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Relato inusitado de micro-organismos latentes em animais: riscos à pesquisa e à saúde dos funcionários?

Resumos

Relata-se inusitado achado de micro-organismos, semelhantes às espiroquetas, móveis e de diferentes morfologias e tamanhos, identificados pela microscopia de campo escuro, no sangue de animais do Centro de Bioterismo da Faculdade de Medicina da USP. As bactérias não crescem em meios habituais de cultivo, são pouco coradas pelo Giemsa e derivados da prata, e as provas sorológicas e moleculares foram negativas para Borrelia e Leptospira. A microscopia eletrônica revelou presença de micro-organismos com morfologia de Mycoplasma e, devido à sua mobilidade, sugeriu-se a presença de Mollicutes do gênero Spiroplasma. Visualizaram-se micro-organismos com mesmas características em 15 dos 26 funcionários (57,6%) do Centro de Bioterismo da FMUSP; contudo, exames clínicos e laboratoriais indicaram que os indivíduos estavam saudáveis. Estudos adicionais desenvolvidos na Disciplina de Reumatologia da FMUSP mostraram que, aproximadamente, 94% dos pacientes com Síndrome Baggio-Yoshinari (SBY) e 20% dos indivíduos normais também exibiam as mesmas estruturas identificadas no Centro de Bioterismo. A microscopia eletrônica realizada com amostras de pacientes com SBY mostrou bactérias que apresentam semelhanças com Mycoplasma, Chlamydia e Bacteroides. Visto que as sorologias e os testes moleculares foram negativos para estes contaminantes e com base em publicações da literatura médica, sugeriu-se que estes agentes infecciosos latentes fossem bactérias na sua apresentação L, que são definidas como bactérias despojadas de parede celular, assumindo, assim, morfologia de Mycoplasma, sendo, na maioria dos casos, inofensivas aos hospedeiros. Concluímos que os "espiroquetídeos" visualizados em animais e funcionários do Centro de Bioterismo seriam bactérias na forma L, não patogênicas, provenientes de contaminantes do meio ambiente, infecções regulares habituais ou oriundos de micro-organismos endógenos da flora saprofítica normal. Ao contrário, os "espiroquetídeos" identificados na SBY, ao preservarem a capacidade de invadir células in vitro, são potencialmente patogênicos e relacionados com a etiologia da SBY. Interpretamos a SBY como zoonose nova e particular ao território brasileiro, causada por espiroquetas adaptadas às formas latentes, possivelmente provenientes de mutações bacterianas em resposta às condições ecológicas e geográficas próprias do país.

espiroqueta; espiroqueta-símile; bactéria forma L; Mycoplasma; síndrome brasileira semelhante à doença de Lyme; síndrome Baggio-Yoshinari; Borrelia; micro-organismo latente; Centro de Bioterismo; animais de experimentação; Brasil


We report the unusual finding of mobile spirochetal microorganisms with different morphologies and sizes, on dark-field microscopy of the blood of animals from the Vivarium of the Medical School of USP. The bacteria did not grow in common culture media, shows faint staining to Giemsa and silver-derived stains, and serologies and molecular tests were negative for Borrelia and Leptospira. Electron microscopy revealed the presence of microorganisms with Mycoplasma-like morphology and, due to its mobility, it was suggested that they represented Mollicutes of the genus Spiroplasma. Microorganisms with the same morphology were also observed in 15 out of 26 employees (57.6%) of the Vivarium of FMUSP; however, clinical and laboratorial exams indicated that those individuals were healthy. Additional studies undertaken at the Rheumatology Department of FMUSP demonstrated the presence of the same structures identified at the Vivarium in approximately 94% of the patients with Baggio-Yoshinary syndrome (BYS) and 20% of healthy individuals. Electron microscopy of the blood of BYS patients showed bacteria that shared similarities with Mycoplasma, Chlamydia, and Bacteroides. Since serologies and molecular tests were negative for those contaminants, and based on publications in the medical literature, it was suggested that those latent infectious agents were L-form bacteria, defined as cell wall deficient bacteria, assuming, therefore, Mycoplasma morphology and they are, for the most part, harmless to the host. We concluded that spirochetal microorganisms visualized in animals and employees of the Vivarium were non-pathogenic L-form bacteria from contaminants in the environment, regular infections, or endogenous microorganism from the normal saprophytic flora. On the other hand, spirochetal organisms identified in BYS, by preserving the capacity to invade cells in vitro, are potentially pathogenic and related to the etiology of BYS. We consider BYS as a novel Brazilian zoonosis caused by spirochetes adapted to their latent form, possibly due to bacterial mutations in response to ecologic and geographic conditions unique to Brazil.

spirochete; spirochete-like; L-form bacteria; Mycoplasma; Lyme-like disease; Baggio-Yoshinari syndrome; Borrelia; latent microorganism; Vivarium; laboratory animals; Brazil


ARTIGO ORIGINAL

Relato inusitado de micro-organismos latentes em animais: riscos à pesquisa e à saúde dos funcionários?

Natalino Hajime YoshinariI; Silvio Arruda VasconcelosII; Arary da Cruz TiribaIII; Giancarla GauditanoIV; Elenice MantovaniV; Virgínia Lúcia Nazário BonoldiVI

IProfessor-associado da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)

IIProfessor Titular do Departamento de Medicina Veterinária e Saúde Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP

IIIProfessor Titular aposentado da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

IVAssistente Doutora do Hospital das Clínicas da FMUSP

VPós-graduanda em nível de Doutorado da Disciplina de Reumatologia da FMUSP

VIBiologista do Laboratório de Investigação Médica em Reumatologia do Hospital das Clínicas da FMUSP

Endereço para correspondênciaEndereço para correspondência: Prof. Natalino Hajime Yoshinari Av. Dr. Arnaldo 455, sala 3184 Cerqueira Cesar, SP - CEP: 01246-903 E-mail: yoshinari@ lim17.fm.usp.br

RESUMO

Relata-se inusitado achado de micro-organismos, semelhantes às espiroquetas, móveis e de diferentes morfologias e tamanhos, identificados pela microscopia de campo escuro, no sangue de animais do Centro de Bioterismo da Faculdade de Medicina da USP. As bactérias não crescem em meios habituais de cultivo, são pouco coradas pelo Giemsa e derivados da prata, e as provas sorológicas e moleculares foram negativas para Borrelia e Leptospira. A microscopia eletrônica revelou presença de micro-organismos com morfologia de Mycoplasma e, devido à sua mobilidade, sugeriu-se a presença de Mollicutes do gênero Spiroplasma. Visualizaram-se micro-organismos com mesmas características em 15 dos 26 funcionários (57,6%) do Centro de Bioterismo da FMUSP; contudo, exames clínicos e laboratoriais indicaram que os indivíduos estavam saudáveis. Estudos adicionais desenvolvidos na Disciplina de Reumatologia da FMUSP mostraram que, aproximadamente, 94% dos pacientes com Síndrome Baggio-Yoshinari (SBY) e 20% dos indivíduos normais também exibiam as mesmas estruturas identificadas no Centro de Bioterismo. A microscopia eletrônica realizada com amostras de pacientes com SBY mostrou bactérias que apresentam semelhanças com Mycoplasma, Chlamydia e Bacteroides. Visto que as sorologias e os testes moleculares foram negativos para estes contaminantes e com base em publicações da literatura médica, sugeriu-se que estes agentes infecciosos latentes fossem bactérias na sua apresentação L, que são definidas como bactérias despojadas de parede celular, assumindo, assim, morfologia de Mycoplasma, sendo, na maioria dos casos, inofensivas aos hospedeiros. Concluímos que os "espiroquetídeos" visualizados em animais e funcionários do Centro de Bioterismo seriam bactérias na forma L, não patogênicas, provenientes de contaminantes do meio ambiente, infecções regulares habituais ou oriundos de micro-organismos endógenos da flora saprofítica normal. Ao contrário, os "espiroquetídeos" identificados na SBY, ao preservarem a capacidade de invadir células in vitro, são potencialmente patogênicos e relacionados com a etiologia da SBY. Interpretamos a SBY como zoonose nova e particular ao território brasileiro, causada por espiroquetas adaptadas às formas latentes, possivelmente provenientes de mutações bacterianas em resposta às condições ecológicas e geográficas próprias do país.

Palavras-chave: espiroqueta, espiroqueta-símile, bactéria forma L, Mycoplasma, síndrome brasileira semelhante à doença de Lyme, síndrome Baggio-Yoshinari, Borrelia, micro-organismo latente, Centro de Bioterismo, animais de experimentação, Brasil.

INTRODUÇÃO

Em portaria publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo, Poder Executivo, Seção I, 112(64), página 38, publicada em 6/4/2002, o reitor da USP Prof. Adolfo José Melfi nomeou Comissão para averiguar inusitados problemas bacteriológicos ligados a Centros de Bioterismo, constituída pelos Professores Natalino Hajime Yoshinari (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP), Silvio de Arruda Vasconcelos (Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP-FMZUSP) e Arary da Cruz Tiriba (Universidade Federal de São Paulo-UNIFESP).

O problema referente ao Biotério da FMUSP teve início em 2001, quando o Dr. Ismar Cestari detectou a presença de micro-organismos semelhantes às espiroquetas, no cultivo in vitro de células esplênicas de animal proveniente do Centro de Bioterismo da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

No intuito de compreender a extensão do problema, a Comissão realizou microscopia de campo escuro no sangue periférico dos animais e, de fato, confirmou a presença de micro-organismos semelhantes às espiroquetas em 15 das 15 amostras de camundongos (BALB/c, A/SNELLl, SWISS e C57BI/6), em duas das cinco de rato (WISTAR), em cinco das cinco de coelho e em nenhuma das amostras de cobaia.

Nova leitura foi realizada no segundo semestre de 2002 e o resultado foi positivo em 28 das 40 amostras de sangue (70%) de diferentes espécies de ratos e camundongos. O mesmo procedimento foi conduzido com animais provenientes da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP (FMVZUSP), e a microscopia de campo escuro mostrou "espiroquetídeos" em apenas duas das oito amostras de camundongos e em nenhuma das oito amostras de hamsters, indicando ser problema comum aos Biotérios, apesar da frequência deste achado ter sido maior na FMUSP.

Do ponto de vista clínico, os animais do Centro de Bioterismo da FMUSP encontravam-se aparentemente saudáveis. A veterinária Sueli Blanes Damy et al.1 tinham realizado análises bioquímicas preliminares em "pools" com soros de quatro camundongos fêmeas e em amostras com cinco soros de ratos WISTAR e mostraram aumento dos níveis de ureia, fosfatase alcalina, aspartato amino transferase (AST) e alanina amino transferase (ALT), sugerindo existir algum fator infeccioso ou tóxico responsável pelo aparecimento de transtornos bioquímicos relacionados com alterações da função hepática. Nesse mesmo trabalho, os autores ao realizarem estudos à microscopia eletrônica e testes imuno-histoquímicos no tecido pulmonar, fígado, baço, coração e rim dos animais, identificaram Mycoplasma pulmonis em quase 100% dos animais residentes em biotérios convencionais e em 18% dos que mantinham barreiras sanitárias adequadas. Reportaram que, na literatura, havia descrições de hepatopatias causadas por Mycoplasma em ovelhas, pombos e cabras, mas não encontraram relatos em ratos. No intuito de confirmar estes achados, repetimos exames à microscopia eletrônica em amostras de sangue de roedores com ¨espiroquetídeos¨ (Figura 1).


Uma vez que a microscopia óptica revelava no sangue dos animais a presença de micro-organismos móveis, de tamanhos diversos, que variavam de minúsculos pontos a estruturas alongadas que chegavam a medir até 15-20 µm, a Comissão julgou, inicialmente, que pudesse tratar-se de espiroquetas. As sorologias para leptospirose, hemoculturas em meio aeróbico, anaeróbicos e BSK, assim como testes Moleculares (PCR) para Leptospira e Borrelia, realizados na FMUSP, FMVZUSP e Instituto Biológico, foram persistentemente negativos. Chamou a atenção dos membros da Comissão o tamanho incomum das estruturas identificadas no sangue periférico dos animais, pois eram grandes e aparentemente incompatíveis com a hipótese de serem Mycoplasma ou Chlamydia. Outro aspecto interessante destas estruturas era a dificuldade de cultivo em meios habituais e a impossibilidade de identificação das bactérias através do uso de corantes como Giemsa, derivados da prata e corantes vitais como laranja de acridina. Estes achados, somados à ausência de informações na literatura médica, conduziram muitos pesquisadores a interpretar estes "espiroquetídeos" como meros artefatos.

A preocupação maior referia-se aos aspectos antropozoonóticos desta inusitada descoberta. Aventou-se os eventuais riscos deste processo infeccioso latente para os funcionários que lidavam com os animais, caracterizando doença profissional, assim como a interferência destes contaminantes nas pesquisas laboratoriais experimentais. Interessante que os animais eram submetidos regularmente aos exames bacteriológicos, mas, em nenhuma ocasião, ocorreu isolamento de micro-organismos patogênicos. É importante salientar que os animais do Centro de Bioterismo da FMUSP não se encontram em ambientes isolados, e nem são germ-free, além de serem criados e mantidos no Biotério há aproximadamente 20 anos, com exceção dos cachorros, que são trazidos de fora do complexo da FMUSP.

O presente manuscrito relata os problemas e os caminhos adotados pela Comissão para responder às questões formuladas pela Reitoria da USP, com referência aos riscos aos funcionários e às pesquisas científicas. Outro objetivo seria o de descobrir a etiologia e a fonte de infecção dos animais.

Devido à relevância do assunto, acrescentou-se uma discussão complementar, fruto da pesquisa da síndrome brasileira semelhante à Doença de Lyme (Síndrome Baggio-Yoshinari - SBY), que trouxe novos conhecimentos no entendimento da ocorrência de "espiroquetídeos" em animais de laboratórios e humanos. Demonstrou-se que "espiroquetídeos" são visualizados quase que universalmente nos mamíferos, incluindo o homem (Figura 2A), e que crescem temporariamente em meio chamado SP4 (Figura 2B).



Estas estruturas quando analisadas à microscopia eletrônica assemelham-se a Mycoplasma que, na verdade, representariam micro-organismos que perderam a parede celular (bactéria ou formas L sem parede celular) e que, na maioria das vezes, são ¨inofensivos¨ aos seres vivos. Contudo, por razões ainda desconhecidas, talvez em decorrência de fatores ecológicos e climáticos próprios do país, existem fortes evidências de que o agente etiológico da SBY seja uma espiroqueta de morfologia atípica e comportamento latente, exibindo aspectos sugestivos de Mycoplasma, Chlamydia e Bacteroides (Figura 3 A, B, C e D). Contudo, uma vez que estas estruturas isoladas de pacientes com SBY são capazes de invadir as células endoteliais (Figura 4), acredita-se que sejam potencialmente patogênicos, justificando as particularidades clínicas e laboratoriais desta zoonose emergente no Brasil.







O manuscrito tem por objetivo mostrar que é comum a descrição de micro-organismos ¨inofensivos¨ na formas L nos seres vivos. Mas que, em algumas situações, como na Síndrome Baggio-Yoshinari, espiroquetas desprovidas de parede, possivelmente ainda bactérias do gênero Borrelia, conservariam as propriedades patogênicas, originando enfermidade extremamente mórbida, particularizada e camuflada, bastante distinta da Doença de Lyme encontrada no Hemisfério Norte.

PACIENTES E MÉTODOS

Foram incluídos todos os funcionários do Centro de Bioterismo da FMUSP, avaliados dentro do protocolo de investigação determinado pela Comissão constituída pela Reitoria da USP, para avaliar o estado clínico dos funcionários que lidavam com os animais ou que trabalhavam nas dependências do Biotério.

Este protocolo incluía investigação clínica com anamnese e exame físico completos. Com relação aos exames complementares foram avaliados: 1. hematológico: hemograma (teste automatizado, microscopia e coloração panóptica); 2. bioquímicos: ureia (teste cinético), creatinina (teste colorimétrico cinético), glicemia (teste enzimático colorimétrico), colesterol total (teste enzimático colorimétrico), triglicerídeos (teste enzimático colorimétrico), ácido úrico (teste enzimático colorimétrico), sódio (teste de eletrodo íon-seletivo), potássio (teste de eletrodo íon-seletivo), calcemia (teste colorimétrico), ferro sérico (teste colorimétrico), ALT (teste cinético), AST (teste cinético), gama glutamil transferase (gama GT - teste cinético), creatinofosfoquinase (CK - teste cinético); 3. urinálise: urina tipo I; 4. bacteriológicos: hemocultura, coprocultura, protoparasitológico de fezes (coloração de Leishman); 5. imunológicos gerais e inflamatórios: proteína C reativa (teste nefelométrico), velocidade de hemossedimentação (teste de Westergren), complemento C3 e C4 (teste nefelométrico), eletroforese de proteínas, imunoeletroforese de proteínas, fator reumatoide (teste de aglutinação), fator antinuclear em células Hep-2 (teste de imunofluorescência) e antiestreptolisina O (teste nefelométrico); 6. sorologias para doenças infecciosas: de Lyme realizada no Laboratório de Investigação Médica (LIM-17) do HCFMUSP (teste imunoenzimático - ELISA), leptospirose feita na FMVZUSP (teste de soroaglutinação microscópica), e os demais exames de sífilis (ensaio imunoenzimático - ELISA), toxoplasmose (ensaio imunoenzimático em micropartículas - MEIA), hepatites virais A,B (ensaio imunoenzimático em micropartículas - MEIA), hepatite C (teste de quimioluminescência) e citomegalovírus (ensaio imunoenzimático - ELISA), no Laboratório Central HCFMUSP; 7. Imagem: radiografia de tórax e ultrassonografia (US) total do abdome e 8. consultas médicas especializadas quando necessárias.

Esse estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa - CAPPesq do HCFMUSP (342/09).

RESULTADOS

Foram examinados 37 funcionários do Centro de Bioterismo da FMUSP, dos quais cinco eram administrativos, no Ambulatório de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da FMUSP. Devido ao fato de tratar-se de Biotério convencional, sem áreas de isolamento, decidiu-se pela não discriminação funcional do pessoal. Vinte e cinco eram do sexo masculino e 12 do feminino. A idade dos funcionários variou de 21 a 54 anos (36,6 ± 9,87).

ANAMNESE

Com relação ao interrogatório geral, 12 dos 37 funcionários (32,4%) referiram alguma manifestação alérgica, como asma, rinite ou erupção cutânea. A frequência de "etilismo social" foi de 62,5%, ou seja, referido por 15 dos 24 indivíduos que responderam a este quesito.

Dos 37 entrevistados, dez indivíduos queixavam-se frequentemente de cansaço e adinamia (27%), enquanto três referiam episódios recorrentes de febre ou calafrios (8,1%).

Com relação ao sistema locomotor, nove (24,5%) queixavam-se de dores constantes na coluna, oito (21,6%) referiam artralgia, dois talalgia, um apresentava artrite e um mialgia. Dezesseis funcionários (43,2%) não tinham sintomas osteoarticulares.

Quanto às manifestações neurológicas, 12 (32,4%) referiam cefaleia regularmente, nove reportaram episódios frequentes de esquecimento (24,3%). Sete queixavam-se de distúrbios do sono (18,9%), cinco de nervosismo ou irritação (13,5%), três de dificuldade de concentração (8,1%), três com episódios de tontura (8,1%) e um apresentava paralisia facial. Nove funcionários (24,3%) negaram qualquer queixa neurológica.

Quanto aos sintomas cardiovasculares, cinco (13,5%) apresentavam episódios de palpitações frequentes e três (8,1%) de precordialgia atípica.

O interrogatório de outros sistemas mostrou que 12 (32,4%) referiam aumento da frequência diária de evacuações (mais de duas vezes), seis tinham dor de garganta frequente (16,2%) e quatro relatavam episódios constantes de tosse ou infecções de vias respiratórias superiores. Cinco trabalhadores do Centro de Bioterismo negaram qualquer queixa clínica (13,5%).

EXAME FÍSICO

O exame físico não mostrou alterações significativas, observando-se manifestações cutâneas em cinco pacientes (pústulas, erupção eritematomacular, hiper-hidrose, pitiríase versicolor e psoríase). Um funcionário apresentava hepatomegalia e baqueteamento de dedos, um exibia ausculta pulmonar compatível com broncoespasmo, um com artrite compatível com gota e outro com nódulos de Heberden e Bouchard (artrose de mãos).

EXAMES LABORATORIAIS

O hemograma mostrou-se normal, com exceção de dois casos com discreta leucocitose, três com leucopenia e cinco funcionários com discreta anemia. Não foram observadas alterações da contagem de plaquetas.

Os principais resultados dos exames bioquímicos constam da Tabela 1, e chama a atenção o grande número de funcionários com elevação dos níveis de enzimas hepáticas e musculares.

PROVAS DE ATIVIDADE INFLAMATÓRIA E IMUNOLÓGICAS

Na Tabela 1, encontram-se as frequências de alterações relativas às provas de atividade inflamatória e imunológicas realizadas nos funcionários do Centro de Bioterismo da FMUSP. Nota-se que 26% tiveram proteína C reativa positiva e 36% IgE elevada.

SOROLOGIA PARA ENFERMIDADES INFECCIOSAS

Na Tabela 2, encontramos resultados de sorologias para a síndrome brasileira semelhante à doença de Lyme, leptospirose, sífilis, toxoplasmose, hepatites virais A, B e C e citomegalovírus. A frequência de soros com resultados positivos para Borrelia burgdorferi foi semelhante ao habitualmente encontrado na população controle normal. Identificou-se um paciente com lues e dois com toxoplasmose que foram encaminhados para o Serviço de Infectologia.

BACTERIOLOGIA E PROTOPARASITOLÓGICO

Na Tabela 2, estão descritos os exames bacteriológicos, protoparasitológicos, visualização de "espiroquetídeos" em microscopia de campo escuro e PCR para leptospirose nos funcionários do Centro de Bioterismo da FMUSP. As hemoculturas e coproculturas foram negativas; a visualização de "espiroquetídeos" ocorreu em 57,6% dos casos (Figura 2 A) e a demonstração de Blastocystis hominis em 12% dos funcionários analisados. A pesquisa de leucócitos nas fezes foi positiva em 36% dos casos.

IMAGEM

A radiografia de tórax foi normal nos funcionários que realizaram o exame. A US total do abdome mostrou alguma alteração em 10 dos 18 casos (55,5%), e as alterações encontradas foram: esteatose hepática em cinco casos, hepatomegalia em quatro, linfonodos peripancreáticos em um, calcificações hepáticas em um, dilatação do hepato-colédoco em um e nódulos hepáticos em um caso.

AVALIAÇÃO HEPÁTICA

Funcionários com alteração à US de abdome foram encaminhados ao gastroenterologista, porém não foram constatadas alterações significativas que merecessem investigações complementares.

DISCUSSÃO

Um grande efetivo de profissionais de diferentes instituições de pesquisa foi mobilizado, com o objetivo de estudar a situação clínica dos funcionários do Centro de Bioterismo da FMUSP, em decorrência do encontro inusitado de micro-organismos de características latentes nos animais do Centro de Bioterismo da FMUSP, o que poderia indicar a ocorrência de zoonose emergente e nova doença ocupacional. Desde que, não havia nenhuma referência na literatura médica, sobre micro-organismos com as características descritas no sangue de animais e de humanos, encontramos sérias dificuldades para explicar de onde surgiam e qual seria o papel patogênico destes microorganismos nos hospedeiros.

Havia a necessidade urgente de encontrarmos respostas, a fim de tranquilizarmos os funcionários, quanto aos riscos à saúde e a necessidade de retornarmos respostas aos pesquisadores da instituição que utilizavam animais do Centro de Bioterismo quanto à interferência desta infecção nas pesquisas com animais.

As más condições sanitárias encontradas no Biotério sugeriam que fatores ambientais poderiam estar influenciando o surgimento dos espiroquetídeos, visto que a frequência de contaminantes variava entre as instituições pesquisadas. Surpreendeu-nos o fato de 15 dos 26 funcionários (57,6%) apresentarem as mesmas estruturas identificadas nos animais, indicando possível transmissão destes micro-organismos aos funcionários no local do trabalho.

A Comissão constatou igualmente baixas condições de higiene exibidas pelos funcionários nas dependências do Biotério, pois alimentavam e dormiam no local do trabalho, manipulavam, às vezes, os animais sem luvas, entravam em contato direto com dejetos animais sem botas e havia promiscuidade entre as diferentes espécies de animais. Neste sentido, a primeira orientação foi a de educar os funcionários quanto aos hábitos higiênicos e estabelecer normas rígidas quanto ao trato de animais.

O exame médico dos funcionários mostrou que, de modo geral, eles estavam em boas condições clínicas, entretanto, chamou-nos a atenção a alta frequência de fenômenos alérgicos e de diarreia. Do ponto de vista laboratorial, havia funcionários com provas de atividade inflamatória alteradas, enzimas hepáticas e musculares elevadas, níveis altos de IgA e IgE e presença de leucócitos nas fezes. No início, pensamos estar havendo maior incidência de complicações hepáticas, intestinais e alérgicas. Contudo, essa impressão não foi confirmada, pois faltou um grupo-controle com as mesmas características demográficas e de hábitos, mas que não estivessem trabalhando no Centro de Bioterismo.

Alguns aspectos chamaram a nossa atenção como a alta incidência de etilismo social no grupo estudado (62,5%), exposição contínua dos funcionários aos dejetos animais, rações e produtos biológicos diversos, além do baixo padrão de higiene. Julgamos que estes fatores explicassem parte das queixas clínicas e alterações laboratoriais encontradas, e que medidas preventivas contribuiriam na diminuição da frequência da infecção animal e humana, além da "eventual normalização" dos testes de rotina. Tranquilizou-nos o fato de os funcionários com alterações hepáticas à US de abdome e aos exames laboratoriais, quando avaliados no Serviço de Gastroenterologia do HC FMUSP, serem considerados normais, sem necessidade de procedimentos auxiliares complementares.

O próximo passo do estudo foi o de tentar elucidar a etiologia da infecção latente, demonstrada pelo achado de estruturas semelhantes às espiroquetas, em animais de laboratório e nos funcionários do Centro de Bioterismo (Figura 2A). Exibiam diferentes tamanhos e morfologias, eram móveis, mostravamse incultiváveis, não se coravam pelo método de Giemsa e, apesar de lembrar espiroquetas, os testes laboratoriais empregados foram persistentemente negativos para diagnóstico de Leptospira e Borrelia. Estudos sorológicos foram negativos para síndrome brasileira semelhante à Doença de Lyme, leptospirose e sífilis e os testes de biologia molecular negativos para Leptospira spp e Borrelia spp (dados não apresentados).

Conforme apresentado anteriormente, Damy SB et al.1 haviam identificado Mycoplasma pulmonis em 100% dos animais de laboratório mantidos em regime convencional de criação, e relataram que estes micro-organismos poderiam causar lesão hepática, justificando as alterações enzimáticas encontradas nos animais do Centro de Bioterismo da FMUSP.

Mycoplasma são considerados os menores organismos autorreplicantes, requerem colesterol para sobreviverem e são desprovidos de parede celular. São a exemplo de Chlamydia, bactérias intracelulares que infectam inúmeras células como as endoteliais, epiteliais e os macrófagos, além de representarem importantes cofatores no aumento da virulência às infecções por outros micro-organismos.2 Higuchi et al.3,4 reportaram que estes micro-organismos influenciam o desenvolvimento de placas instáveis de ateroma. Inclusive, conseguiram visualizar através da microscopia eletrônica formas elípticas e cilíndricas de Mycoplasma de diferentes tamanhos, distribuídas na matriz extracelular de tecidos humanos acometidos.

Entretanto, não encontramos referências na literatura médica, quanto ao possível papel de Mycoplasma spp e Chlamydia spp como agentes zoonóticos. Outro aspecto intrigante era o de que estes micro-organismos são de dimensões diminutas e imóveis, contradizendo os achados de microscopia de campo escuro, que revelava estruturas móveis que chegavam a atingir aproximadamente 15 µm de comprimento. Assim, a hipótese de que os micro-organismos identificados no sangue dos roedores do Centro de Bioterismo da FMUSP (Figura 1) fossem Mycoplasma ficou abalada. Segundo opinião pessoal do Prof. J. Timenetsky do ICBUSP, estudioso de Mycoplasma, a maior parte dos roedores é contaminada por esta bactéria, e, assim, os dados da microscopia eletrônica poderiam ser um achado fortuito e não relacionado com as nossas constatações.

Mesmo assim, fomos pesquisar a possibilidade de encontrar bactérias com morfologia de Mycoplasma, dotadas de movimento e de dimensões maiores. Sabe-se que as bactérias do grupo Mollicutes são constituídas pelos gêneros Mycoplasma, Spiroplasma e Acholeplasma, micro-organismos desprovidos de parede celular e envoltos em membrana celular rica em colesterol. Conforme Shlomo T & Rami G,5 microorganismos do gênero Spiroplasma, devido à presença de um citoesqueleto, que funciona como motor propulsor, exibem movimentos circular e elíptico, além de apresentarem capacidade quimiotáxica. Podem atingir até 10 µm de comprimento, são sensíveis a eritromicina e tetraciclinas e algumas espécies são patogênicas para ratos, camundongos, hamster e coelhos. Podem ser identificados ainda em plantas, abelhas, carrapatos, vespas e mosquitos.6 Curiosamente, a célula de inúmeros Spiroplasmas contém vírus (SpV),7 cujo significado patogênico é desconhecido.

Considerando que a hipótese dos Mollicutes não fosse plenamente satisfatória, a Comissão passou a considerar outros agentes que tivessem morfologia semelhante aos de espiroquetas à microscopia de campo escuro. Dentre as possibilidades, pensou-se em micro-organismos espiralados dotados de movimentos próprios, tais como Helicobacter spp,8 espiroquetas do gênero Serpulina,9 Anaerobiospirillum,10 que apresentam em comum, a dificuldade de crescer em meios habituais e tem papel indefinido na patogênese de enfermidades em animais e homens. Espiroquetas do gênero Serpulina habitam o trato digestivo de animais e podem provocar episódios de diarreia 11,12 e pacientes humanos imunodeprimidos podem estar igualmente infectados por estas espiroquetas de difícil diagnóstico. 12 Adicionalmente, sabemos que inúmeras espiroquetas fazem parte da flora saprofítica da cavidade oral de indivíduos normais;13 contudo, desconhecíamos se estes micro-organismos seriam capazes de invadir a circulação sanguínea e expressar-se na forma de ¨espiroquetídeos¨.

Apesar das diferentes possibilidades etiológicas, nenhuma nos satisfez, exceto quanto à possibilidade de tratar-se de Spiroplasma, que tem semelhanças com Mycoplasma e são dotados de movimentos. Os demais micro-organismos aventados têm morfologias muito diferentes das visualizadas à microscopia eletrônica, pois são dotados de parede celular, alguns são flagelados e apresentam dimensões diminutas (exceto gênero Serpulina/Brachyspira).

Com base nos dados coletados e nas informações até então disponíveis, concluímos pela existência de uma infecção latente, ainda não descrita, causada por bactérias morfologicamente semelhantes aos Mollicutes, ou seja, desprovidas de parede bacteriana, nos animais e funcionários do Centro de Bioterismo. Pelas características morfológicas dos micro-organismos à microscopia eletrônica, sugeriu-se a possibilidade de infecção por micro-organismos do gênero Spiroplasma. A avaliação médica conduzida para os funcionários permitiu predizer que essas bactérias de comportamento latente teriam baixo potencial patogênico, mas que seria conveniente o acompanhamento prolongado desses trabalhadores. Quanto às pesquisas com animais de laboratório, a Comissão sugeriu que os experimentos fossem continuados, visto que animais de outros Centros de Bioterismo também estavam contaminados e aparentemente todos estavam em boas condições de sanidade física.

A Comissão recomendou melhorias urgentes das condições higiênicas dos funcionários, modernização e reformulação das instalações do Biotério e maior rigor nas condições sanitárias do Centro de Bioterismo, como medidas preventivas úteis para a diminuição da intensidade e da frequência das contaminações. Embora não houvesse contraindicação formal para a realização de experimentos com animais convencionais, os membros da Comissão advertiram que determinadas pesquisas que dependessem da isenção total de micro-organismos poderiam sofrer interferências desta infecção latente. Contudo, devido às características desta infecção, isto é, silenciosa, oculta, de difícil controle, além de estar disseminada entre os diferentes Biotérios, a Comissão aventou a possibilidade de esta contaminação poder existir nos animais axênicos ou germ-free.

DISCUSSÃO COMPLEMENTAR À LUZ DE CONHECIMENTOS OBTIDOS COM PESQUISAS SOBRE A SÍNDROME BAGGIO-YOSHINARI

O texto anterior, com pequenas modificações, foi o Relatório encaminhado à Reitoria da USP e apresentado aos pesquisadores da FMUSP que fazem uso regular dos animais do Centro de Bioterismo e aos funcionários.

O grande desafio na pesquisa da síndrome brasileira semelhante à Doença de Lyne (SBDL) ou Síndrome Baggio-Yoshinari (SBY) 14 tem sido o de esclarecer a etiologia desta enfermidade transmitida por carrapatos no país. Não há mais dúvidas de que sintomas compatíveis com a Doença de Lyme (DL) existem no Brasil, incluindo a ocorrência do típico eritema migratório e o desenvolvimento de múltiplas complicações sistêmicas.15,16 Entretanto, o agente etiológico da SBY, ao contrário da DL, jamais foi identificado por meio de procedimentos microbiológicos (culturas) e moleculares (PCR).17

Assim, em nossa opinião, esta diferença marcante quanto à etiologia das duas zoonoses transmitidas por carrapatos, justificaria a grande série de particularidades clínicas e laboratoriais, existentes entre a entidade nosológica presente no Brasil e no hemisfério Norte. Do ponto de vista clínico, a zoonose brasileira exibe grande frequência de recidivas nos sintomas clínicos, aspecto incomum na DL. Do ponto de vista laboratorial, doentes com SBY mostram baixa reatividade imunológica aos antígenos da Borrelia burgdorferi sensu lato e alta frequência de distúrbios autoimunes, como desenvolvimento de autoanticorpos contra constituintes neuronais.18

Admitimos que, apesar das diferenças citadas, a SBY ainda seja uma zoonose causada por espiroquetas. Postulamos que, devido à existência de condições geográficas, climáticas e ecológicas, próprias ao país, como à ausência de carrapatos do complexo Ixodes ricinus, principais vetores transmissores da DL no hemisfério Norte,19 estaria havendo condições para o surgimento de espiroquetas exóticas, talvez mutantes, adaptadas a sobreviver nos hospedeiros vertebrados e invertebrados no país. Atualmente, sabemos que, Borrelia são capazes de modificar o seu genoma e proteoma durante o seu ciclo de vida, que envolve a infecção de carrapatos e animais.20- 25

Com objetivo de identificar o agente etiológico da SBY no sangue periférico dos pacientes com SBY, com auxílio da microscopia de campo escuro, identificamos ¨espiroquetídeos¨ semelhantes aos encontrados nos animais e funcionários do Centro de Bioterismo da FMUSP. De maneira similar, os ¨espiroquetídeos¨ provenientes de enfermos com SBY não cresciam no meio BSK e tampouco em outros inúmeros meios de culturas testados.

No início, acreditamos que estas estruturas fossem Mollicutes do gênero Spiroplasma, fundamentados nas conclusões do Relatório enviado à Reitoria da USP. Inclusive, reforçando esta hipótese, descobrimos que estas bactérias latentes eram capazes de crescer e manter-se pelo período aproximado de 10 dias em meio adequado ao desenvolvimento de Spiroplasmas, conhecido como SP4 (Figura 2B). Por outro lado, ao semear espiroquetas do complexo Borrelia burgdorferi sensu lato em meio SP4, ocorria sua degeneração celular, a ponto das Borrelia perderem o movimento helicoidal típico e transformarem-se em estruturas semelhantes às visualizadas na SBY e nos animais do Centro de Bioterismo.

Achado surpreendente foi o encontro destes microorganismos latentes no sangue de indivíduos normais, que não eram funcionários de Centro de Bioterismo e tampouco indivíduos com histórico recente de picada por carrapatos. Ao realizarmos a pesquisa destas estruturas em 52 pacientes com SBY e em 50 indivíduos normais, demonstramos ocorrência destes ¨espiroquetídeos¨ em 49 das 52 amostras (94,2%) dos pacientes com SBY e em apenas 20% dos indivíduos normais (dados não publicados).

Mantovani E et al.,26 ao analisarem os ¨espiroquetídeos¨ encontrados na SBY à microscopia eletrônica, visualizaram micro-organismos com morfologias sugestivas de Mycoplasma, Chlamydia e espiroquetas. Esta descoberta levou os autores a suporem que a etiologia da SBY estaria vinculada a esta plêiade de micro-organismos latentes, caracterizando uma nova entidade clínica transmitida por carrapatos. Aspecto adicional de grande relevância foi a descoberta de que estes micro-organismos latentes, isolados de pacientes com SBY, foram capazes de infectar células endoteliais in vitro, indicando serem potencialmente patogênicos (dados não publicados) (Figura 4).

Ao realizarmos exames sorológicos e testes de Biologia Molecular (PCR) para Mycoplasma spp e Chlamydia spp, tanto nos pacientes com SBDL como nos indivíduos normais, notamos que os dois grupos comportaram-se de maneira idêntica, indicando que, na verdade, os ¨espiroquetídeos¨ não seriam os micro-organismos anteriormente imaginados (dados não publicados). Neste momento, perdeu força a hipótese das bactérias latentes pertencerem aos gêneros Mycoplasma e Chlamydia. Por analogia, a hipótese dos animais e funcionários do Biotério, estarem contaminados por Mollicutes do gênero Spiroplasma ficou também sob suspeição.

Na busca de respostas para estas dúvidas, descobrimos após intensa revisão da literatura médica, que todas as bactérias podem assumir morfologia de Mycoplasma, ao perderem constituintes da parede celular, fato que pode acontecer em condições adversas de sobrevivência.27-29 Essas bactérias morfologicamente alteradas e com semelhança estrutural de Mycoplasma são conhecidas como formas L, esferoplastos ou bactérias desprovidas de parede (cell wall deficient bacteria). Essa mudança fenotípica é igualmente observada com as espiroquetas dos gêneros Treponema e Borrelia.30-32

As espiroquetas quando cultivadas em condições adversas de pH, temperatura ou na presença de antibióticos, sofrem importantes modificações morfológicas, com aparecimento de estruturas atípicas de diferentes tamanhos e formas, que variam desde minúsculos pontos e esporos (conhecidos como blebs), até formações que lembram bactérias alongadas (¨espiroquetídeos¨), corpúsculos densos de dupla membrana (semelhantes à Chlamydia) e cistos de membrana simples (sugestivas de Mycoplasma), quando analisadas à microscopia eletrônica.33 Adicionalmente, foram descritas espiroquetas de morfologias atípicas, como as citadas anteriormente, no parênquima cerebral de pacientes com acometimento neurológico devido às infecções pela sífilis e borreliose de Lyme.34,35 Sob condições favoráveis de cultivo as espiroquetas na sua forma L costumam reassumir a morfologia helicoidal habitual.36

A literatura médica considera a maioria das bactérias na forma L como não patogênicas, com raras exceções.27 O conjunto dos conhecimentos acumulados no LIM-17 HCFM USP, levou-nos a postular que bactérias na apresentação L em animais e homens seriam eventos relativamente frequentes. Consideramos que as fontes habituais de contaminação seriam as infecções regulares e passageiras dos tratos respiratório, digestório e urinário. Em locais com condições sanitárias impróprias, como acontecia no Centro de Bioterismo da FMUSP, com certeza, haveria uma grande proliferação bacteriana ambiental e contaminação humana e animal, provocando alta frequência de ocorrência de ¨espiroquetídeos¨ (bactérias na forma L) no sangue periférico. Outra fonte de ¨espiroquetídeos¨ sugerida, em indivíduos normais, seria a proveniente da flora saprofítica habitual.

Conforme comentado, na maioria das vezes, estes micro-organismos na forma L não seriam patogênicos, como havíamos concluído no Relatório apresentado à Reitoria da USP. Contudo, em nossa opinião, os ¨espiroquetídeos¨ encontrados na SBY apresentariam comportamento distinto do habitual, pois ao preservarem a capacidade de invadir as células endoteliais, revelavam alto potencial patogênico. Uma vez que espiroquetas na sua forma espiralada helicoidal jamais foram cultivadas e isoladas no Brasil, passamos a admitir que a etiologia da SBY estivesse vinculada a espiroquetas na forma L. Acreditamos que o agente etiológico da SBY adaptou-se de maneira permanente à sua morfologia atípica, devido a perdas irreversíveis do seu conteúdo genético e de lipoproteínas da parede celular (Osp), visando à sobrevivência em condições adversas, como, por exemplo, a ausência de carrapatos do complexo Ixodes ricinus no Brasil. Nesse sentido, têm surgido recentes publicações mostrando que a diversidade genética das diferentes espécies de espiroquetas do complexo Borrelia burgdorferi sensu lato, sofrem influências regionais e continentais.37- 39

Finalmente, ao se aceitar que a SBY seja causada por espiroquetas na sua morfologia atípica, conseguimos justificar todas as particularidades clínicas e laboratoriais desta zoonose tipicamente brasileira. Essa teoria explica as recorrências clínicas e a evolução da SBY para enfermidades crônicas ditas idiopáticas; justifica as dificuldades no tratamento, especialmente das enfermidades de longa evolução; explica a interferência dos micro-organismos no sistema imunológico, provocando surgimento de reações imunoalérgicas; compreende-se porque as bactérias são de difícil cultivo e pouco coradas pelas metodologias habituais de impregnação; entende-se porque esses micro-organismos suscitam baixa reatividade imunológica contra Borrelia burgdorferi; e justifica porque os testes moleculares como o PCR são persistentemente negativos, possivelmente em decorrência da perda parcial de plasmídeos.

A teoria de que no Brasil a SBY seja causada por espiroqueta mutante, geneticamente modificada e desprovida de boa parte da parede celular (Osp) e de flagelos periplásmicos, tem suporte adicional da literatura médica, pois já foi descrita Borrelia burgdorferi mutante desprovida de Osp A, B, C e D.40 Essas proteínas de superfície são importantes para distinguir as diferentes espécies de espiroquetas do complexo Borrelia burgdorferi sensu lato, e participam na patogenicidade e no desencadeamento da resposta imunológica do hospedeiro ao micro-organismo. Adicionalmente, a mobilidade e a forma helicoidal das Borrelia são dependentes dos 7-11 flagelos periplásmicos41,42 e quando ocorre mutação do gene flaB (gene principal da flagelina), a espiroqueta assume morfologia bacteroide,43 lembrando a forma como é visualizada no Brasil através da microscopia eletrônica. Assim, espiroquetas com perdas de flagelos e lipoproteínas de parede, assumiriam aspecto de ¨espiroquetídeos¨ à microscopia de campo escuro e de Mycoplasma e Chlamydia quando vistas à microscopia eletrônica.

Hoje, após 20 anos de pesquisas, ousamos definir a SBDL ou SBY como enfermidade original brasileira, causada por espiroqueta de comportamento latente e morfologia atípica na apresentação L, transmitida por carrapatos que não pertencem ao complexo Ixodes ricinus, que reproduz manifestações clínicas semelhantes às observadas na DL, exceto pela alta frequência de recorrências, tendência à cronicidade e reações imunoalérgicas.

AGRADECIMENTOS

Prof. Dr. Flair Carrilho-Professor Titular do Departamento de Gastroenterologia FMUSP

Prof. Dr. Milton Arruda Martins - Professor Titular de Clínica Médica FMUSP

Dr. José Antonio Atta - Professor Colaborador FMUSP

Profa. Dra. Maria de Lourdes Higuchi - Professora Associada do INCOR FMUSP

Eliana Scarcelli Pinheiro - Pesquisadora Científica do Instituto Biológico

Margareth Elide Genovez - Pesquisadora Científica do Instituto Biológico

Prof. Dr. Paulo Yasuda - Professsor Aposentado ICB USP

Profa. Silvia Barreto C. Ortiz - Responsável pelo Centro de Bioterismo FMUSP

Robson José da Cruz - Biologista do Centro de Bioterismo FMUSP

Sueli Blanes Damy - Médica-veterinária do Centro de Bioterismo FMUSP

Dr. Cristiano Correa de Azevedo Marques - Diretor Geral do Instituto Adolfo Lutz

Dra Vera Simonsen - Chefe da Bacteriologia do Instituto Adolfo Lutz

Recebido em 23/06/2009.

Aprovado, após revisão, em 12/08/2009.

Os autores declaram ter recebido suporte financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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  • Endereço para correspondência:
    Prof. Natalino Hajime Yoshinari
    Av. Dr. Arnaldo 455, sala 3184
    Cerqueira Cesar, SP - CEP: 01246-903
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009

    Histórico

    • Recebido
      23 Jun 2009
    • Aceito
      12 Ago 2009
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