Acessibilidade / Reportar erro

Medicina baseada em consciência social

Social awareness-based medicine

COMENTÁRIO

Medicina baseada em consciência social

Social awareness-based medicine

Fernando Osni Machado, PhD

Médico, Diretor Médico do Serviço de Terapia Intensiva do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Ex-Diretor Geral do Hospital Universitário da UFSC; Mestre em Medicina Interna da UFSC; Doutor em Medicina da USP; Professor Adjunto II da UFSC. E-mail: fernandoo.machado@gmail.com

As doenças infecciosas, resultando em sepse grave e choque séptico, tem sido um grande desafio para a Medicina nas últimas décadas. Enorme tem sido o impacto sobre a vida dos seres humanos, pois a despeito dos avanços tecnológicos obtidos nos últimos anos, as taxas de morbidade e mortalidade decorrentes de sepse continuam muito elevadas. Quando a definição etiológica do quadro infeccioso é possível, com a identificação de um agente microbiológico, a mortalidade nos quadros de sepse grave alcança taxas de até 50%, mas quando esta definição etiológica não é possível, a mortalidade alcança até 66%1. Sasse e col. em artigo publicado em 1995, mostrou que a mortalidade nas unidades de terapia intensiva (UTI) foi de 37%, mas apenas 49% dos pacientes sobreviveram à internação hospitalar e 72% faleceram após um ano da alta hospitalar2. Estudos mais recentes, mostram taxas de mortalidade igualmente elevadas e o mais preocupante é o aumento na incidência de sepse grave de 1,5% ao ano3,4. No Brasil, dois estudos mostraram a elevada ocorrência e taxas de mortalidade tão altas como 34,4% na sepse grave e 65,3% no choque séptico5,6.

Este quadro dramático tem sido motivo de significativo esforço, dos médicos e da indústria farmacêutica, na busca de alternativa terapêutica que possa diminuir os efeitos da sepse7-12, mas o limitado benefício alcançado não parece estar relacionado ao investimento em novos medicamentos.

As incertezas no diagnóstico de sepse e suas diferentes gravidades justificaram uma conferência médica de alto nível em 1992, que resultou em uma padronização permitindo melhor comparar resultados de estudos clínicos realizados em diferentes centros de pesquisa13. Nos últimos anos, um novo fármaco chamado drotrecogina alfa-ativada, vem sendo utilizado por muitos pesquisadores em todo o mundo, inclusive no Brasil, no tratamento de choque séptico e sepse grave, mas nos resultados dos estudos alguns apresentam aparente eficiência e outros com questionável eficácia, não conseguiram convencer toda a comunidade médica pelas pequenas evidências dos efeitos benéficos, pelo risco de efeitos colaterais graves e potencialmente fatais, bem como pelo alto custo.

Nos últimos meses, foram publicados estudos, realizados no Canadá e na Itália por autores independentes, não vinculados à indústria farmacêutica que apresentaram resultados pondo em dúvida a continuidade da prescrição da drotrecogina alfa-ativada14,15.

A dúvida quanto a real utilidade deste fármaco, bem como a influência da indústria farmacêutica na produção de diretrizes terapêuticas está fartamente discutida em diversos artigos científicos16-18.

Lembramos que o custo do tratamento por paciente, considerando pacientes com peso entre 60 e 120 kg, pode variar de R$ 46.300,00 a R$ 92.600,0019. Citam os artigos que justificam o uso de drotrecogina alfa-ativada, que em 20 pacientes, um pode ter o benefício de estar vivo ao final do 28º dia da internação20-22. Estes artigos não informaram sobre a mortalidade que ocorre após este período, nem citaram a qualidade de vida dos sobreviventes20-22.

Outro estudo recente (ADDRESS), cujos autores não omitem a relação com a indústria farmacêutica, fabricante do fármaco em questão, limitou-se a concluir que ele pode ser seguro, mas não conseguiu demonstrar benefícios relativos à morbidade e mortalidade21. Neste estudo a mortalidade no 28º dia e após um ano, não foi diferente nos pacientes tratados com a drotrecogina alfa-ativada, quando comparados com os pacientes tratados com placebo23.

Diante do exposto, tomando por base 20 pacientes com peso médio de 80 kg, seriam necessários R$ 1.540.000,00, para oportunizar apenas um paciente a probabilidade de sobreviver ao 28º dia de internação.

Para permitir uma análise mais profunda e socialmente racional, informamos que o Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina atende mensalmente mais de 20.000 pacientes externos, (13.000 pacientes ambulatoriais 8.000 pacientes em emergência); assiste mais de 800 pacientes internados; realizam mais de 200 cirurgias de grande porte; realiza 150 partos; assiste a 30 pacientes em UTI adulta e 20 pacientes em UTI neonatal, entre outros procedimentos. Para dar suporte a todas as realizações descritas, o HU-UFSC dispõe de R$ 900.000,00 mensais para material de consumo (medicamentos, seringas, agulhas, fios cirúrgicos, cateteres, sondas, etc.). Para a aquisição de medicamentos, o orçamento mensal do HU-UFSC é de apenas R$150.000,0024.

Considerando a falta de evidências sobre o efetivo benefício deste fármaco e considerando a realidade financeira da saúde pública no Brasil, que impõe aos gerentes e gestores a utilização dos limitados recursos para garantir a realização dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, que já tiveram comprovado efetividade em benefício da maior parcela possível da população, manifesto minha opinião contrária à prescrição de drotrecogina alfa-ativada no sistema de saúde público brasileiro. De igual modo, acredito que o sistema de saúde complementar deve analisar com mais profundidade e racionalidade, para verificar se diante da fraca evidência de eficácia do fármaco em questão, justifica-se o investimento de somas tão elevadas nesta terapêutica, ou será que não haveria melhor aplicação para tais recursos em benefício do conjunto de todos os segurados?

REFERÊNCIAS

01. Brun-Buisson C, Doyon F, Carlet J et al - Incidence, risk factors, and outcome of severe sepsis and septic shock in adults. A multicenter prospective study in intensive care units. JAMA, 1995;274:968-974.

02. Sasse KC, Nauenberg E, Long A et al - Long-term survival after intensive care unit admission with sepsis. Crit Care Med, 1995;23:1040-1047.

03. Angus DC, Linde-Zwirble WT, Lidicker J et al – Epidemiology of severe sepsis in the United States: Analysis of incidence, outcome, and associated costs of care. Crit Care Med, 2001;29:1303-1310.

04. Martin GS, Mannino DM, Eaton S, Moss M – The Epidemiology of Sepsis in the United States from 1979 through 2000. N Engl J Med, 2003;348:1546-1554.

05. Silva E, Pedro Mde A, Sogayar AC et al - Brazilian Sepsis Epidemilogycal Study (BASES study). Crit Care, 2004;8:R251-R260.

06. Sales Jr JAL, David CM, Hatum R et al - Sepse Brasil: estudo epidemiológico da sepse em unidades e terapia intensiva brasileiras. RBTI, 2006;18:9-17.

07. Greenberg RN, Wilson KM, Kunz AY et al - Observations using antiendotoxin antibody (E5) as adjuvant therapy in humans with suspected, serious, gram-negative sepsis. Crit Care Med, 1992;20:730-735.

08. Gorelick KJ, Jacobs R, Chmel H et al - Results of a randomized multicenter trial of efficacy of an antiendotoxin monoclonal antibody (Xoma-E5) in patients with suspected gram-negative sepsis. In: Proceedings of the 29th Interscience Conference on Antimicrobial Agents and Chemotherapy, Houston, TX. Washington, DC, American Society for Microbiology, 1989;154.

09. Ziegler EJ, Fisher CJ Jr, Sprung CL et al - Treatment of gram-negative bacteremia and septic shock with HA-1A human monoclonal antibody against endotoxin. A randomized, double-blind placebo-controlled trial. The HA-1A Sepsis Study Group. N Engl J Med, 1991;324:429-436.

10. Greenman RL, Schein RM, Martin MA et al - A controlled clinical trial of E5 murine monoclonal IgM antibody to endotoxin in the treatment of gram-negative sepsis. The XOMA Sepsis Study Group. JAMA, 1991;266:1097-1102.

11. Wortel CH, von der Mohlen MA, van Deventer SJ et al - Effectiveness of a human monoclonal anti-endotoxin antibody (HA-1A) in gram-negative sepsis: relationship to endotoxin and cytokine levels. J Infect Dis, 1992;166:1367-1374.

12. Daifuku R, Panacek EA, Haenftling K et al - Pilot study of anti-lipopolysaccharide human monoclonal antibody MAB-T88 in patients with gram-negative sepsis. Human Antibodies Hybridomas, 1993;4:36-39.

13. Members of the American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine Consensus Conference Committee: American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine Consensus Conference: Definitions for sepsis and organ failure and guidelines for the use of innovative therapies in sepsis. Crit Care Med, 1992;20:864-874

14. Bertolini G, Rossi C, Anghileri A et al - Use of Drotrecogin alfa (activated) in Italian intensive care units: the results of a nationwide survey. Intensive Care Med, 2007;33:426-434.

15. Kanji S, Perreault MM, Chant C et al - Evaluating the use of Drotrecogin alfa (activated) in adult severe sepsis: a Canadian multicenter observational study. Intensive Care Med, 2007;33:517-523.

16. Wiedermann CJ - Bioethics, the Surviving Sepsis Campaign, and the industry. Wien Klin Wochenschr, 2005;117:442-444.

17. Eichacker PQ, Natanson C, Danner RL - Surviving sepsis-practice guidelines, marketing campaigns, and Eli-Lilly. N Engl J Med, 2006;355:1640-1642.

18. Singer M - The Surviving Sepsis guidelines: evidence-based... or evidence-biased? Crit Care Resusc, 2006;8:244-245.

19. Lista de preços atualizada, Revista ABCFARMA, 2007;5:214.

20. Bernard GR, Vincent JL, Laterre PF et al - Efficacy and safety of recombinant human activated protein C for severe sepsis. N Engl J Med, 2001;344:699-709.

21. Garber G, Gibney R, Light B et al - Guidance on patient identification and administration of recombinant human activated protein C for the treatment of severe sepsis. Can J Infect Dis, 2002;13:361-372.

22. Vincent JL, Bernard GR, Beale R et al - Drotrecogin alfa (activated) treatment in severe sepsis from the global open-label trial ENHANCE: further evidence for survival and safety and implications for early treatment. Crit Care Med, 2005;33:2266-2277.

23. Laterre PF, Abraham E, Janes JM et al - ADDRESS (ADministration of DRotrecogin alfa [activated] in Early stage Severe Sepsis) long-term follow-up: one-year safety and efficacy evaluation. Crit Care Med, 2007;35:1457-1463.

24. Relatórios mensais movimentação financeira - Hospital Universitário da UFSC. Diretoria de Administração, HU-UFSC, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2007
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br