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Como discutir sobre não ressuscitação cardiopulmonar na unidade de terapia intensiva?

RESUMO

A melhoria da qualidade da ressuscitação cardiopulmonar vem reduzindo a mortalidade dos indivíduos atendidos em parada cardiorrespiratória. Porém, os sobreviventes apresentam risco elevado de dano cerebral grave em caso de retorno à circulação espontânea. Dados sugerem que paradas cardiorrespiratórias, que ocorram em pacientes criticamente doentes com ritmos cardíacos não chocáveis, apresentem somente 6% de chance de retorno à circulação espontânea e, destes, somente um terço consiga recuperar sua autonomia. Optaríamos, assim, pela realização de um procedimento em que a chance de sobrevida é mínima, e os sobreviventes apresentam risco de aproximadamente 70% de morte hospitalar ou dano cerebral grave e definitivo? Valeria a pena discutir se este paciente é ou não ressuscitável, em caso de parada cardiorrespiratória? Esta discussão traria algum benefício ao paciente e a seus familiares? As discussões avançadas de não ressuscitação se baseiam no princípio ético do respeito pela autonomia do paciente, pois o desejo dos familiares e dos médicos, muitas vezes, não se correlaciona adequadamente aos dos pacientes. Não somente pela ótica da autonomia, as discussões avançadas podem ajudar a equipe médica e assistencial a anteciparem problemas futuros, fazendo-os planejar melhor o cuidado dos enfermos. Ou seja, nossa opinião é a de que discussões sobre ressuscitação ou não dos pacientes criticamente doentes devam ser realizadas em todos os casos internados na unidade de terapia intensiva logo nas primeiras 24 a 48 horas de internação.

Descritores:
Ética; Ressuscitação cardiopulmonar; Autonomia pessoal; Prognóstico; Unidades de terapia intensiva

Abstract

The improvement in cardiopulmonary resuscitation quality has reduced the mortality of individuals treated for cardiac arrest. However, survivors have a high risk of severe brain damage in cases of return of spontaneous circulation. Data suggest that cases of cardiac arrest in critically ill patients with non-shockable rhythms have only a 6% chance of returning of spontaneous circulation, and of these, only one-third recover their autonomy. Should we, therefore, opt for a procedure in which the chance of survival is minimal and the risk of hospital death or severe and definitive brain damage is approximately 70%? Is it worth discussing patient resuscitation in cases of cardiac arrest? Would this discussion bring any benefit to the patients and their family members? Advanced discussions on do-not-resuscitate are based on the ethical principle of respect for patient autonomy, as the wishes of family members and physicians often do not match those of patients. In addition to the issue of autonomy, advanced discussions can help the medical and care team anticipate future problems and, thus, better plan patient care. Our opinion is that discussions regarding the resuscitation of critically ill patients should be performed for all patients within the first 24 to 48 hours after admission to the intensive care unit.

Keywords:
Ethics; Cardiopulmonary resuscitation; Personal autonomy; Prognosis; Intensive care units

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, foi grande o avanço na ressuscitação cardiopulmonar (RCP), mas tanto a parada cardiorrespiratória (PCR) intra(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.

2 Ofoma UR, Basnet S, Berger A, Kirchner HL, Girotra S; American Heart Association Get With the Guidelines - Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest during nights and weekends. J Am Coll Cardiol. 2018;71(4):402-11.
-33 Meaney PA, Nadkarni VM, Kern KB, Indik JH, Halperin HR, Berg RA. Rhythms and outcomes of adult in-hospital cardiac arrest. Crit Care Med. 2010;38(1):101-8.) quanto a extra-hospitalar(44 Olasveengen TM, de Caen AR, Mancini ME, Maconochie IK, Aickin R, Atkins DL, Berg RA, Bingham RM, Brooks SC, Castrén M, Chung SP, Considine J, Couto TB, Escalante R, Gazmuri RJ, Guerguerian AM, Hatanaka T, Koster RW, Kudenchuk PJ, Lang E, Lim SH, Løfgren B, Meaney PA, Montgomery WH, Morley PT, Morrison LJ, Nation KJ, Ng KC, Nadkarni VM, Nishiyama C, Nuthall G, Ong GY, Perkins GD, Reis AG, Ristagno G, Sakamoto T, Sayre MR, Schexnayder SM, Sierra AF, Singletary EM, Shimizu N, Smyth MA, Stanton D, Tijssen JA, Travers A, Vaillancourt C, Van de Voorde P, Hazinski MF, Nolan JP; ILCOR Collaborators. 2017 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Science with Treatment Recommendations Summary. Circulation. 2017;136(23):e424-40. Erratum in: Circulation. 2017;136(25):e468.,55 Nassar BS, Kerber R. Improving CPR performance. Chest. 2017;152(5):1061-9.) apresentam reduzida probabilidade de sobrevida.(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.,22 Ofoma UR, Basnet S, Berger A, Kirchner HL, Girotra S; American Heart Association Get With the Guidelines - Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest during nights and weekends. J Am Coll Cardiol. 2018;71(4):402-11.,44 Olasveengen TM, de Caen AR, Mancini ME, Maconochie IK, Aickin R, Atkins DL, Berg RA, Bingham RM, Brooks SC, Castrén M, Chung SP, Considine J, Couto TB, Escalante R, Gazmuri RJ, Guerguerian AM, Hatanaka T, Koster RW, Kudenchuk PJ, Lang E, Lim SH, Løfgren B, Meaney PA, Montgomery WH, Morley PT, Morrison LJ, Nation KJ, Ng KC, Nadkarni VM, Nishiyama C, Nuthall G, Ong GY, Perkins GD, Reis AG, Ristagno G, Sakamoto T, Sayre MR, Schexnayder SM, Sierra AF, Singletary EM, Shimizu N, Smyth MA, Stanton D, Tijssen JA, Travers A, Vaillancourt C, Van de Voorde P, Hazinski MF, Nolan JP; ILCOR Collaborators. 2017 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Science with Treatment Recommendations Summary. Circulation. 2017;136(23):e424-40. Erratum in: Circulation. 2017;136(25):e468.,66 Girotra S, Cram P, Spertus JA, Nallamothu BK, Li Y, Jones PG, Chan PS; American Heart Association's Get with the Guidelines® Resuscitation Investigators. Hospital variation in survival trends for in-hospital cardiac arrest. J Am Heart Assoc. 2014;3(3):e000871.) Além disso, os sobreviventes de PCR intra-hospitalar que conseguem ter alta do hospital apresentam risco de 18,5% - 19,2% de dano cerebral grave.(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.) Nas unidades de terapia intensiva (UTI) estima-se que aproximadamente 17% dos pacientes submetidos a manobras de ressuscitação cardiopulmonar (RCP) tenham retorno à circulação espontânea (RCE) e, destes, 11,3% (para PCR com ritmo cardíaco não chocável) e 37,2% (para PCR com ritmo cardíaco chocável) tenham alta hospitalar.(77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) É importante salientar que aproximadamente 75% daqueles que recebem alta hospitalar recuperam sua capacidade de realização de Atividades de Vida Diária (AVD).(77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) No entanto, neste cenário intra-hospitalar, as PCR que ocorrem com ritmos cardíacos não chocáveis predominam (75,8%), e a sobrevida depende muito da condição hemodinâmica e do grau de disfunção orgânica do paciente.(77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) Estima-se que pacientes em uso de vasopressor que sofrem PCR em assistolia apresentem 5,9% de chance de RCE e que, destes, 29,1% retomam sua capacidade de realização das AVD.(77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.)

Paralelo a isso, a literatura é crescente com relação a decisões compartilhadas entre médicos, pacientes e seus familiares,(88 Hart J, Halpern SD. Default options in the ICU: widely used but insufficiently understood. Curr Opin Crit Care. 2014;20(6):662-7.) padronização das decisões(99 Lighthall GK, Vazquez-Guillamet C. Understanding decision making in critical care. Clin Med Res. 2015;13(3-4):156-68.) e redução do excesso de uso diagnóstico e terapêutico.(1010 Levinson W, Kallewaard M, Bhatia RS, Wolfson D, Shortt S, Kerr EA; Choosing Wisely International Working Group. 'Choosing Wisely': a growing international campaign. BMJ Qual Saf. 2015;24(2):167-74.) Revisando os estudos, submeteríamos um paciente a realizar um procedimento que oferece 6% de chance imediata de sobrevida e que o sobrevivente apresenta risco aproximado de 70% de morte hospitalar ou de dano cerebral grave e definitivo? Com base nestes dados, devemos discutir ou decidir se os pacientes devem ou não ser ressuscitados em caso de PCR na UTI e, mais importante, será que esta discussão poderia trazer algum benefício ao paciente ou a seus familiares?

DANO NEUROLÓGICO

A maioria dos pacientes que sofrem PCR intra-hospitalar morre no evento inicial, e alguns ainda morrem nas primeiras 24 horas pós-RCE por falência hemodinâmica,(1111 Laver S, Farrow C, Turner D, Nolan J. Mode of death after admission to an intensive care unit following cardiac arrest. Intensive Care Med. 2004;30(11):2126-8.,1212 Lemiale V, Dumas F, Mongardon N, Giovanetti O, Charpentier J, Chiche JD, et al. Intensive care unit mortality after cardiac arrest: the relative contribution of shock and brain injury in a large cohort. Intensive Care Med. 2013;39(11):1972-80.) Porém, um dos maiores problemas envolvidos neste contexto é a elevada taxa de sequela neurológica dos sobreviventes.(44 Olasveengen TM, de Caen AR, Mancini ME, Maconochie IK, Aickin R, Atkins DL, Berg RA, Bingham RM, Brooks SC, Castrén M, Chung SP, Considine J, Couto TB, Escalante R, Gazmuri RJ, Guerguerian AM, Hatanaka T, Koster RW, Kudenchuk PJ, Lang E, Lim SH, Løfgren B, Meaney PA, Montgomery WH, Morley PT, Morrison LJ, Nation KJ, Ng KC, Nadkarni VM, Nishiyama C, Nuthall G, Ong GY, Perkins GD, Reis AG, Ristagno G, Sakamoto T, Sayre MR, Schexnayder SM, Sierra AF, Singletary EM, Shimizu N, Smyth MA, Stanton D, Tijssen JA, Travers A, Vaillancourt C, Van de Voorde P, Hazinski MF, Nolan JP; ILCOR Collaborators. 2017 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Science with Treatment Recommendations Summary. Circulation. 2017;136(23):e424-40. Erratum in: Circulation. 2017;136(25):e468.,1313 Fugate JE. Anoxic-ischemic brain injury. Neurol Clin. 2017;35(4):601-11.,1414 Sandroni C, D'Arrigo S, Callaway CW, Cariou A, Dragancea I, Taccone FS, et al. The rate of brain death and organ donation in patients resuscitated from cardiac arrest: a systematic review and meta-analysis. Intensive Care Med. 2016;42(11):1661-71.) A maioria das mortes pós-RCE se deve à lesão cerebral hipóxico-isquêmica (46% - 65,2%),(1111 Laver S, Farrow C, Turner D, Nolan J. Mode of death after admission to an intensive care unit following cardiac arrest. Intensive Care Med. 2004;30(11):2126-8.,1212 Lemiale V, Dumas F, Mongardon N, Giovanetti O, Charpentier J, Chiche JD, et al. Intensive care unit mortality after cardiac arrest: the relative contribution of shock and brain injury in a large cohort. Intensive Care Med. 2013;39(11):1972-80.) o que resulta na retirada ativa do tratamento de manutenção da vida baseada em um prognóstico neurológico ruim. Além disso, há prevalência de 12,6% de morte encefálica diagnosticada, em média, no terceiro dia após a RCE, conforme recente metanálise de Sandroni et al.(1414 Sandroni C, D'Arrigo S, Callaway CW, Cariou A, Dragancea I, Taccone FS, et al. The rate of brain death and organ donation in patients resuscitated from cardiac arrest: a systematic review and meta-analysis. Intensive Care Med. 2016;42(11):1661-71.) Dos pacientes que apresentam RCE após PCR intra-hospitalar, 56,4% - 68% morrem ainda durante a internação no hospital.(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.) Estimamos que em mais de 50% dos casos os pacientes evoluem para morte encefálica ou tiveram seu suporte terapêutico limitado devido ao prognóstico neurológico desfavorável. Entretanto, os sobreviventes que alcançam a alta hospitalar apresentam risco de 9,8% - 12,2% de dano cerebral grave (escore Cerebral Performance Category − CPC) 3 (grave incapacidade neurológica), 4 (coma ou estado vegetativo) ou 5 (morte encefálica)] e 27,3 a 31% de dano cerebral moderado [CPC = 2 (moderado desempenho cerebral)].(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.) A melhoria da qualidade da RCP aumenta a taxa de RCE, mas parece não afetar as taxas de dano cerebral grave.(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.)

Pacientes idosos, que sofrem PCR intra-hospitalar, têm menor probabilidade de sobrevida (< 80 anos: 27,9%; 80 - 90 anos: 20,1%; > 90 anos: 15,1%; p < 0,001), principalmente quando apresentam maior número de comorbidades.(1515 Hirlekar G, Karlsson T, Aune S, Ravn-Fischer A, Albertsson P, Herlitz J, et al. Survival and neurological outcome in the elderly after in-hospital cardiac arrest. Resuscitation. 2017;118:101-6.,1616 Piscator E, Hedberg P, Göransson K, Djärv T. Survival after in-hospital cardiac arrest is highly associated with the age-combined Charlson Co-morbidity index in a cohort study from a two-site Swedish University hospital. Resuscitation. 2016;99:79-83.) Os pacientes que receberam alta parecem não apresentar piora do desempenho neurológico (CPC 1 ou 2) em relação àqueles com menor idade (< 80 anos: 92,4%; 80 - 90 anos: 92,9%; > 90 anos: 87,5%; p = ns).(1515 Hirlekar G, Karlsson T, Aune S, Ravn-Fischer A, Albertsson P, Herlitz J, et al. Survival and neurological outcome in the elderly after in-hospital cardiac arrest. Resuscitation. 2017;118:101-6.)

PROGNÓSTICO DA RESSUSCITAÇÃO

A PCR que ocorre dentro do hospital não apresenta maior probabilidade de sobrevida (15,9 - 17%) do que a que ocorre no ambiente extra-hospitalar.(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.,77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) Isto se deve a maior presença de comorbidades e a maior probabilidade de PCR com ritmo cardíaco não chocável nos indivíduos internados em ambiente hospitalar.(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.) Além disso, ou associado a isso, as PCR atendidas em ambiente hospitalar (exceto em salas de emergência, salas de hemodinâmica/eletrofisiologia cardíaca e salas cirúrgicas) cursam predominantemente (cerca de 80% dos casos) com ritmos cardíacos não chocáveis,(11 Girotra S, Nallamothu BK, Spertus JA, Li Y, Krumholz HM, Chan PS; American Heart Association Get with the Guidelines-Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 2012;367(20):1912-20.,33 Meaney PA, Nadkarni VM, Kern KB, Indik JH, Halperin HR, Berg RA. Rhythms and outcomes of adult in-hospital cardiac arrest. Crit Care Med. 2010;38(1):101-8.,77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) que apresentam menor taxa de RCE do que os ritmos cardíacos chocáveis.(44 Olasveengen TM, de Caen AR, Mancini ME, Maconochie IK, Aickin R, Atkins DL, Berg RA, Bingham RM, Brooks SC, Castrén M, Chung SP, Considine J, Couto TB, Escalante R, Gazmuri RJ, Guerguerian AM, Hatanaka T, Koster RW, Kudenchuk PJ, Lang E, Lim SH, Løfgren B, Meaney PA, Montgomery WH, Morley PT, Morrison LJ, Nation KJ, Ng KC, Nadkarni VM, Nishiyama C, Nuthall G, Ong GY, Perkins GD, Reis AG, Ristagno G, Sakamoto T, Sayre MR, Schexnayder SM, Sierra AF, Singletary EM, Shimizu N, Smyth MA, Stanton D, Tijssen JA, Travers A, Vaillancourt C, Van de Voorde P, Hazinski MF, Nolan JP; ILCOR Collaborators. 2017 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care Science with Treatment Recommendations Summary. Circulation. 2017;136(23):e424-40. Erratum in: Circulation. 2017;136(25):e468.)

Na UTI, o cenário aparenta ser menos animador, pois os pacientes com disfunções orgânicas agudas já estão sendo parcialmente ressuscitados usando-se tecnologias de suporte orgânico (por exemplo: drogas vasoativas, ventilação mecânica, terapia de substituição renal e transfusão de hemoderivados).

Em um registro de dados de 411 hospitais americanos, foram avaliados 51.919 pacientes que sofreram PCR em ambiente de terapia intensiva, demonstrando que aproximadamente um a cada seis pacientes submetidos a manobras de RCP tem RCE.(77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) Em 75,9% destes, o ritmo cardíaco da PCR foi não chocável, somente 11,3% deles tiveram alta hospitalar, e 70% destes recuperaram sua capacidade de realização de AVD. Contudo, quando a PCR apresentava-se com ritmo cardíaco chocável, 37,2% tiveram alta hospitalar e 79,8% destes recuperaram sua capacidade de realização de AVD.

Em pacientes com comprometimento hemodinâmico, recebendo droga vasoativa no momento da PCR, a chance de RCE foi de 22,6% quando o ritmo cardíaco era chocável e de 5,9% para ritmo não chocável. Além disso, 11,4% dos pacientes com ritmo chocável tiveram alta hospitalar, e apenas 2,1% dos com ritmo não chocável conseguiram sair do hospital.(77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) Neste estudo, um prognóstico neurológico favorável foi encontrado em aproximadamente 83% dos pacientes que receberam alta hospitalar, independentemente do ritmo cardíaco da PCR e da presença ou não de choque imediatamente antes da PCR. O cenário parece ser um pouco pior quando a PCR ocorre nos finais de semana ou em horários de plantão noturno.(22 Ofoma UR, Basnet S, Berger A, Kirchner HL, Girotra S; American Heart Association Get With the Guidelines - Resuscitation Investigators. Trends in survival after in-hospital cardiac arrest during nights and weekends. J Am Coll Cardiol. 2018;71(4):402-11.)

Além da presença de choque, necessidade de ventilação mecânica (odds ratio - OR: 0,60; intervalo de confiança de 95% - IC95% 0,56 - 0,63), idade ≥ 65 anos (OR: 0,77; IC95% 0,73 - 0,82) e ocorrência da PCR à noite ou no final de semana (OR: 0,77; IC95% 0,72 - 0,81) foram preditores independentes de redução da sobrevida dos pacientes.(77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) Salienta-se também que pacientes com neoplasia metastática que sofreram PCR na UTI apresentaram chance de sobrevida de somente 1,1%.(77 Tian J, Kaufman DA, Zarich S, Chan PS, Ong P, Amoateng-Adjepong Y, Manthous CA; American Heart Association National Registry for Cardiopulmonary Resuscitation Investigators. Outcomes of critically ill patients who received cardiopulmonary resuscitation. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(4):501-6.) Al-Alwan et al.(1717 Al-Alwan A, Ehlenbach WJ, Menon PR, Young MP, Stapleton RD. Cardiopulmonary resuscitation among mechanically ventilated patients. Intensive Care Med. 2014;40(4):556-63.) analisaram os dados do MedCare de 471.962 pacientes que sofreram PCR intra-hospitalar, demonstrando que aqueles submetidos à ventilação mecânica apresentavam menor sobrevida hospitalar [10,1 % (IC95: 9,8% - 10,4%) versus 19,2% (IC95%: 19,1% - 19,3%); p < 0,001].

Assim, na UTI, a cada 100 com instabilidade hemodinâmica que sofrem PCR com ritmos cardíacos não chocáveis, 6 apresentam RCE. Destes, quatro morrem ainda durante a internação, por comprometimento hemodinâmico pós-PCR ou por lesão neurológica grave, e dois recebem alta hospitalar. Destes com alta hospitalar, somente 1,6 recupera sua capacidade de realização das AVD. Já quando a PCR ocorre com ritmo cardíaco chocável e em paciente sem instabilidade hemodinâmica, o cenário é muito mais animador, com aproximadamente 17 pacientes recuperando sua capacidade de realizar AVD a cada 100 PCR atendidas.

DISCUSSÕES AVANÇADAS SOBRE NÃO RESSUSCITAÇÃO

Associadas às questões estatísticas e prognósticas, questões éticas surgem quando nos deparamos com situações de retirada ou de não acréscimo de suporte das funções vitais. O ato de não realizar ressuscitação cardiorrespiratória está situado dentro do tópico de não acréscimos de suporte de vida.

Em 1992, iniciou-se a implementação de programas internacionais de avaliação do nível de cuidados nas UTI visando identificar as atitudes dos profissionais de saúde com relação a planos de ressuscitação cardiorrespiratória e administração, manutenção ou retirada do suporte vital avançado em pacientes criticamente doentes.(1818 Cook D, Rocker G, Marshall J, Griffith L, McDonald E, Guyatt G; Level of Care Study Investigators; Canadian Critical Care Trials Group. Levels of care in the intensive care unit: a research program. Am J Crit Care. 2006;15(3):269-79.) Os programas basearam-se no princípio ético do respeito pela autonomia dos pacientes, sugerindo que as intervenções de apoio à vida eram mais apropriadas quando consistentes com os valores dos pacientes, ao invés de direcionadas a uma disfunção orgânica específica. O médico deve estar comprometido não apenas com o processo de tomada de decisão, mas também com o resultado da escolha do paciente ou de seus familiares. Idealmente, a autonomia é a expressão da vontade do paciente, e, em uma visão simplista, poderíamos entender que respeitar a autonomia é obedecer à vontade do indivíduo.(1919 Séve L. Para uma crítica da razão bioética. Lisboa: Instituto Piaget; 1997.) Entretanto, sujeitar-se à escolha do doente pode significar desinteresse, indiferença e falta de empatia.(2020 Tauber AI. Sick autonomy. Perspect Biol Med. 2003;46(4):484-95.) A autonomia é a capacidade de decidir em liberdade, e a decisão livre só existe quando munida de todas as opções. Consequentemente, a comunicação é o pilar fundamental da autonomia sendo essencial que, no processo de comunicação, seja fornecida pelo médico toda a informação necessária para a tomada de decisão, mas sem exercer pressão indevida. Nunca se esquecer de que a doença limita a liberdade e não é apropriado que, em seu momento de maior vulnerabilidade, o indivíduo seja entregue aos seus desejos. Além disso, tendo assegurado o sucesso na comunicação, deve-se resistir à tentação da obediência cega, pois respeitar não é submissão total, e não exige assentimento íntimo, não é necessário que o médico concorde com a decisão do paciente. Nas situações em que o paciente não pode decidir, os indivíduos responsáveis pela decisão devem, por meio da história de vida do paciente, habilitar-se a imaginar o que ele faria se estivesse em meu lugar. Nestes casos, a faculdade da imaginação moral é que permitirá a superação do simples obedecer.(2121 Kirk R. A política da prudência. São Paulo: É Realizações; 2013.) O reconhecimento da tradição e do legado de cada indivíduo pode abrir o caminho para uma decisão adequada à sua história e à sua vida biográfica.

A importância da autonomia do paciente cresce em um momento em que se observa a perda de confiança, pelo menos no médico e nas instituições de saúde.(2222 Stirrat GM, Gill R. Autonomy in medical ethics after O´Neill. J Med Ethics. 2005;31(3):127-30.) O sentimento de confiança deriva, neste caso, da competência, da confiabilidade e da honestidade de quem está lidando com o doente. O caminho trilhado para adquirir confiabilidade, mostrar que é digno de confiança, é equívoco, e o maior sinal de credibilidade é mostrar-se vulnerável ao outro. A burocratização, por meio de documentos, como o Consentimento Informado, e o respeito incondicional à autonomia podem ser vistos como mecanismos de proteção dos profissionais e do sistema, podendo resultar em aumento da dúvida quanto ao que está sendo proposto pelo médico. Antes da confiança, busca-se a confiabilidade e, basicamente, temos que nos mostrar dignos de confiança. Como isso é possível? Novamente, pela comunicação adequada, que envolve a honestidade, a disponibilidade, a clareza, a empatia e o comprometimento. Fazer o bem é estabelecer uma comunicação adequada, pois o ponto de partida da ética e da justiça é o diálogo. A maioria das decisões insensatas provém de falhas na interlocução, e a principal delas é assumir que o outro entendeu o que foi dito.(2323 Kious BM. Respect for autonomy: deciding what is good for oneself. J Med Ethics. 2016;42(12):769-75.)

O sofrimento é determinado pelos fatos e não pela comunicação destes. A internação na UTI é, por si só, um catalisador do sofrimento, pois coloca o indivíduo diante de várias dimensões. Além da dor física, surge o medo do futuro imediato e uma busca de sentido.(2424 Grech A, Marks A. Existential Suffering Part 1: definition and diagnosis #319. J Palliat Med. 2017;20(1):93-4.) Depara-se com a solidão; emergem culpas e arrependimentos. Por fim, há o medo da morte − mais até que o medo da morte: o desespero com o morrer. Paradoxalmente, durante a vida, evita-se este pensamento, a finitude, que, agora, na UTI, fez-se claro como nunca. As reflexões oriundas do sofrimento colocam em questão a identidade, as escolhas prévias e a responsabilidade com os outros.(2525 Lavelle L. O mal e o sofrimento. São Paulo: É Realizações; 2004.) Surge o medo do novo ser humano, que pode emergir. Com intensidades diferentes, estas questões atormentam o paciente e seus familiares.(2626 Davidson JE, Jones C, Bienvenu OJ. Family response to critical illness: postintensive care syndrome-family. Crit Care Med. 2012;40(2):618-24.,2727 Ohtake PJ, Coffey Scott J, Hinman RS, Lee AC, Smith JM. Impairments, activity limitations and participation restrictions experienced in the first year following a critical illness: protocol for a systematic review. BMJ Open. 2017;7(1):e013847.) A situação clínica do paciente, principalmente o estado de consciência, é determinante de sua participação neste processo. Cook et al.(1818 Cook D, Rocker G, Marshall J, Griffith L, McDonald E, Guyatt G; Level of Care Study Investigators; Canadian Critical Care Trials Group. Levels of care in the intensive care unit: a research program. Am J Crit Care. 2006;15(3):269-79.) demonstraram que metade dos avaliados nas primeiras 24 horas de admissão na UTI tinham o explícito desejo de não ressuscitação. Porém, pacientes dependentes de suporte ventilatório invasivo em cerca de 90% dos casos foram incapazes de participar de uma decisão.

Em hipótese alguma, a autonomia deve ser utilizada como solução política e não tem como objetivo encontrar a harmonia em uma sociedade individualista, plural e religiosa. A autonomia não deve tornar-se o culto de uma moral privada, e as escolhas autônomas devem ser tomadas considerando deveres, obrigações e responsabilidades − premissas que servem tanto ao paciente, quanto ao médico.(2828 Schuman AG, Barnosky AR. Exploring the limits of autonomy. J Emerg Med. 2011;40(2):229-32.) No entanto, os contextos social e institucional podem ser complicadores, pois podem distorcer os pensamentos, os desejos e as motivações. Assim, quanto mais fortes forem as ligações entre os indivíduos, mais o comportamento individual se assemelhará ao da sociedade, fazendo que o doente tenha sensação de impotência para contrariar o sistema, e o resultado pode ser a prevalência da autonomia do ambiente onde o paciente está inserido − fato que é constatado diariamente nos hospitais e permite concluir que as opções de manejo não são um meio, mas sim um fim em si mesmo e, ao cabo de tudo, termina prevalecendo a autonomia da técnica.(2929 Dupuy JP. O tempo das catástrofes - quando o impossível é uma certeza. São Paulo: É Realizações; 2011.) O hospital se impõe ao indivíduo, aprisionando-lhe até a alma e, assim, restringe a liberdade de decisão do paciente.

Questionar o paciente ou seus familiares se é apropriado instituir manobras de RCP constitui um convite para que todos os envolvidos participem do processo de tomada de decisão. O diálogo é a possibilidade de conquista da confiança e do estabelecimento de uma relação, que constitui a possibilidade de fazer justiça, agir com correção e ser ético. A reflexão moral, propiciando a ação ética, que, por sua vez, deve ser desinteressada, no entanto, a bioética (ética aplicada à saúde) é solicitada a responder uma questão prática, e o seu caráter deliberativo pode não promover uma reflexão ampla sobre a moralidade do agir, quando se corre o risco de a moralidade ser adaptada a ação necessária. As discussões avançadas, em particular as de não ressuscitação, devem ser pensadas visando promover a autodeterminação, pois pacientes gravemente doentes perdem a capacidade de tomada de decisão. Além disso, os desejos dos familiares e dos médicos não se correlacionam adequadamente aos desejos dos pacientes. Assim, para os pacientes que necessitam de internação na UTI, as decisões sobre ressuscitação em caso de PCR são particularmente importantes, devendo ser explícitas, e formalizam um plano de ressuscitação ou não ressuscitação.(1818 Cook D, Rocker G, Marshall J, Griffith L, McDonald E, Guyatt G; Level of Care Study Investigators; Canadian Critical Care Trials Group. Levels of care in the intensive care unit: a research program. Am J Crit Care. 2006;15(3):269-79.) Quando nenhuma diretiva explícita é estabelecida, ou seja, não há discussão sobre o assunto, e nada é registado em prontuário médico, a diretiva padrão é realizar a RCP, independentemente de essa intervenção ser ou não consistente com os valores dos pacientes. Salienta-se, no entanto, a impressão que, nas UTIs brasileiras, as tomadas de decisões sobre não ressuscitação ocorrem sem discussão formal sobre o assunto e sem diretiva explícita registrada no prontuário, e, consequentemente, o paciente pode, ou não, ser ressuscitado. Neste contexto, fica claro a importância de implementar as discussões sobre a instituição das manobras de RCP.

Os programas internacionais de avaliação do nível de cuidados na UTI sugerem que a discussão sobre discussões avançadas de RCP seja realizada nas primeiras 24 horas de admissão da UTI.(3030 Cook DJ, Guyatt G, Rocker G, Sjokvist P, Weaver B, Dodek P, et al. Cardiopulmonary resuscitation directives on admission to intensive-care unit: an international observational study. Lancet. 2001;358(9297):1941-5.) Cook et al.,(1818 Cook D, Rocker G, Marshall J, Griffith L, McDonald E, Guyatt G; Level of Care Study Investigators; Canadian Critical Care Trials Group. Levels of care in the intensive care unit: a research program. Am J Crit Care. 2006;15(3):269-79.) em avaliação de 15 UTI em 4 países (n = 2.916), demonstraram que em somente 11% dos pacientes a equipe da UTI tinha discutido sobre discussões explícitas de ressuscitação (50% com ordem para ressuscitação e 50% com ordem para não ressuscitação). Um estado funcional limitado (OR de 4,8) e status de desemprego (OR de 5,5) prévios à internação na UTI foram associados à necessidade da realização da discussão. Nestes pacientes, uma definição por não ressuscitação foi influenciada pela idade do paciente (OR de 8,8 para ≥ 75 anos), dependência funcional prévia à admissão na UTI (OR de 6,2), admissão na UTI em horários de plantão ou em finais de semana, e incapacidade do paciente participar da discussão (OR de 3,7). Os autores sugerem que esta decisão deve ficar a cargo da rotina da UTI, e não dos plantões. Além disso, os autores demonstraram que os médicos tendem a superestimar o risco de morte na UTI, o que acaba influenciando na provisão e na limitação de tratamentos de suporte vital.

O médico, ao introduzir a discussão de não ressuscitação, coloca um elemento novo e objetivo no quadro geral. Ele deve iniciar esta conversa, mas o problema é quando e como. Quando? O mais breve possível, antes mesmo de ter formado uma ideia sobre o prognóstico geral e, principalmente, nos pacientes de maior risco, pois, frente à elevada morbimortalidade, é importante que esta opção seja oferecida e tratada com a devida seriedade. O tempo tem que ser um aliado dos envolvidos no processo decisório. Como? É mais delicado, mas basicamente ele tem que: preparar o ambiente, dispor de tempo e privacidade, preferencialmente envolver o paciente no diálogo, conversando com ele e a família juntos, quando possível; avaliar se o momento é apropriado; ter convicção da informação que deseja transmitir e preparar previamente uma explicação simples e compreensível sobre o prognóstico da doença de base, o que é uma PCR e o que significam as manobras de reanimação; informar, de modo claro e suave; ser emocionalmente solidário e, ao final, checar o entendimento e planejar os próximos passos.(3131 Curtis JR. Communicating about end-of-life care with patients and families in the intensive care unit. Crit Care Clin. 2004;20(3):363-80, viii.,3232 Lautrette A, Darmon M, Megarbane B, Joly LM, Chevret S, Adrie C, et al. A communication strategy and brochure for relatives of patients dying in the ICU. N Engl J Med. 2007;356(5):469-78. Erratum in N Engl J Med. 2007;357(2):203.) Não é raro que sejam necessários mais encontros e novos esclarecimentos, pois a resposta mais comum ao sofrimento existencial são a negação e o esquecimento.(3333 Becker E. The denial of death. New York: Free Press; 1973.) Estamos adentrando um território muito além do saber médico e, se pensarmos na medicina exclusivamente como profissão técnica, estamos condenados ao fracasso, pois nosso objetivo primordial é aliviar o sofrimento em todas suas manifestações. Propomos pensar a prática médica como uma arte, ou seja, um conjunto de ações que carregam o traço de uma personalidade, de uma capacidade e de uma inteligência particulares. Consequentemente, a medicina não pode ser reduzida apenas à técnica. O sofrimento faz parte do viver, e o médico deve ser humilde e reconhecer a limitação do grandioso projeto de aliviar a dor total, pois o sofrimento pode ser pouco mais que um quebra-cabeça lógico, quando enfrentado de uma distância segura.(3434 Lewis C. O problema do sofrimento. São Paulo: Vida Livros; 2006.) A atitude empática e a resposta adequada às necessidades do paciente e de seus entes queridos exigem dos profissionais da saúde o distanciamento − uma distância que não o torne indiferente ao sofrimento, mas ela deve ser suficiente para que o profissional não sinta o mesmo que o outro, não pode haver identificação emocional.(3535 Muñoz Devesa A, Morales Moreno I, Bermejo Higuera JC, Galán González Serna JM. La relación de ayuda en enfermería. Index Enferm. 2014;23(4):229-33.) É importante ressaltar que o doente nunca está a salvo do tormento, e seus familiares compartilham com o paciente o sofrimento existencial, que engloba o reconhecimento da mortalidade, a privação da liberdade, a solidão e a percepção de uma vida sem sentido. O médico é o veículo de informações que podem aumentar o sofrimento, mas ele também detém capacidades para aliviá-lo. É importante não confundir o mensageiro, o médico, com a mensagem, a má notícia, pois não é a informação transmitida que provoca a dor - esta é decorrente da situação que acomete os pacientes e seus familiares. A comunicação, quando estabelecida de modo apropriado, é terapêutica.(3636 Buckman R. Communication skills in palliative care: a practical guide. Neurol Clin. 2001;19(4):989-1004.)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões avançadas de não ressuscitação em caso de PCR na UTI traduzem boa prática médica, organização da unidade, clareza nas definições e, mais importante de tudo, respeito com o paciente. O trabalho inclui orientar o paciente e a família durante a tomada de decisão. Temos que usar a persuasão, evitando a coerção e a manipulação. Persuadir alguém implica na indução da mudança de conduta por meio da força da argumentação, sem desrespeitar os valores do ajudado e nem abrindo mão da responsabilidade do ajudante. É o esforço para adaptar um conhecimento científico à realidade do paciente, é a arte de tornar a verdade aparente. A coerção e a manipulação implicam na restrição da liberdade de escolha e impossibilitam a decisão autônoma.(3737 Dubov A. Ethical persuasion: the rhetoric of communication in critical care. J Eval Clin Pract. 2015;21(3):496-502.)

As estimativas prognósticas, mesmo quando baseadas em dados robustos, devem ser oferecidas com cuidado, porque dados populacionais são difíceis de aplicar em casos específicos. Embora as estimativas quantitativas da sobrevivência ajudem nas decisões dos pacientes em relação ao RCP, elas valorizam muito a qualidade de vida após uma PCR bem-sucedida.(3838 Murphy DJ, Burrows D, Santilli S, Kemp AW, Tenner S, Kreling B, et al. The influece of the probability of survival on patients´preferences regarding cardiopulmonary resuscitation. New Engl J Med. 1994;330(8):545-9.) Por exemplo, 80% dos pacientes optaram pela RCP quando a chance de sobrevivência foi estimada em não mais de 10%.(3838 Murphy DJ, Burrows D, Santilli S, Kemp AW, Tenner S, Kreling B, et al. The influece of the probability of survival on patients´preferences regarding cardiopulmonary resuscitation. New Engl J Med. 1994;330(8):545-9.) Além disso, a qualidade de vida após a sobrevida foi considerada "extremamente importante" para mais de um terço dos pacientes.(3939 Heyland DK, Frank C, Groll D, Pichora D, Dodek P, Rocker G, et al. Understanding cardiopulmonary resuscitation decision making: perspectives of seriously ill hospitalized patients and family members. Chest. 2006;130(2):419-28.)

O registro das informações deve sempre ser o mais completo possível e será o resultado de uma análise dos 5 E's da prática médica, uma analogia com o modelo construtivista de educação. Primeiro, escutar e, em seguida, examinar, incluindo os exames complementares. Durante o processo serão avaliadas as evidências e fornecidas as explicações de modo empático e claro. Por último, o médico escreverá no prontuário. A omissão no prontuário de decisão sobre RCP deveria caracterizar a exceção, e não a regra. A indefinição representa a incapacidade do médico em comunicar-se eficazmente com o paciente/familiares, visando a um alinhamento de expectativas com relação ao prognóstico do mesmo. Atesta um conhecimento, no máximo, superficial sobre o assunto e traduz a dificuldade de uma abordagem mais profunda sobre o problema, pois o prognóstico da PCR no doente crítico é muito ruim. Em suma, representa a complexidade que é abordar um tópico tão inconveniente, o que pode ser confundido com descaso do profissional em relação ao paciente e seus familiares, transparecendo incapacidade do profissional na assunção de suas responsabilidades perante o cuidado do doente.

As discussões avançadas de não ressuscitação se baseiam no princípio ético do respeito pela autonomia do paciente, pois o desejo dos familiares e dos médicos não se correlaciona adequadamente aos dos pacientes. Não somente sobre a ótica da autonomia, discussões avançadas podem ajudar a equipe médica e assistencial a anteciparem problemas futuros, fazendo com que elas planejem melhor o cuidado dos enfermos. Nossa opinião é a de que discussões sobre ressuscitação ou não dos criticamente doentes devam ser realizadas em todos os casos internados na unidade de terapia intensiva logo nas primeiras 24 a 48 horas de internação.

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Editado por

Editor responsável: Thiago Costa Lisboa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2018
  • Aceito
    27 Nov 2018
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