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Desafios e oportunidades para a formação em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica à Saúde: subsídios para estratégias de intervenção

Challenges and opportunities for Worker`s Health training in Primary Health Care: contributions for intervention strategies

Resumo

Objetivo:

identificar e analisar os principais desafios e oportunidades relacionados à formação de trabalhadores e profissionais da saúde, no que tange a perspectiva de incorporação das ações de saúde do trabalhador no âmbito da Atenção Básica.

Métodos:

estudo exploratório-descritivo, baseado na revisão de artigos e documentos de acesso público que subsidiaram a construção de matrizes SWOT (do inglês strengths, weaknesses, opportunities e threats) para as interfaces entre os campos da Saúde do Trabalhador, Atenção Básica e Gestão de Serviços e Programas de Saúde.

Resultados:

a análise dos dados evidenciou desafios e oportunidades para a formação de trabalhadores em quatro áreas de interface dos referidos campos, cada qual com demandas específicas, desde a formação acadêmica (ênfase nos mestrados acadêmicos e doutorados) até a formação em serviços (ênfase nas residências multiprofissionais e mestrados profissionais).

Discussão:

a partir da análise dos campos de interface evidenciados, espera-se contribuir para o desenvolvimento de programas que considerem a centralidade dos determinantes sociais e ambientais das relações saúde-trabalho e que contemple a diversidade de modalidades formativas adequadas para o fortalecimento das estratégias de intervenção em Saúde do Trabalhador no SUS.

Palavras-chave:
atenção básica; educação em saúde; formação profissional; gestão em saúde; saúde do trabalhador

Abstract

Objective:

to identify and analyze the main challenges and opportunities for health workers’ training, regarding the inclusion of occupational health policies within the scope of Primary Health Care.

Methods:

exploratory-descriptive study, based on a review of public documents and scientific articles that supported the construction of SWOT matrices, aiming at highlighting the interfaces between the fields of Occupational Health, Primary Health Care, Management of Health Services and Health Programs.

Results:

data analysis evinced challenges and opportunities for health workers’ training in the four fields interface, each of them with specific demands, from academic education (emphasis on masters and doctorate degrees) to Services training (emphasis on multi-professional residences and professional masters programs).

Discussion:

based on the fields interface analysis, this study may contribute to the design of intervention strategies that take into account the centrality of the health-work relations social and environmental determinants, as well as to focus on appropriated training approaches for strengthening occupational health intervention strategies in the Brazilian Public Health System (SUS).

Keywords:
primary health care; health education; workers’ training; health management; occupational health

Introdução

As doenças ocupacionais representam importante parcela da carga de enfermidade ao redor do mundo, atingindo 2,4 milhões de pessoas/ano11. Hämäläinen P, Takala J, Kiat TB. Global estimates of occupational accidents and work-related illnesses. Singapore: Workplace Safety and Health Institute; 2017. [citado 27 jan 2018]. Disponível em: http://www.icohweb.org/site/images/news/pdf/Report%20Global%20Estimates%20of%20Occupational%20Accidents%20and%20Work-related%20Illnesses%202017%20rev1.pdf
http://www.icohweb.org/site/images/news/...
. Tais estimativas, embora preocupantes, são de difícil mensuração, sobretudo quando se considerada que, em algumas regiões, como o continente americano, menos de 5% dos casos são efetivamente registrados pelos sistemas oficiais de notificação22. Pan American Health Organization. Plan of action on worker's health 2015-2025 [Internet]. Washington, DC: OPS; 2015 [citado 27 jan 2018]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/33986
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. Nos países em desenvolvimento, em virtude de uma série de fatores conjunturais, de fiscalização e regulação, esses números são ainda mais evidentes no escopo da carga global de doenças22. Pan American Health Organization. Plan of action on worker's health 2015-2025 [Internet]. Washington, DC: OPS; 2015 [citado 27 jan 2018]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/33986
https://iris.paho.org/handle/10665.2/339...
), (33. Proteção. Anuário brasileiro de proteção, saúde e segurança no trabalho 2015. Novo Hamburgo: Proteção; 2015 [citado 27 jan 2018]. Disponível em: https://protecao.com.br/imp-conteudo/anuario-brasileiro-de-protecao/
https://protecao.com.br/imp-conteudo/anu...
.

Desde os anos 1980, acompanhando o movimento da Medicina Social Latino-Americana, o estudo das relações saúde-trabalho, e sobretudo dos impactos dos diferentes processos produtivos na saúde dos trabalhadores44. Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saude Publica. 2007;23(4):757-66., vem se desenvolvendo e crescendo no país, tanto nos espaços acadêmicos quanto em sua interface com a organização do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso possibilitou a criação e a consolidação de um campo de saberes e práticas voltados para a compreensão da relação saúde-trabalho com o foco no trabalhador e suas inter-relações com o ambiente e a organização do trabalho: o campo da Saúde do Trabalhador55. Gomez CM, Lacaz FAC. Saúde do trabalhador: novas-velhas questões. Cien Saude Colet. 2005;10(4):797-807..

Com o desenvolvimento e a consolidação do SUS, os programas e serviços de saúde passaram a incorporar os princípios da Saúde do Trabalhador na organização do cuidado do grande contingente de trabalhadores e trabalhadoras, com vínculos formais e precários de trabalho, que, após a promulgação da Constituição de 1988, se tornam usuários do SUS44. Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saude Publica. 2007;23(4):757-66.. Assim, desde a criação dos programas de Saúde do Trabalhador nos estados e municípios brasileiros, em meados da década de 1980, até a promulgação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora66. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 1.823, de 23 de Agosto de 2012 [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012 [citado 17 jan 2018]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html
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, em 2012, um conjunto de ações foi desenvolvido de modo a articular a academia aos serviços e os movimentos sociais ao Legislativo, incorporando, tanto no escopo das políticas públicas em saúde, quanto na própria organização do SUS, o olhar sobre o trabalhador e as demandas específicas do cuidado de sua saúde, da vigilância dos acidentes, dos processos e dos ambientes de trabalho, da promoção e da educação em saúde, entre outros avanços.

O desafio de incorporação do olhar da Saúde do Trabalhador no SUS, entretanto, não está superado nem é simples. Ao contrário, demanda esforços multisetoriais e multidisciplinares que aproximem usuários e profissionais de saúde, pesquisadores e gestores, numa articulação que permita a inserção das especificidades do cuidado e da promoção da saúde relacionados ao trabalho nas estruturas e instâncias do SUS já estabelecidas, com suas limitações de recursos de diversas ordens - financeiros, humanos, infraestrutura etc. Dentre os diversos desafios que ainda persistem, estão as demandas formativas que a organização do SUS impõe para a incorporação do cuidado e da promoção da Saúde do Trabalhador nas estratégias de intervenção nos determinantes da relação saúde-ambiente-trabalho.

Dentre os diferentes espaços de organização do SUS, talvez a Atenção Básica seja o que apresenta as maiores e mais complexas necessidades formativas, tanto pela importância que hoje tem na arquitetura do SUS, devido à centralidade na organização do cuidado e da promoção da saúde, por se configurar como principal porta de entrada dos usuários para o sistema, quanto por ser o espaço de atuação do setor saúde no território, no qual os problemas e situações de saúde são gerados - com ou sem relação com o trabalho. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é analisar os desafios e oportunidades, em termos da formação de trabalhadores e profissionais da saúde, no que tange à perspectiva de incorporação das ações de Saúde do Trabalhador no âmbito da Atenção Básica, apontando o papel estratégico das diferentes modalidades formativas para o desenvolvimento profissional e o fortalecimento das estratégias de intervenção em Saúde do Trabalhador no SUS.

Métodos

Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, baseado nos princípios da pesquisa qualitativa em saúde77. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9th ed. São Paulo: Hucitec; 2006. Chapter 2, Metodologia de pesquisa social e em saúde; p. 39-53. e organizado em duas etapas.

Na primeira foi construído um diagrama (Figura 1) para delimitar as diferentes áreas de interface entre a Saúde do Trabalhador, a Atenção Básica e a gestão dos programas de serviços de saúde. Para cada área delimitada, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental (documentos de acesso livre) para determinar possíveis demandas em termos de formação de pessoal, bem como experiências exitosas de formação em saúde.

Figura 1
Diagrama de definição das áreas de interface* entre a Saúde do Trabalhador (1), a Atenção Básica (2) e a Gestão de Serviços e Programas de Saúde (3). *Interface A: Saúde do Trabalhador/gestão dos serviços e programas de saúde; interface B: Atenção Básica/gestão dos serviços e programas de saúde; interface C: Saúde do Trabalhador/Atenção Básica; interface D: Saúde do Trabalhador/Atenção Básica/gestão dos serviços e programas de saúde.

A pesquisa se deu na base Biblioteca Virtual em Saúde (BVS Brasil) e os documentos foram identificados nos portais do Ministério da Saúde e das secretarias municipais e estaduais de saúde, além do portal da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast). Foram utilizados como descritores: a) Saúde do Trabalhador; b) formação profissional; c) educação em saúde; d) formação em saúde; e) aperfeiçoamento profissional; f) Atenção Básica; e g) Educação Permanente em Saúde. Os descritores foram combinados dois a dois e, ao final da pesquisa, eliminando-se entradas duplicadas e textos que não tratavam especificamente de formação para a Atenção Básica e/ou para a Saúde do Trabalhador, restaram 142 documentos, sendo 55 artigos e 87 outros documentos de livre acesso.

Numa segunda etapa, foi realizada uma pesquisa nos sites de universidades e centros formadores que ofereciam cursos em Saúde do Trabalhador. Os critérios de exclusão utilizados foram: a) cursos em Segurança do Trabalho; b) cursos de Medicina do Trabalho; e c) cursos em Saúde Ocupacional. Após esse primeiro filtro, foram selecionados apenas os cursos que continham programa e/ou ementas disponíveis on-line, gerando um total de 26 cursos de diferentes níveis (especialização, atualização, aperfeiçoamento e cursos livres), além de áreas de concentração de três modalidades de programas stricto sensu (mestrado acadêmico, mestrado profissional e doutorado). Consideraram-se, apenas, cursos oferecidos nos últimos dez anos.

Por fim, foi construída uma matriz SWOT88. Gürel E, Tat M. SWOT analysis: a theoretical review. J Int Soc Res. 2016;10(51):994-1006. (um acrônimo em inglês: strengths, weaknesses, opportunities e threats) para cada uma das áreas de interface (A a D) (Figura 1). Trata-se de instrumento de matriciamento de atributos, comumente utilizado por gestores e pesquisadores para análises de cenário e planejamento estratégico, que organiza uma determinada situação ou problema a partir dos quatro aspectos do acrônimo citado, que em português são: forças, fraquezas, oportunidades e ameaças. São dois aspectos negativos e dois positivos. Os negativos (fraquezas e ameaças) foram identificados nos documentos de referência e agrupados como desafios para a formação em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica. Já os positivos (forças e oportunidades), igualmente identificados nos documentos revisados, foram agrupados como oportunidades para a formação em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica.

Na sequência, triangularam-se os três conjuntos de dados. Cada modalidade formativa devidamente identificada na segunda etapa do trabalho foi correlacionada a cada uma das quatro áreas de interface delimitadas (A, B, C e D). Posteriormente, as modalidades formativas, já organizadas em relação às áreas de interface, foram analisadas quanto a seus aspectos positivos (oportunidades) e negativos (desafios), bem como quanto às demandas identificadas durante a revisão bibliográfica e documental.

Ao final da análise, foi possível identificar os principais desafios e oportunidades para a formação em Saúde do Trabalhador no âmbito da Atenção Básica nacional, contribuindo assim para o aprimoramento de ações educativas em saúde no país.

Resultados

A análise dos resultados do levantamento documental e bibliográfico, organizados a partir do diagrama (Figura 1) de interfaces dos campos da Saúde do Trabalhador (1), Atenção Básica (2) e gestão dos serviços e programas de saúde (3), apontou as características principais das estratégias formativas utilizadas em cada um dos três campos, a saber:

Campo 1: Saúde do Trabalhador

O campo da Saúde do Trabalhador se desenvolveu e se consolidou, no país, prioritariamente na academia, a partir do intercâmbio de pesquisadores latino-americanos, no contexto de desenvolvimento da Medicina Social regional44. Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saude Publica. 2007;23(4):757-66.. Consolida-se enquanto um campo de articulação teórico e prático a partir do final dos anos 1980, sob influência do movimento da Reforma Sanitária, da 18ª Conferência Nacional de Saúde e da construção dos princípios do SUS55. Gomez CM, Lacaz FAC. Saúde do trabalhador: novas-velhas questões. Cien Saude Colet. 2005;10(4):797-807.. Nesse contexto histórico e político, a aproximação entre a academia (escolas de Saúde Pública e departamentos de Medicina Preventiva das faculdades de Medicina em particular), os movimentos sindicais e, posteriormente, os movimentos organizados da sociedade civil que tinham na saúde seu eixo agregador, confere ao campo da Saúde do Trabalhador uma organização multisetorial caracterizada, nas palavras de Lacaz, como

articulação bastante ampla dos saberes de filósofos e cientistas sociais, de políticos, planejadores, de profissionais de saúde, com os dos trabalhadores organizados em seus órgãos de representação, (que) sustenta a luta pela transformação da organização dos processos de trabalho, visando a resgatar o real ethos do trabalho: libertário e emancipador44. Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saude Publica. 2007;23(4):757-66.. (p. 760)

Dessa forma, desde a criação dos primeiros cursos de especialização em Saúde do Trabalhador, ainda no final da década de 1980, a formação para o campo vem sendo centrada na compreensão das relações saúde-trabalho e o papel dos determinantes sociais e ambientais nessas relações. Formação mais centrada na pós-graduação lato sensu (especializações) e stricto sensu (mestrados e doutorados).

Campo 2: Atenção Básica

Compreendida como eixo estruturante de reorganização do modelo de atenção à saúde, a Atenção Básica se orienta, segundo a Política Nacional da Atenção Básica99. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011 [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011 [citado 27 jan 2018]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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, pela descentralização e capilaridade do sistema de saúde, propondo práticas integradas de cuidado e gestão democrática dos serviços e programas, desenvolvidos por equipes multiprofissionais. Considerada a principal porta de entrada dos usuários para o sistema de saúde, a Atenção Básica deve considerar o sujeito-usuário em sua singularidade e inserção sociocultural para que as ações e serviços sejam planejados e executados com base nas necessidades reais da população atendida, assegurando efetividade e eficiência99. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011 [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011 [citado 27 jan 2018]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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.

A Política Nacional de Atenção Básica prioriza, como estratégia pedagógica, a Educação Permanente em Saúde como espaço estratégico para a formação de profissionais e trabalhadores na Atenção Básica; entretanto, a avaliação dos impactos dessa formação para a melhoria dos serviços e programas de saúde ainda é incipiente.

Campo 3: Gestão de Serviços e Programas de Saúde

Apesar dos inúmeros avanços alcançados na consolidação da complexa estrutura organizativa do SUS, uma série de problemas e questões se apresenta como desafios para o adequado funcionamento dos programas e serviços de saúde, no processo de implementação de políticas públicas de saúde e organização do cuidado à saúde da população brasileira, repercutindo negativamente sobre a qualidade da atenção, da vigilância e da promoção a saúde. Muitos desses desafios estão relacionados à complexidade e às dificuldades de gerir um sistema de saúde do tamanho do SUS, num país grande e diversificado como o Brasil e por meio de uma lógica de descentralização de recursos e gestão compartilhada nas três esferas de governo (união, estados e municípios). A esses desafios, próprios da organização e das características do SUS, somam-se outros, de ordem da disponibilidade e do preparo dos gestores que conduzem esses programas, serviços e políticas de saúde, na perspectiva mais operacional e sistêmica de nosso setor saúde.

Após a análise das principais necessidades formativas de cada campo, e a partir do diagrama elaborado para o delineamento das áreas de interface entre os campos (Figura 1), analisaram-se as principais oportunidades e desafios formativos para cada uma das quatro áreas de interface.

Área de interface A: interface Saúde do Trabalhador/Gestão de Serviços e Programa de Saúde

A primeira área de interface (A) demarca a interseção entre o campo da Saúde do Trabalhador e o da gestão dos serviços e programas de saúde. No que tange à finalidade básica da formação, tem como prioridade a formação para gestão da atenção integral a Saúde do Trabalhador, com ênfase na estratégia Renast/Centro de Referência de Saúde do Trabalhador (Cerest). A análise das ofertas formativas focadas nessa área de interface mostra um privilégio da formação mais centrada na pós-graduação lato sensu (especializações) e um discreto crescimento da oferta (e, principalmente, da demanda) por mestrados profissionais (stricto sensu), com características bem específicas (Quadro 1).

Quadro 1
Matriz Swot dos aspectos positivos e negativos relacionados à formação para a área de interface entre os campos da Saúde do Trabalhador e Gestão de Serviços e Programa de Saúde

Apesar da ampliação, da capilarização e da melhor estruturação da Renast em todo o país1010. Lacerda e Silva T, Dias EC, Pessoa VM, Fernandes LMM, Gomes EM. Saúde do trabalhador na atenção primária: percepções e práticas de equipes de Saúde da Família. Interface Comun Saude Educ. 2014;18(49 ):273-88.), (1111. Dias EC, Lacerda e Silva T. Contribuições da atenção primária em saúde para a implementação da Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho (PNSST). Rev Bras Saude Ocup. 2013;38(127):31-43. doi: 10.1590/S0303-76572013000100007
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, persistem ainda muitos desafios, principalmente relacionados à diminuição dos cursos ofertados por centros formadores tradicionalmente associados ao desenvolvimento do campo da Saúde do Trabalhador, ao mesmo tempo que surgem e crescem significativamente novos cursos e programas de formação dirigidos aos profissionais dos Cerests e dos programas de Saúde do Trabalhador das secretarias estaduais e municipais de saúde, oferecidos por centros formadores privados e com programas baseados nos princípios da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional.

O desafio principal que se coloca nessa área de interface é seguir avançando na consolidação da estratégia da Renast através do fortalecimento da formação dos trabalhadores da saúde coerente com os princípios e diretrizes da Saúde do Trabalhador.

Área de interface B: Atenção Básica/Gestão de Serviços e Programa de Saúde

O SUS é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde do mundo, com cobertura oferecida para mais de 209 milhões de pessoas (população brasileira em janeiro de 2019). Trata-se de um sistema pautado tanto em princípios-marco, como a universalidade, a equidade e a integralidade da atenção em saúde, quanto em princípios-organizativos, como a descentralização, a regionalização, a hierarquização e a participação social. Dessa forma, ele assegura o direito básico constitucional à saúde, um dever do Estado, a todos1212. Paim JS. O que é o SUS? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009..

Na Atenção Básica, são identificadas as principais necessidades de saúde da população, monitoradas as possíveis emergências sanitárias e priorizadas as ações de promoção e educação em saúde, numa perspectiva de atuação territorial. É, portanto, um dos espaços mais privilegiados para a organização e implementação de ações de intervenção voltadas à melhoria das condições e determinantes da saúde1313. Botazzo C. Sobre a atenção básica: os cuidados primários de saúde no contexto da Reforma Sanitária brasileira. In: Botazzo C, Oliveira MA, organizadores. Atenção básica no Sistema Único de Saúde: abordagem interdisciplinar para os serviços de saúde bucal. São Paulo: Páginas & Letras; 2008. p. 1-12..

Em termos formativos, o Quadro 2 sintetiza os principais aspectos positivos e negativos identificados na interface entre a Atenção Básica e a gestão dos programas e serviços de saúde.

Quadro 2
Matriz SWOT dos aspectos positivos e negativos relacionados à formação para a área de interface entre os campos da Atenção Básica e Gestão de Serviços e Programa de Saúde

Os principais avanços observados foram aqueles relacionados ao papel protagonista da Atenção Básica na organização dos programas e serviços de saúde e sua configuração como um espaço estratégico para a educação em serviço, numa perspectiva da Educação Permanente em Saúde. Como desafios ainda persistentes, destacam-se a concentração das ações formativas nas capitais e centros urbanos e as poucas experiências de avaliação dos impactos das estratégias formativas sobre os serviços e programas de saúde desenvolvidos na Atenção Básica.

Área de interface C: Saúde do Trabalhador/Atenção Básica

A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora6, publicada em 2012 pelo Ministério da Saúde, coloca de maneira clara o papel protagonista da Atenção Básica como ordenadora dos serviços e programas de saúde no SUS, incluindo os voltados para a proteção e promoção da saúde do trabalhador brasileiro. Apesar desse reconhecimento, os avanços de consolidação da Atenção Básica como lócus principal para o desenvolvimento das ações de Saúde do Trabalhador no SUS são muito tímidos.

Dentre os motivos que contribuem para tal, primeiramente, destaca-se que o espelhamento descentralizado das instâncias de gestão dos programas de serviços de saúde no SUS, a partir da organização do Ministério da Saúde brasileiro, colocam um desafio claro a Saúde do Trabalhador na Atenção Básica, dado que no nível federal esses dois campos encontram-se organizados em secretarias diferentes, dificultando a organização e a articulação de ações conjuntas ou convergentes.

Outro aspecto diz respeito à organização da Renast e o papel dos Cerests como estruturas que operam, primordialmente, numa perspectiva de matriciamento e articulação de ações e, em menor escala, na integração com os serviços organizados na Atenção Básica e na Estratégia de Saúde da Família, o que, somado às dificuldades de “navegação” dos usuários pelo sistema de saúde, pode resultar em ações menos efetivas e, até mesmo, na duplicação de esforços.

Tal complexidade se expressa na análise das necessidades e oportunidades em termos de formação para essa área de interface (Quadro 3). Nesse sentido, se por um lado observamos avanços importantes com algumas experiências de inserção das ações de saúde no trabalhador na Atenção Básica, em pelo menos três estados brasileiros1010. Lacerda e Silva T, Dias EC, Pessoa VM, Fernandes LMM, Gomes EM. Saúde do trabalhador na atenção primária: percepções e práticas de equipes de Saúde da Família. Interface Comun Saude Educ. 2014;18(49 ):273-88., por outro, os principais desafios que se colocam estão relacionados à ausência de conteúdos e competências da Saúde do Trabalhador no processo tradicional de formação de trabalhadores e profissionais da Atenção Básica. Além disso, há o próprio desafio de articulação intra e intersetorial.

Quadro 3
Matriz SWOT dos aspectos positivos e negativos relacionados à formação para a área de interface entre os campos da Saúde do Trabalhador e Atenção Básica

Área de interface D: Saúde do Trabalhador/Atenção Básica/Gestão de Serviços e Programa de Saúde

Pelo exposto, é possível considerar a área de interface entre os três campos (Saúde do Trabalhador, Atenção Básica e gestão dos serviços e programas de saúde) como estratégica para pensar e desenvolver ações formativas voltadas a apoiar o processo de incorporação das ações de atenção integral a Saúde do Trabalhador na Atenção Básica. Pode também ser considerada como espaço privilegiado de articulação intra e intersetorial, voltada para o fortalecimento da formação de Recursos Humanos em Saúde (RHS) no país, contribuindo assim para a superação do desafio de incorporação das ações de Saúde do Trabalhador na Atenção Básica.

O Quadro 4 sintetiza os principais aspectos positivos e negativos relacionados à formação para essa área de interface.

Quadro 4
Matriz SWOT dos aspectos positivos e negativos relacionados à formação para a área de interface entre os campos da Saúde do Trabalhador, Atenção Básica e Gestão de Serviços e Programa de Saúde

Se por um lado podemos observar que, em razão do desenvolvimento do campo da Saúde do Trabalhador no país e de sua estreita interface com os serviços de saúde, os estados e municípios brasileiros avançaram em termos da organização dos serviços e programas de Saúde do Trabalhador; por outro, também persistem enormes desafios, como a fragmentação e a duplicação de esforços entre os Cerests e os serviços de saúde (com ênfase especial na Atenção Básica). Somam-se a estes desafios a não priorização das ações de Saúde do Trabalhador no escopo dos serviços e programas de saúde atualmente em curso e a recente restrição do orçamento da saúde, no escopo da Emenda Constitucional (EC) nº 951414. Brasil. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Diário Oficial da União [Internet]. 2016 [citado 16 jul 2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm
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, que limita os gastos no setor por vinte anos. Além disso, temos um cenário de ameaças que podem inviabilizar a construção de um espaço de gestão da atenção integral à Saúde do Trabalhador na Atenção Básica.

Após a análise dos principais aspectos positivos relacionados à formação em cada uma das áreas de interface, buscou-se identificar as principais modalidades formativas utilizadas e/ou demandadas para a formação em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica, com ênfase na gestão dos serviços e programas de saúde:

  • Formação acadêmica: ênfase nos cursos e programas de pós-graduação stricto sensu (prioritariamente, mestrados acadêmicos e doutorados) e lato sensu (especializações como estágio para ingresso no stricto sensu), com contribuição crescente da formação de graduação em saúde coletiva (linhas de saúde, trabalho e ambiente).

  • Formação para a gestão: ênfase nos cursos e programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado profissionais) e lato sensu (especializações, maior parte). Incorporação sistemática e contínua das tecnologias educacionais em saúde e de educação à distância (EaD).

  • Formação para a atenção integral a Saúde do Trabalhador: predomínio da formação de especialistas para atuarem na estratégia Renast/Cerest e forte papel da educação continuada/permanente. Crítica a persistência de ações desconexas e pontuais de formação curta (treinamentos e capacitações), colocam uma clara demanda pela construção de programas de formação em Saúde do Trabalhador.

  • Formação para a Atenção Básica: necessidade de reforçar o papel estratégico das residências (médica e multidisciplinar) na organização das equipes da estratégia da saúde da família. seguimento da formação deve se dar na lógica da Educação Permanente em Saúde.

  • Formação em Saúde do Trabalhador na/para a Atenção Básica: aqui se observa o papel central dos programas de formação que, no âmbito de uma mesma (comum) concepção pedagógica, podem privilegiar a formação de gestores (mestrados profissionais, especializações e educação continuada) e trabalhadores (residências, educação continuada e educação permanente), favorecendo tanto a articulação intrasetorial quanto a interdisciplinar.

Discussão

A análise dos resultados do matriciamento de informações levantadas ao longo do presente estudo possibilitou identificar alguns dos principais desafios e oportunidades para o avanço da oferta e da qualidade das estratégias formativas a serem desenvolvidas no âmbito do SUS, para a incorporação dos conhecimentos e princípios da Saúde do Trabalhador na Atenção Básica.

Desafios à inserção das ações de Saúde do Trabalhador na Atenção Básica

Compreendida como eixo estruturante de reorganização do modelo de atenção à saúde, a Atenção Básica, como visto, orienta-se, segundo a Política Nacional da Atenção Básica99. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011 [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011 [citado 27 jan 2018]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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, pela descentralização e capilaridade do sistema de saúde, ao propor práticas de cuidado e gestão democrática desenvolvidas por equipes multiprofissionais. Como a principal porta de entrada dos usuários para o sistema de saúde, a Atenção Básica considera o sujeito-usuário em sua singularidade e inserção sociocultural para que as ações e serviços sejam planejados e executados com base nas necessidades reais da população atendida, assegurando efetividade e eficiência99. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011 [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011 [citado 27 jan 2018]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html
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.

As premissas do campo da Saúde do Trabalhador na rede de serviços públicos de saúde despontam desde o início das discussões pela democratização da saúde no final dos anos 1970, considerando as relações produção-consumo e ambiente-saúde determinantes do processo saúde-doença dos trabalhadores1111. Dias EC, Lacerda e Silva T. Contribuições da atenção primária em saúde para a implementação da Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho (PNSST). Rev Bras Saude Ocup. 2013;38(127):31-43. doi: 10.1590/S0303-76572013000100007
https://doi.org/10.1590/S0303-7657201300...
. Incorpora-se ao rol de responsabilidades do Estado a partir da Constituição Federal de 19881515. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília, DF: Presidência da República; 2020 [citado 16 jul 2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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e organiza-se a partir da publicação da Lei Orgânica da Saúde, em 19901616. Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 [Internet]. Brasília, DF: Presidência da República; 1990 [citado 16 jul 2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm
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, garantindo a participação dos trabalhadores como sujeitos sociais, protagonistas na busca de melhoria das condições de vida e trabalho.

A partir da criação da Renast, em 20021717. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 1.679, de 19 de setembro de 2002. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2002., a Saúde do Trabalhador passa a figurar como ação estratégica de âmbito nacional, avançando a partir do acúmulo das experiências estaduais e municipais existentes desde meados da década de 1980. Assim, configura-se como espaço de articulação intrassetorial com as demais instâncias do SUS, em especial a Atenção Básica, para organização da atenção integral a Saúde do Trabalhador no Brasil1818. Dias EC, Hoefel MG. O desafio de implementar as ações de Saúde do Trabalhador no SUS: a estratégia da Renast. Cien Saude Colet. 2005;10(4):817-28.. Essa complexa organização, que envolve a articulação dos Cerests com a Atenção Básica, a estratégia de saúde da família e outras instâncias de atenção à saúde do SUS, acaba sendo um dos principais desafios à organização de estratégias formativas em Saúde do Trabalhador para trabalhadores e profissionais da Atenção Básica, por necessitar de acordos e arranjos intrasetoriais e nos três níveis de governo1111. Dias EC, Lacerda e Silva T. Contribuições da atenção primária em saúde para a implementação da Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho (PNSST). Rev Bras Saude Ocup. 2013;38(127):31-43. doi: 10.1590/S0303-76572013000100007
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), (1818. Dias EC, Hoefel MG. O desafio de implementar as ações de Saúde do Trabalhador no SUS: a estratégia da Renast. Cien Saude Colet. 2005;10(4):817-28..

Dessa forma, se a Atenção Básica e, em particular, a Estratégia da Saúde da Família, é um espaço privilegiado e estratégico para o desenvolvimento da atenção integral à Saúde do Trabalhador, os principais investimentos tanto organizativos quanto formativos nesse campo estão circunscritos aos profissionais dos Cerests e dos programas de Saúde do Trabalhador das secretarias municipais e estaduais de saúde. Isso acarreta o desafio de reorientar políticas e estratégias de implementação das ações e de intervenção em Saúde do Trabalhador no âmbito do SUS1818. Dias EC, Hoefel MG. O desafio de implementar as ações de Saúde do Trabalhador no SUS: a estratégia da Renast. Cien Saude Colet. 2005;10(4):817-28..

Adicionalmente, como visto, as numerosas e diversas necessidades formativas na Atenção Básica, em particular na Estratégia da Saúde da Família, precisam incluir um olhar sobre a Saúde do Trabalhador, algo que requer um desafio que, ao mesmo tempo, é interdisciplinar e, como exposto, intra e intersetorial1010. Lacerda e Silva T, Dias EC, Pessoa VM, Fernandes LMM, Gomes EM. Saúde do trabalhador na atenção primária: percepções e práticas de equipes de Saúde da Família. Interface Comun Saude Educ. 2014;18(49 ):273-88.), (1111. Dias EC, Lacerda e Silva T. Contribuições da atenção primária em saúde para a implementação da Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho (PNSST). Rev Bras Saude Ocup. 2013;38(127):31-43. doi: 10.1590/S0303-76572013000100007
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), (1818. Dias EC, Hoefel MG. O desafio de implementar as ações de Saúde do Trabalhador no SUS: a estratégia da Renast. Cien Saude Colet. 2005;10(4):817-28..

Oportunidades relacionadas à inserção das ações de Saúde do Trabalhador na Atenção Básica, para melhoria da Gestão de Serviços e Programas de Saúde no SUS

A necessidade de articulação, ao mesmo tempo interdisciplinar e intra e intersetorial, se apresenta como um dos principais desafios ao desenvolvimento de ações formativas em Saúde do Trabalhador no âmbito da Atenção Básica. No entanto o presente estudo mostrou claramente uma série de oportunidades que esses arranjos podem trazer, a fim de melhorar os processos de gestão dos serviços e programas de saúde no SUS e o próprio cuidado com a saúde dos trabalhadores brasileiros.

No que diz respeito à melhoria dos processos de gestão dos serviços e programas de saúde no SUS, pôde-se observar que o modelo até então preponderante de formação de especialistas mostra-se limitado em termos de oferta de habilidades e competências para a gestão dos serviços e programas de atenção integral à Saúde do Trabalhador no âmbito da Atenção Básica. Ao mesmo tempo, experiências bem-sucedidas de programas de mestrado profissional e residências multiprofissionais mostram-se bastante animadoras para o desenvolvimento da capacidade gestora na Atenção Básica, tendo como ênfase os conceitos e princípios da Saúde do Trabalhador1919. Hortale VA, Leal MDC, Moreira COF, Aguiar ACD. Características e limites do mestrado profissional na área da saúde: estudo com egressos da Fundação Oswaldo Cruz. Cien Saude Colet. 2010;15(4):2051-8.. O investimento em programas de formação que incluam mestrados profissionais e residências multiprofissionais não devem, entretanto, vir desacompanhado de estratégias de avaliação de sua eficácia, tanto em termos pedagógicos quanto em sua contribuição para a melhoria da capacidade gestora do SUS1919. Hortale VA, Leal MDC, Moreira COF, Aguiar ACD. Características e limites do mestrado profissional na área da saúde: estudo com egressos da Fundação Oswaldo Cruz. Cien Saude Colet. 2010;15(4):2051-8..

Igualmente, os programas de residência multiprofissional - que nascem nos anos 1990 como estratégia de superar o modelo medicocêntrico da formação em saúde2020. Rosa SD, Lopes RE. Residência multiprofissional em saúde e pós-graduação lato sensu no Brasil: apontamentos históricos. Trab Educ Saude. 2010;7(3):479-98. e contribuir para o avanço dos modelos de cuidado, sobretudo na Atenção Básica, representam um avanço em termos da formação focada nos serviços de saúde - ainda prescindem de um modelo eficiente de avaliação de seus impactos para a melhoria da organização dos serviços e programas de saúde no país2121. Campos GWS, Gutiérrez AC, Guerrero AVP, Cunha GT. Reflexões sobre a atenção básica e a estratégia de saúde da família. In: Campos GWS, Guerreiro AVP, organizadores. Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2008. p. 132-153..

É importante destacar que uma série de questões de ordem prática e estrutural, como a organização do trabalho na Atenção Básica, as formas de contratação de trabalhadores, as relações desproporcionais entre o quantitativo de trabalhadores e de usuários, entre outras, são desafios para o desenvolvimento de ações formativas como um todo e precisam ser resolvidas no âmbito dos programas e políticas de gestão do trabalho em saúde2121. Campos GWS, Gutiérrez AC, Guerrero AVP, Cunha GT. Reflexões sobre a atenção básica e a estratégia de saúde da família. In: Campos GWS, Guerreiro AVP, organizadores. Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2008. p. 132-153.. Entretanto, como observado nos documentos analisados ao longo do presente estudo, o número de ofertas formativas para os trabalhadores da saúde, em especial aos trabalhadores da Atenção Básica, tem aumentado no país, em particular a partir de 2003, com a criação, no Ministério da Saúde, da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde (SGTES). Tal situação torna necessária uma estratégia organizativa destas ofertas, em consonância com as demandas dos serviços e dos diferentes locais/territórios, para a qual o presente estudo, dentro de seus limites e abrangência, pretende contribuir.

Quanto à melhoria do cuidado e da atenção integral à Saúde do Trabalhador, o desafio de articulação interdisciplinar e inter/intrasetorial apresenta uma série de perspectivas positivas que, devidamente organizadas por Dias e Silva1111. Dias EC, Lacerda e Silva T. Contribuições da atenção primária em saúde para a implementação da Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho (PNSST). Rev Bras Saude Ocup. 2013;38(127):31-43. doi: 10.1590/S0303-76572013000100007
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, coadunam com os resultados do presente estudo, a saber:

  • A orientação do papel da Renast como instância responsável pelo matriciamento das ações de Saúde do Trabalhador no SUS pode ser efetiva, desde que encontre estruturas e equipes devidamente formadas, na Atenção Básica, para o desenvolvimento do olhar da Saúde do Trabalhador no território.

  • A Renast deve atuar muito mais como observatório e espaço para o desenvolvimento de ações de vigilância em Saúde do Trabalhador que na organização do cuidado e na atenção à saúde.

  • O território é um conceito-chave para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador, seja pelo aumento crescente do trabalho domiciliar, seja pela diversidade de atividades de trabalho desenvolvidas em territórios cada vez mais densamente ocupados, com impactos tanto na saúde dos trabalhadores que ali atuam quanto da população do entorno e de seu ambiente.

  • O desenvolvimento do olhar e da escuta em Saúde do Trabalhador no âmbito da Atenção Básica pode, de fato, contribuir para a melhoria do cuidado da população, sobretudo quando consideramos que, mesmo não estando diretamente relacionado à causa do adoecimento, o trabalho pode ter influência sobre o desenvolvimento da condição de saúde do usuário-trabalhador.

  • A Atenção Básica é o espaço mais adequado para ações de promoção e educação em saúde. Nesse sentido, o desenvolvimento de ações baseadas na estratégia da Educação Permanente em Saúde permite às equipes aperfeiçoarem continuadamente suas habilidades e competências para o desenvolvimento dessas ações, contribuindo assim para a melhoria das condições de vida (e de trabalho) dos usuários do SUS.

Conclusões

O presente estudo partiu do pressuposto de que a incorporação das ações de Saúde do Trabalhador na Atenção Básica se configura como ação estratégica para o combate à “epidemia invisível”, representada pela baixa identificação, acompanhamento e tratamento de doenças e condições de saúde ocasionadas pelo (e no) trabalho. A partir dessa premissa, buscou-se identificar os principais desafios e oportunidades para a melhoria da formação em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica, como forma de avançar nos modelos e estratégias de gestão dos programas e serviços de saúde e contribuir para o aprimoramento do cuidado e da atenção integral à Saúde do Trabalhador.

A análise dos resultados mostrou que o aprimoramento da Atenção Básica e da atenção integral a Saúde do Trabalhador passa tanto pela necessidade de se fortalecer e articular as capacidades formativas em Saúde do Trabalhador, no âmbito da Renast e da Atenção Básica, quanto pelo desafio de articular e integrar as ações dessa rede nacional com os as estruturas, os programas e os serviços de saúde do SUS - em especial da Atenção Básica.

É importante destacar que o presente estudo, tal como desenhado e desenvolvido, não alcança a observação e a análise das demandas formativas dos atores da prática (ou seja, da dimensão do trabalho real e operacional). Isso constitui um importante limite de sua abrangência e, ao mesmo tempo, aponta para a necessidade de estudos adicionais que aprofundem a questão, essencial para se pensar a formação em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica.

Como contribuição principal, o estudo apresenta a necessidade de pensar e construir programas de formação em Saúde do Trabalhador, voltados tanto para gestores quanto trabalhadores da Atenção Básica. Estes devem considerar a centralidade dos determinantes sociais e ambientais das relações saúde-trabalho e contemplar a diversidade de modalidades formativas prioritárias para cada área de interface, com a incorporação de tecnologias educacionais em saúde, elemento estratégico para o desafio formativo em um país continental como o Brasil. Desse modo, contribuiriam tanto para a melhoria da capacidade gestora dos programas de serviços de atenção integral à Saúde do Trabalhador no SUS, quanto para o aprimoramento das ações e estratégias de intervenção em Saúde do Trabalhador nesse sistema, em que a Atenção Básica é o principal espaço organizador e porta de entrada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2018
  • Revisado
    15 Fev 2019
  • Aceito
    25 Mar 2019
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