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Diferença de íons fortes na urina como determinante importante das alterações na concentração plasmática de cloreto em pacientes no pós-operatório

Resumos

OBJETIVO:

Demonstrar que alterações na concentração plasmática de cloreto ([Cl-]plasma) durante o período pós-operatório são amplamente dependentes da diferença de íons fortes urinária ([SID]urina=[Na+] urina+[K+] urina -[Cl-]urina) e não de diferenças na terapia hídrica.

MÉTODOS:

Foram realizadas mensurações na admissão à unidade de terapia intensiva e 24 horas mais tarde em um total de 148 pacientes pós-operatórios. Os pacientes foram designados para um de três grupos segundo a alteração na concentração plasmática de cloreto após 24 horas: [Cl-]plasma aumentada (n=39), [Cl-]plasma diminuída (n=56) ou [Cl-]plasma inalterada (n=53).

RESULTADOS:

Quando da admissão, o grupo com [Cl-]plasma aumentada tinha [Cl-]plasma mais baixa (105±5 versus 109±4 e 106±3mmol/L; p<0,05), um ânion gap plasmático ([AG]plasma) mais alto e um íon gap forte mais alto. Após 24 horas, o grupo com [Cl-]plasma aumentada mostrou [Cl-]plasma mais alta (111±4 versus 104±4 e 107±3mmol/L; p<0,05) e nível plasmático mais baixo de [AG]plasma e íon gap forte. O volume e íon gap forte dos fluidos administrados foram similares entre os grupos, exceto que os [SID]urina eram mais altos (38±37 versus 18±22 e 23±18mmol/L; p<0,05) no grupo com [Cl-]plasma aumentada na avaliação após 24 horas. Uma análise de regressão linear múltipla demonstrou que a [Cl-]plasma na admissão e [SID]urina eram preditores independentes de variação na [Cl-]plasma 24 horas mais tarde.

CONCLUSÕES:

Alterações na [Cl-]plasma durante o primeiro dia pós-operatório foram amplamente relacionadas com [SID]urina e [Cl-]plasma na admissão, e não às características dos fluidos infundidos. Portanto, a diminuição da [SID]urina deve ser um mecanismo importante para prevenção do desenvolvimento de hipercloremia induzida por solução salina.

Cuidados pós-operatórios; Soluções isotônicas/efeitos adversos; Urina/análise; Cloretos/metabolismo


OBJECTIVE:

To show that alterations in the plasma chloride concentration ([Cl-]plasma) during the postoperative period are largely dependent on the urinary strong ion difference ([SID]urine=[Na+]urine+[K+]urine-[Cl-]urine) and not on differences in fluid therapy.

METHODS:

Measurements were performed at intensive care unit admission and 24 hours later in a total of 148 postoperative patients. Patients were assigned into one of three groups according to the change in [Cl-]plasma at the 24 hours time point: increased [Cl-]plasma (n=39), decreased [Cl-]plasma (n=56) or unchanged [Cl-]plasma (n=53).

RESULTS:

On admission, the increased [Cl-]plasma group had a lower [Cl-]plasma (105±5 versus 109±4 and 106±3mmol/L, p<0.05), a higher plasma anion gap concentration ([AG]plasma) and a higher strong ion gap concentration ([SIG]). After 24 hours, the increased [Cl-]plasma group showed a higher [Cl-]plasma (111±4 versus 104±4 and 107±3mmol/L, p<0.05) and lower [AG]plasma and [SIG]. The volume and [SID] of administered fluids were similar between groups except that the [SID]urine was higher (38±37 versus 18±22 and 23±18mmol/L, p<0.05) in the increased [Cl-]plasma group at the 24 hours time point. A multiple linear regression analysis showed that the [Cl-]plasma on admission and [SID]urine were independent predictors of the variation in [Cl-]plasma 24 hours later.

CONCLUSIONS:

Changes in [Cl-]plasma during the first postoperative day were largely related to [SID]urine and [Cl-]plasma on admission and not to the characteristics of the infused fluids. Therefore, decreasing [SID]urine could be a major mechanism for preventing the development of salineinduced hyperchloremia.

Postoperative care; Isotonic solutions/adverse effects; Urine/analysis; Chlorides/metabolism


INTRODUÇÃO

O cloreto é o principal ânion no fluido extracelular. A concentração de cloreto varia em diferentes compartimentos e tipos celulares, e a concentração no plasma ([Cl-]plasma) e fluido intersticial são aproximadamente de 105 e 117mmol/L, respectivamente. A concentração intracelular de íon cloreto é baixa em razão da presença de outros ânions, como DNA, RNA, proteínas e fosfato. Os três principais mecanismos que determinam a homeostase do cloreto incluem a entrada por via digestiva ou parenteral, saída primariamente pela urina e, secundariamente, pelas fezes, e a troca iônica entre os compartimentos do corpo.( 11. Koch SM, Taylor RW. Chloride ion in intensive care medicine. Crit Care Med. 1992;20(2):227-40. )

A avaliação da [Cl-]plasma é um passo chave na análise da condição acidobásica de pacientes gravemente enfermos. O cloreto é um íon forte; assim, suas alterações modificam a diferença de íons fortes no plasma ([SID]plasma). Segundo a abordagem de Stewart, o [SID]plasma é uma variável independente, que induz modificações na dissociação da água e, consequentemente, modificações no pH.( 22. Stewart PA. Modern quantitative acid-base chemistry. Can J Physiol Pharmacol. 1983;61(12):1444-61. ) Exemplos dessas modificações são a acidose metabólica hiperclorêmica e a alcalose metabólica hipoclorêmica.

A acidose metabólica hiperclorêmica é uma condição comum em pacientes pós-operatórios. Apesar da falta de evidências definitivas, estudos experimentais e clínicos sugerem que essa alteração produz efeitos deletérios.(3-7) A patogênese da acidose metabólica hiperclorêmica é frequentemente atribuída à infusão de grandes quantidades de soluções salinas, com concentrações suprafisiológicas de cloreto.( 88. Prough DS, Bidani A. Hyperchloremic metabolic acidosis is a predictable consequence of intraoperative infusion of 0.9% saline. Anesthesiology. 1999;90(5):1247-9. , 99. Scheingraber S, Rehm M, Sehmisch C, Finsterer U. Rapid saline infusion produces hyperchloremic acidosis in patients undergoing gynecologic surgery. Anesthesiology. 1999;90(5):1265-70. ) Outro mecanismo importante, que poderia teoricamente contribuir para o desenvolvimento dessa condição, é a eliminação de cloreto pela urina. Uma resposta renal inadequada em face de uma sobrecarga de cloreto poderia facilitar o desenvolvimento e perpetuação da ocorrência de hipercloremia com o tempo. Embora pacientes gravemente enfermos com acidose metabólica frequentemente apresentem resposta renal anormal,(10) esse mecanismo não foi avaliado como um determinante da hipercloremia pós-operatória.

Nosso objetivo foi avaliar os determinantes da [Cl-]plasma durante o primeiro dia pós-operatório, especialmente com respeito a associação entre a entrada de íons fortes, por meio de líquidos administrados por via endovenosa, e a saída de íons fortes por meio dos rins. Nossa hipótese foi a de que modificações na [Cl-]plasma são amplamente dependentes do comportamento da diferença de íons fortes urinária ([SID]urina=[Na+]plasma+[K+]plasma-[Cl-]urina), não das diferenças entre os fluidos administrados.

MÉTODOS

Este foi um estudo prospectivo de coorte realizado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) de ensino. Incluímos pacientes consecutivos admitidos durante o período pós-operatório imediato por 10 meses. Pacientes com insuficiência renal (níveis séricos de creatinina >1,7mg/dL) ou com irrigação vesical, sem cateterização urinária e com dados incompletos foram excluídos.

Nosso estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição sob número 17.032.010. Foram aplicados procedimentos padrão para diagnóstico, de forma que só foi solicitado aos pacientes ou seus responsáveis autorização para uso dos dados.

Variáveis

Na admissão à UTI, foram coletados dados demográficos (idade e gênero), pontuação no escore Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II (APACHE II),( 1111. Knaus WA, Draper EA, Wagner DP, Zimmerman JE. APACHE II: a severity of disease classification system. Crit Care Med. 1985;13(10):818-29. ) risco predito de mortalidade e pontuação no escore Sequential Organ Failure Assessment (SOFA).( 1212. Vincent JL, Moreno R, Takala J, Willatts S, De Mendonça A, Bruining H, et al. The SOFA (Sepsis-related Organ Failure Assessment) score to describe organ dysfunction/failure. On behalf of the Working Group on Sepsis-Related Problems of the European Society of Intensive Care Medicine. Intensive Care Med. 1996;22(7):707-10. ) Foram analisadas amostras de sangue arterial para gasometria realizada com equipamento AVL OMNI 9 (Roche Diagnostics, Graz, Austria); concentração de íons fortes, incluindo [Na+], [K+] e [Cl-], pelo equipamento AEROSET (Abbott Laboratories, Abbott Park, Illinois, USA); [Ca++] pelo equipamento AVL OMNI 9; [Mg++] (Arsenazo dye/Mg complex); [albumina] (bromcresol-sulfonftaleinil); [Pi-] (molibdato-vanadato); e [lactato] pelo equipamento AVL OMNI 9. [Na+], [K+] e [Cl-] foram também medidos na urina. Essas mensurações foram repetidas 24 horas mais tarde. Foram também registrados o volume e a característica dos fluidos administrados durante a cirurgia e o primeiro dia pós-operatório.

Calculamos a concentração de bicarbonato (HCO3 -) e o excesso de base extracelular (BE) utilizando as equações de Henderson-Hasselbalch( 1313. Henderson LJ. The theory of neutrality regulation in the animal organism. Am J Physiol. 1908;21(4):427-48. , 1414. Hasselbalch KA. Die Berechnung der Wasserstoffzahl des blutes aus der freien und gebundenen Kohlensäure desselben, und die Sauerstoffbindung des Blutes als Funktion der Wasserstoffzahl. Biochem Z. 1916;78:112-44. ) e Van Slyke.( 1515. Astrup P, Jorgensen K, Andersen OS, Engel K. The acid-base metabolism. A new approach. Lancet. 1960;1(7133):1035-9. , 1616. Siggaard-Andersen O. The van Slyke equation. Scand J Clin Lab Invest Suppl. 1977;146:15-20. ) O ânion gap (AG) plasmático foi calculado como [AG]=([Na+]+[K+])-([Cl-]+[HCO3 -])( 1717. Emmett M, Narins RG. Clinical use of anion gap. Medicine (Baltimore). 1977;56(1):38-54. ) e corrigido para os efeitos de concentrações anormais de albumina:(18) [AG]corrigido (mmol/L)=[AG]+0,25 * (albumina normal - albumina observada) (em g/L). A [SID]urina foi calculada como [SID]urina=([Na+]urina+[K+]urina)-[Cl-]urina,( 1010. Masevicius FD, Tuhay G, Pein MC, Ventrice E, Dubin A. Alterations in urinary strong ion difference in critically ill patients with metabolic acidosis: a prospective observational study. Crit Care Resusc. 2010;12(4):248-54. ) e a [SID] efetiva calculada como [SID]efetiva=[HCO3- -]+[albumina-]+[Pi-].(19) Os valores normais de [SID]efetiva foram de 40±2mmol/L.( 2020. Dubin A, Menises MM, Masevicius FD, Moseinco MC, Kutscherauer DO, Ventrice E, et al. Comparison of three different methods of evaluation of metabolic acid-base disorders. Crit Care Med. 2007;35(5):1264-70. ) A [SID] aparente foi calculada como [SID]aparente=[Na+]+[K+]+[Ca++]+[Mg++]-[Cl-].( 2020. Dubin A, Menises MM, Masevicius FD, Moseinco MC, Kutscherauer DO, Ventrice E, et al. Comparison of three different methods of evaluation of metabolic acid-base disorders. Crit Care Med. 2007;35(5):1264-70. ) A concentração de albumina ([albumina-] (g/l)) e [Pi-] (mmol/L) foram calculados como os valores medidos e o pH, utilizando as seguintes equações: [albumina-]=[albumina] * (0,123 * pH-0,631) e [Pi-]=[Pi] * (0,309 * pH-0,469), respectivamente.(19) O íon gap forte (SIG) consiste de íons fortes além de [Cl-], incluindo lactato, cetoácidos e outros íons orgânicos, além de sulfato, sendo calculado como [SIG]=[SID]aparente-[SID]efetiva.( 1919. Fencl V, Jabor A, Kazda A, Figge J. Diagnosis of metabolic acid-base disturbances in critically ill patients. Am J Respir Crit Care Med. 2000;162(6):2246-51. ) Ajustamos a [Cl-] e o [SIG] para o excesso/défice de água, multiplicando o valor observado pelo fator de correção ([Na+]normal/[Na+]).( 1919. Fencl V, Jabor A, Kazda A, Figge J. Diagnosis of metabolic acid-base disturbances in critically ill patients. Am J Respir Crit Care Med. 2000;162(6):2246-51. ) Os valores normais do [SIG] são 2±2mmol/L.( 2020. Dubin A, Menises MM, Masevicius FD, Moseinco MC, Kutscherauer DO, Ventrice E, et al. Comparison of three different methods of evaluation of metabolic acid-base disorders. Crit Care Med. 2007;35(5):1264-70. )

Análise dos dados

Os pacientes foram designados para um de três grupos, segundo a variação na [Cl-]plasma no período de 24 horas: [Cl-]plasma aumentada (aumento ≥2mmol/L), [Cl-]plasma diminuída (diminuição ≥2mmol/L), e [Cl-]plasma inalterada (alteração ≤2mmol/L).

Foi verificada a distribuição normal das variáveis utilizando o teste de Kolmogorov-Smirnov. Foi utilizado o teste ANOVA para medidas repetidas de uma ou duas entradas, seguido por testes post-hoc para identificar diferenças específicas entre os grupos e nos grupos. Foi realizada uma análise de regressão linear múltipla para identificar preditores independentes da variação da [Cl-]plasma em 24 horas. Foi considerado significante valores de p<0,05.

RESULTADOS

Foram triados no total 220 pacientes. Desses pacientes, 148 foram incluídos; 72 foram excluídos em razão de níveis de creatinina sérica >1,7mg/dL (n=11), irrigação vesical (n=20), falta de cateterização urinária (n=23), registro incompleto de dados (n=15) ou óbito durante o período do estudo (n=3).

A [Cl-]plasma aumentou em 39 pacientes, diminuiu em 56 e permaneceu inalterada em 53. A tabela 1 resume os dados epidemiológicos e as condições clínicas dos pacientes. Não houve diferenças nos níveis de creatinina plasmática entre os três grupos. As alterações na concentração plasmática de creatinina em 24 horas foram de 0,0±0,2, 0,0±0,3, e -0,1±0,4, respectivamente, nos grupos com [Cl-]plasma aumentada, [Cl-]plasma diminuída e [Cl-]plasma inalterada (p=NS). As percentagens de pacientes que cumpriram os critérios para estágio 1 na classificação AKIN (aumento na concentração de creatinina plasmática ≥0,3mg%) foram, respectivamente, de 10, 14 e 15% (p=NS).

Tabela 1
Dados epidemiológicos e clínicos

Quando da admissão, os grupos com [Cl-]plasma aumentada, [Cl-]plasma diminuída e [Cl-]plasma inalterada mostravam valores plasmáticos similares de pH (7,34±0,07, 7,33±0,06, e 7,33±0,05, respectivamente), PCO2 (37±7, 39±7, e 39±6mmHg, respectivamente), HCO3- (19±3, 20±3, e 20±2mmol/L, respectivamente), BE (-6±4, -5±3, e -5±2mmol/L, respectivamente), e [SID]plasma (30±4, 31±4, e 31±3mmol/L, respectivamente). O grupo com [Cl-]plasma aumentada teve uma [Cl-]plasma mais baixa (Figura 1) e AG mais alto (22±5, 18±4, e 20±4mmol/L; p<0,05) e SIG (11±5, 6±5, e 8±4mmol/L; p<0,05), em comparação aos demais grupos.

Figura 1
Variação da concentração plasmática de cloreto nos grupos com [Cl]plasma aumentada, [Cl]plasma diminuída e [Cl]plasma inalterada. UTI - unidade de terapia intensiva.

Após 24 horas, não foram encontradas diferenças no pH (7,36±0,08, 7,38±0,05, e 7,39±0,04), HCO3 - (21±4, 22±3, e 23±2mmol/l), excesso de base (BE) (-4±5, -3±3, e -2±2 mmol/L) e [SID]plasma (31±5, 32±3, e 33±3mmol/L) entre os grupos com [Cl-]plasma aumentada, [Cl-]plasma diminuída e [Cl-]plasma inalterada. O grupo com [Cl-]plasma aumentada apresentou [Cl-]plasma mais alta e AG mais baixo (15±5, 21±5, e 17±4mmol/L; p<0,05) e SIG (4±5, 10±5, e 6±4mmol/L; p<0,05) em comparação com os outros grupos (Tabela 2 e Figura 1). Após 24 horas, o pH e BE arteriais melhoraram nos grupos com [Cl-]plasma diminuída e inalterada, mas não no grupo com [Cl-]plasma aumentada (Tabela 2). Coerentemente, a alteração após 24 horas no pH (0,03±0,07 versus 0,06±0,07 e 0,05±0,06; p<0,05) e BE (0,8±4 versus 3±3 e 3±2mmol/L, p<0,05) foi menor no grupo com [Cl-]plasma aumentada do que nos outros dois grupos.

Tabela 2
Variáveis acidobásicas na admissão e após 24 horas nos grupos com [Cl-]plasma elevada, diminuída e inalterada

As soluções cristaloides administradas durante a cirurgia e nas primeiras 24 horas na UTI foram solução salina normal (77% do volume total utilizado) e Ringer lactato (23%). Não foram utilizadas soluções coloides. Durante a cirurgia o grupo com [Cl-]plasma aumentada recebeu volumes menores de fluidos com um SID mais baixo do que o grupo com [Cl-]plasma diminuída (Tabela 1). Na UTI, o volume e SID dos fluidos administrados foram similares entre os três grupos, mas o [SID]urina de 24 horas foi mais alto no grupo com [Cl-]plasma aumentada (Figura 2). O balanço hídrico foi similar nos três grupos (2.405±2.475, 2.235±2.099 e 1.872±1.405mL/24 horas; p=NS). O volume (6.160±2.382, 6.887±3.155, 5.912±1.706mL; p=NS) e a SID (6±5, 6±6, 6±4mmol/L; p=NS) dos fluidos administrados durante o período perioperatório (cirurgia e as primeiras 24 horas na UTI), foram similares.

Figura 2
Volumes e diferenças de íons fortes das soluções administradas e urina nos grupos com [Cl-]plasma aumentada, [Cl-]plasma diminuída e [Cl-]plasma inalterada. Painel A: volume das soluções administradas. Painel B: diferença de íons fortes nas soluções administradas. Painel C: volume da diurese. Painel D: diferença de íons fortes na urina de 24 horas. SID - diferença de íon forte.

Uma análise de regressão linear múltipla demonstrou que a [Cl-]plasma na admissão e a [SID]urina foram preditores independentes de variação nas 24 horas na [Cl-]plasma (Tabela 3).

Tabela 3
Análise de regressão linear múltipla das alterações em 24 horas com [Cl-]plasma como a variável dependente

DISCUSSÃO

Determinamos que as alterações na [Cl-]plasma, durante o primeiro dia pós-operatório, são relacionadas aos níveis de [SID]urina, e não às diferenças no volume ou na SID dos fluidos administrados. Esse resultado sugere que a capacidade renal de diminuir a [SID]urina é um mecanismo importante para evitar hipercloremia pós-operatória. Apesar disso, outros processos podem também estar envolvidos na regulação da [Cl-]plasma, pois a [Cl-]plasma, na admissão, também foi um determinante independente da variação da [Cl-]plasma nas 24 horas.

Acidose metabólica hiperclorêmica é comumente encontrada em pacientes cirúrgicos após expansão do volume com solução salina. Além do mais, estudo recente demonstrou que uma restrição na administração de fluídos ricos em cloreto em pacientes gravemente enfermos diminuiu a incidência de acidose metabólica e a hipercloremia.( 2121. Yunos NM, Kim IB, Bellomo R, Bailey M, Ho L, Story D, et al. The biochemical effects of restricting chloride-rich fluids in intensive care. Crit Care Med. 2011;39(11):2419-24. ) Os pacientes incluídos neste estudo receberam soluções hiperclorêmicas com baixa SID durante o procedimento cirúrgico e, a partir de então, na UTI. Consequentemente, 28% deles foram admitidos na UTI com hipercloremia (definida como [Cl-]plasma ≥110mmol/L), enquanto outros 16% desenvolveram hipercloremia dentro das 24 horas seguintes (dados não apresentados).

Embora a abordagem de Stewart tenha as mesmas capacidades prognósticas e diagnósticas que a análise convencional do metabolismo acidobásico,( 2020. Dubin A, Menises MM, Masevicius FD, Moseinco MC, Kutscherauer DO, Ventrice E, et al. Comparison of three different methods of evaluation of metabolic acid-base disorders. Crit Care Med. 2007;35(5):1264-70. ) esse método alternativo pode proporcionar uma melhor compreensão dos mecanismos subjacentes à acidose metabólica induzida por solução salina.( 22. Stewart PA. Modern quantitative acid-base chemistry. Can J Physiol Pharmacol. 1983;61(12):1444-61. , 2222. Kellum JA. Determinants of blood pH in health and disease. Crit Care. 2000;4(1):6-14. ) Segundo a abordagem de Stewart, a concentração de prótons é independentemente determinada pelos ácidos fracos voláteis e não voláteis e pela SID. A SID é a diferença entre as somas de todos os cátions e ânions fortes, como [Na+], [K+], [Ca++], [Mg++], e [Cl-]. Alterações na [Cl-]plasma, induzidas pela administração de fluidos com níveis de cloreto em excesso ao conteúdo de sódio, diminuirão a SID e aumentarão a dissociação de água, produzindo acidose.

Em pacientes gravemente enfermos, a hipercloremia também pode resultar de uma compensação fisiológica da hipoalbuminemia. Extravasamento capilar e alteração parcial do equilíbrio de Donan, com a difusão de albumina do espaço intravascular, podem resultar em uma passagem de cloreto do espaço intersticial para contrabalançar a perda de carga negativa.( 2323. Kellum JA, Bellomo R, Kramer DJ, Pinsky MR. Etiology of metabolic acidosis during saline resuscitation in endotoxemia. Shock. 1998;9(5):364-8. ) Além disso, Wilkes demonstrou que a perda de ácidos fracos secundária à hipoproteinemia é contrabalançada por um aumento da [Cl-]plasma mediado pelos rins para diminuir a SID.( 2424. Wilkes P. Hypoproteinemia, strong-ion difference, and acid-base status in critically ill patients. J Appl Physiol. 1998;84(5):1740-8. ) Contudo, a albumina e os ânions fracos não voláteis foram similares entre nossos três grupos de pacientes durante o período de avaliação de 24 horas.

Outro mecanismo que poderia explicar o desenvolvimento de hipercloremia é o controle renal do cloreto. Os rins desempenham um papel central na regulação da [SID]plasma ao modular a excreção e a reabsorção urinárias de íons fortes, como sódio, potássio e cloreto. Entretanto, poucos estudos investigaram as interações entre [SID]urina e [SID]plasma ( 2525. Moviat M, Pickkers P, van der Voort PH, van der Hoeven JG. Acetazolamidemediated decrease in strong ion difference accounts for the correction of metabolic alkalosis in critically ill patients. Crit Care. 2006;10(1):R14. ) Em uma série de 98 pacientes gravemente enfermos com acidose metabólica simples, uma mudança nos valores de [SID]urina para valores negativos se associou a [SID]plasma mais alta e com acidemia menos grave, em comparação a pacientes que tinham [SID]urina mais positiva.( 1010. Masevicius FD, Tuhay G, Pein MC, Ventrice E, Dubin A. Alterations in urinary strong ion difference in critically ill patients with metabolic acidosis: a prospective observational study. Crit Care Resusc. 2010;12(4):248-54. ) Como resultado, pacientes com uma [SID]urina positiva demonstraram [Cl-]plasma mais alta. Essas observações indicam que uma resposta renal inadequada pode facilitar o desenvolvimento de hipercloremia.

No presente estudo, todos os grupos de pacientes receberam quantidades equivalentes de líquidos e de eletrólitos. Apesar disso, as alterações na [Cl-]plasma variaram de forma significante. Identificamos que o principal determinante da [Cl-]plasma foi a [SID]urina. A variação na [SID]urina pode ter sido desencadeada pelas características da acidose metabólica que os pacientes apresentavam quando da admissão à UTI. Apesar de valores similares de pH, a acidose era amplamente devida aos ânions não medidos no grupo com [Cl-]plasma aumentada e a hipercloremia no grupo com [Cl-]plasma diminuída. Os tipos diferentes de acidose metabólica observados não podem ser explicados pela administração de fluidos durante a cirurgia. Na verdade, o grupo com [Cl-]plasma aumentada (isto é, pacientes com [Cl-]plasma mais baixa e níveis mais altos de AG e SIG na admissão) recebeu os fluidos com menor SID. A incidência de choque também foi similar entre os três grupos.

Embora a causa continue obscura, os diferentes tipos de acidose metabólica, quando da admissão, podem ter determinado o subsequente controle renal de cloreto. Na verdade, a [Cl-]plasma na admissão foi um preditor independente de alterações na [Cl-]plasma. Conforme demonstrado pela [SID]urina mais alta, a acidose porânions não medidos no grupo com [Cl-]plasma aumentada se associou com uma menor capacidade de eliminar cloreto. Especulamos que a excreção renal de ânions não absorvíveis e sódio reduziu a magnitude da diminuição na [SID]urina. Em contraste, o grupo com [Cl-]plasma diminuída apresentou acidose metabólica hiperclorêmica e mostrou capacidade melhorada de eliminar o cloreto e diminuir a [SID]urina. Esses efeitos podem ser devidos à excreção de cloreto como amônia (um cátion fraco), e não sódio.

Uma condição que potencialmente poderia causar confusão seria o uso de furosemida. Esse fármaco diminui a [SID]urina e induz alcalose metabólica. Apesar disso, o uso de furosemida neste estudo foi similar em apenas alguns pacientes entre os diferentes grupos.

A relevância da acidose metabólica hiperclorêmica como um preditor independente do desfecho em pacientes gravemente enfermos tem sido assunto de intensa discussão.( 66. Yunos NM, Bellomo R, Hegarty C, Story D, Ho L, Bailey M. Association between a chloride-liberal vs chloride-restrictive intravenous fluid administration strategy and kidney injury in critically ill adults. JAMA. 2012;308(15):1566-72. , 77. Shaw AD, Bagshaw SM, Goldstein SL, Scherer LA, Duan M, Schermer CR, et al. Major complications, mortality, and resource utilization after open abdominal surgery: 0.9% saline compared to Plasma-Lyte. Ann Surg. 2012;255(5):821-9. , 2626. Gunnerson KJ, Saul M, He S, Kellum JA. Lactate versus non-lactate metabolic acidosis: a retrospective outcome evaluation of critically ill patients. Crit Care. 2006;10(1):R22. , 2727. Boniatti MM, Cardoso PR, Castilho RK, Vieira SR. Is hyperchloremia associated with mortality in critically ill patients? A prospective cohort study. J Crit Care. 2011;26(2):175-9. ) Nosso estudo demonstra a presença de doença de base mais grave, conforme demonstrado pela pontuação APACHE-II mais alta, nos pacientes com [Cl-]plasma elevada. Portanto, a falta de resposta adequada, em face à carga de cloreto, poderia desencadear a manifestação de uma condição grave. Demonstramos, previamente, que a incapacidade de diminuir a [SID]urina é um fenômeno comum em pacientes gravemente enfermos com acidose metabólica e que poderia ser a expressão de uma forma de disfunção renal.( 1010. Masevicius FD, Tuhay G, Pein MC, Ventrice E, Dubin A. Alterations in urinary strong ion difference in critically ill patients with metabolic acidosis: a prospective observational study. Crit Care Resusc. 2010;12(4):248-54. ) Em nosso estudo prévio, pacientes com uma resposta anormal de [SID]urina tinham pontuações mais altas de APACHE-II e SOFA, e graus mais graves de acidose metabólica.

O presente estudo tem certas limitações. Decidimos agrupar os pacientes segundo a tendência da [Cl-]plasma observada durante as primeiras 24 horas na UTI, pois essas primeiras mensurações foram heterogêneas. Entretanto, esse padrão pode ter sido influenciado por fatores não avaliados. Além disso, só estudamos pacientes durante o período pós-operatório. Os dados basais de antes da cirurgia e uma avaliação abrangente do balanço hídrico e débito urinário, durante a cirurgia, não estavam disponíveis, pois a [SID]urina não foi avaliada durante esse período. Por último, este estudo observacional não tratou dos mecanismos de base responsáveis pelos diferentes padrões de resposta da [SID]urina.

CONCLUSÕES

Embora o volume e a composição dos fluidos administrados durante o primeiro dia pós-operatório tenham sido similares entre os pacientes com variadas [Cl-]plasma, a [SID]urina foi mais alta em pacientes que desenvolveram hipercloremia. Nossos resultados sugerem que a capacidade de diminuir a [SID]urina é um importante mecanismo para evitar hipercloremia induzida por solução salina. Além disso, outros mecanismos, como o tipo de acidose metabólica, podem também atuar como determinantes relevantes da [Cl-]plasma.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Dr. Donald F. Haggerty, um pesquisador aposentado com inglês nativo, pela edição e versão final do manuscrito em inglês.

REFERÊNCIAS

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  • Estudo realizado na Unidade de Terapia Intensiva do Sanatorio Otamendi y Miroli - Buenos Aires, Argentina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2013

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2013
  • Aceito
    30 Ago 2013
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