Acessibilidade / Reportar erro

Lactato, pressão arterial e infecção: unidos pela fé, desunidos pelo homem?

"Todas as doenças são conceitualmente iguais; cada síndrome é problemática a seu próprio modo". Essa paráfrase da primeira sentença de Anna Kareninna, de Tolstói, enfatiza a complexidade de lidar com uma caleidoscópica plêiade de sintomas, sinais e suas inter-relações. As síndromes são um dos apanágios da medicina intensiva; nenhum outro especialista médico lida mais constantemente com síndromes do que os médicos que atuam nas unidades de terapia intensiva (UTI). A própria doença grave, seja qual for sua etiologia, pode ser considerada, por si só, uma síndrome.

O choque é uma das síndromes mais fascinantes já descritas.(11. Manji RA, Wood KE, Kumar A. The history and evolution of circulatory shock. Crit Care Clin. 2009;25(1):1-29, vii.) O choque vadeia pela via crucis do estabelecimento de um conceito, desde seus relatos originais, quase filosóficos, que começam no início do século 19, transitaram pelas "décadas das medidas", quando o choque colocou os pés em terreno fisiológico, até chegar à era em que conceitos simples e práticos são frequentemente empregados para facilitar o agrupamento de pacientes e a formulação de prognósticos (Figura 1).(11. Manji RA, Wood KE, Kumar A. The history and evolution of circulatory shock. Crit Care Clin. 2009;25(1):1-29, vii.) Isso, teoricamente, aceleraria o desenvolvimento de novos tratamentos, mas também pode resultar em uma categorização que ignora os conceitos filosóficos e fisiológicos iniciais de uma síndrome. O mesmo processo ocorreu com muitas outras síndromes (sepse, síndrome do desconforto respiratório agudo etc.).(22. Ware LB, Matthay MA. The acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2000;342(18):1334-49. Review. ,33. Funk DJ, Parrillo JE, Kumar A. Sepsis and septic shock: a history. Crit Care Clin. 2009;25(1):83-101, viii.)

Figura 1
Conceitos no choque.

A sepse e o choque são síndromes inter-relacionadas.(33. Funk DJ, Parrillo JE, Kumar A. Sepsis and septic shock: a history. Crit Care Clin. 2009;25(1):83-101, viii.) Já em 1868, Edwin Morris escreveu que "Assim, parece que o choque e a infecção podre, cães da matilha da morte, assolaram esse pobre homem, já que ocorreram em dupla: o choque o abatia enquanto a piemia cravava suas venenosas presas".(44. Morris E. A practical treatise of shock after surgical operations and injuries: with especial reference to shock caused by railway accidents. Philadelphia: Lippincott; 1868.) Nesse contexto, o trabalho publicado por Ranzani et al.(55. Ranzani OT, Monteiro MB, Ferreira EM, Santos SR, Machado FR, Noritomi DT. Reclassificando o espectro de pacientes sépticos com o uso do lactato: sepse grave, choque críptico, choque vasoplégico e choque disóxico. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(4):270-8.) neste número da Revista Brasileira de Terapia Intensiva é um sopro de ar fresco, que pode nos ajudar a lembrar os fundamentos filosóficos e fisiológicos da interação entre choque e sepse, assim como por que devemos sempre revisitar nossos critérios para diagnóstico de uma síndrome. Após categorizar uma grande amostra de pacientes em quatro grupos, segundo o nível de lactato e a presença de hipotensão, os autores concluíram que o choque disóxico (definido como a presença tanto de hipotensão quanto de hiperlactatemia) apresentou uma taxa de mortalidade mais elevada. Pacientes com choque críptico (isto é, pressão arterial normal e lactato elevado) e com choque vasoplégico tiveram um nível de mortalidade intermediário entre pacientes com sepse grave e choque disóxico.

Diversas importantes conclusões, que salientam a relevância do trabalho dos autores, podem ser derivadas dos dados apresentados. A mais importante: não devemos esperar uma clara associação entre hipotensão e hiperlactatemia. Mesmo o débito cardíaco, que é o propulsor da pressão arterial, pode não estar relacionado ao lactato.(66. Hernandez G, Bruhn A, Castro R, Pedreros C, Rovegno M, Kattan E, et al. Persistent sepsis-induced hypotension without hyperlactatemia: a distinct clinical and physiological profile within the spectrum of septic shock. Crit Care Res Pract. 2012;2012:536852.) Tanto a hipotensão quanto a hiperlactatemia refletem uma desarticulação dos mecanismos orgânicos, nas palavras de Gross,(77. Gross SD. A system of surgery: pathological, diagnostic, therapeutique and operative. Philadelphia: Blanchard and Lea; 1862.) mas podem refletir uma disfunção de diferentes partes do sistema. A hipotensão pode ser resumida como uma desorganização da cooperação ventrículo-arterial, que pode decorrer da diminuição da potência cardíaca e/ou da elasticidade arterial.(88. Guarracino F, Baldassarri R, Pinsky MR. Ventriculo-arterial decoupling in acutely altered hemodynamic states. Crit Care. 2013;17(2):213.) O papel do lactato é muito mais complexo, mas está agora claro que a anaerobiose não é o único mecanismo envolvido.(99. Gladden LB. Lactate metabolism: a new paradigm for the third millennium. J Physiol. 2004;558(Pt 1):5-30.) Provavelmente, distúrbios da microcirculação e disfunções do aparelho bioquímico celular são mais importantes.(88. Guarracino F, Baldassarri R, Pinsky MR. Ventriculo-arterial decoupling in acutely altered hemodynamic states. Crit Care. 2013;17(2):213.) Assim, já que ambos os fenômenos têm sua própria fundamentação fisiológica, espera-se que sua associação com o desfecho seja independente. O trabalho de Ranzani et al. corrobora esse conceito.(55. Ranzani OT, Monteiro MB, Ferreira EM, Santos SR, Machado FR, Noritomi DT. Reclassificando o espectro de pacientes sépticos com o uso do lactato: sepse grave, choque críptico, choque vasoplégico e choque disóxico. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(4):270-8.)

Finalmente, os autores apresentam um trabalho extremamente relevante em relação à epidemiologia e ao prognóstico da sepse grave em nosso país. É importante enfatizar que a mortalidade por sepse e por choque críptico (16,8 e 35,2%, respectivamente) foi similar aos que se observa em relatos oriundos de países desenvolvidos.(1010. Gaieski DF, Edwards JM, Kallan MJ, Carr BG. Benchmarking the incidence and mortality of severe sepsis in the United States. Crit Care Med. 2013;41(5):1167-74.) Isso sugere que, quando se aplicam as práticas amplamente aceitas, surgem os resultados positivos, independentemente do hemisfério em que o paciente se encontra.(1111. Noritomi DT, Ranzani OT, Monteiro MB, Ferreira EM, Santos SR, Leibel F, et al. Implementation of a multifaceted sepsis education program in an emerging country setting: clinical outcomes and cost-effectiveness in a long-term follow-up study. Intensive Care Med. 2013 Oct 22. [Epub ahead of print].)

REFERÊNCIAS

  • 1
    Manji RA, Wood KE, Kumar A. The history and evolution of circulatory shock. Crit Care Clin. 2009;25(1):1-29, vii.
  • 2
    Ware LB, Matthay MA. The acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2000;342(18):1334-49. Review.
  • 3
    Funk DJ, Parrillo JE, Kumar A. Sepsis and septic shock: a history. Crit Care Clin. 2009;25(1):83-101, viii.
  • 4
    Morris E. A practical treatise of shock after surgical operations and injuries: with especial reference to shock caused by railway accidents. Philadelphia: Lippincott; 1868.
  • 5
    Ranzani OT, Monteiro MB, Ferreira EM, Santos SR, Machado FR, Noritomi DT. Reclassificando o espectro de pacientes sépticos com o uso do lactato: sepse grave, choque críptico, choque vasoplégico e choque disóxico. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(4):270-8.
  • 6
    Hernandez G, Bruhn A, Castro R, Pedreros C, Rovegno M, Kattan E, et al. Persistent sepsis-induced hypotension without hyperlactatemia: a distinct clinical and physiological profile within the spectrum of septic shock. Crit Care Res Pract. 2012;2012:536852.
  • 7
    Gross SD. A system of surgery: pathological, diagnostic, therapeutique and operative. Philadelphia: Blanchard and Lea; 1862.
  • 8
    Guarracino F, Baldassarri R, Pinsky MR. Ventriculo-arterial decoupling in acutely altered hemodynamic states. Crit Care. 2013;17(2):213.
  • 9
    Gladden LB. Lactate metabolism: a new paradigm for the third millennium. J Physiol. 2004;558(Pt 1):5-30.
  • 10
    Gaieski DF, Edwards JM, Kallan MJ, Carr BG. Benchmarking the incidence and mortality of severe sepsis in the United States. Crit Care Med. 2013;41(5):1167-74.
  • 11
    Noritomi DT, Ranzani OT, Monteiro MB, Ferreira EM, Santos SR, Leibel F, et al. Implementation of a multifaceted sepsis education program in an emerging country setting: clinical outcomes and cost-effectiveness in a long-term follow-up study. Intensive Care Med. 2013 Oct 22. [Epub ahead of print].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2013
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br