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Avaliação de 100 pacientes com nefrite lúpica acompanhados por dois anos

Resumos

OBJETIVOS: Determinar a frequência de remissão total e parcial no tratamento da nefrite lúpica aos 12 e 24 meses de seguimento. Comparar esses subgrupos aos 12 meses, correlacionando as variáveis renais iniciais com a resposta ao tratamento. Analisar e comparar os resultados terapêuticos do subgrupo com glomerulonefrite proliferativa difusa por correlação clínico-patológica ("classe IV clínica") com aqueles de "classe IV histológica", isto é, com biópsia renal comprovada pela Organização Mundial da Saúde. MATERIAL E MÉTODOS: Foram estudados 100 pacientes consecutivos com diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico (LES) e nefrite, atendidos no Serviço de Reumatologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e acompanhados por dois anos. Os portadores de comorbidades que comprometem os rins foram excluídos. Foram analisadas as variáveis demográficas, clínicas, laboratoriais e o índice de atividade da doença (SLEDAI). Os pacientes com classe histológica III, IV ou V receberam corticosteroide e ciclofosfamida como tratamento de indução da nefrite lúpica e aqueles com classe II receberam apenas corticosteroide. RESULTADOS: A idade média ao diagnóstico de LES foi de 24,71 ± 10,14 anos, com predomínio do sexo feminino (88%). O SLEDAI calculado ao diagnóstico foi de 16,09 ± 6,48. Em relação às variáveis renais iniciais, a creatinina média foi de 1,02 ± 0,49 mg/dL, a proteinúria de 24 horas média foi de 2,57 ± 2,39 g e o anticorpo anti-dsDNA foi encontrado em 66% dos casos. Todos os pacientes receberam corticosteroide e 75% utilizaram a ciclofosfamida. Cinquenta e seis pacientes foram submetidos à biópsia renal. Os subtipos II e IV foram os mais prevalentes (33,9% e 32,2%, respectivamente). Após 12 meses de acompanhamento, todos os pacientes apresentaram redução significativa da proteinúria de 24 horas, melhora do sedimento urinário e dos valores das frações do complemento (C3, C4, CH50). A frequência de remissão total aos 12 meses foi 72,7% e, aos 24 meses, 85,7% (p = 0,013). A remissão parcial ocorreu em 27,3% dos doentes aos 12 meses e em 14,3% aos 24 meses. O sexo masculino apresentou menor frequência de remissão total comparado ao feminino aos 12 meses de acompanhamento (45,5% versus 81,6%, p = 0,007). Dentre as diferentes variáveis estudadas, nenhuma se correlacionou com remissão total ou parcial aos 12 meses. O subgrupo "classe IV clínica" apresentou maior frequência de remissão total que o subgrupo "classe IV histológica". CONCLUSÃO: Com o esquema terapêutico usado em nosso serviço, verificou-se um excelente desfecho em dois anos. Não foram observadas correlações entre variáveis clínico-laboratoriais e remissão total ou parcial. O sexo masculino apresentou menores taxas de remissão total comparado ao feminino. Apesar do pequeno número de pacientes estudados e das controvérsias quanto à biópsia renal, a taxa de remissão total foi maior nos pacientes com "classe IV clínica" em relação àqueles com "classe IV histológica".

lúpus eritematoso sistêmico; nefrite; remissão total; biópsia renal


OBJECTIVES: To assess the frequency of total and partial remission in the treatment of lupus nephritis at 12 months and 24 months. To compare these subgroups at 12 months and correlate the initial renal variables with the therapeutic response. To analyze and to compare the therapeutic results of the subgroup with diffuse proliferative glomerulonephritis by clinicopathological correlation ("clinical class IV") with those with biopsy-proven WHO class IV ("histological class IV"). PATIENTS AND METHODS: One hundred consecutive patients with diagnosis of systemic lupus erythematosus (SLE) and nephritis who attended to the department of rheumatology of a tertiary referral center were studied. The length of the follow up was 2 years. Patients with comorbidities that compromise the kidneys had been excluded. The demographic, clinical and laboratory variables and the disease activity index (SLEDAI) were analyzed. Patients with lupus nephritis WHO class III, IV or V received glucocorticoid and cyclophosphamide for induction of remission and those with class II received only glucocorticoid. RESULTS: The average age at SLE diagnosis was of 24.71 + 10.14 years, with a predominance of female gender (88%). The initial SLEDAI was 16.09 ± 6.48. At the time of the diagnosis of nephritis, mean serum creatinine was 1.02 ± 0.49 mg/dL, mean 24-hour urinary protein level was of 2.57 ± 2.39g and the antibody anti-dsDNA was found in 66% of the cases. All the patients had received glucocorticoids and 75% had used cyclophosphamide. Fifty-six patients had been submitted to renal biopsy. The most prevalent subtypes were class II and IV (33.9% and 32.2%, respectively). After 12 months, all the patients had significant reduction in the 24-hour urinary protein level, improvement in the urinary sediment and increase in the fractional values of the complement (C3, C4, CH50). The frequency of total remission at 12 months was 72.7% and, at 24 months, 85.7% (p =0.013). Partial remission occurred in 27.3% at 12 months and, in 14.3%, at 24 months. Male gender presented a lower rate of total remission compared with women at 12 months (45.5% versus 81.6%, p = 0.007). Among several factors studied, none was correlated with total or partial remission at 12 months. The subgroup "clinical class IV" presented a higher frequency of total remission than the subgroup "histological class IV". CONCLUSION: Our therapeutic approach achieved an excellent outcome in two years. Correlations between clinical and laboratory variables and total or partial remission were not observed. Male gender presented a lower rate of total remission compared with women. Despite the small number of patients studied and the controversies of renal biopsy, the rate of total remission was higher in patients with "clinical class IV" than in those with "histological class IV".

systemic lupus erythematosus; nephritis; complete remission; renal biopsy


ARTIGO ORIGINAL

Avaliação de 100 pacientes com nefrite lúpica acompanhados por dois anos

Ana Karla Guedes de MeloI; Alessandra Barbosa AvelarII; Flávia Kamy Marciel MaegawaIII; Branca Dias Batista de SouzaIV

IMédica especialista em Reumatologia e pós-graduanda da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo-SP

IIMédica especialista em Reumatologia e pós-graduanda da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo-SP

IIIMédica especialista em Reumatologia

IVChefe do Serviço de Reumatologia da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e chefe da disciplina de Reumatologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo - SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Branca Dias Batista de Souza Departamento de Medicina/Reumatologia Rua Dr. Cesário Motta Júnior, 112 - Vila Buarque CEP: 01221-000 Tel/Fax: 55 (11) 2176-7281

RESUMO

OBJETIVOS: Determinar a frequência de remissão total e parcial no tratamento da nefrite lúpica aos 12 e 24 meses de seguimento. Comparar esses subgrupos aos 12 meses, correlacionando as variáveis renais iniciais com a resposta ao tratamento. Analisar e comparar os resultados terapêuticos do subgrupo com glomerulonefrite proliferativa difusa por correlação clínico-patológica ("classe IV clínica") com aqueles de "classe IV histológica", isto é, com biópsia renal comprovada pela Organização Mundial da Saúde.

MATERIAL E MÉTODOS: Foram estudados 100 pacientes consecutivos com diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico (LES) e nefrite, atendidos no Serviço de Reumatologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e acompanhados por dois anos. Os portadores de comorbidades que comprometem os rins foram excluídos. Foram analisadas as variáveis demográficas, clínicas, laboratoriais e o índice de atividade da doença (SLEDAI). Os pacientes com classe histológica III, IV ou V receberam corticosteroide e ciclofosfamida como tratamento de indução da nefrite lúpica e aqueles com classe II receberam apenas corticosteroide.

RESULTADOS: A idade média ao diagnóstico de LES foi de 24,71 ± 10,14 anos, com predomínio do sexo feminino (88%). O SLEDAI calculado ao diagnóstico foi de 16,09 ± 6,48. Em relação às variáveis renais iniciais, a creatinina média foi de 1,02 ± 0,49 mg/dL, a proteinúria de 24 horas média foi de 2,57 ± 2,39 g e o anticorpo anti-dsDNA foi encontrado em 66% dos casos. Todos os pacientes receberam corticosteroide e 75% utilizaram a ciclofosfamida. Cinquenta e seis pacientes foram submetidos à biópsia renal. Os subtipos II e IV foram os mais prevalentes (33,9% e 32,2%, respectivamente). Após 12 meses de acompanhamento, todos os pacientes apresentaram redução significativa da proteinúria de 24 horas, melhora do sedimento urinário e dos valores das frações do complemento (C3, C4, CH50). A frequência de remissão total aos 12 meses foi 72,7% e, aos 24 meses, 85,7% (p = 0,013). A remissão parcial ocorreu em 27,3% dos doentes aos 12 meses e em 14,3% aos 24 meses. O sexo masculino apresentou menor frequência de remissão total comparado ao feminino aos 12 meses de acompanhamento (45,5% versus 81,6%, p = 0,007). Dentre as diferentes variáveis estudadas, nenhuma se correlacionou com remissão total ou parcial aos 12 meses. O subgrupo "classe IV clínica" apresentou maior frequência de remissão total que o subgrupo "classe IV histológica".

CONCLUSÃO: Com o esquema terapêutico usado em nosso serviço, verificou-se um excelente desfecho em dois anos. Não foram observadas correlações entre variáveis clínico-laboratoriais e remissão total ou parcial. O sexo masculino apresentou menores taxas de remissão total comparado ao feminino. Apesar do pequeno número de pacientes estudados e das controvérsias quanto à biópsia renal, a taxa de remissão total foi maior nos pacientes com "classe IV clínica" em relação àqueles com "classe IV histológica".

Palavras-chave: lúpus eritematoso sistêmico, nefrite, remissão total, biópsia renal.

INTRODUÇÃO

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença inflamatória crônica, de natureza autoimune, que pode afetar múltiplos sistemas orgânicos. O envolvimento renal no LES é uma causa significativa de morbidade e mortalidade devido à possibilidade de progressão para insuficiência renal e a complicações relacionadas ao tratamento. Pelos critérios do Colégio Americano de Reumatologia (American College of Rheumatology, ACR - 1997), a nefrite lúpica é definida pela presença de proteinúria persistente (> 0,5g nas 24 horas) ou maior que 3+ ou pela cilindrúria (cilindros hemáticos, tubulares, granulosos ou mistos). Entre os padrões histológicos elaborados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a glomerulonefrite proliferativa difusa (classe IV) representa o subtipo mais prevalente e o de pior prognóstico.1 A nefrite constitui a principal causa de internações e mortalidade entre os pacientes com LES.2

Estudos randomizados anteriores demonstraram que o uso da ciclofosfamida para o tratamento da nefrite lúpica se correlaciona com maiores taxas de preservação da função renal a longo prazo e com menor incidência de doença renal terminal.3

Existem controvérsias quanto à indicação de biópsia renal em todos os pacientes com LES e nefrite. Esdaile et al. estabeleceram uma correlação entre os achados clínico-laboratoriais e a classificação histológica da nefrite lúpica, com o intuito de orientar a conduta terapêutica e racionalizar a realização de procedimentos invasivos nessa população4 (Tabela 1).

Este trabalho foi desenvolvido para demonstrar a experiência de um serviço terciário no tratamento da indução e manutenção da remissão da nefrite lúpica. Sabe-se que esse é um dos temas de maior relevância na Reumatologia, apesar do pequeno número de publicações sobre o assunto em nosso meio, somado às controvérsias quanto à indicação de biópsia renal nesses pacientes. Os objetivos principais deste estudo são determinar a frequência de remissão total e parcial da nefrite aos 12 e 24 meses de acompanhamento; comparar esses subgrupos aos 12 meses, correlacionando as variáveis renais iniciais com a resposta terapêutica e demonstrando a experiência de um serviço brasileiro no manejo das manifestações renais do LES. Outro objetivo é comparar os resultados terapêuticos dos subgrupos de pacientes com glomerulonefrite proliferativa difusa por correlação clínico-patológica ("classe IV clínica") daqueles com "classe IV histológica", ou seja, com biópsia renal.

MATERIAL E MÉTODOS

Trata-se de uma análise retrospectiva de prontuários de pacientes com diagnóstico de LES e nefrite, segundo os critérios de classificação do ACR de 1997, atendidos no Serviço de Reumatologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, no período de 1990 a 2003. A nefrite lúpica é definida pela presença de proteinúria persistente (> 0,5g nas 24 horas) ou maior que 3+ no EAS ou pela cilindrúria (cilindros hemáticos, tubulares, granulosos ou mistos).

Foram incluídos os pacientes que realizaram ou não biópsia renal inicial. A classificação de nefrite foi estabelecida clinicamente de acordo com Esdaile4 ou por histopatologia. A indicação da biópsia renal foi individualizada e se baseou nas seguintes condições: dificuldade em se estabelecer uma correlação clínico-patológica (casos duvidosos), presença de síndrome nefrótica e/ou para auxiliar na decisão terapêutica.

Os pacientes foram acompanhados por dois anos a partir do diagnóstico de nefrite e do início do tratamento, que se baseou na correlação clínico-patológica ou nos dados da biópsia renal. O esquema terapêutico do nosso serviço utilizou a prednisona em altas doses (prednisona 1-2 mg/kg/dia por via oral) em todos os pacientes ou a metilprednisolona, na dose de 1g/dia por via intravenosa, durante 3 a 5 dias consecutivos, em casos mais graves. A ciclofosfamida intravenosa (IV) foi utilizada na dose de 0,5 a 1 g/m2 de superfície corporal como o imunossupressor de primeira escolha para a indução de remissão em todos os pacientes com classe III, IV ou V. Outros agentes como azatioprina ou micofenolato mofetil (MMF) foram usados para o tratamento de manutenção da nefrite após 6-9 meses de ciclofosfamida IV mensal ou em casos de falha ou intolerância ao esquema anteriormente descrito. Os pacientes portadores de glomerulonefrite mesangial foram tratados apenas com corticosteroide em altas doses.

Foi avaliada a resposta terapêutica após 12 e 24 meses. Os critérios de Boumpas e Balow (1998) foram utilizados para a classificação da resposta terapêutica como total, parcial ou sem resposta.5 Segundo esses autores, a remissão total é definida como a estabilização ou normalização da creatinina sérica, sedimento urinário com número inferior a cinco hemácias por campo e proteinúria de 24 horas menor que 1,0 g por seis meses, no mínimo. A remissão parcial caracteriza-se por estabilização ou melhora da creatinina sérica, hematúria menor que cinco células por campo e redução persistente da proteinúria de 24 horas (se nefrótica, redução maior ou igual a 50%, mas com valor menor que 3,0 g/24 horas; se não-nefrótica, redução maior ou igual a 50%, mas com valor maior que 1,0 g/24 horas). Quando ocorre deterioração da função renal (excluídas outras causas como sepse, drogas nefrotóxicas, trombose de veia renal), aumento ou diminuição da proteinúria que não preenche os critérios acima, considera-se como sem resposta.

Os portadores de comorbidades que comprometem os rins foram excluídos do estudo. Foram analisadas as variáveis demográficas, clínicas, laboratoriais e o índice de atividade da doença (SLEDAI). Para verificar a influência de diferentes fatores no prognóstico da nefrite, os pacientes foram distribuídos em grupos de remissão total ou parcial, "classe IV clínica" e "classe IV histológica".

Os dados foram expressos como média ± desvio padrão. O programa utilizado para a análise estatística foi o SPSS versão 13.0. A comparação entre médias foi realizada utilizando-se o teste t de Student e a comparação entre frequências foi feita com o teste qui-quadrado e Mc Nemar. Considerou-se a diferença estatisticamente significante quando p < 0,05.

Para a realização do presente estudo, foi obtida a aprovação prévia do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

RESULTADOS

Foram estudados os registros de 100 pacientes com nefrite lúpica durante dois anos. A idade média dos pacientes na época do diagnóstico de LES foi de 24,71 ± 10,14 anos, variando de 5 a 46 anos. A idade média ao diagnóstico de nefrite lúpica foi de 26,78 ± 10,95 anos, com uma variação de 5 a 53 anos. O intervalo de tempo entre o diagnóstico de LES e o de nefrite foi de 2,32 ± 4,70 anos. Nessa casuística, 88% eram mulheres e houve predomínio da raça branca (Tabela 2).

As principais manifestações extrarrenais do LES foram articulares, cutâneo-mucosas, hematológicas e serosite, encontradas em 81%, 79%, 67% e 24% dos casos, respectivamente. Lúpus neuropsiquiátrico ocorreu em 11% dos doentes. O valor médio do SLEDAI ao diagnóstico foi de 16,09 ± 6,48, expressando doença em considerável atividade, isto é, SLEDAI > 4.

Em relação ao quadro renal inicial, o valor médio da creatinina sérica foi de 1,02 ± 0,49mg/dL, variando de 0,4-3,6 mg/dL e a proteinúria média foi de 2,57 ± 2,39 gramas/24 horas. Ao diagnóstico de nefrite, 33% dos pacientes eram hipertensos de acordo com os critérios propostos pela OMS6 e 66% tinham o anticorpo anti-dsDNA presente em altos títulos (Tabela 3).

Cinquenta e seis pacientes realizaram biópsia renal percutânea. Os subtipos histológicos mais frequentes foram classe II e IV (33,9% e 32,2%, respectivamente). A glomerulonefrite classe III foi observada em 11 dos 56 pacientes (19,6%) e apenas oito pacientes apresentavam classe V (14,3%). Dos 44 pacientes que não foram submetidos à biópsia renal, seis tinham dados clínico-laboratoriais compatíveis com glomerulonefrite mesangial, 11 com glomerulonefrite proliferativa-focal, 23 com proliferativa difusa e 4 com membranosa.

No que se refere ao tratamento, todos os pacientes receberam corticosteroide para a nefrite, sendo a prednisona utilizada em 100% dos casos. Do total de 100 pacientes, 75% utilizaram a ciclofosfamida em pulsos intravenosos, pois apresentavam glomerulonefrite classe III, IV ou V por correlação clínico-histológica, ou por biópsia renal, com dose cumulativa de 9,44 ± 4,22 gramas. Quinze pacientes receberam pulsoterapia com ciclofosfamida e metilprednisolona. Dentre os pacientes que utilizaram a ciclofosfamida, 60 (80%) completaram o período de indução da remissão e, posteriormente, receberam a azatioprina na dose de 2-3mg/kg/dia para o tratamento de manutenção. Quinze pacientes descontinuaram a ciclofosfamida por intolerância ou efeitos adversos, sendo os principais gastrintestinais (náuseas e vômitos em oito pacientes), infecções (cinco pacientes) e leucopenia grave (< 2000 células/mm3, em quatro indivíduos). Nos casos de interrupção da ciclofosfamida durante a fase de indução, a azatioprina foi administrada em 10 pacientes, e o MMF foi usado em cinco casos, na dose de 2g/dia, divididos em duas tomadas. A maioria dos pacientes com manifestações cutâneo-articulares (85%) fez uso de antimaláricos (hidroxicloroquina 6 mg/kg/dia ou difosfato de cloroquina 4 mg/kg/dia).

As variáveis renais analisadas foram: creatinina sérica, proteinúria de 24 horas, alterações no sedimento urinário e frações do complemento. Comparando-se os resultados dessas variáveis ao início e após 12 meses de acompanhamento, verificou-se que todos os pacientes apresentaram redução significativa da proteínúria de 24 horas, melhora do sedimento urinário e aumento nos valores das frações do complemento (Tabela 4). Durante o acompanhamento, houve tendência para o aumento da creatinina sérica, sem, no entanto, atingir significância estatística.

A frequência de remissão total aos 12 meses foi 72,7% e aos 24 meses, 85,7% (p = 0,013). A remissão parcial foi atingida em 27,3% dos pacientes aos 12 meses e em 14,3% aos 24 meses (Figura 1). A comparação entre os subgrupos com remissão total e parcial aos 12 meses e as variáveis do LES e da nefrite ao início demonstrou que nenhuma variável se correlacionou com a resposta ao tratamento (Tabela 5). Houve exacerbação renal durante o tratamento da nefrite em 40% dos casos, sendo a maioria (80%) durante a fase de manutenção. Nesses casos, as doses do glicorticoide e do imunossupressor foram otimizadas, respeitando o intervalo de doses descrito anteriormente.


O sexo masculino apresentou menores taxas de remissão total aos 12 meses comparado ao feminino (45,5% versus 81,6%, respectivamente, p = 0,007), o que poderia sugerir uma evolução menos favorável da nefrite lúpica entre os homens dessa população (Figura 2). Como se pode constatar pelos dados expostos, os homens que não atingiram remissão total aos 12 meses, evoluíram com resposta parcial ao tratamento instituído nesse período.


A análise comparativa entre os grupos com "classe IV clínica" e "classe IV histológica" e as variáveis iniciais do LES e da nefrite evidenciou que não há diferença estatística entre os valores de SLEDAI, creatinina sérica e proteinúria de 24 horas, bem como em relação ao sedimento urinário, aos valores das frações do complemento e à dose cumulativa da ciclofosfamida nos dois grupos (Tabela 6). Foi observada uma frequência significativamente maior de remissão total nos pacientes com "classe IV clínica" em relação àqueles com "classe IV histológica" (Figura 3).


DISCUSSÃO

Neste estudo, determinou-se a evolução de 100 pacientes com nefrite lúpica acompanhados por dois anos. O esquema terapêutico do nosso serviço utilizou a ciclofosfamida IV como o imunossupressor de primeira escolha para a indução de remissão da nefrite classe III, IV ou V. Outros agentes como azatioprina ou MMF foram usados para o tratamento de manutenção da nefrite após 6-9 pulsos de ciclofosfamida IV mensal ou em casos de falha ou intolerância ao esquema anteriormente descrito. Segundo Contreras et al.,6 os pacientes com nefrite lúpica proliferativa difusa que recebem ciclofosfamida IV por curto período seguida por terapia de manutenção com azatioprina ou MMF apresentam resultados mais eficazes e maior segurança que o uso prolongado de ciclofosfamida. Houssiau corroborou que a ciclofosfamida IV é a única terapia capaz de reduzir a evolução para doença renal terminal nesses pacientes em estudos com longo período de acompanhamento.7

Na nossa casuística, todos os pacientes demonstraram evolução satisfatória ao final de 12 meses de acompanhamento. Dentre as variáveis renais analisadas, houve redução significativa da proteinúria de 24 horas, melhora do sedimento urinário e aumento dos valores do complemento (C3, C4 e CH50). A frequência de remissão total aos 12 meses foi 72,7% e aos 24 meses, 85,7% (p = 0,013). Segundo Urowitz et al., os pacientes com nefrite lúpica em atividade tratados com ciclofosfamida ou outro imunossupressor apresentam remissão total em aproximadamente 70% dos casos.8

De acordo com os dados expostos, nenhum paciente apresentou critérios clínico-laboratoriais de ausência de resposta à terapêutica ao final de dois anos de acompanhamento. No entanto, esse dado deve ser interpretado com cautela, uma vez que, durante o período de estudo, houve recorrência de doença renal ativa em aproximadamente 40% dos casos, contudo, tais pacientes evoluíram satisfatoriamente com a otimização do tratamento (aumento da dose do corticosteroide e/ou do imunossupressor).

A comparação entre os subgrupos com remissão total e parcial aos 12 meses e as variáveis iniciais do LES e da nefrite constatou que nenhum dado se correlacionou com a resposta ao tratamento. Estudos anteriores demonstraram que variáveis como idade, proteinúria, hematúria e presença de hipertensão arterial na época do diagnóstico têm valor prognóstico questionável na evolução da nefrite lúpica.9,10,11,12 Outros autores concluíram em seus estudos que creatinina elevada e hipoalbuminemia representam fatores preditores de pior prognóstico renal.13,14 Em trabalho publicado no Brasil,15 verificou-se que, em portadores de LES de início após os 16 anos, piores desfechos ocorreram naqueles com nefrite, manifestada clinicamente no início ou na evolução da doença, com hipertensão arterial no início da doença, com o anti-DNA positivo e com o uso de ciclofosfamida. Possíveis explicações para esses fatos discrepantes decorrem, principalmente, de diferenças metodológicas das séries: critérios de inclusão e seleção de pacientes, estudos retrospectivos, tempos de acompanhamento, tratamentos realizados, definição dos desfechos clínicos, tamanho da amostra, entre outros.

O sexo masculino apresentou menores taxas de remissão total aos 12 meses comparado ao feminino, o que poderia sugerir pior prognóstico da nefrite lúpica entre os homens na nossa casuística. Esse dado difere da literatura em que se demonstra que o sexo do indivíduo não apresenta valor prognóstico na evolução da nefrite lúpica.16

Apesar do pequeno número de pacientes estudados e das controvérsias quanto à biópsia renal inicial, as taxas de remissão nos pacientes com "classe IV clínica" e "classe IV histológica" foram altas aos 12 meses. Um balanço entre os ganhos potenciais de informações que podem guiar um esquema terapêutico e as complicações inerentes ao procedimento invasivo sempre deve ser levado em consideração antes de indicar a biópsia renal. Estudos prévios demonstraram que parâmetros clínico-laboratoriais são capazes de predizer com acurácia o prognóstico da nefrite lúpica, sem a necessidade de biópsia em todos os casos com envolvimento renal.17,18 Já outros estudos advogam que os dados histológicos oferecem informações adicionais aos parâmetros laboratoriais e podem guiar, de maneira mais precisa, a escolha terapêutica.19 Como pode ser percebido, o tema permanece controverso. Na experiência do nosso serviço, a biópsia renal é individualizada e indicada, sobretudo, nas seguintes situações: dúvida quanto à correlação clínico-histológica, presença de síndrome nefrótica, ou em casos que não responderam à terapia de indução com ciclofosfamida. Pelo presente estudo, a frequência de remissão total aos 12 meses foi significativamente mais alta nos pacientes com "classe IV clínica", sem a necessidade de informações adicionais pelo exame histológico. Na casuística apresentada, as variáveis renais e do LES, bem como a dose cumulativa da ciclofosfamida não diferiram entre os pacientes com "classe IV histológica" ou "clínica", isto é, com e sem biópsia renal.

Portanto, concluímos que, neste estudo, a realização de biópsia renal para a determinação do subtipo histológico não influenciou na resposta ao tratamento em pacientes com nefrite lúpica acompanhados por dois anos. Os dados apresentados demonstraram que a correlação clínico-histológica pode ajudar na decisão terapêutica desses pacientes, reservando a biópsia renal apenas para situações especiais.

Recebido em 01/11/2007.

Aprovado, após revisão, em 21/10/08.

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

Trabalho desenvolvido no Departamento de Medicina da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo - SP

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  • Endereço para correspondência:

    Branca Dias Batista de Souza
    Departamento de Medicina/Reumatologia
    Rua Dr. Cesário Motta Júnior, 112 - Vila Buarque
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 2009

    Histórico

    • Aceito
      21 Out 2008
    • Recebido
      01 Nov 2007
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