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Sepse: os critérios do Sr. Machado

Gosto muito do Sr. João Machado.

Já o conheço há 2 ou 3 anos. Antigo homem de vários ofícios, foi aprendendo a sobreviver por currículo feito em todos eles. Creio até que, embora habitualmente desenrascado, coraria um pouco se me contasse alguns destes capítulos. Todas as vezes que tem estado internado é devido a um agravamento de uma insuficiência cardíaca global que eu acredito que se deva a uma cardiopatia hipertensiva, isquêmica e talvez etanólica (pelo menos um pouquinho). Ele não acredita nisto; do alto de seu 1m80 que suporta 83kg de boa disposição diz que não fumou muito, não bebeu demasiado e não descurou tanto a hipertensão arterial. Acha é que tem um coração muito gasto, porque já sofreu com muitas coisas que viu durante 73 anos. Não é impossível que tenha razão.

O último internamento foi no dia 5 de julho de 2016. Tinha uns fervores nas bases, edemas com fartura, agravou a creatinina até 1,3mg/dL e com 2L oxigênio por sonda nasal tinha uma saturação de 92%. Menos mal. Hemodinamicamente estava muito composto, já que tinha uma pressão arterial de 123/81mmHg e uma frequência cardíaca de 72, sinusal; um cheirinho de betabloqueante diário faz maravilhas. No dia seguinte, Portugal jogava as meias finais do Campeonato da Europa de Futebol com o País de Gales, e discutimos empenhadamente se deveria jogar o Bruno Alves ou o Ricardo Carvalho, em vez do Pepe, que estava lesionado; também aqui não concordamos.

Com a vitória portuguesa antes das 22h (caso único para a equipe lusa durante este Europeu), o Sr. Machado estava eufórico. E com 38,6ºC às 23h30 horas. Toda a gente atribuiu a culpa a Ronaldo e Nani, que marcaram os golos (a Klebsiella tinha ficado em branco). Eu se estivesse de urgência era capaz de acreditar no mesmo. De qualquer maneira, coletaram hemoculturas e uns "parâmetros inflamatórios".

No dia 7, o Sr. Machado continuava bem disposto e estava à minha espera para dizer que ele é que tinha razão quando teimou em que deveria ser o Bruno Alves a jogar. Hemodinamicamente continuava com valores semelhantes e estava eupneico. Perguntou-me porque é que tinha havido aquela "mariquice" (eu sei que não é bonito escrevê-lo nos dias que correm, mas foi mesmo isto que ele disse) de coletar sangue para análises logo naquela altura. Eu disse-lhe que meu colega, face à febre, queria excluir uma infecção. Que aliás continuava a ser provável porque tinha "glóbulos brancos" e proteína C-reativa aumentados (13.400GB/mm3 e 6,3mg/dL, respectivamente). As hemoculturas persistiam negativas. Ele sabia do que eu estava a falar, já que em internamentos anteriores também tinha tido infecções e tínhamos discutido sobre isto. Ele tem boa memória.

Sepse - 2 Sepse - SIRS + infecção presumida Sepse - 3 Infecção não complicada qSOFA - 0

- Então, oh doutor, isto é "sépis"?

- Sepse, Sr. Machado, diz-se sepse.

- Isto, sepse; é como da outra vez, tenho sepse?

- Tecnicamente falando não, Sr. Machado, porque desde 23 de fevereiro deste ano os critérios de sepse mudaram.

- Ah, então não é tão perigoso como antigamente.

- É sim, Sr. Machado. Não se esqueça de que para todos os efeitos a doença é a mesma; o que mudou foram os critérios para a diagnosticar.

- Ah, estou a perceber. Agora é mais fácil diagnosticá-la.

- Também não lhe posso dizer que sim. Só para lhe dar um exemplo: antigamente o Sr. Machado tinha critérios de sepse, agora já não; agora seu estado clínico chama-se apenas infecção.

- Oh doutor, confesse lá: vocês, os médicos, volta e meia alteram tudo para que seja mais difícil entrar para a profissão, não é?

Sorri, disse-lhe mais duas ou três coisas e fui ver outros doentes. O diálogo com o Sr. Machado tinha sido mais de afeição, já que ele não me tinha sido distribuído neste dia. Sabia que os meus colegas estavam a pensar em fazer um ou dois exames diagnósticos e que tinha sido decidido tratá-lo com antibiótico para uma provável infecção respiratória adquirida na comunidade.

No dia 8, estava com um ar semelhante. A pressão arterial e a frequência respiratória mantinham-se normais. Tinha feito dois episódios febris nas 24 horas precedentes, persistia a leucocitose e a proteína C-reativa ainda era elevada, mas agora a creatinina era 1,9mg/dL e o débito urinário estava em 0,3 - 0,4mL/kg/hora.

Sepse - 2 Sepse grave - sepsis + disfunção de órgão Sepse - 3 Infecção não complicada qSOFA - 0 SOFA = 1

- Doutor, cá estou com a minha sepse que já não é!

Realmente, gosto muito do homem que mantém sempre uma atitude bastante positiva perante a doença.

- Olhe, posso lhe dizer que com os critérios "antigos" o Sr. Machado seria classificado como tendo sepse grave, e não apenas sepse.

- E agora não tenho?

- Como lhe disse ontem, a doença não mudou; só o rótulo. Portanto, a gravidade é a mesma.

- Mas como é que se chama agora aquilo que eu hoje tenho?

- Continua a ter só critérios de infecção!

Largamos a Medicina e voltamos ao futebol. Na véspera, a França tinha afastado a Alemanha nas outras meias finais, e eu achava que a possibilidade de Portugal ganhar o "caneco" era mínima. O Sr. Machado descansou-me:

- Se a doença é a mesma e os nomes mudam, talvez com o futebol seja a mesma coisa: o jogo é o mesmo, mas desta vez o título de campeão vai para Portugal em vez de ir para a França.

Pensei para comigo que aquele homem iria sempre acreditar em cada situação naquilo que lhe fosse mais favorável.

O dia 9 foi terrível para o meu doente. Durante a madrugada ficou hipotenso e manteve-se oligúrico. Fez furosemida com escasso efeito diurético e que também não fez bem à tensão arterial. De manhã encontrei-o internado na unidade de cuidados intermédios. Tinha lhe sido colocada uma linha arterial e um cateter venoso central, pelo qual perfundia noradrenalina a 0,2mcg/kg/minuto para obter uma pressão arterial média de cerca de 73mmHg; anteriormente tinha feito dois ensaios de líquidos que não tinham resultado. A gasometria arterial apresentava uma boa pressão parcial de oxigênio (106mmHg) com oxigênio a 2L/m por óculos nasais. Os valores de creatinina, glóbulos brancos e de proteína C-reativa eram semelhantes, mas tinha sido isolada a tal Klebsiella em duas hemoculturas, felizmente sensível à amoxicilina clavulanato. Porém as más notícias não ficavam por aqui: tinha havido um esquecimento e ninguém tinha prescrito a antibioterapia decidida 2 dias antes! A única boa notícia era que o lactato era de 6mg/dL (0,67mmol/L).

Sepse-2 Choque séptico - hipotensão associada à sepse refratária ao volume Sepse - 3 Sepse - hipotensão associada à sepse refratária ao volume com lactato normal SOFA = 6

- Sr. Machado, venho aqui pedir-lhe desculpa.

- Então, doutor, por quê?

- Lembra-se de eu lhe dizer que íamos começar o antibiótico? Pois bem, por erro não o prescrevi e só agora é que descobrimos que estava sem antibiótico. Só esta manhã é que começou a tomá-lo.

- E o doutor acha que é tarde demais, é isso?

- Eu espero bem que não, Sr. Machado; mas se o tivesse começado há 2 dias, provavelmente a infecção não teria agravado tanto e já estaria muito melhor.

- Então com este agravamento como se chama agora o que eu tenho?

- Agora é que tem critérios de sepse, Sr. Machado.

- Então, está a ver doutor? Como estou agora é como antigamente correspondia ao início deste meu internamento.

- Não estou a percebê-lo, Sr. Machado.

- O doutor disse quando eu fui internado e fiquei com febre que antigamente era sepse; se agora é sepse o que tenho, então não estou pior, estou na mesma.

- Não é bem assim. Como está hoje corresponde ao que antigamente se chamava choque séptico. E isto é muito grave e a culpa é minha.

- Ah, agora deixou de haver choque séptico?

- Não, continua a haver choque séptico, mas os critérios mudaram e o Sr. Machado não tem os atuais critérios de choque séptico.

- Doutor, doutor! Já vi muita mudança na minha vida. Para bem e para mal. Mas desculpe lá eu dizer isto: isso é uma mudança para nada.

- Olhe Sr. Machado, desde que fique bom estou disposto a concordar com tudo o que hoje disser sobre medicina.

- De medicina não sei muito, mas de outras coisas sei. Amanhã já estarei a melhorar, e Portugal será campeão Europeu.

E não é que o Sr. Machado acertou mesmo?

José Andrade Gomes - Unidade de Cuidados Intensivos, Hospital da Luz - Lisboa, Portugal.

AGRADECIMENTO

Ao Dr. Pedro Póvoa pela revisão e pelas sugestões ao manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017
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