Acessibilidade / Reportar erro

Violência Obstétrica e Educação Médica

Prezado editor,

Muito oportuna a proposta das autoras e do autor Nathalia M. Klering, Laura R. Petry, Henrique Garzella, Karolyn Sassi Ogliari e Juliana N. Scherer acerca da necessidade de transformar a educação profissional em saúde, bem como as relações estabelecidas nos contextos de assistência à saúde da mulher.

A violência obstétrica é um fenômeno complexo e multifatorial, que se estabelece em três esferas intercambiáveis e simbióticas, quais sejam: o âmbito individual, institucional e estrutural.11 Sadler M, Santos MJ, Ruiz-Berdún D, Rojas GL, Skoko E,Gillen P, et al. Moving beyond disrespect and abuse: addressing the structural dimensions of obstetric violence. Reprod Health Matters. 2016; 24 (47): 47-55. A violência individual -fartamente documentada por relatos femininos que não podem ser ignorados22 Niles PM, Stoll K, Wang JJ, Black S, Vedam S. “I foughtmy entire way”: Experiences of declining maternity care services in British Columbia. Ameh CA, editor. PLOS ONE. 2021; 16 (6): e0252645.,33 Ciello C, Carvalho C, Kondo C, Delage D, Niy D, Werner L, et al. Violência Obstétrica “Parirás com dor” Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres. Brasília, DF; 2012 [cited 2021 Jun 23]. Available from: http://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf
http://www.senado.gov.br/comissoes/docum...
- é sustentada em nível institucionalpela padronização e imposição deprocedimentos invasivos e desnecessários. Essa violência institucional, por sua vez, constrói-se social e historicamente, refletindo - e compondo - uma estrutura opressora e violenta, que patologiza o corpo feminino e o processo de parto e nascimento.44 Aronson J, Burgess D, Phelan SM, Juarez L. Unhealthyinteractions: The role of stereotype threat in health disparities. Am J Public Health. 2013; 103 (1): 50-6.,55 Salter CL, Olaniyan A, Mendez DD, Chang JC. NamingSilence and Inadequate Obstetric Care as ObstetricViolence is a Necessary Step for Change. Violence Against Women. 2021; 27 (8): 1019-27.

Nesse contexto, concordamos com as autoras e o autor da carta acerca da centralidade dos currículos dos cursos de saúde nesse processo. Aproveitamos para destacar que não existe posição neutra quando falamos de violências estruturais.11 Sadler M, Santos MJ, Ruiz-Berdún D, Rojas GL, Skoko E,Gillen P, et al. Moving beyond disrespect and abuse: addressing the structural dimensions of obstetric violence. Reprod Health Matters. 2016; 24 (47): 47-55.

Sendo o silêncio contingente do enunciatório,66 Orlandi EP. A leitura e os leitores possíveis. In: A Leitura eos Leitores. Campinas: Pontes; 1998. p. 7-24. ao silenciar sobre a Violência Obstétrica, os currículos acadêmicos compactuam com a perpetuação de relações de poder que subjugam o corpo das mulheres e minam sua autonomia. Ao utilizar o conceito de Medicina Baseada em Evidências (MBE) demodo abstrato, a Academia contribui para formar profissionais incapazes de reconhecer boas evidências e que ignoram a decisão compartilhadacomo um de seus pilares.77 Djulbegovic B, Guyatt GH. Progress in evidence-basedmedicine: a quarter century on. Lancet. 2017; 390 (10092): 415-23. Do mesmo modo, ao abordar o conceito de Humanização de forma rasa e reducionista, desconsiderando sua construção histórica, fomenta-seseu uso inapropriado.

A chamada “humanização” emerge a partir de um movimento de revisãode valores morais e atitudinais emergentes na Modernidade8 e fortalecidos no século XIX e início do século XX. A crença na supremacia da razão pura e na supervalorização do individualismo culminouem eventos bastante destrutivos e violentos9 inclusive na área da saúde.1010 Silva Souza W, Moreira MCN. The topic of humanizationwith in healthcare: Some issues for debate. Interface: Communication, Health, Education. 2008; 12 (25): 327-38. Como contraponto, na segunda metade do século XX, surgiram movimentos de contestação dessa realidade, como os Direitos Humanos, a Bioética e a Humanização.88 Rios IC. Humanização: a essência da ação técnica e éticanas práticas de saúde. Rev Bras Educ Méd. 2009; 33 (2): 253-61.,1111 Rego S, Gomes AP, Siqueira-Batista R. Bioética e humanização como temas transversais na formação médica. Rev Bras Educ Méd. 2008; 32 (4): 482-91. A emergência da MBE, por sua vez,fortaleceu esses movimentos ao expor os prejuízos associados às formas intervencionistas e violentas de assistência. No caso da assistência ao parto, a MBE reescreve o parto como um processo fisiológico, evidenciando que, além de violentas, as intervenções denunciadas pelos movimentos de humanização são menos efetivas e potencialmente prejudiciais.1212 Rossignol M, Chaillet N, Boughrassa F, Moutquin JM. Interrelations Between Four AntepartumObstetricInterventionsandCesarean Delivery in WomenatLow Risk: A Systematic Review and Modeling of the Cascade of Interventions. Birth. 2014; 41 (1): 70-8.

A humanização da saúde, portanto, não deve ser confundida com caridade ou concessão. Ao contrário, esse movimento visa a um modelo de atenção pautado por interações interpessoais éticas e respeitosas, de profissionais entre si e desses com as pessoas que assistem, além de demandar melhores condições de trabalho e uma ambiência adequada para as práticas assistenciais.1313 Benevides R, Passos E. A humanização como dimensãopública das políticas de saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2005; 10 (3): 561-71.

Reforçamos, portanto, a percepção das autoras e do autor da carta-resposta a nosso artigo, concordando com a urgência de uma reformulação curricular e profunda na Educação Médica. Precisamos abandonar definitivamente dicotomias que ainda ancoram as práticas médicas em ideais arcaicos, que contribuem para a sustentação de violências estruturais. Precisamos curricularizar e normatizar práticas que aliem boas evidências científicas, humanidades e bioética, posto que esses são conceitos imbrin- cados e necessários para a consolidação de uma prática médica efetiva e socialmente situada.

References

  • 1
    Sadler M, Santos MJ, Ruiz-Berdún D, Rojas GL, Skoko E,Gillen P, et al. Moving beyond disrespect and abuse: addressing the structural dimensions of obstetric violence. Reprod Health Matters. 2016; 24 (47): 47-55.
  • 2
    Niles PM, Stoll K, Wang JJ, Black S, Vedam S. “I foughtmy entire way”: Experiences of declining maternity care services in British Columbia. Ameh CA, editor. PLOS ONE. 2021; 16 (6): e0252645.
  • 3
    Ciello C, Carvalho C, Kondo C, Delage D, Niy D, Werner L, et al. Violência Obstétrica “Parirás com dor” Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres. Brasília, DF; 2012 [cited 2021 Jun 23]. Available from: http://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf
    » http://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf
  • 4
    Aronson J, Burgess D, Phelan SM, Juarez L. Unhealthyinteractions: The role of stereotype threat in health disparities. Am J Public Health. 2013; 103 (1): 50-6.
  • 5
    Salter CL, Olaniyan A, Mendez DD, Chang JC. NamingSilence and Inadequate Obstetric Care as ObstetricViolence is a Necessary Step for Change. Violence Against Women. 2021; 27 (8): 1019-27.
  • 6
    Orlandi EP. A leitura e os leitores possíveis. In: A Leitura eos Leitores. Campinas: Pontes; 1998. p. 7-24.
  • 7
    Djulbegovic B, Guyatt GH. Progress in evidence-basedmedicine: a quarter century on. Lancet. 2017; 390 (10092): 415-23.
  • 8
    Rios IC. Humanização: a essência da ação técnica e éticanas práticas de saúde. Rev Bras Educ Méd. 2009; 33 (2): 253-61.
  • 9
    Bauman Z. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 1999.
  • 10
    Silva Souza W, Moreira MCN. The topic of humanizationwith in healthcare: Some issues for debate. Interface: Communication, Health, Education. 2008; 12 (25): 327-38.
  • 11
    Rego S, Gomes AP, Siqueira-Batista R. Bioética e humanização como temas transversais na formação médica. Rev Bras Educ Méd. 2008; 32 (4): 482-91.
  • 12
    Rossignol M, Chaillet N, Boughrassa F, Moutquin JM. Interrelations Between Four AntepartumObstetricInterventionsandCesarean Delivery in WomenatLow Risk: A Systematic Review and Modeling of the Cascade of Interventions. Birth. 2014; 41 (1): 70-8.
  • 13
    Benevides R, Passos E. A humanização como dimensãopública das políticas de saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2005; 10 (3): 561-71.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2021
  • Revisado
    06 Jul 2021
  • Aceito
    15 Jul 2021
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br