leve (amiloidose AL), seja primária ou associada ao mieloma múltiplo (MM), ocorre produção e deposição excessiva de fragmentos de imunoglobulina monoclonal de cadeia leve ou fragmentos contendo a região variável da cadeia leve.1 Essa deposição forma as fibrilas amiloides, que podem ser identificadas pela coloração com o vermelho Congo.

A classificação da amiloidose leva em conta as diferentes proteínas fibrilares, bem como seus diferentes precursores.2 Na amiloidose primária, a proteína fibrilar foi nomeada AL, e seus precursores são imunoglobulinas de cadeia leve, kappa (κ) e lambda (λ).3

A amiloidose AL usualmente manifesta-se após os 40 anos de idade, e apresenta envolvimento multissistêmico, com características de rápida progressão e redução da sobrevida.4 Embora o envolvimento multissistêmico de órgãos como coração e rins seja determinante do prognóstico e da sobrevida desses pacientes, a amiloidose AL chama a atenção do reumatologista quando seus sinais e sintomas mimetizam uma série de condições reumatológicas: infiltração amiloide da pele, cujo espessamento simula esclerodermia;5 infiltração amiloide nos tecidos periarticular e sinovial, produzindo rigidez e poliartrite, sugerindo artrite reumatoide;6 e deposição amiloide nas glândulas salivares produzindo xerostomia, mimetizando síndrome de Sjögren,7-9 mimetismo esse que pode conduzir a diagnósticos de pseudo-hipertrofia muscular10 ou de pseudomiopatia, como na paciente que descrevemos a seguir.

RELATO DE CASO

MCC, gênero feminino, 35 anos, estava bem há três meses, quando surgiram dores nos membros superiores (MMSS) e inferiores (MMII). As dores eram constantes e predominavam nos segmentos proximais dos MMII, incluindo a região glútea bilateralmente. Encaminhou-se a paciente para a ortopedia, onde recebeu o diagnóstico de bursite trocantérica bilateral.

Cerca de um mês depois, a paciente notou inchaço na língua, sensação de dormência nas mãos, nódulos nos braços e nas pernas. Após consulta com neurologista, foi diagnosticada com síndrome do túnel do carpo (STC), que motivou descompressão cirúrgica bilateral. Os sintomas não melhoraram - ao contrário, a sintomatologia dolorosa intensificou-se, agora de forma mais difusa, em todo o corpo, acompanhada de dores no ouvido bilateralmente e dificuldade para caminhar. Passou a experimentar limitações para as atividades da vida diária, como tomar banho, pentear os cabelos, vestir-se, sentar e levantar de uma cadeira. Relata perda de 5 kg desde o início da doença.

Ao exame físico, apresentava pressão arterial de 100/70 mmHg, pulso de 86 bpm, pulmões limpos, macroglossia, edema e equimose periorbital bilateral, edema de MMII +/4+, manobra de Mingazinni positiva para MMII. Na avaliação laboratorial, hemograma, VHS, glicemia, transaminases, CPK, FAN, eletroforese de proteínas séricas, testes de funções tireoidiana e renal, sumário de urina e raio-x de tórax normais. PPD não reator. A ressonância nuclear magnética (RNM) da cintura pélvica revelou bursite trocantérica bilateral com edema nos planos lipomatosos intermusculares supra-adjacentes; bursite isquiática bilateral; bursite subglúteo médio esquerda; alterações de sinal difusas na medula óssea dos colos femorais, metáfise/diáfise proximais dos fêmures, ossos da bacia e do sacro de aspecto inespecífico (Figura 1). O tecido obtido por biópsia da bursa trocantérica à direita revelou birrefringência positiva à luz polarizada na coloração com vermelho Congo. O aspirado de medula óssea revelou 73% de plasmócitos (Figura 2). A imunofixação sérica revelou padrão biclonal IgG κ/IgA κ. O raio-x de calota craniana demonstrou lesões líticas difusas.



Função renal e calcemia normais. Concluiu-se pelo diagnóstico de amiloidose associada a MM.

Iniciou-se terapia com dexametasona em altas doses (40 mg/dia nos dias 1-4, 9-12 e 17-20), associada a inibidor de osteólise (pamidronato 90 mg/mensais), com desaparecimento dos sintomas dolorosos e melhora da disfonia e da plenitude pós-prandial. Duas semanas depois surgiram tosse, falta de ar e piora do edema de MMII. O raio-x de tórax revelou derrame pleural bilateral. O eletrocardiograma foi compatível com bloqueio do ramo esquerdo. O ecocardiograma demonstrou hipertrofia ventricular esquerda moderada, com alteração de relaxamento diastólico. Iniciou-se furosemida, com melhora dos sintomas de descompensação cardíaca. A paciente está sendo preparada para o transplante autólogo de célula-tronco.

DISCUSSÃO

Dois aspectos atípicos chamam a atenção nessa apresentação incomum de amiloidose associada a MM: a idade da paciente, 35 anos, e a forma de apresentação como pseudomiopatia de cinturas proximais. A RNM da cintura pélvica com infiltração tecidual multifocal ao lado de enzimas musculares e eletroneuromiografia normais tornaram menos provável o diagnóstico de miopatia. A STC bilateral, para a qual recebera tratamento cirúrgico dois meses antes, poderia ser atribuída à deposição amiloide, embora estudo histopatológico não tenha sido realizado. A avaliação sistêmica demonstrou envolvimento cardíaco, mas não envolvimento renal ou de outros órgãos, exceto, talvez, sistema nervoso periférico na forma de STC. A associação com MM foi assegurada a partir do estudo da medula óssea com 73% de plasmócitos, ao lado da imunofixação sérica com padrão biclonal IgG κ/IgA κ e lesões líticas no raio-x de crânio.11

A amiloidose AL está sempre associada a discrasia de células plasmáticas. Início insidioso, sintomatologia vaga e diversidade de manifestações clínicas dificultam o diagnóstico. Infiltração amiloide nas articulações, estruturas periarticulares, partes moles e ossos vêm ganhando destaque, surgindo às vezes como formas iniciais de apresentação.5-10 Isso explica a presença do reumatologista na investigação, bem como nos cuidados clínicos oferecidos a esses pacientes. Deve-se atentar para o fato de que esses pacientes apresentam, via de regra, provas de fase aguda, VHS e PCR dentro da normalidade, além de ausência de fator reumatoide e anti-CCP. Artrite reumatoide,6 esclerodermia,5 síndrome de Sjögren8,9 e polimialgia reumática12 podem aparecer como diagnósticos antes da definição como amiloidose AL. Em uma série de 191 pacientes com amiloidose AL, 82 (42,9%) apresentaram evidências de envolvimento ósseo e de partes moles. Esse envolvimento tende a ocorrer no contexto do acometimento de múltiplos órgãos.1 No grupo de pacientes com amiloidose AL associada ao MM, o envolvimento de partes moles tem aparecido com maior frequência sob a forma de STC,13 macroglossia,13 artropatia14 e miopatia.7

Os órgãos mais frequentemente acometidos na amiloidose AL são os rins e o coração. Proteinúria nefrótica e falência renal são eventos bem-documentados. Envolvimento cardíaco esteve presente em 83% dos pacientes.15 Nossa paciente apresentou vários dos achados clássicos da amiloidose cardíaca, como bloqueio do ramo esquerdo, hipertrofia ventricular esquerda com alteração do relaxamento diastólico e insuficiência cardíaca congestiva.

O diagnóstico de amiloidose é feito por biópsia tecidual. A aspiração da gordura abdominal é um método menos invasivo e apresenta sensibilidade de 80% em uma única aspiração. A especificidade do método é de 98%, e o valor preditivo negativo é de 76%.15 Os exames de imagem podem ser de grande utilidade. A RNM da paciente foi capaz de excluir doença intrínseca do músculo e de identificar o envolvimento multifocal na pelve, além de permitir a seleção adequada do tecido a ser biopsiado, enquanto o raio-x simples do crânio permitiu visualizar as lesões líticas na calota craniana.

Instituiu-se terapêutica com dexametasona, furosemida, além do inibidor de osteólise, pamidronato. Os sintomas dolorosos desapareceram, e houve regressão dos sinais e sintomas de descompensação cardíaca. A paciente está sendo preparada para o transplante autólogo de célula-tronco.

CONCLUSÃO

A apresentação clínica da amiloidose AL pode mimetizar diferentes síndromes reumatológicas. Dessa forma, pacientes com sintomas e sinais clínicos decorrentes de processos infiltrativos de partes moles, articulações, tecidos periarticulares e ossos devem ser submetidos a uma pesquisa para amiloidose AL, após afastada uma patologia reumatológica.

Recebido em 12/12/2010.

Aprovado, após revisão, em 30/08/2011.

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.

Clínica de Reumatologia e Eletroneuromiografia.

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  • Correspondência para:

    Mário Sérgio F. Santos.
    Avenida Kennedy, 4560 - Morros.
    CEP: 64062-100. Teresina, PI, Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      12 Dez 2010
    • Aceito
      30 Ago 2011
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