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Doação de órgãos: a realidade de uma unidade de cuidados intensivos portuguesa

RESUMO

Objetivo:

Caracterizar, clínica e demograficamente, os potenciais doadores de órgãos admitidos em uma unidade de cuidados intensivos polivalente, bem como as respectivas coletas.

Métodos:

Estudo retrospectivo, realizado no período de 2010 a 2015, analisando variáveis demográficas, clínicas e número de órgãos e tecidos captados.

Resultados:

Foram encontrados 92 potenciais doadores de órgãos, dos quais 8 não efetivos e 84 efetivos (59,5% doadores de critérios expandidos). A média de idade dos potenciais doadores foi 60,7 anos e houve predomínio do sexo masculino. O acidente vascular cerebral hemorrágico originou 55,4% das mortes encefálicas. O principal grupo sanguíneo foi A Rh+ (43,5%) e, dentre as comorbidades, a hipertensão arterial (43,3%) foi a mais prevalente. Os rins (84,5%) e o fígado (66,7%) foram os órgãos mais frequentemente captados, e a razão de órgãos por doador foi 2,8, sendo inferior nos doadores de critérios expandidos em relação aos demais.

Conclusão:

O potencial doador de órgãos, em geral, foi a óbito por morte encefálica, estava acima da meia-idade, era do sexo masculino e vítima de acidente vascular cerebral hemorrágico. Ainda, a maioria era de doadores de critérios expandidos e doava, em média, dois a três órgãos, sendo os mais frequentes o fígado e os rins.

Descritores:
Doadores de tecidos; Morte encefálica; Unidades de terapia intensiva

ABSTRACT

Objective:

To clinically and demographically characterize potential organ donors admitted to a general intensive care unit and analyze data on donated organs.

Methods:

This retrospective study was conducted from 2010 to 2015 and analyzed demographic and clinical variables and the number of harvested organs and tissues.

Results:

A total of 92 potential organ donors were identified, of whom eight were non-effective donors and 84 were effective donors (59.5% were expanded criteria donors). The mean age of the potential donors was 60.7 years, and the majority were men. Hemorrhagic stroke accounted for 55.4% of brain deaths. The most common blood type among the donors was A Rh+ (43.5%), and the most common comorbidity was arterial hypertension (43.3%). The most frequently collected organs were the kidneys (84.5%) and liver (66.7%). The average number of organs harvested per donor was 2.8, and this ratio was smaller for donors with expanded criteria compared to other donors.

Conclusion:

In most cases, potential organ donors died of brain death, were older than middle age, were male and were victims of a hemorrhagic stroke. The majority of the donors were expanded criteria donors and donated an average of two to three organs. The organs donated most frequently were the kidneys and liver.

Keywords:
Tissue donors; Brain death; Intensive care units

INTRODUÇÃO

A falência de órgãos está associada a elevadas taxas de morbimortalidade e elevados custos nos cuidados de saúde.(11 Maciel CB, Greer DM. ICU management of the potential organ donor: state of the art. Curr Neurol Neurosci Rep. 2016;16(9):86.) A escassez de órgãos para transplantes constitui importante problema médico e social, porque, muitas vezes, esta é a única opção terapêutica para a falência terminal de órgãos.(22 Citerio G, Cypel M, Dobb GJ, Dominguez-Gil B, Frontera JA, Greer DM, et al. Organ donation in adults: a critical care perspective. Intensive Care Med. 2016; 42 (3): 305-15.) Devido à desproporção entre a necessidade e a oferta de órgãos, as listas de espera para transplante continuam a aumentar em todo o mundo.(11 Maciel CB, Greer DM. ICU management of the potential organ donor: state of the art. Curr Neurol Neurosci Rep. 2016;16(9):86.)

Em 2014, Portugal ocupava o quarto lugar entre os países Estados-Membros da União Europeia em relação ao número de doações de órgãos, com 27 doadores/milhão de habitantes.(22 Citerio G, Cypel M, Dobb GJ, Dominguez-Gil B, Frontera JA, Greer DM, et al. Organ donation in adults: a critical care perspective. Intensive Care Med. 2016; 42 (3): 305-15.)

Durante séculos, a morte foi definida pela parada cardiorrespiratória irreversível.(33 Brain Death Diagnostic Guide. Acta Med Port. 1998; 11: 91-5.) O desenvolvimento, nas últimas décadas, de várias técnicas de suporte de órgãos ditou a necessidade de definição de um novo conceito: o de morte encefálica (ME).(33 Brain Death Diagnostic Guide. Acta Med Port. 1998; 11: 91-5.) A ME corresponde à cessação das funções cerebrais secundária a uma causa conhecida e considerada irreversível.(44 Kumar L. Brain death and care of the organ donor. J Anaesthesiol Clin Pharmacol. 2016; 32 (2): 146-52.)

Os doadores falecidos constituem a principal fonte de órgãos sólidos para transplante.(11 Maciel CB, Greer DM. ICU management of the potential organ donor: state of the art. Curr Neurol Neurosci Rep. 2016;16(9):86.) Além dos doadores em ME, existem também os doadores com coração parado.(55 Ellis MK, Sally MB, Malinoski D. The development and current status of Intensive Care Unit management of prospective organ donors. Indian J Urol. 2016;32(3):178-85.)

Nos últimos anos, o avanço das técnicas de preservação de órgãos permitiu aumentar o número de doadores e garantir o funcionamento adequado dos órgãos até a captação e o transplante.(66 Hameed AM, Hawthorne WJ, Pleass HC. Advances in organ preservation for transplantation. ANZ J Surg. 2017;87(12):976-80.) Nesse sentido, muitos países reconhecem que o princípio da doação de órgãos deve ser um dos componentes dos cuidados de final de vida de todos os doentes que morrem em uma unidade de cuidados intensivos (UCI).(22 Citerio G, Cypel M, Dobb GJ, Dominguez-Gil B, Frontera JA, Greer DM, et al. Organ donation in adults: a critical care perspective. Intensive Care Med. 2016; 42 (3): 305-15.)

Previamente, o doador de órgãos ideal correspondia ao doente jovem vítima de traumatismo craniencefálico (TCE). No entanto, devido à melhoria dos cuidados de saúde e ao consequente aumento da esperança média de vida, atualmente deparamo-nos com doadores cada vez mais velhos e, em sua maioria, vítimas de doença súbita. Atualmente, a idade não é um fator de exclusão para a doação e há uma tendência crescente no número de doadores de critérios expandidos (DCE), em que indivíduos mais velhos e com algumas comorbilidades são também considerados potenciais doadores de órgãos (PDO).

Perante estas mudanças no perfil etário e etiológico, é fundamental conhecer o perfil atual dos doadores de órgãos, pois a deteção precoce é provavelmente o passo mais importante para evitar que se percam oportunidades de doação. Nesse sentido, os autores têm como objetivo caraterizar, do ponto de vista clínico e demográfico, os PDO admitidos em uma UCI polivalente, os motivos da não doação e o número e tipo de órgãos captados.

MÉTODOS

Foi realizado um estudo descritivo e retrospectivo dos doentes admitidos como PDO em uma UCI polivalente no período de janeiro de 2010 a dezembro de 2015.

A coleta de dados foi realizada por meio de consulta do prontuário. Foram analisadas variáveis demográficas e clínicas: número de admissões, distribuição por sexo e idade dos PDO e doadores efetivos de órgãos (DEO), número de doadores não efetivos de órgãos (DNEO) e respectivas causas, causas de ME, grupo sanguíneo, comorbidades, proveniência, número de órgãos e tecidos captados, razão de órgãos por doador e tempos das várias fases do processo da doação de órgãos.

A ME foi determinada de acordo com o critério de morte do tronco cerebral adotado pela legislação portuguesa, que inclui os seguintes itens: (1) condições prévias (estado de coma profundo, ausência de respiração espontânea, conhecimento da causa e irreversibilidade da situação clínica, exclusão de situações que possam ser responsabilizadas pela supressão das funções referidas nos pressupostos anteriores); e (2) critérios de diagnóstico (estado de coma profundo com escala de coma de Glasgow de 3 pontos, ausência de todos os reflexos dependentes do tronco cerebral - reflexos fotomotores, corneanos, oculocefálicos, oculovestibulares e reflexo faríngeo -, ausência de respiração espontânea - prova da apneia).(33 Brain Death Diagnostic Guide. Acta Med Port. 1998; 11: 91-5.)

Para verificação da ME, foram realizados, no mínimo, dois conjuntos de provas, com intervalo adequado à situação clínica e à idade, sendo, no adulto, o intervalo mínimo previsto de 2 horas.(33 Brain Death Diagnostic Guide. Acta Med Port. 1998; 11: 91-5.) Em dezembro de 2017, o Conselho Federal de Medicina do Brasil publicou os novos critérios de ME, definindo um intervalo mínimo de 1 hora entre a realização dos dois conjuntos de provas nos adultos,(77 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.173, de 23 de Novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Diário Oficial da União, 15/12/2017. Edição 240, Seção 1.) mas, neste estudo, foram usados os critérios antigos.

Foram considerados PDO os doentes vítima de catástrofe neurológica com confirmação de ME, designando-se DEO após realização da captação de órgãos ou tecidos ou DNEO no caso daqueles que apresentavam fatores de exclusão absolutos para a doação ou condições intraoperatórias desfavoráveis.

Consideraram-se DCE todos aqueles com idade superior a 60 anos ou entre os 50 e os 59 anos na presença de dois dos três critérios seguintes: hipertensão arterial, morte de causa vascular ou creatinina sérica superior a 1,5mg/dL.

A análise estatística dos dados foi efetuada com recurso ao software Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 24.0. Foram usados os seguintes testes: teste t de Student (paramétrico) ou teste de Mann-Whitney (não paramétrico), para comparação de duas amostras independentes (comparação de idades por sexo ou tipo de doador - DCE e demais); teste do qui-quadrado, para relacionar variáveis nominais (sexo e causas de ME); teste de Kruskaal-Wallis (não paramétrico), para testar diferenças entre três ou mais grupos em amostras independentes (idade e causas de ME, tempo e causas de ME); coeficiente de correlação Rô de Spearman, para comparação de variáveis escalares após verificação de sua distribuição não normal (número de órgãos captados e idade, tempo e número de órgãos captados); correlação de Pearson, para comparação de variáveis numéricas (número de órgãos captados e idade em cada tipo de doador - DCE e demais). Considerou-se estatisticamente significativo valor de p < 0,05 (intervalo de confiança de 95%).

RESULTADOS

Foram admitidos 92 PDO no período de 2010 a 2015, com maior número de casos registados nos últimos 2 anos (Figura 1). Registaram-se oito DNEO (8,7%) e 84 DEO (91,3%). Os motivos para os DNEO foram: um por inscrição no Registo Nacional de Não Doadores (RENNDA); um caso de infeção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana; um por diagnóstico de encefalite herpética; os outros cinco por recusa intraoperatória (dois por evidência macroscópica de tumor; três pelo aspecto macroscópico e má perfusão dos órgãos). Em seguida, descrevem-se detalhadamente os resultados obtidos para os PDO e os DEO.

Figura 1
Distribuição do número de potenciais doadores e doadores efetivos de órgãos no período de 2010 - 2015 e respectivas caraterísticas.

DCE - doador de critérios expandidos; DEO - doador efetivo de órgãos; TCE - traumatismo craniencefálico; PDO - potencial doador de órgãos; AVC - acidente vascular cerebral.


Potenciais doadores de órgãos

A média de idade dos PDO foi de 60,7 ± 13,5 anos, sendo superior no sexo feminino (64,0 ± 14,3 anos) em relação ao masculino (57,8 ± 12,3 anos) (p = 0,071). Ao longo dos anos, verificou-se oscilação da média de idade, sem tendência linear.

Relativamente à distribuição por sexo, 43 eram do sexo feminino (46,7%) e 49 do masculino (53,7%).

Em todos os casos, o diagnóstico de ME foi estabelecido apenas com base nos testes clínicos.

No que diz respeito às causas de ME, o acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico foi a causa mais frequente (55,4%), seguindo-se do AVC isquêmico (17,4%), do TCE (14,1%), da encefalopatia anóxica pós-parada cardiorrespiratória (7,6%), do hematoma subdural agudo espontâneo (2,2%), da hemorragia subaracnoideia espontânea (2,2%) e da hidrocefalia secundária à malformação de Chiari tipo 1 (1,1%). O principal mecanismo responsável pelo TCE foi a queda (61,5%), seguindo-se do acidente automobilístico (23,1%) e do projétil de arma de fogo (15,4%). Em todos os DNEO por recusa intraoperatória, a ME foi de etiologia cerebrovascular (AVC isquêmico ou hemorrágico). Em relação às duas principais causas de ME (AVC e TCE), apesar de oscilações porcentuais ao longo dos anos, as causas vasculares foram sempre mais prevalentes.

A média de idade foi inferior nos PDO vítima de TCE (45,8 ± 12,2 anos), seguindo-se o AVC hemorrágico (64,3 ± 11,2 anos) e o isquêmico (67,7 ± 8,9 anos), constatando-se diferenças estatísticas altamente significativas na distribuição das idades pelas causas de ME (p = 0,000).

No que diz respeito à distribuição das principais causas de ME por sexo, a maioria dos TCE foi verificada em homens (76,9%); no AVC isquêmico, houve ligeira predominância do sexo feminino (56,2%) em relação ao masculino (46,8%); no AVC hemorrágico, verificou-se o oposto: 54,9% eram do sexo masculino e 45,1% do feminino. Não se constataram diferenças estatisticamente significativas entre o sexo e a causa de ME (p = 0,191).

Foi avaliado também o grupo sanguíneo ABO e Rh dos PDO, verificando-se que o mais frequente foi o A Rh+ (43,5%), seguindo-se de: O Rh+ (30,4%), O Rh- (13,0%), A Rh- (8,7%), B Rh+ (3,3%), AB Rh+ (1,1%). Não houve caso dos grupos sanguíneos B Rh- e AB Rh-.

As comorbidades encontradas na amostra foram hipertensão arterial (43,3%), fibrilação auricular (FA) (34,8%), história de alcoolismo (18,5%), diabetes mellitus (15,2%), dislipidemia (13,0%), doença coronária e/ou cerebrovascular (6,5%) e história de tabagismo (6,5%). O número médio de comorbilidades variou entre 0,8 e 2,0 por cada PDO. Cerca de um terço dos PDO (34,8%) apresentava pelo menos duas comorbidades, e 13,0% apresentavam pelo menos três. Nos PDO vítima de TCE, 69,2% não apresentavam comorbilidades.

Em relação à proveniência dos doentes, mais de metade (60,9%) foi admitida a partir do Serviço de Urgência (SU); os demais provinham da unidade de AVC (21,7%), enfermarias (7,6%), bloco operatório (6,5%) ou UCI coronária (3,3%).

O tempo médio desde a admissão na UCI até ao diagnóstico de ME foi de 32 horas e 8 minutos (± 29 horas e 28 minutos). Em relação às três principais causas de ME, o tempo médio foi de 29 horas e 10 minutos (± 29 horas e 28 minutos) no TCE, 30 horas e 7 minutos (± 24 horas e 18 minutos) no AVC hemorrágico e 31 horas e 16 minutos (± 28 horas e 42 minutos) no AVC isquêmico. Não se verificou diferença estatisticamente significativa entre o tempo referido e a causa de ME (p = 0,948).

Doadores efetivos de órgãos

A média de idade dos DEO foi inferior à dos PDO (59,7 ± 13,3 anos), tendo-se verificado também média de idade superior no sexo feminino (62,3 ± 14,0 anos) em relação ao masculino (57,4 ± 12,4 anos) (p = 0,089). Nos últimos 3 anos verificou-se tendência decrescente da média de idade.

A distribuição por sexo foi semelhante à dos PDO: 39 DEO (46,4%) correspondiam ao sexo feminino e 45 (53,6%) ao masculino.

Dos 84 DEO, a maioria (59,5%) era constituída por DCE: 43 (51,2%) com idade superior a 60 anos e 7 (8,3%) com idade entre 50 e 59 anos e 2 dos critérios referidos (presença de hipertensão arterial e AVC como causa de ME em todos os casos). A média de idade dos DCE (68,6 ± 7,7 anos) foi superior à dos demais DEO (46,5 ± 7,7 anos; p = 0,000). Nos DCE, a média de idade foi também superior no sexo feminino (70,6 ± 7,9 anos) em relação ao masculino (66,5 ± 7,0 anos, p = 0,057).

Os órgãos captados com maior frequência foram os rins (84,5%) e o fígado (66,7%), seguindo-se de coração (22,6%), pulmões (9,5%) e pâncreas (7,1%) (Tabela 1). Em três dos DEO foi realizada apenas a captação de tecidos. No período analisado, foram captados 236 órgãos, com razão de órgãos por doador de 2,8 (Tabela 2). Anualmente, as razões de órgãos por doador variaram entre 2,2 e 3,1, e nem sempre razões mais elevadas estiveram associadas a doadores de idades médias inferiores. Nos DCE, a razão de órgãos captados foi inferior em relação à dos demais DEO (2,3 ± 1,0 órgãos por doador versus 3,5 ± 1,7 órgãos por doador; p = 0,001).

Tabela 1
Coleta de órgãos realizada e respectiva distribuição pelos doadores efetivos de órgãos
Tabela 2
Comparação entre os dados nacionais e os do centro hospitalar estudado no período de 2010 – 2015 relativos aos doadores efetivos de órgãos

Foram captados tecidos em 68 DEO (81,0%). As córneas foram o tecido mais frequentemente captado (77,9%), seguindo-se dos vasos sanguíneos (55,9%) e das válvulas cardíacas (2,9%).

O intervalo de tempo desde o diagnóstico de ME até à captação de órgãos foi de 5 horas e 39 minutos (± 3 horas e 18 minutos), e o tempo médio total de permanência na UCI foi de 37 horas e 47 minutos (± 29 horas e 4 minutos).

Verificaram-se correlações negativas estatisticamente significativas entre o número de órgãos captados e a idade dos DEO, ou seja, quanto maior a idade, menor o número de órgãos captados (Rô = -0,450; p = 0,000), e também entre a razão de órgãos captados e a idade no grupo dos DCE (p = 0,000) e nos demais DEO (p = 0,028).

Verificou-se correlação positiva, mas sem significância estatística, entre o tempo de permanência na UCI e o número de órgãos captados, ou seja, quanto maior o tempo, maior o número de órgãos captados (Rô = 0,091, p = 0,408).

DISCUSSÃO

Houve predomínio de PDO do sexo masculino e que apresentavam idades médias inferiores. A principal etiologia para a ME foi a doença cerebrovascular, que esteve associada a idades médias superiores. As principais comorbilidades encontradas foram a hipertensão arterial e FA - ambas fatores de risco para ocorrência de doenças cerebrovasculares. A maioria dos DEO foram DCE, e, nestes últimos, a razão de órgãos por doador foi inferior. Os rins e o fígado foram os órgãos captados com maior frequência, e o número de órgãos captados variou inversamente em relação à idade.

Estudo publicado em 2013 aponta para mudança no perfil dos DEO ao demonstrar que a principal causa de ME foi o AVC (55%), deixando em segundo lugar as causas traumáticas (35%).(88 Rodrigues SL, Ferraz Neto JB, Sardinha LA, Araujo S, Zambelli HJ, Boin IF, et al. Profile of effective donors from organ and tissue procurement services. Rev Bras Ter Intensiva. 2014;26(1):21-7.)

Os dados existentes na literatura sobre a caraterização de PDO ou DEO são escassos, limitando a comparação da nossa amostra com outras séries. No entanto, achamos pertinente comparar alguns resultados com a realidade nacional, de acordo com os dados do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST).(99 Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) Dados estatísticos. Relatório de atividade transfusional e sistema Português de hemovigilância 2015 [Internet]. Disponível em: http://www.ipst.pt/index.php/profissionais/dados-estatisticos
http://www.ipst.pt/index.php/profissiona...
)

O número de DEO na nossa amostra aumentou paulatinamente nos últimos anos e com representatividade crescente nos dados nacionais. Quando comparamos os anos de início e fim do período analisado, vemos que, de fato, houve um aumento da média de idade na nossa amostra e a nível nacional, embora tal aumento não tenha sido linear ao longo dos anos.

A maioria dos PDO e DEO pertencia ao sexo masculino, apresentando médias de idade inferiores em relação ao sexo feminino, o que pode ser justificado pelo maior risco cardiovascular presente no sexo masculino, em idades habitualmente mais jovens. Outro fator também implicado diz respeito à esperança média de vida ser superior no sexo feminino. A média de idade foi inferior nos PDO vítimas de TCE, dados também já esperados, uma vez que as causas traumáticas representam eventos súbitos e inesperados, em oposição às causas médicas, que habitualmente surgem em doentes já com comorbilidades e, inevitavelmente, com idades mais avançadas.

Tal como se verifica a nível nacional,(99 Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) Dados estatísticos. Relatório de atividade transfusional e sistema Português de hemovigilância 2015 [Internet]. Disponível em: http://www.ipst.pt/index.php/profissionais/dados-estatisticos
http://www.ipst.pt/index.php/profissiona...
) também na nossa amostra as causas médicas foram as responsáveis pela maioria dos casos de ME, sendo as etiologias traumáticas menos frequentes. No entanto, acreditamos que, na nossa amostra, as causas traumáticas estão subrepresentadas, pois, durante vários anos, os doentes vítima de TCE eram referenciados para outros centros por indisponibilidade de equipes de neurocirurgia.

A principal causa de ME foi o AVC, o que se verifica na população geral, na qual as doenças cerebrovasculares representam a principal causa de morte em Portugal.

No que diz respeito ao grupo sanguíneo ABO, a maioria dos PDO pertencia aos grupos A (52,2%) e O (43,4%), o que vai ao encontro da distribuição dos grupos sanguíneos na população portuguesa.(1010 Duran JA, Chabert T, Rodrigues F, Pestana D. Distribuição dos grupos sanguíneos na população portuguesa. ABO. 2007;29(Jan/Mar):5-17.)

Atendendo ao fato de a principal causa de ME ser a doença cerebrovascular, já era esperado que todas as comorbilidades encontradas representassem fatores de risco para sua ocorrência. Ainda, a história de alcoolismo apresenta números importantes na nossa amostra, provavelmente como consequência da região vinícola (Dão Lafões e Douro) em que o distrito de Viseu se insere.

Em relação à proveniência, já era esperado que o principal local fosse o SU, o qual constitui a principal porta de entrada hospitalar para doentes vítimas de traumatismo ou doença súbita.

Na nossa amostra, obtivemos elevada taxa de aproveitamento dos PDO, uma vez que a lei portuguesa assenta no consentimento presumido de doação. Como tal, são considerados como potenciais doadores post mortem todos os cidadãos nacionais e os apátridas e estrangeiros residentes em Portugal que não tenham manifestado junto do Ministério da Saúde sua qualidade de não doadores.(1111 Portugal. Lei nº 22, de 29 de junho de 2007. Transpõe parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva nº 2004/23/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março, alterando a Lei nº 12/93, de 22 de abril, relativa à colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana. Diário da República n.º 124/2007, Série I de 2007-06-29:4146-4150.)

Os rins e o fígado representaram os órgãos captados em maior número, estando de acordo com os dados nacionais,(99 Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) Dados estatísticos. Relatório de atividade transfusional e sistema Português de hemovigilância 2015 [Internet]. Disponível em: http://www.ipst.pt/index.php/profissionais/dados-estatisticos
http://www.ipst.pt/index.php/profissiona...
) o que pode ser explicado pela porcentagem de DCE em nossa amostra.

A avaliação do tempo de permanência dos PDO na UCI permite fazer uma reflexão sobre o consumo de recursos materiais e humanos. Estando esta UCI inserida em um hospital "doador", mas não "transplantador", é importante referirmos que o tempo decorrido desde a verificação da ME até à realização da captação depende da disponibilidade das equipes de captação, bem como do tempo necessário para sua deslocação.

Apesar dos resultados obtidos, o estudo teve várias limitações: sendo retrospetivo, não podemos excluir o viés de referenciação dos doentes vítimas de catástrofe neurológica à equipe da UCI ou à Coordenadora Hospitalar de Doação, uma vez que esta referenciação cabe a cada profissional e tem por base a tomada individual de decisões. Outra das limitações é o tamanho da amostra, que limita as conclusões do estudo e impede que se detectem diferenças relevantes nos resultados infrequentes. No entanto, o fato de vários resultados serem concordantes com os dados nacionais sugere-nos que nossa amostra é representativa. Também não foi possível saber quantos destes órgãos captados foram transplantados e qual a sobrevivência dos enxertos, o que certamente acrescentaria dados relevantes.

CONCLUSÃO

O atual potencial doador de órgãos é doador falecido por morte encefálica, vítima de acidente vascular cerebral hemorrágico, proveniente do Serviço de Urgência, do sexo masculino e com média de idade entre os 56,6 e 66,2 anos, do grupo sanguíneo A Rh+, com antecedentes de hipertensão arterial, que se torna doador efetivo de órgãos, mas com critérios expandidos. Em geral, são captados os rins e o fígado, sendo doados, em média, entre dois a três órgãos.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editor responsável: Glauco Adrieno Westphal

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018
  • Data do Fascículo
    Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2017
  • Aceito
    03 Mar 2018
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