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Análise das diretrizes internacionais sobre Gênero e Turismo e suas ausências nos Planos Nacionais de Turismo do Brasil

Análisis de lineamientos internacionales sobre Género y Turismo y su ausencia en los Planes Nacionales de Turismo de Brasil

Analysis of international guidelines on Gender and Tourism and their absence in the National Tourism Plans of Brazil

Resumo

Em 2010, paralelamente à criação da ONU Mulheres, a Organização Mundial do Turismo, também vinculada à Organização das Nações Unidas, lançou seu primeiro relatório sobre mulheres no turismo. Contendo diretrizes para promover o empoderamento feminino por meio dessa atividade, teve sua segunda edição, ampliada, lançada em 2020. Porém, apesar da difusão das discussões sobre gênero no turismo e, de o Brasil ser, também, Estado signatário da Agenda 2030 (igualmente promovida pela ONU), não percebe-se indícios de melhorias nas relações sociais de gênero no contexto turístico nacional. Assim, apresentamos aqui as duas edições do Global Report On Women In Tourism, organizados pela UNWTO, com destaque para seus apontamentos e recomendações e, analisamos os planos nacionais de turismo publicados no Brasil a partir de 2010, ano de publicação do primeiro relatório. Elegemos o gênero como categoria de análise, especialmente pelas ausências previamente percebidas desse marcador em planos de desenvolvimento turístico. Identificamos, utilizando análise de conteúdo, que as recomendações são imperceptíveis nos PNT’s e, suas ausências impactam negativamente, fortalecendo um processo de desenvolvimento turístico predatório, que se afasta de seu potencial responsável e sustentável.

Palavras-chave
Relações de gênero; Política Nacional de Turismo; Turismo Responsável; Mulheres

Abstract

In 2010, in parallel with the creation of UN Women, the World Tourism Organization, also linked to the United Nations, launched its first report on women in tourism. Containing guidelines to promote women's empowerment through this activity, this document has its second edition, expanded, launched in 2020. However, despite the diffusion of discussions about gender in tourism and, although Brazil is also, Signatory State of Agenda 2030 (also promoted by the UN), there are no signs of improvements in social gender relations in the national tourism context. Thus, we present here the two editions of the Global Report On Women In Tourism, organized by UNWTO, highlighting their notes and recommendations and, we analyze the national tourism plans published in Brazil from 2010, the year of the first report. We chose gender as a category of analysis, especially due to the previously perceived absences of this marker in tourism development plans. We identified, using content analysis, that the recommendations are imperceptible in the NTPs and their absences negatively impact, strengthening a predatory tourism development process, which departs from its responsible and sustainable potential.

Keywords
Gender relations; National Tourism Plan; Responsible Tourism; Women

Resumen

En 2010, paralelamente a la creación de ONU Mujeres, la Organización Mundial del Turismo, también vinculada a Naciones Unidas, lanzó su primer informe sobre la mujer en el turismo. Con lineamientos para promover el empoderamiento de las mujeres a través de esta actividad, este documento tuvo su segunda edición, ampliada, lanzada en 2020. Sin embargo, a pesar de la difusión de discusiones sobre género en el turismo y, aunque Brasil también, Estado signatario de la Agenda 2030 (también impulsada por la ONU), no hay señales de mejoras en las relaciones sociales de género en el contexto turístico nacional. Así, presentamos aquí las dos ediciones del Informe global sobre la mujer en el turismo, organizado por UNWTO, destacando sus notas y recomendaciones y, analizamos los planes nacionales de turismo publicados en Brasil desde 2010, año del primer informe. Elegimos el género como categoría de análisis, especialmente debido a las ausencias previamente percibidas de este marcador en los planes de desarrollo turístico. Identificamos, mediante análisis de contenido, que las recomendaciones son imperceptibles en los PNT y sus ausencias impactan negativamente, fortaleciendo un proceso de desarrollo turístico depredador, que parte de su potencial responsable y sustentable.

Palabras clave
Relaciones de género; Plan Nacional de Turismo; Turismo responsable; Mujeres

1 INTRODUÇÃO

As discussões sobre desenvolvimento turístico tem se aberto, notadamente, a perspectivas cada vez mais humanistas, entendendo a necessidade de expandir ponderações e ações no sentido de buscar inovações responsáveis, para a complexa comunhão entre as pessoas que participam dessa teia. Seja nos diversos processos que compõem sua tessitura, seja usufruindo de suas redes, seja interagindo indiretamente por meio de conexões geográficas, sociais, econômicas, culturais ou outras, as reflexões sobre as diversas articulações entre os atores sociais são imprescindíveis ao processo turístico.

Partindo dos estudos críticos, que contestam a neutralidade positivista do/a pesquisador/a, lembramos, com Panosso e NecharPanosso Netto, A., e Castillo Nechar, M. (2014). Epistemologia do turismo: escolas teóricas e proposta crítica. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, 8(1), pp. 120-144, jan./mar. que,

A crítica busca compreender, construir, interpretar e produzir um sentido novo, um novo significado do objeto de estudo em questão, pois nada é dado que não deva ser e possa ser superado, é um levar-trazer o não dito para o dito, o não enunciado para o enunciado

(2014, p. 134).

Desse modo, ao ponderarmos sobre as possibilidades e, porque não, necessidades, de estudos dos entrelaçamentos sociais presentes nas interações turísticas, podemos inferir que há inúmeras combinações presumíveis, sendo um vasto campo para tais análises. Estas, que se fazem imprescindíveis para ações assertivas na prática cotidiana de atores envolvidos com planejamento e gestão, tanto no âmbito público, quanto privado, de políticas e diretrizes para o desenvolvimento turístico responsável.

Nesse sentido, diversas entidades e instituições buscam, por meio de diferentes mecanismos, incorporar em suas agendas pautas atualizadas que reflitam as necessidades contemporâneas. Dentre essas, observamos o fortalecimento daquelas relacionadas a questões identitárias. Estas, vinculadas historicamente à recente ampliação dos espaços para debates e reivindicações de grupos que têm sido alijados do processo de construção dos discursos dominantes, que alimentam os privilégios e relações de poder nas mais distintas culturas. Nesse cenário, busca-se ponderar e incorporar demandas vinculadas a gêneros, sexualidades, etnias, classes sociais, geração, capacitismo e diversos outros marcadores sociais.

Capitaneando parte dessas ações, que visam orientar práticas e reflexões com vistas a melhorar as condições da vida humana como um todo, a Organização das Nações Unidas (ONU), lançou em 2015 a declaração: “Transformando o Nosso Mundo: Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que pode ser entendida como a atualização da Declaração do Milênio, de 2000. Aquela, atual, é composta por dezessete objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) - que por sua vez se subdividem em 169 metas - a serem perseguidas pelos países signatários de tal documento.

Ao longo dos últimos anos, também na área do turismo, começa a se aprofundar ponderações e recomendações sobre temáticas específicas, que perpassam essa atividade, como as relações sociais de gênero (ODS 05). Embora, ainda em segundo plano, podemos compreender que a partir da produção e divulgação de diretrizes e normativas por parte de influentes instituições internacionais, há significativas contribuições. Essas colaboram tanto para o amadurecimento acadêmico sobre os entrelaçamentos entre turismo e relações sociais de gênero, assim como para que os estados orientem seus/suas agentes e cidadãs/ãos no que se refere a ações responsáveis nesse processo.

Em 2008, o “Report Women Empowerment through Tourism” (Ateljevic, 2008Ateljevic, I. (2008). Women Empowerment Through Tourism. Netherlands: Wageningen University and Research Centre (WUR). Recuperado em 10 de dezembro de 2018, de https://ethics.unwto.org/publication/women empowerment-through-tourism
https://ethics.unwto.org/publication/wom...
) produzido na Wageningen University, na Holanda, inicia as produções de estudos e relatórios desenvolvidos por agências distintas, com a finalidade de estabelecer reflexões sobre como a atividade turística pode ser um vetor de mitigação das iniquidades entre os gêneros, presentes em todas as sociedades humanas.

Destacam-se, sequencialmente, os seguintes documentos: “Global on Women in Tourism” de 2010, da UNWTO (World Tourism Organization). Em 2013 a International Labor Organization (ILO) lança o “International perspectives on women and work in hotels, catering and tourism”. Três anos mais tarde, a União Europeia, por meio do European Institute for Gender Equality (EIGE), divulgou seu relatório “Gender and Tourism”. Já o Banco Mundial lançou o “Tourism for development – Women and Tourism: Designing for inclusion”, elaborado em 2017. Recentemente o WTTC (World Travel & Tourism CouncilWorld Travel & Tourism Council. (2019) Travel & Tourism: Driving Women’s Success. Recuperado em 01 de maio de 2019 de https://www.wttc.org/economic-impact/social impact/driving-womens-success/
https://www.wttc.org/economic-impact/soc...
) publicou o “Travel & Tourism: Driving Women’s Success”, em 2019 e, por fim, houve a segunda edição do “Global Report on Women in Tourism”, da UNWTO (2020)United Nations World Tourism Organization. (2020). Global report on women in tourism: Second edition. Recuperado em 15 de abril de 2020, de https://www.unwto.org/publication/global-report-women-tourism-2-edition
https://www.unwto.org/publication/global...
.

É interessante observar tal tipo de produção em contraponto a produção acadêmica, já que as relações de gênero, passam a figurar, objeto de estudo no campo do turismo a partir dos anos 1980, desde inquietações feministas, tendo como temáticas centrais o turismo sexualmente motivado, a exploração de imagens femininas e o mercado de trabalho (Piscitelli, 2006Piscitelli, A (2006). Gênero, turismo, desigualdades. In: Turismo social- Diálogos do turismo: uma viagem de inclusão. Pp. 205- 245. IBAM.). Posteriormente, novas abordagens foram sendo incorporadas às discussões, como as mulheres viajantes, empreendedorismo feminino, liderança comunitária e tomada de decisões, entre outros. Sendo que, já em 1995, Swain editou um número especial, da Annals of Tourism Research, sobre gênero e turismo, considerado um marco inicial para a área. Porém, no Brasil o campo ainda está amadurecendo, identificando-se certa carência de discussões que explorem as mulheres no processo de desenvolvimento turístico.

Assim, propomos no presente estudo, fazer uma análise crítica, sintetizando as diretrizes presentes nos Global Report on Women in Tourism (GROWIT), 2010 e 2020 da UNWTO, assim como relacioná-los aos Planos Nacionais de Turismo (PNT’s), publicados no Brasil desde 2010. Buscamos, dessa forma, evidenciar como as ausências de reflexões sobre gênero nas diretrizes nacionais, repercutem num processo de desenvolvimento turístico que se distancia de seu potencial sustentável e responsável, alimentando disparidades sociais de diferentes formas.

Para atingir tais objetivos, utilizamos a pesquisa bibliográfica, para construção do arcabouço teórico, que embasa as discussões e reflexões aqui propostas. De modo complementar, recorremos à pesquisa documental, buscando os PNT’s do período delimitado (a partir de 2010 – ano da publicação do primeiro GROWIT), seguida de análise de conteúdo (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70.). Para tanto, foi realizada busca textual das palavras mulher/mulheres; gênero e feminino/a além da leitura dos documentos completos para análise de ocorrências que poderiam dialogar, ainda que sem citar tais categorias. Já em relação aos GROWIT, focamos nos apontamentos e diretrizes relacionados aos eixos estruturais dos relatórios, buscando sistematizar tais categorias, em tabelas, a fim de facilitar o cruzamento com os PNT’s.

Desse modo, o artigo traz uma seção sobre as “Relações Sociais de Gênero no Turismo – discussões e diretrizes”, apresentando nesse item também, os documentos publicados pela UNWTO que norteiam as normativas nessa área. Na sequência trazemos uma breve exposição dos “Planos Nacionais e o Turismo Responsável no Brasil” onde, além de comentar os PNT’s efetivados no Brasil desde 2010, apresentamos os resultados da análise empreendida, identificando se as orientações presentes nas diretrizes específicas sobre gênero e turismo são percebidas nos documentos nacionais. Por fim, nas “Considerações Finais” discutimos alguns apontamentos e conclusões sobre a temática aqui explorada.

2 RELAÇÕES SOCIAIS DE GÊNERO NO TURISMO – DISCUSSÕES E DIRETRIZES

As relações sociais de gênero são inerentes a qualquer cultura, já que versam sobre as interações marcadas socialmente, entre homens e mulheres. Assim, os padrões de tais relações variam de um lugar para outro. Deste modo, o turismo aproxima atores que vivenciam, habitualmente, modus distintos em tais relações, promovendo interações, em diferentes posições, sendo potencial tanto para mitigar iniquidades, quanto para alimentá-las. Daí a necessidade de estudos críticos e, diretrizes, que busquem desenvolver as práticas turísticas de modo responsável.

É válido ponderar que as relações sociais de gênero se fundamentam em diferenças percebidas entre corpos socialmente marcados, distinguindo-os entre masculinos e femininos, independente de seus sexos biológicos. Londa SchienbingerSchienbinger, L. (2001). O feminismo mudou a ciência? EDUSC. esclarece que “gênero denota relações de poder entre os sexos e refere-se tanto a homens quanto a mulheres” (2001, p. 32) enfatizando sua essência relacional, em que pessoas ocupam lugares distintos na sociedade por conta do vetor de poder direcionado a seus corpos e/ou suas inscrições corporais.

Deste modo, também nas teias do turismo as experiências são vivenciadas distintamente entre mulheres e homens, ou, entre corpos feminilizados e masculinizados (e todas as nuances entre uns e outros). Mais do que isso, não se pode deixar de mencionar a interseccionalidade, que torna visível como a sobrescrição de diversos marcadores sociais, como raça/etnia, classe social, geração, capacitismo, e outros, afastam ainda mais o sujeito que os carrega, do acesso e das oportunidades. Ou, nas palavras de CrenshawCrenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, n. 1, p. 171- 188.,

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual racismo, patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento

(2002, p. 177).

Assim, o gênero pode ser compreendido no campo das relaçõe sociais, como um marcador, porque, conforme o corpo mais é identificado como feminino, mais ele “deverá” ocupar um lugar de subalternidade em relação aqueles identificados com o masculino1 1 Aqui delimitamos a discussão nas relações de gênero, por uma questão de foco do artigo, já que, a interseccionalidade de gênero com os demais marcadores sociais, como raça ou sexualidade, por exemplo,.não é enfatizada nos documentos que compõem o objeto de estudo. . Considerando subalterno/a aquela/e pertencente “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal,e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”(Spivak, 2010Spivak, G. (2010). Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Editora da UFMG., p.12). Continuando, ainda, sobre a subalternidade atrelada ao feminino: “mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir” (id, p.15).

A fim de ampliar a discussão, prosseguimos com Guacira LouroLouro, G. (1997). Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós- estruturalista. Vozes., que pondera sobre o quanto essas marcas reverberam dos corpos para as instituições, e vice e versa, estruturando relações desiguais em diversas esferas sociais.

Nessa perspectiva admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes dos gêneros. Estas práticas e instituições fabricam os sujeitos. Busca-se compreender que a justiça, a igreja, as práticas educativas ou de governo, a política, etc. são atravessadas pelos gêneros: essas instâncias, práticas ou espaços sociais são generificados – produzem-se, ou engendram-se, a partir das relações de gênero (mas não apenas a partir dessas relações, e sim, também, das relações de classe, étnicas, etc.).

(1997, p. 25).

Na esteira dessas considerações, compreendemos a necessidade de refletir sobre como as relações de gênero são vivenciadas no meio turístico, buscando interpretar e ressignificar tais relações em seu corpo social e, não individual. Calás et al. (2014)Calás, M., Smircich, L., e Holvino, E. (2014). Theorizing gender-and organization: changing times, changing theories. In: Kumra, S. et.al. (Eds), The Oxford Handbook of Gender in Organizations, pp. 17-52. Oxford University Press. pontuam sobre a mudança do foco das teorias de gênero do indivíduo para as organizações:

Over time, gender theory has progressed from focusing on individual identity to a “gendering organisations” lens: the notion that gendered identities are grounded in gendered systems in the workplace. The advantage of this approach is that, instead of gender being an identifier of individuals it is viewed as “an outcome or co-production of organisational processes”

(Calás et al., 2014Calás, M., Smircich, L., e Holvino, E. (2014). Theorizing gender-and organization: changing times, changing theories. In: Kumra, S. et.al. (Eds), The Oxford Handbook of Gender in Organizations, pp. 17-52. Oxford University Press., p. 20).

É válido salientar que tais práticas são sempre mediadas pelas "constelações de poder" dispersas pelas relações sociais, identificando-se, como já observado anteriormente, que no caso do gênero, as mulheres ocupam os espaços menos valorizados, em distintas culturas e diferentes esferas sociais. Após décadas de articulações de movimentos feministas em diversas frentes, algumas ações, como as “Conferências Mundiais das Mulheres”, passam a ter suas reivindicações cada vez mais respeitadas.

Apoiada pela ONU, a primeira Conferência Mundial das Mulheres, aconteceu em 1975 na Cidade do México, e teve mais três edições (Copenhague, 1980; Nairóbi, 1985; Pequim, 1995). Sempre com pautas universais, evidenciou-se que as discrepâncias entre mulheres e homens, que geram inúmeros modos de violências e prejudicam o desenvolvimento de todas as sociedades, é uma temática relevante no contexto global, culminando com a criação da ONU Mulheres no ano de 2010.

Com o objetivo de “unir, fortalecer e ampliar os esforços mundiais em defesa dos direitos humanos das mulheres” (ONU Mulheres, 2020Organização das Nações Unidas Mulheres. (2020). Sobre a ONU Mulheres. http://www.onumulheres.org.br/onu-mulheres/sobre a-onu-mulheres/
http://www.onumulheres.org.br/onu-mulher...
), atua em diversas frentes junto à sociedade civil e poderes executivos, legislativos e judiciários dos países membros. Nota-se o sucesso de sua articulação quando da elaboração da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, que se propõe a ser um plano de ações para a busca de desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza.

Como já citado anteriormente, o ODS 05 versa especificamente sobre as questões de gênero - Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Esse traz nove metas focadas em: acabar com todas formas de discriminação e violência contra mulheres e meninas; ressignificação dos trabalhos domésticos não remunerados; participação de mulheres nos processos de liderança e tomada de decisão; acesso universal de mulheres a saúde sexual e reprodutiva; garantias de direitos iguais a recursos econômicos e financeiros; uso de tecnologias para empoderamento feminino; políticas e legislações para igualdade de gênero e empoderamento das mulheres. (ONU, 2015Organização das Nações Unidas. (2015). Agenda 2030 (Traduzido pelo UNIC Rio). Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/Agenda2030-completo site.pdf
http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_de...
)

Evidentemente são metas audaciosas para serem atingidas nos próximos dez anos, especialmente se observarmos os retrocessos sociais que tem acontecido em diversas sociedades. Porém, a presença de tais metas, num documento amplo, chancelado pela Organização das Nações Unidas, mais do que refletir o estado deteriorado das relações sociais de gênero contemporâneas, representa um grande avanço no campo das discussões de gênero, feminismo e direitos das mulheres. Mais ainda, estimula o debate e potencializa métodos e procedimentos para mitigar as injustificadas iniquidades entre homens e mulheres nos mais distintos contextos.

Assim, iniciativas como a da UNWTO, que já em 2010 tinha publicado a primeira edição do GROWIT são amplificadas e reverberam positivamente em outras esferas e instituições, criando um arcabouço interessante de análises e diretrizes baseadas nas mais diversas formações culturais, tão caras ao processo de desenvolvimento turístico responsável. Como nos lembra PritchardPritchard, A. (2014). Gender and Feminist Perspectives in Tourism Research. In: Lew, Alan A. et al. (orgs). The Wiley Blackwell Companion to Tourism, pp. 314-324. John Wiley & Sons, “Tourism processes are gendered in their construction, presentation, and consumption in multifaceted ways; gendered societies shape gendered tourism practices, which in turn shore up those gendered societies” (2014, p.314). Ou seja, para romper esse processo contínuo de manutenção das disparidades entre os gêneros, é fundamental dar visibilidade a essas questões e empoderar as parcelas desprivilegiadas, no caso, as mulheres.

Batliwala (1994, p.130)Batliwala, S. (1994). The meaning of women’s empowerment: new concepts from action. In: G. Sen, A. Germain & L.C. Chen (Eds.), Population policies reconsidered: health, empowerment and rights, pp.127-138. Harvard University Press. afirma que “o empoderamento é um processo dirigido para a transformação da natureza e direção das forças sistêmicas que marginalizam as mulheres e outros setores excluídos em determinados contextos”. Complementando com Landerdahl et al. (2013, p. 309)Landerdahl, M., Vieira, L., Cortes, L., Padoin, S. (2013) Empoderamento feminino na construção civil. Esc Anna Nery (UFRJ), vol. 17, n.2, pp. 306-312., ainda sobre o empoderamento: “compreende a alteração radical dos processos e estruturas que reduzem a posição de subordinação das mulheres. As mulheres tornam-se empoderadas por meio da tomada de decisões coletivas e de mudanças individuais”. Nesse sentido, no GROWIT, considera-se que:

If a strong gender perspective is integrated into planning and implementation processes, tourism can be harnessed as a vehicle for promoting gender equality and women’s empowerment at the household, community, national and global level. At the same time, greater gender equality will contribute to the overall quality of the tourist experience, with a considerable impact on profitability and quality across all aspects of the industry

(UNWTO, 2010United Nations World Tourism Organization. (2010). Global report on women in tourism: Preliminary findings. Recuperado em 12 de março de 2019, de http://www2.unwto.org/sites/all/files/pdf/folleto_globarl_report.pdf
http://www2.unwto.org/sites/all/files/pd...
, p.i).

Assim, trazemos aqui uma análise crítica dos dois documentos produzidos pela UNWTO, GROWIT, primeira e segunda edição, a fim de ponderar especificamente sobre suas análises e recomendações. Portanto, podemos refletir tanto sobre os “avanços” ocorridos ao longo dos dez anos que separam uma versão da outra, como, também, verificar se, e quais, recomendações foram incluídas nos PNT’s brasileiros, publicados após 2010.

Como já mencionado, o GROWIT (2010) é um marco na área dos estudos de gênero no turismo, justamente por ser o primeiro documento oficial, produzido por uma instituição de alcance e reconhecimento mundial a trazer reflexões e diretrizes sobre a vivência das mulheres em diferentes esferas da atividade turística. Organizado pela UNWTO em parceria com a UNWOMEN (ONU Mulheres), se estrutura em cinco eixos temáticos principais: emprego, empreendedorismo, educação, liderança e comunidade, sendo seus objetivos iniciais:

i) establish a set of indicators and an indicator framework that could be used to monitor the performance of tourism as a tool for women’s empowerment; and ii) to use the indicators to assess the extent to which tourism is advancing the needs of women in the developing world. The overarching vision for the Global Report on Women in Tourism 2010 is to promote women’s empowerment and protect women’s rights through better tourism work.

(UNWTO, 2010United Nations World Tourism Organization. (2010). Global report on women in tourism: Preliminary findings. Recuperado em 12 de março de 2019, de http://www2.unwto.org/sites/all/files/pdf/folleto_globarl_report.pdf
http://www2.unwto.org/sites/all/files/pd...
, p. i.)

Em tal documento são apresentadas, além das considerações e recomendações relacionadas a cada eixo temático, também algumas análises resumidas de variações regionais (África; América Latina e Caribe; e Ásia – salientando o foco em países em desenvolvimento) e três estudos de caso (Tanzânia, Nepal e Equador). Ou seja, é um documento modesto em sua estrutura, mas bastante inovador em seu conteúdo e direcionamento.

Já a versão atual do GROWIT, contou com mais parceiros para sua elaboração (além da UNWomen, participaram também: World Bank GroupWorld Bank Group. (2017). Tourism for Development, Women and Tourism: Designing for Inclusion. Recuperado em 22 de março de 2019, de http://documents.worldbank.org/curated/en/401321508245393514/Women and-tourism- designing-for-inclusion.
http://documents.worldbank.org/curated/e...
, Amadeus, e German Federal Ministry for Economic Cooperation and Development (BMZ), já demonstrando a ampliação do interesse e repercussão positiva do primeiro relatório.

A edição de 2020 mantém a estruturação nos cinco eixos temáticos anteriores, mas avança significativamente no quesito das análises regionais, que apresentam uma investigação mais rica, além de incorporar a Europa. O documento é complementado por uma seção específica sobre as empresas turísticas (plataformas digitais e tecnologia; hotéis e acomodações; operadoras turísticas e turismo de base comunitária). Por fim, há um incremento considerável nos estudos de caso que somam 25 no total, realizados em 18 países diferentes.

Assim, na tabela 01 apresentamos uma síntese dos apontamentos apresentados em 2010 e 2020 para refletirmos sobre os avanços percebidos no campo das relações de gênero no turismo.

Tabela 01
Principais apontamentos nos “GROWIT” de 2010 e 2020

Na edição de 2010, os apontamentos se apresentam de modo incipiente possibilitando comparações a outros setores. Assim, identificou-se que no turismo as mulheres formavam a maioria do contingente de trabalhadores/as formais, que há uma presença significativa de mulheres entre empregadoras e trabalhadoras por conta própria, além de serem, proporcionalmente, melhor representadas entre os/as ministros/as do que em outras áreas.

Porém, apesar da representatividade, ainda que tímida, ser melhor do que em outros setores, no turismo identificou-se, em 2010, que as mulheres ainda recebiam cerca de 10% a 20% menos que os homens nas mesmas posições, são responsáveis pela maioria dos trabalhos não remunerados e ainda encontravam dificuldades para se posicionar em postos de trabalho mais elevados.

Ou seja, é perceptível que apesar de o turismo ser um setor mais “permeável” à presença feminina, as mulheres não conseguem progredir em suas carreiras ou ter equidade salarial com seus pares masculinos, refletindo as relações díspares de poder entre os gêneros. Carvalho et al.Carvalho, I., Costa, C., Lykke, N., Torres, A. (2019). Beyond the glass ceiling: Gendering tourism management. Annals of Tourism Research, vol 75, p. 79–91., após analisar as barreiras da ascensão profissional feminina no turismo, conclui que:

The identification of gendering processes helped unveil discrimination processes and practices. Overt discrimination was most visible in organising processes related with recruitment, promotions and salaries, organisational culture (discrimination of pregnant women), and gendered interactions (bullying). Hidden discrimination was more subtly ingrained in organisational beliefs and gendered interactions, where inequalities were less visible and harder to pinpoint. The identification of gendering processes was useful to make hidden discrimination more visible, and to conclude that it was more pervasive than overt discrimination

(2019, p. 89).

Já em relação aos apontamentos apresentados na edição de 2020, percebe-se um amadurecimento das análises específicas do setor turístico, embora muitas delas sejam válidas para as sociedades em geral. Nesse sentido, verificou-se que intervenções sensíveis a gênero, direcionadas a atores sociais determinados, ajudam a promover melhores condições de trabalho para as mulheres no turismo. Identificou-se também que suportes orçamentários e institucionais são fundamentais para promover o empoderamento feminino, e que a efetivação de políticas macroeconômicas e jurídicas são necessárias nessa direção.

Outro ponto observado nessa versão é que, treinamentos voltados às relações de gênero para pessoas que trabalham na área, conjuntamente a ações voltadas especificamente para mulheres, tendem a favorecer a minimização das iniquidades percebidas. Assim como, o acesso e o desenvolvimento de tecnologias apropriadas também são favoráveis a essa causa. Por fim, pontua-se que a desagregação de dados do turismo com base no sexo/gênero é essencial para que as políticas e intervenções do setor sejam mais assertivas e eficientes no combate as desigualdades entre mulheres e homens.

Além de tais apontamentos, focados nos eixos norteadores dos documentos aqui analisados, nesta edição foram apresentadas análises regionais, indicando a África como única região que tem ações efetivas de reconhecimento e valorização das mulheres no turismo. Já, na América Latina e Caribe, assim como na Europa e na Ásia, há carência de políticas e ações destacadas para empoderamento das mulheres através do turismo.

Outra seção específica desta edição versa sobre empresas turísticas, apontando que na área de tecnologia da informação as mulheres são sub-representadas (apenas 25% dos empregados em TI e 5% das/os proprietárias/os de startups direcionadas a tecnologia no turismo). Nas empresas de hospedagem, apesar de serem maioria dentre as/os trabalhadoras/es, as mulheres se concentram nos cargos menos reconhecidos social e economicamente.

Já no cenário de agências e operadoras de turismo, identifica-se tanto a diferença salarial baseada em gênero, como também as limitações impostas para as mulheres assumirem determinadas posições em função de seu gênero (guias de turismo), em algumas sociedades. Por fim, percebe-se que o turismo de base comunitária é o tipo de “empreendimento” turístico que mais oferece condições de empoderamento para as mulheres envolvidas.

Assim, apresentamos aqui, ainda, uma síntese das recomendações presentes nesses documentos, propostas a fim de subsidiar ações práticas que auxiliem o empoderamento das mulheres e a consequente mitigação das inequidades de gênero.

Tabela 2
Principais recomendações nos “GROWIT” 2010 e 2020

Comparando as recomendações em uma e outra edição, percebe-se, notadamente, que na última essas são organizadas com meta e ações, tornando-se mais didáticas que aquelas presentes na versão de 2010, embora, muitas recomendações, de certo modo, se repitam. Um ponto que deve ser observado é que as recomendações são dirigidas especificamente às mulheres presentes na cadeia produtiva do turismo, não as considerando enquanto consumidoras de seus produtos e serviços.

Assim, no que se refere a área temática “trabalho”, percebe-se que as recomendações em ambas edições seguem os mesmos princípios. Propõem-se melhorias nas condições de trabalho para as mulheres, incluindo proteções legais voltadas ao emprego feminino e, também, à flexibilização referente a licenças maternidade e para cuidados, além da necessidade de eliminar as diferenças salariais entre mulheres e homens. Essas, apesar de serem ações fundamentais, parecem estar voltadas apenas a “igualar” as mulheres aos homens numa perspectiva liberal, não refletindo aspirações mais profundas para revisão da arraigada divisão sexual do trabalho e dos papéis sociais de mulheres e homens.

Porém, na versão de 2020, há avanços interessantes, que consideram a necessidade de organização sindical das mulheres e, também o combate a exploração e ao assédio sexual na área do turismo, além de pontuar, claramente, a necessidade de providências para erradicar a segregação vertical e horizontal de gênero.2 2 A segregação horizontal se dá pela divisão de homens e mulheres em diferentes funções e áreas de atividades, enquanto a vertical se refere a diferenciações vivenciadas que impedem ou dificultam o acesso de mulheres a determinadas posições hierárquicas, faixas de remuneração e outros. Para mais detalhes, consultar Hakim (1979)

No eixo sobre “empreendedorismo”, enquanto na primeira edição cita-se a necessidade de garantir acesso das mulheres ao crédito, à terra e à propriedade, além de treinamentos e recursos, na segunda mantém-se a mesma perspectiva quando fala em criar oportunidades e expandir o acesso ao mercado. Porém, especifica-se, ainda, recomendações para diversificação de acesso ao mercado, introdução de medidas para cuidado infantil e demais trabalhos não remunerados relegados às mulheres, facilitação para formalização dos negócios delas e para um ambiente macroeconômico sensível ao gênero. Este último fundamental para mudanças reais nas condições de vida das mulheres.

No que se refere às recomendações no eixo da “educação”, basicamente se repetem as linhas gerais da primeira versão, que versam sobre promover a participação feminina na educação e treinamentos na área do turismo e melhorar o nível educacional daquelas que já atuam no setor. Cita-se, inclusive, treinamentos para altos níveis, visando progressão na carreira, ou com focos mais diversificados como soft skills e networking. Porém, é válido ressaltar que as próprias instituições de educação reproduzem as segregações horizontais e verticais de gênero, inclusive na área do turismo, como aponta Gewinner (2020)Gewinner, I. (2020), "Gendered and diversified? Leadership in global hospitality and tourism academia". International Journal of Contemporary Hospitality Management, Vol. 32 No. 6, pp. 2257- 2282. https://doi.org/10.1108/IJCHM-07-2019-0621
https://doi.org/10.1108/IJCHM-07-2019-06...
. Desse modo, percebe-se a necessidade de refletir sobre gêneros também ao longo do processo de formação de futuros/as profissionais.

Nesse eixo, há ainda um grande avanço percebido nas proposições de 2020, em relação à versão anterior. Refere-se ao incentivo para treinamentos para igualdade de gênero em todo setor de turismo, reforçando que devem ser contemplados/as desde formuladores/as de políticas, passando por gerentes e demais empregados/as. Essa é uma recomendação que se destaca, pois o empoderamento feminino com vistas à mitigação das iniquidades de gênero, só poderá ocorrer com a sensibilização da sociedade para tais desigualdades, o que pode ser favorecido pela transversalização dos estudos de gênero nas mais distintas áreas, incluindo o turismo.

Quanto às recomendações relacionadas à “liderança”, na versão de 2010 resumem-se a sugestões para desenvolvimento de programas em diversos níveis. Na atual edição, percebe-se um aprofundamento nas proposições para que se amplie a representação e influência das mulheres nos espaços de tomada de decisão e que se incentive o avanço delas tanto em instituições públicas, quanto privadas, nas mais diversas áreas que interagem com o turismo.

Sobre essa temática, é interessante dialogar com Mooney (2020)Mooney, S. K. (2020). Gender research in hospitality and tourism management: time to change the guard. International Journal of Contemporary Hospitality Management, abr 2020. doi: 10.1108/ijchm-09-2019-0780
https://doi.org/10.1108/ijchm-09-2019-07...
, que aponta como resultado de suas pesquisas sobre gênero e liderança no turismo e hospitalidade, que “(...) focus on “female leadership” as different from the male norm and the use of traditional theoretical framings reinforce stereotypes about the primacy of women’s domestic commitments to their detriment” (p. 01). Ou seja, acreditamos que não apenas o incentivo para que as mulheres ampliem suas vozes nos espaços de tomada de decisão são fundamentais, como também discussões e revisões sobre a construção das normas que definem os padrões ideais de liderança, baseados sempre nos atributos masculinos.

Por fim, o eixo que disserta sobre “comunidade” que, na última versão, foi alterado para “comunidade e sociedade civil”. Na primeira edição, as recomendações se voltavam ao reconhecimento, valorização e recompensa dos trabalhos não remunerados das mulheres, tanto nos lares, quanto nas atividades turísticas. Já na versão de 2020 há um perceptível desenvolvimento referente ao papel político das mulheres.

Nesse último, são abordadas medidas para empoderamento das mulheres, pautando: "a necessidade de apoiar as mulheres para que possam contestar as desigualdades de gênero tanto nos lares como nas comunidades; o incentivo a organizações civis e comunitárias de mulheres; a criação de políticas e iniciativas para a divisão mais equânime dos trabalhos não remunerados e também a ampliação da participação delas nas tomadas de decisão comunitárias". Aqui, mais uma vez, nota-se que a transversalização das discussões de gênero são fundamentais para que mudanças concretas possam ocorrer nas relações sociais de gênero.

Além dos eixos temáticos estruturantes, na edição de 2010 constam ainda recomendações voltadas ao setor privado, setor público e organizações internacionais e sociedade civil. Ao primeiro, as sugestões estão vinculadas ao empoderamento feminino e combate às desigualdades de gênero como parte essencial das atividades de responsabilidade social corporativa. Ao setor público as recomendações versavam sobre a necessidade de incorporar reflexões sobre relações de gênero em políticas, planos e na prática do turismo. Já para organismos internacionais e sociedade civil, as diretrizes se voltam à proteção dos direitos das mulheres e ao monitoramento do progresso do empoderamento feminino através do turismo. Inclusive, sugere-se que os indicadores sejam atualizados a cada três anos para verificar sua eficácia.

Já na versão de 2020, as recomendações que ultrapassam os eixos temáticos se organizam entre aquelas voltadas para o setor turístico e para cada região estudada no relatório. Quanto ao setor turístico, no que se refere a plataformas digitais e tecnologia, as sugestões são voltadas à inclusão e inovação focadas em equidade de gênero e, também, para a sensibilização de gênero no processo de desenvolvimento de novas tecnologias para o setor.

Ainda sobre o setor turístico, outra categoria é hotéis e acomodações. Para esse nicho, recomendou-se o respeito aos direitos das trabalhadoras, o apoio aos sindicatos e associações profissionais delas e, também, enfrentamento à precarização dos trabalhos feminizado3 3 Sobre trabalhos feminizados ver Monteiro et al. (2018); Yannoulas (2011). , ou seja, aqueles que são majoritariamente desempenhados por mulheres em todos os níveis e, consequentemente, desvalorizados social e economicamente. Ainda nesse nicho, outra recomendação interessante é para que se incentivem os/as consumidores/as a conhecerem as condições de trabalho das empregadas no setor.

Sobre operadoras turísticas, recomenda-se ampliar a certificação e emprego de mulheres como guias e agentes, assim como buscar meios de revisar os estereótipos de gênero vigentes em torno da figura do guia de turismo. Por fim, sobre o turismo de base comunitária, as proposições são para garantir que tais iniciativas sejam sensíveis ao gênero e ofereçam oportunidades de participação igualitárias para homens e mulheres, e também que se apoie os projetos de turismo de base comunitária femininos, especificamente.

Como mencionado, na versão atual, há recomendações para cada região estudada, sendo que aqui iremos abordar aquelas voltadas à América Latina e Caribe, que nos interessa diretamente. Assim, sugere-se incorporar, de modo mais substancial, os direitos das mulheres e equidade de gênero junto às iniciativas de TBC e, também, garantir que os benefícios advindos dessas iniciativas sejam investidos em cooperativas e organizações de mulheres na região.

Após uma breve sintetização dos principais resultados e recomendações presentes em ambos os relatórios, percebemos que há um significativo avanço, ao longo dos dez anos que os separam, especialmente na qualidade dos estudos e resultados. Porém, nem todos países membros da ONU seguem tais pressupostos. Desse modo, iremos refletir sobre o uso de tais indicadores no turismo brasileiro e suas consequências percebidas até então.

3 OS PLANOS NACIONAIS DE TURISMO E O TURISMO RESPONSÁVEL NO BRASIL

Para que possamos ponderar sobre o papel do turismo brasileiro no processo de empoderamento feminino e mitigação das iniquidades de gênero, analisamos os PNT’s, publicados após 2010, para verificar o diálogo entre esses e os GROWIT, além de seus reflexos no desenvolvimento do turismo responsável no país.

Para isso, é importante lembrar que o Ministério do Turismo (MTUR) no Brasil foi criado apenas em 2003. A partir de então, foram publicados PNT’s nos seguintes períodos: 2003-2007; 2007-2010; 2013-2016 e 2018-2022, sendo que no intervalo de 2011-2014 vigorou uma edição do Documento Referencial Turismo no Brasil.

Os PNT’s são documentos orientadores das políticas e ações voltadas ao desenvolvimento da atividade turística no país. De acordo com o MTUR, “o objetivo principal desse documento é ordenar as ações do setor público, orientando o esforço do Estado e a utilização dos recursos públicos para o desenvolvimento do turismo” (2020 s.p.). Assim, é possível compreender que tais documentos devem refletir não só os anseios e estratégias dos envolvidos no setor turístico, mas também articulações com políticas mais amplas.

Nesse sentido, vale lembrar que antes mesmo da atual “Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável” da ONU, ainda em 2000 já havia sido lançada a “Declaração do Milênio”, subscrita por 191 países membros da organização, dentre eles o Brasil. Entendida como um compromisso para a sustentabilidade do planeta, essa era composta por oito objetivos gerais que se desdobravam em dezesseis metas, a serem atingidas até 2015, além de quarenta e oito indicadores para possibilitar seu monitoramento.

Na declaração do milênio, destaca-se o objetivo número 03 – “Promover igualdade entre os sexos e a autonomia para as mulheres”, já trazendo a temática de gênero como um ponto crucial para a sustentabilidade. (ONU, 2000Organização das Nações Unidas. (2000). United Nations Millennium Declaration DPI/2163 — Portuguese — 2000. Published by United Nations Information Centre, Lisbon. Disponível em: https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/library/ods/declaracao-do milenio.html
https://www.br.undp.org/content/brazil/p...
). Os resultados divulgados quanto a esse objetivo alegam que, de modo geral, os países em desenvolvimento conseguiram eliminar as disparidades de gênero na educação, desde o nível primário até o superior. Além disso, identificou-se que:

Globalmente, cerca de três quartos dos homens em idade ativa participam da força de trabalho, em comparação com a metade das mulheres em idade ativa; As mulheres representam 41% dos trabalhadores remunerados fora da agricultura, um aumento de 35% em 1990; A proporção média de mulheres no parlamento quase dobrou nos últimos 20 anos; As mulheres continuam a experimentar lacunas significativas em termos de pobreza, mercado de trabalho e salários, bem como participação na tomada de decisões públicas e privadas.

(ONU, 2015bOrganização das Nações Unidas. (2015b). Eliminate gender disparity in primary and secondary education, preferably by 2005, and in all levels of education no later than 2015. Disponível em: https://www.un.org/millenniumgoals/gender.shtml
https://www.un.org/millenniumgoals/gende...
)

Percebe-se que, ao evidenciar questões como disparidades de gênero, e propor mecanismos para avaliá-las e mitigá-las, resultados positivos podem ser alcançados, ainda que paulatinamente. Além disso, ainda que não relacionadas diretamente ao turismo, podemos compreender que as pautas de gênero estão presentes nas discussões para formulação de políticas responsáveis, com foco na sustentabilidade, de modo bastante enfático, há pelo menos vinte anos. Vale lembrar que,

O Turismo Responsável tem como característica principal o enfoque na participação efetiva do turismo nas comunidades envolvidas, quaisquer que sejam as suas características socioculturais ou localização geográfica. O que é apregoado é um elo de ligação entre os atores inseridos no processo, onde exista um equilíbrio amplo e irrestrito de benefícios e responsabilidades, gerando assim uma atmosfera favorável às parcerias e a participação da comunidade no desenvolvimento turístico.

(Oliveira e Fontana, 2006Oliveira, S., Fontana, R. (2006). Turismo Responsável: uma alternativa ao turismo sustentável? Trabalho apresentado ao GT2 “Abordagem Histórico – Crítica do Turismo” do IV Seminário de Pesquisa em Turismo do MERCOSUL (anais)., p.05)

Tal modelo de desenvolvimento turístico é pautado por um conjunto de bens e serviços que promovem o desenvolvimento socialmente justo e economicamente equilibrado em nível local e regional, integrando o desenvolvimento urbano e rural e criando um processo de desenvolvimento econômico diversificado. (Salvati, 2004Salvati, S. (Org.) (2004). Turismo responsável - Manual de Políticas Públicas. WWF Brazil)

Assim, compreende-se que os PNT’s, formulados desde a criação do ministério, com foco no desenvolvimento responsável da atividade, deveriam contemplar diretrizes que considerassem pressupostos relacionados a questões de gênero. Porém, como somente em 2010 é lançado o primeiro documento da UNWTO voltado a essa questão, especificamente, optamos por analisar apenas os PNT’s formulados após essa divulgação.

Desse modo, iniciamos as considerações pelo “Documento Referencial do Turismo 2011-2014”. Embora não objetive substituir o PNT, tendo sido criado para dar subsídios à revisão desse, o Documento Referencial do Turismo preencheu a lacuna entre o PNT 2007-2010 (que acabou por vigorar sem revisões até 2013) e o PNT 2013-2016. De acordo com o documento, seu objetivo é “garantir a continuidade das conquistas obtidas e buscar o aprofundamento e aprimoramento das políticas e programas para o desenvolvimento do Turismo no Brasil” (2010, p.08).

Estruturado em diagnóstico, cenários e projeções e proposições, o horizonte de tal documento era a realização da Copa do Mundo de Futebol, realizada no Brasil em 2014. Esperava-se, com a realização desse megaevento, aliado a outros, como as Olimpíadas Rio 2016, que houvesse um reposicionamento do turismo brasileiro em nível internacional e, também, o fortalecimento do setor turístico nacional.

Nesse cenário, possivelmente por conta da necessidade de diálogo com entidades estrangeiras, o documento aqui analisado cita os Objetivos do Milênio. Porém, a única vez que a palavra gênero aparece é em uma nota de rodapé explicativa sobre o que são os Objetivos do Milênio. Já, quando procuramos pelo termo “mulher/es” encontramos uma ocorrência, no item que versa sobre o planejamento das ações.

Promover ações que signifiquem aportes do setor de Turismo para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, particularmente em relação à erradicação da extrema pobreza e da fome, à promoção da igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres, à sustentabilidade ambiental e ao estabelecimento de uma parceria mundial para o desenvolvimento;

(id, p. 130)

Embora de modo discreto, em meio aos demais objetivos listados pela ONU, ao menos há menção sobre a articulação das ações de planejamento do setor turístico e a mitigação das iniquidades de gênero. Porém, não aparece nenhuma diretriz ou menção às recomendações da ONU para o empoderamento das mulheres por meio do turismo.

No primeiro PNT (2013-2016) publicado após a divulgação da edição do GROWIT 2010, identificamos uma ausência total de qualquer menção a gênero, ou sobre empoderamento feminino. Maranhão (2017)Maranhão, C. H. da S. (2017). A trajetória histórica da institucionalização do turismo no Brasil. Revista de Turismo Contemporâneo, v. 5, n. 2, p. 238-259, jul./dez., sintetiza os objetivos principais de tal PNT:

O esforço central do PNT 2013/2016 passa pelas seguintes metas: infraestrutura, financiamento e capitalização do setor, capacitação técnico-gerencial, tratamento fiscal/tributário, inovação tecnológica, promoção interna e externa, certificação, cadastramento, desenvolvimento de micro e pequenas empresas do segmento do turismo, desenvolvimento de destinos turísticos, dentre outros. Este esforço alinha-se com os seguintes objetivos estratégicos: preparar o turismo brasileiro para os megaeventos; incrementar a geração de divisas e a chegada de turistas estrangeiros; incentivar o brasileiro a viajar pelo Brasil e aumentar a competitividade do turismo brasileiro

(p. 253).

Apesar de ter como tema: “O turismo fazendo muito mais pelo Brasil” e, supostamente, ter sido subsidiado pelo documento referencial anteriormente citado, no PNT não foram considerados os princípios de turismo responsável, tampouco enfatizou-se seus aspectos sociais. Nesse sentido, não houve nenhuma aproximação com as recomendações presentes nos GROWIT, já que não encontramos ocorrências referentes a gênero, mulher/es ou feminino/a em seu texto.

Já a atual edição do PNT (2018-2022), com a temática de “Mais emprego e renda para o Brasil” é o que mais avança nas considerações sobre relações de gênero e turismo. Já na apresentação, cita-se que tal PNT “É um norte para que o turismo seja um vetor de desenvolvimento do país, por meio da geração de emprego, de renda e inclusão social” (p. 13). Além disso, esse documento traz como uma de suas linhas de atuação o “incentivo ao turismo responsável”, considerando-se que:

Para o período deste PNT, o Ministério do Turismo propõe a adoção do termo “turismo responsável”, numa abordagem ampla, que acolhe a defesa e o desenvolvimento de temas como ética e responsabilidade social, proteção dos direitos de crianças e adolescentes no turismo, acessibilidade para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, respeito às diferenças de gênero, geração, raça e etnia, respeito ao meio ambiente e a manutenção e valorização das culturas locais, além de maior participação das comunidades receptoras na definição das políticas de desenvolvimento do turismo e no acesso a esse mercado

(p. 118).

Porém, apesar de um pleno entendimento sobre o turismo responsável, percebe-se novamente a ausência de um aprofundamento sobre as iniquidades de gênero, e nenhuma citação sobre o GROWIT. Apesar de citar o respeito às diferenças de gênero, não identificamos qualquer proposta no sentido de discuti-las ou mitigá-las. Inclusive, quando a estratégia “Promover o desenvolvimento de políticas de turismo responsável nos níveis estadual, distrital, regional e municipal” é descrita, fica clara a falta de articulação no que se refere a gênero, já que o ODS 05 foi excluído das considerações:

(…) o Ministério do Turismo buscará articular e incentivar a convergência das ações voltadas ao desenvolvimento responsável no âmbito da Política Nacional de Turismo e do avanço da Agenda 2030, especialmente dos ODSs 8, 12 e 14, onde o turismo foi especialmente incluído como meta

(p.121).

Outro ponto em que gênero é citado na versão atual do PNT é quando se trata da iniciativa: Possibilitar o acesso democrático de públicos prioritários à atividade turística, quando discorre-se que

Do ponto de vista do turismo responsável, numa atuação pautada pela ética e responsabilidade socioambiental, incorpora-se a esse princípio a garantia da transversalidade, em todas as políticas dessa Pasta, de temas como gênero, etnia e raça, ancorados na perspectiva do turismo social, entendido como orientador da condução da atividade turística como promotora da equalização de oportunidades, da equidade, da solidariedade e do exercício da cidadania na perspectiva da inclusão

(p. 126).

Apesar de citar a garantia de transversalidade de gênero em todas políticas dessa pasta, não encontramos nenhum indício de tal consideração. Nem nas estratégias do próprio documento, tampouco por meio da produção de documentos específicos sobre a temática. Vale ressaltar que não há menções sobre a categoria mulher/mulheres, nem feminino/a em nenhuma passagem do atual PNT, seja no diagnóstico, seja nas estratégias cunhadas.

Desse modo, é perceptível que apesar de uma aproximação tanto com os ODS propostos pela ONU, quanto do relevante entendimento do Turismo Responsável, não encontramos amparo nos PNT’s recentes do Brasil para o aprofundamento das discussões das relações de gênero no turismo nacional. Identifica-se um pequeno avanço, quando se menciona a transversalidade de gênero na pasta, mas, infelizmente, não se verifica na prática.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho procuramos demonstrar como as relações de gênero têm ganhado espaço nas discussões internacionais sobre o turismo, assim como apresentar diretrizes direcionadas ao empoderamento feminino por meio dessa atividade. Porém, constatamos que apesar do Brasil ser Estado membro da ONU e signatário da Declaração do Milênio e da Agenda 2030, não encontramos respaldo nos PNT’s para a mitigação das iniquidades de gênero através da atividade turística.

Percebemos, no entanto, que no Brasil tais relatórios e estudos não tiveram ainda o alcance desejado, dada a ausência de proposições voltadas às mulheres em seus Planos Nacionais. Tampouco existem estudos ou relatórios específicos sobre tal temática por parte dos órgãos públicos de turismo no país. Desse modo, compreendemos que há um longo caminho a ser percorrido nesse sentido.

Das recomendações presentes nos GROWIT aqui analisados, não identificamos nenhuma sendo considerada diretamente nas políticas nacionais de turismo. Enquanto podemos perceber que em alguns lugares, há um avanço nesse sentido, como é o caso do movimento “Las Kellys”, de camareiras espanholas que se organizaram sindicalmente para reivindicar direitos trabalhistas da categoria, que é majoritariamente feminina. Em 2019, juntamente com “kellys” da França e Reino Unido, se reuniram com eurodeputados e a Comissão Europeia para discutir a proibição de subcontratações no setor (Laskellys, 2020Laskellys (2020). Kellys da Espanha, França e Reino Unido pedem a Europa medidas para proibir subcontratações. https://laskellys.wordpress.com/2020/05/23/kellys-de-espana-francia-y reino-unido-pedimos-a-europa-medidas-para-prohibir-las-subcontratas/
https://laskellys.wordpress.com/2020/05/...
).

Tal feito representa um progresso para a visibilidade e empoderamento das mulheres dessa categoria, enquanto no Brasil observa-se a precarização crescente nas relações de trabalho. De acordo com dados do Ipea (2018)Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. (2018). Sistema de Informações sobre o Mercado de Trabalho no Setor Turismo – SIMT. Recuperado em 13 de fevereiro de 2019, de http://www.ipea.gov.br/extrator/simt.html.
http://www.ipea.gov.br/extrator/simt.htm...
, no mercado formal do turismo, em todos os níveis de escolaridade, há maior contingente de homens nas maiores faixas de remuneração. Ou, como constatam SILVEIRA et.al (2020, p.90)Silveira, C., Medaglia, J., Nakatani, M. (2020) O mercado de trabalho dos egressos de cursos superiores em turismo- comparações dos dados de 2012 – 2018. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, v. 14, n. 2, maio/agosto. https://doi.org/10.7784/rbtur.v14i2.1779
https://doi.org/10.7784/rbtur.v14i2.1779...
: “entre os egressos de cursos superiores de turismo a quantidade de mulheres ultrapassa os 70%, o que é bem superior à média nacional. Apesar da vantagem numérica, entretanto, as faixas salariais com predominância feminina são de 2 a 7”4 4 10 Até R$4.248,00 em 2018. .

Assim, é fundamental trazermos essa temática também para a academia. Conforme sugerido nos relatórios analisados, promover reflexões sobre relações de gênero no processo de formação, de diferentes níveis, de atuais e futuros/as profissionais da área, é essencial. Sensibilizar mulheres e homens para discrepâncias e, processos de mitigação de tais iniquidades por meio do turismo, tende a ser um passo inicial para a prática turística realmente responsável.

Para isso, os espaços de produção do conhecimento também precisam ser repensados. Gewinner (2020)Gewinner, I. (2020), "Gendered and diversified? Leadership in global hospitality and tourism academia". International Journal of Contemporary Hospitality Management, Vol. 32 No. 6, pp. 2257- 2282. https://doi.org/10.1108/IJCHM-07-2019-0621
https://doi.org/10.1108/IJCHM-07-2019-06...
sobre liderança na academia de hospitalidade e turismo, conclui:

The way that leadership within hospitality and tourism academia is conceptualised has traditionally been based on notions that highlight a particular type of leadership, mostly due to historically-rooted dominance of old white men in academia. The results of individual factors as well as variables pertinent to the components of leadership demonstrate that, globally, there exist significant gender differences that furnish the very connotation of what leadership is within hospitality and tourism academia. With all instances of academic leadership –intellectual, administrative and innovative – the underrepresentation of women and the standard of white male leadership of agency is striking

(p.17).

Ou seja, é necessário ampliar os espaços de discussão que trazem as temáticas dos marcadores sociais articulados às experiências turísticas em todas as instâncias, incluindo todas as categorias de formação profissional e pesquisadores da área. Ao trazermos as iniquidades de gênero para as discussões da produção e do fazer turístico, possibilitamos que se transversalize princípios básicos de relações sociais, tão caras à prática turística.

Assim, será possível seguir outras recomendações, que versam sobre a presença de pautas voltadas a mulheres nas políticas públicas de turismo, ou sobre as diferenças salariais percebidas entre gêneros. Apesar de leis que proíbem tais práticas, pelos dados citados ao longo desse trabalho percebemos que o reconhecimento diferenciado de homens e mulheres é uma realidade, que só poderá ser realmente enfrentada quando existir educação para perceber que as consequências são negativas para a sociedade como um todo.

É necessário organizar e cobrar ações, respeitando diversos outros marcadores sociais, visando minimizar as iniquidades. Não percebemos, de modo enfático, a discussão sobre as interseccionalidades de marcadores sociais nas recomendações nos GROWIT, enquanto nos PNT’S não são sequer mencionadas. É fundamental pontuarmos tais ausências, a fim de não neutralizá-las. Embora a tradicional divisão sexual do trabalho seja constantemente citada como uma das barreiras presentes na vida profissional das mulheres, pouco se propõe para sua subversão.

Porém, nota-se ao longo dos GROWIT que se identifica um melhor posicionamento social feminino em iniciativas de TBC. Esse pode ser um indicador de que outras formas de gestão do turismo podem ser pautadas na busca de relações mais equitativas entre todos/as envolvidos/as no processo turístico. Desmistificar o trabalho doméstico e não remunerado, historicamente relegado às mulheres, é essencial para a valorização de toda cadeia produtiva de produtos e serviços turísticos.

Por fim, não podemos deixar de mencionar a enorme lacuna sobre as relações de gênero no mercado consumidor de produtos turísticos. No GROWIT 2020, há algumas passagens sobre mulheres consumidoras no turismo, especialmente nos “estudos de caso”, mas não há recomendações para o fortalecimento desse nicho consumidor. Nos PNT’s analisados, tampouco as mulheres são vistas como público potencial específico.

Nesse sentido, a recomendação para desagregação de dados do turismo por gênero (UNWTO, 2020United Nations World Tourism Organization. (2020). Global report on women in tourism: Second edition. Recuperado em 15 de abril de 2020, de https://www.unwto.org/publication/global-report-women-tourism-2-edition
https://www.unwto.org/publication/global...
) precisa ser fortemente demandada no país, para que possamos refletir sobre necessidades e desejos de uma parcela crescente do público consumidor, que é formada pelas mulheres. Sabemos da escassez de dados sobre demanda turística nacional e internacional, assim como percebemos uma descontinuidade entre os PNT’s, que reflete na precarização e parcialidade dos trabalhos de pesquisa e investigação na área.

Ausências de reflexões sobre gênero no turismo são sentidas na prática, ao se analisar as discrepâncias perpetuadas por meio da exploração turística tradicional, acentuando aquelas mazelas que se buscam mitigar por meio de proposições encontradas nos relatórios da UNWTO. A falta de diálogo das diretrizes que condicionam o desenvolvimento do turismo em nível nacional, com aquelas internacionais aqui analisadas, reflete-se num desenvolvimento turístico aquém de seu potencial, afastando-se de perspectivas críticas que poderiam se refletir numa atividade verdadeiramente responsável com vistas à sustentabilidade.

  • 1
    Aqui delimitamos a discussão nas relações de gênero, por uma questão de foco do artigo, já que, a interseccionalidade de gênero com os demais marcadores sociais, como raça ou sexualidade, por exemplo,.não é enfatizada nos documentos que compõem o objeto de estudo.
  • 2
    A segregação horizontal se dá pela divisão de homens e mulheres em diferentes funções e áreas de atividades, enquanto a vertical se refere a diferenciações vivenciadas que impedem ou dificultam o acesso de mulheres a determinadas posições hierárquicas, faixas de remuneração e outros. Para mais detalhes, consultar Hakim (1979)Hakim, C. (1979). Occupational Segregation: A Comparative Study of the Degree and Pattern of the Differentiation between Men and Women’s Work in Britain, the United States, and other countries. HMSO.
  • 3
    Sobre trabalhos feminizados ver Monteiro et al. (2018)Monteiro, R., Freitas, V., Daniel, F. (2018). Condições de trabalho num universo profissional feminizado. Rev. Estudos Feministas, vol.26, no.2. https://dx.doi.org/10.1590/1806-9584-2018v26n234529
    https://doi.org/10.1590/1806-9584-2018v2...
    ; Yannoulas (2011)Yannoulas, S. (2011). Feminização ou feminilização? Apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis, Vol. 11, Nº. 22, 271-292 (Ejemplar dedicado a 65 anos de Abess/Abepss)..
  • 4
    10 Até R$4.248,00 em 2018.
  • Como Citar: Gabrielli, C. (2022). Análise das diretrizes internacionais sobre Gênero e Turismo e suas ausências nos Planos Nacionais de Turismo do Brasil. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 16, e-2310.http://dx.doi.org/10.7784/rbtur.v16.2310

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Editado por

Editor:

Leandro B. Brusadin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2020
  • Aceito
    12 Abr 2021
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