Acessibilidade / Reportar erro

Hemorragia intracraniana espontânea em pediatria: relato de paciente hemofílico que sobreviveu devido a cisto cerebral

RESUMO

Relatamos o caso de um uma criança de 2 anos de idade que sobreviveu após um episódio agudo de hemorragia intracraniana espontânea grave com sinais clínicos e radiológicos de hipertensão intracraniana e herniação transtentorial. O paciente foi para cirurgia de urgência para drenagem do hematoma, sendo inserido um cateter para monitorar a pressão intracraniana. Na análise da tomografia de crânio inicial, antes da drenagem do hematoma, constatou-se um cisto cerebral contralateral ao hematoma que, segundo análise do neurocirurgião e do neuroradiologista, possivelmente evitou um desfecho pior, visto que o cisto serviu de acomodação para o cérebro após a hemorragia maciça. Após investigação, constatou-se tratar de um caso de hemofilia tipo A sem diagnóstico prévio. O paciente foi tratado em terapia intensiva com controle da pressão intracraniana, reposição de fator VIII e obteve alta sem sequelas neurológicas evidentes.

Descritores:
Hemorragias intracranianas; Herniação transtentorial; Hipertensão intracraniana/etiologia; Hemofilia A/complicações; Tomografia computadorizada por raios x; Criança; Relatos de casos

ABSTRACT

We report the case of a 2-year-old child who survived an acute episode of severe spontaneous intracranial hemorrhage with clinical and radiological signs of intracranial hypertension and transtentorial herniation. The patient underwent emergency surgery to drain the hematoma, and a catheter was inserted to monitor intracranial pressure. In the initial computed tomography analysis performed prior to hematoma drainage, a brain cyst was evident contralateral to the hematoma, which, based on the analysis by the care team, possibly helped to avoid a worse outcome because the cyst accommodated the brain after the massive hemorrhage. After the investigation, the patient was determined to have previously undiagnosed hemophilia A. The patient underwent treatment in intensive care, which included the control of intracranial pressure, factor VIII replacement and discharge without signs of neurological impairment.

Keywords:
Intracranial hemorrhages; Intracranial pressure; Intracranial hypertension/etiology; Hemophilia A/complications; Tomography, x-ray computed; Child; Case reports

INTRODUÇÃO

Hemorragia intracraniana (HIC) aguda grave é um evento potencialmente fatal com alta morbidade e mortalidade.(11 Ko SB, Choi HA, Lee K. Clinical syndromes and management of intracerebral hemorrhage. Curr Atheroscler Rep. 2012;14(4):307-13.,22 Beslow LA, Ichord RN, Gindville MC, Kleinman JT, Bastian RA, Smith SE, et al. Frequency of hematoma expansion after spontaneous intracerebral hemorrhage in children. JAMA Neurol. 2014;71(2):165-71.) Está associada ao aumento agudo da pressão intracraniana (PIC), sendo que conforme o hematoma aumenta, a PIC se eleva, determinando sintomas inespecíficos como cefaleia, náusea, vômito e alteração do nível da consciência. A expansão da HIC pode resultar em herniação transtentorial, causando deterioração neurológica e perda do reflexo pupilar.(33 Furie K, Feldmann E. Treating intracerebral hemorrhage effectively in the ICU. The key steps: provide supportive care and determine the cause. J Crit Illn. 1995;10(11):794-6, 799-800, 803-4.) Convulsões são frequentes nos casos de HIC em pediatria.(44 Tasker RC. Intracranial pressure and cerebrovascular autoregulation in pediatric critical illness. Semin Pediatr Neurol. 2014;21(4):255-62.)

Relatamos o caso de uma criança de 2 anos de idade que apresentou um episódio agudo de HIC grave com sinais de hipertensão intracraniana. A causa da HIC revelou ser hemofilia tipo A. O que chamou atenção neste caso foi um cisto cerebral evidenciado na tomografia computadorizada inicial. A hipótese da equipe assistencial era a de que o cisto fosse responsável por minimizar a PIC e evitar herniação transtentorial de graves consequências.

O paciente foi tratado com drenagem do hematoma e monitoração da PIC na unidade de terapia intensiva (UTI), além da administração de fator VIII, tendo recebido alta sem sequela neurológica evidente.

RELATO DE CASO

Criança de 2 anos de idade, 12kg, sexo masculino, descendência nipônica, com queixa de sonolência há 1 dia, foi avaliado no pronto atendimento. Paciente não apresentava história de internações anteriores, nem comorbidades, tinha a carteira de vacinação atualizada. Os pais não relatavam qualquer doença prevalente na família. No atendimento inicial, o paciente apresentava-se sonolento, hipocorado +/4, eupneico, afebril, respondendo aos estímulos táteis com choro, pressão arterial de 100 x 40mmHg e glicemia capilar de 130mg%. Foi prescrita reposição volêmica de 20mL/kg com solução salina a 0,9% e foram realizados exames laboratoriais na admissão. A hipótese diagnóstica inicial foi de intoxicação exógena, apesar de os pais negarem qualquer possibilidade.

Enquanto estava em observação clínica na emergência, apresentou convulsão tônico-clônica generalizada com cianose labial e queda da saturação de oxigênio até 94%, com duração de aproximadamente 1 minuto. O médico assistente descreveu paciente não responsivo ao estímulo verbal, sem abertura ocular espontânea, pupila esquerda midriática e não fotorreagente, estando a pupila direita isocórica com fotorreação contralateral e ipsilateral, sem sinais meníngeos. Foi realizada tomografia computadorizada de crânio de urgência (Figura 1), na qual foi constatada hemorragia subdural contornando o hemisfério cerebral esquerdo, heterogênea, com aparente sangramento em atividade, exibindo espessura máxima estimada em aproximadamente 2,7cm na região frontal; exercendo marcante efeito compressivo sobre o parênquima cerebral vizinho; promovendo desvio da linha média para a direita em aproximadamente 1,9cm ao nível do septo pelúcido, com sinais de herniação subfalcina do giro do cíngulo, e transtentorial descendente e lateral (uncal e para-hipocampal); comprimindo de maneira significativa o mesencéfalo. Verificavam-se os II e IV ventrículos com dimensões bastante reduzidas, devido ao efeito compressivo determinado pelas herniações cerebrais. A tomografia computadorizada revelou ainda uma lesão de aspecto cístico, aparentemente sequelar, comprometendo o lobo frontal direito.

Figura 1
Tomografia computadorizada de crânio inicial: evidência do cisto cerebral à direita e hemorragia intracraniana à esquerda (setas), com sinais de hemorragia intracraniana e desvio da linha média.

Nesse ínterim, houve deterioração do estado neurológico do paciente e a escala de coma de Glasgow diminuiu para 6, tendo sido intubado com sequência rápida; foi iniciada ventilação mecânica. O neurocirurgião foi acionado e procedeu à drenagem do hematoma com urgência e à instalação de cateter de PIC. Os exames de admissão revelaram um tempo de protrombina de 13,4 segundos com internacional normalized ratio (INR) de 0,97 e tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa) de 94 segundos (relação paciente/normal: 2,63). Demais exames dentro da normalidade. A mãe foi questionada sobre sangramentos anteriores e relatou uma ocasião em que, em uma coleta de exames de rotina, a criança apresentou um hematoma importante no local de punção. Na ocasião foi orientada a procurar um médico, mas não o fez.

O paciente foi transferido para a UTI pediátrica, onde permaneceu em ventilação mecânica, modo pressão controlada, com uso de capnógrafo, tendo como alvo a tensão de dióxido de carbono no final da expiração (EtCO2) entre 35 e 45mmHg, evitando também a hiperóxia. Recebia sedoanalgesia com tiopental (60mcg/kg/minuto), fentanil (4mcg/kg/minuto) e midazolam (0,4mcg/kg/minuto). Recebeu hidantal em dose de ataque de 15mg/kg e dose de manutenção de 5mg/kg/dia. Recebia ainda noradrenalina (0,2mcg/kg/minuto) para manter a pressão de perfusão cerebral entre 40 e 65mmHg. Foram instalados um cateter central de inserção periférica em veia basilar direita e um cateter venoso central de duplo lúmen 4F em veia jugular interna direita. O paciente permaneceu em jejum, recebendo soro de manutenção isotônico com 100mL/kcal e eletrólitos basais no primeiro dia, sendo que, no segundo dia, foi iniciada nutrição parenteral total. A PIC foi monitorada com objetivo de mantê-la abaixo de 20mmHg.

Exames foram repetidos: INR de 0,99; TTPa de 80 segundos, com relação paciente/nomal (P/N) de 2,37; e fibrinogênio de 328mg/dL (normal: 200 - 400mg/dL). O paciente foi avaliado pela equipe de hematologia pediátrica, sendo dosados os fatores VIII (23%; normal: 57% - 192%) e inibidor de fator VIII (indetectável), revelando um quadro de hemofilia tipo A. Iniciamos reposição intravenosa imediata de fator VIII.

No terceiro dia de internação, iniciou-se a redução do tiopental auxiliado por eletroencefalografia contínua.

O paciente foi extubado com sucesso no 19º dia de internação. Evoluiu com ptose palpebral a esquerda. Gradativamente recuperou as habilidades motoras e intelectuais, voltou a falar normalmente e houve diminuição da ptose. Na tomografia computadorizada de crânio controle (Figura 2) nota-se a nova arquitetura cerebral com reacomodação do parênquima cerebral, sem sinais de hematomas. Atualmente o paciente é acompanhado em ambulatório especializado em pacientes hemofílicos.

Figura 2
Tomografia computadorizada de crânio antes da alta hospitalar evidenciando o remodelamento cerebral.

DISCUSSÃO

HIC espontânea apresenta alta mortalidade e morbidade.(55 van Asch CJ, Luitse MJ, Rinkel GJ, van der Tweel I, Algra A, Klijn CJ. Incidence, case fatality, and functional outcome of intracerebral haemorrhage over time, according to age, sex, and ethnic origin: a systematic review and meta-analysis. Lancet Neurol. 2010;9(2):167-76.) A incidência é estimada em 24,6 casos por 100 mil pessoas por ano, com taxa de mortalidade de 40% em 1 mês e 54% em 1 ano, sendo que apenas 12% a 39% dos pacientes recuperam a independência funcional a longo prazo.(55 van Asch CJ, Luitse MJ, Rinkel GJ, van der Tweel I, Algra A, Klijn CJ. Incidence, case fatality, and functional outcome of intracerebral haemorrhage over time, according to age, sex, and ethnic origin: a systematic review and meta-analysis. Lancet Neurol. 2010;9(2):167-76.) HIC espontânea representa 50% dos acidentes vasculares cerebrais em crianças, enquanto perfaz apenas 15% nos adultos. Em adultos, hipertensão arterial é a causa mais comum de HIC, enquanto em crianças, fatores secundários como malformações vasculares causam HIC, embora existam poucos estudos na pediatria.(66 Beslow LA, Licht DJ, Smith SE, Storm PB, Heuer GG, Zimmerman RA, et al. Predictors of outcome in childhood intracerebral hemorrhage: a prospective consecutive cohort study. Stroke. 2010;41(2):313-8.) A HIC é importante causa de morbidade e mortalidade na hemofilia com incidência de 2,2 - 7,5%.(77 Ghosh K, Nair AP, Jijina F, Madkaikar M, Shetty S, Mohanty D. Intracranial haemorrhage in severe haemophilia: prevalence and outcome in a developing country. Haemophilia. 2005;11(5):459-62.) A reposição de concentrado de fator de coagulação, neurocirurgia de urgência e manejo rápido e adequado das vias aéreas é essencial nos pacientes comatosos.(77 Ghosh K, Nair AP, Jijina F, Madkaikar M, Shetty S, Mohanty D. Intracranial haemorrhage in severe haemophilia: prevalence and outcome in a developing country. Haemophilia. 2005;11(5):459-62.) Uma abordagem multidisciplinar, envolvendo hematologistas, neurocirurgia e intensivistas, é crucial para um desfecho favorável. A diminuição da mortalidade em 30 dias está possivelmente relacionada à introdução de protocolos de investigação, ao diagnóstico precoce e a estratégias de manejo desses pacientes em ambientes de UTI com monitorização.(88 Morgenstern LB, Hemphill JC 3rd, Anderson C, Becker K, Broderick JP, Connolly ES Jr, Greenberg SM, Huang JN, MacDonald RL, Messé SR, Mitchell PH, Selim M, Tamargo RJ; American Heart Association Stroke Council and Council on Cardiovascular Nursing. Guidelines for the management of spontaneous intracerebral hemorrhage: a guideline for healthcare professionals from the American Heart Association/American Stroke Association. Stroke. 2010;41(9):2108-29.,99 Stevens RD, Shoykhet M, Cadena R. Emergency Neurological Life Support: Intracranial Hypertension and Herniation. Neurocrit Care. 2015;23 Supp 2:76-82.)

No caso relatado, o paciente já apresentava sinais de herniação transtentorial na tomografia computadorizada de crânio inicial, dada a grande extensão da hemorragia. Os sinais de deterioração neurológica foram rápidos, seguindo graus cada vez mais acentuados de sonolência, até convulsão e midríase unilateral. O que chama a atenção e foi consenso entre as diversas equipes que deram assistência ao paciente é que o cisto cerebral acomodou as pressões e impediu um desfecho mais trágico para este paciente. Há casos relatados de pacientes com discrasias sanguíneas congênitas que apresentaram cistos cerebrais devido a sangramentos anteriores que reabsorveram.(1010 Mishra P, Naithani R, Dolai T, Bhargava R, Mahapatra M, Dixit A, et al. Intracranial haemorrhage in patients with congenital haemostatic defects. Haemophilia. 2008;14(5):952-5.) Suspeita-se que o cisto cerebral desse paciente possa ter origem em hemorragias antigas, possivelmente ainda no período intrauterino.

CONCLUSÃO

Este relato enfatiza a importância do reconhecimento precoce dos sinais de hemorragia intracraniana em crianças, a busca da causa subjacente e o tratamento imediato pela equipe neurocirúrgica, além da monitorização em unidade de terapia intensiva com protocolos de manejo da hemorragia intracraniana. A hemorragia intracraniana sustentada e a herniação cerebral são urgências neurológicas. Assim como na parada cardiorrespiratória, uma urgência neurológica demanda um algoritmo organizado no atendimento ao paciente grave. O objetivo de ter um protocolo de urgência neurológico é instituir o manejo padronizado, baseado em evidências, para o paciente com hemorragia intracraniana e/ou herniação transtentorial.

Desta forma, mesmo com a extensa hemorragia intracraniana, o paciente não apenas sobreviveu a um evento catastrófico, mas também recuperou suas funções neurológicas adequadamente. O que destacamos deste caso são as imagens da tomografia computadorizada de crânio, nas quais um cisto cerebral parece acomodar as pressões do hematoma e evitou um desfecho dramático.

  • Editor responsável: Jefferson Piva

REFERÊNCIAS

  • 1
    Ko SB, Choi HA, Lee K. Clinical syndromes and management of intracerebral hemorrhage. Curr Atheroscler Rep. 2012;14(4):307-13.
  • 2
    Beslow LA, Ichord RN, Gindville MC, Kleinman JT, Bastian RA, Smith SE, et al. Frequency of hematoma expansion after spontaneous intracerebral hemorrhage in children. JAMA Neurol. 2014;71(2):165-71.
  • 3
    Furie K, Feldmann E. Treating intracerebral hemorrhage effectively in the ICU. The key steps: provide supportive care and determine the cause. J Crit Illn. 1995;10(11):794-6, 799-800, 803-4.
  • 4
    Tasker RC. Intracranial pressure and cerebrovascular autoregulation in pediatric critical illness. Semin Pediatr Neurol. 2014;21(4):255-62.
  • 5
    van Asch CJ, Luitse MJ, Rinkel GJ, van der Tweel I, Algra A, Klijn CJ. Incidence, case fatality, and functional outcome of intracerebral haemorrhage over time, according to age, sex, and ethnic origin: a systematic review and meta-analysis. Lancet Neurol. 2010;9(2):167-76.
  • 6
    Beslow LA, Licht DJ, Smith SE, Storm PB, Heuer GG, Zimmerman RA, et al. Predictors of outcome in childhood intracerebral hemorrhage: a prospective consecutive cohort study. Stroke. 2010;41(2):313-8.
  • 7
    Ghosh K, Nair AP, Jijina F, Madkaikar M, Shetty S, Mohanty D. Intracranial haemorrhage in severe haemophilia: prevalence and outcome in a developing country. Haemophilia. 2005;11(5):459-62.
  • 8
    Morgenstern LB, Hemphill JC 3rd, Anderson C, Becker K, Broderick JP, Connolly ES Jr, Greenberg SM, Huang JN, MacDonald RL, Messé SR, Mitchell PH, Selim M, Tamargo RJ; American Heart Association Stroke Council and Council on Cardiovascular Nursing. Guidelines for the management of spontaneous intracerebral hemorrhage: a guideline for healthcare professionals from the American Heart Association/American Stroke Association. Stroke. 2010;41(9):2108-29.
  • 9
    Stevens RD, Shoykhet M, Cadena R. Emergency Neurological Life Support: Intracranial Hypertension and Herniation. Neurocrit Care. 2015;23 Supp 2:76-82.
  • 10
    Mishra P, Naithani R, Dolai T, Bhargava R, Mahapatra M, Dixit A, et al. Intracranial haemorrhage in patients with congenital haemostatic defects. Haemophilia. 2008;14(5):952-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2015
  • Aceito
    20 Nov 2015
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br