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Fenomenologia da prática nas organizações hoteleiras: proposição de um protocolo de pesquisa

Phenomenology of practice in hotels: a research protocol proposition

Fenomenología de la práctica en las organizaciones hoteleras: proponer un protocolo de investigación

Resumo

Este artigo tem como objetivo propor um Protocolo de Percepção de uma Prática e pode auxiliar pesquisadores interessados em compreender a gestão hoteleira como prática em diferentes contextos. Os 3Ps da pesquisa são fundamentados na fenomenologia da prática (Van Manen, 2014) e compreende quatro fases: a primeira é referente à preparação para entrada no campo; a segunda e a terceira envolvem a imersão fenomenológica no campo, utilizando o shadowing, com registro de observações e conversas informais em um diário de campo,e as entrevistas em profundidade estruturadas a partir da proposta de Seidman (2006) e nas orientações de Van Manen (2014). A quarta fase abrange a descrição e análise do material empírico, realizada com base nas recomendações de Van Manen (2014) sobre o “texto fenomenológico”, nas orientações de Strati (2007) sobre a técnica do “texto aberto” e nas considerações de Cloutier (2016) sobre a escrita do texto. Os 3Ps podem auxiliar o pesquisador na condução de estudos no contexto das organizações hoteleiras e tem potencial contribuição metodológica e prática para pesquisadores interessados em investigar a gestão como prática nas demais organizações turísticas.

Palavras-chave
Fenomenologia da prática; Protocolo de pesquisa; Gestão Hoteleira como Prática

Abstract

This article aims to propose a Practice’s Perception Protocol. The protocol can assist researchers interested in understanding hotel management as a practice in different contexts. The 3Ps of the research are based on the phenomenology of practice (Van Manen, 2014) and comprise four phases. The first is related to the preparation when entering the field. The second and third phases involve phenomenological immersion in the field, using (1) shadowing with the recording of observations and informal conversations in a field diary and (2) in-depth interviews structured based on Seidman's proposal (2006) and Van Manen's guidelines (2014). Finally, the fourth phase covers the description and analysis of the empirical material. This last phase is carried out based on (1) the recommendations of Van Manen (2014) about the “phenomenological text”, (2) the guidelines of Strati (2007) on the technique of the “open text” and (3) the considerations of Cloutier (2016) on the writing of the text. The 3Ps can assist the researcher conduct studies in the context of hotel organizations and they have a potential methodological and practical contribution for researchers interested in investigating management as a practice in other tourist organizations.

Keywords
Phenomenology of practice; Research protocol; Hotel Management as Practice

Resumen

Este artículo tiene como objetivo proponer un Protocolo de Percepción para una Práctica y puede ayudar a los investigadores interesados em comprender la gestión hotelera como una práctica en diferentes contextos. Las 3P de la investigación se basan em la fenomenología de la práctica (Van Vanen, 2014) y consta de cuatro fases: la primera está relacionada com la preparación para ingresar al campo; el segundo y El tercero involucran la inmersión fenomenológica em el campo, utilizando el sombreado, registrando observaciones y conversaciones informales en un diario de campo, y entrevistas en profundidad estructuradas a partir de la propuesta de Seidman (2006) y las directrices de Van Manen (2014). La cuarta fase abarca la descripción y análisis del material empírico, realizado a partir de lãs recomendaciones de Van Manen (2014) sobre el “texto fenomenológico”, las directrices de Strati (2007) sobre la técnica del “texto abierto” y las consideraciones de Cloutier (2016) sobre la redacción del texto. Las 3P pueden ayudar al investigador a realizar estudios en el contexto de las organizaciones hoteleras y tienen una potencial contribución metodológica y práctica para los investigadores interesados en investigar la gestión como práctica en otras organizaciones turísticas.

Palabras clave
Fenomenología de la práctica; Protocolo de investigación; Gestión hotelera como Práctica

1 INTRODUÇÃO

Dentre as diversas possibilidades de teorizar e investigar as organizações turísticas e hoteleiras existe a perspectiva baseada na prática. Bispo (2016, p. 174)Bispo, M. de S. (2016). Tourism as practice. Annals of Tourism Research, 61, 170-179. https://doi.org/10.1016/j.annals.2016.10.009
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destaca que, no campo da pesquisa em turismo, “as teorias da prática buscam superar dualismos tradicionais e revelar como as práticas são utéis para compreender a complexidade do turismo”.

Ao estudarmos as práticas realizadas em um cotidiano organizacional, aumentamos nossa compreensão sobre os papeis desempenhados pelos elementos humanos e não humanos que constituem o que conhecemos como “social” (Bispo, 2016Bispo, M. de S. (2016). Tourism as practice. Annals of Tourism Research, 61, 170-179. https://doi.org/10.1016/j.annals.2016.10.009
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, p. 177), aspectos relevantes para a compreensão da dinâmica e complexidade do turismo. No entanto, para o alcance desses resultados são necessárias metodologias específicas, conforme enfatizam Schatzki (2001)Schatzki, T. (2001). Introduction: practice theory. The practice turn in contemporary theory., Gherardi (2012)Gherardi, S. (2012). How to conduct a practice-based study: problems and methods. Cheltenham: Edward Elgar, pp. 155 - 177. https://doi.org/10.4337/9780857933386
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, Bispo e Godoy (2012)Bispo, M. de S., & Godoy, A. S. (2012). A etnometodologia enquanto caminho teórico-metodológico para investigação da aprendizagem nas organizações. RAC-Revista de Administração Contemporânea, v. 16, n. 5, p. 684-704. ISSN 1415-6555 (Print) 1982-7849 (Online). https://doi.org/10.1590/S1415-65552012000500004
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, Oliveira e Montenegro (2012)Oliveira, S. A., & Montenegro, L. M. (2012). Etnometodologia: desvelando a alquimia da vivência cotidiana. Cadernos EBAPE. BR, v. 10, n. 1, p. 129-145. https://doi.org/10.1590/S1679-39512012000100009
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e Nicolini (2013)Nicolini, D. (2013). Practice Theory, Work, & Organization: an introduction. Oxford: Oxford University Press. ISBN 978-0-19-923159-1.

Os Estudos Baseados em Prática (EBP) possuem como unidade de análise as próprias práticas. Considerando que as práticas são situadas e que, por esta razão, não podem ser determinadas a priori, a coleta e a análise do material empírico das pesquisas com essa abordagem exigem a utilização de métodos e técnicas vinculadas a qualquer corrente de pensamento sobre prática, que se alinhem aos objetivos da pesquisa (Pimentel & Nogueira, 2018Pimentel, R., & Nogueira, E. E. S. (2018). Estudos baseados na prática: possibilidades metodológicas para pesquisas em estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, v. 25, n. 86, p. 350-370. https://doi.org/10.1590/1984-9250861
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; Bispo, 2015Bispo, M. de S. (2015). Methodological Reflections on Practice-Based Research in Organization Studies. Brazilian Administration Review-BAR, v. 12, n. 3, p. 309-323. https://doi.org/10.1590/1807-7692bar2015150026
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).

Nas pesquisas internacionais sobre práticas, verifica-se que os estudos são conduzidos por meio de métodos qualitativos, fazendo uso de técnicas etnográficas, da teoria fundamentada (grounded theory), da etnometodologia e da fenomenologia (Bispo & Godoy, 2014Bispo, M. de S., & Godoy, A. S. (2014). Etnometodologia: uma proposta para pesquisa em estudos organizacionais. Revista de Administração da UNIMEP, v. 12, n. 2, p. 108-135. https://doi.org/10.15600/1679-5350/rau.v12n2p108-135
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; Nicolini, 2013Nicolini, D. (2013). Practice Theory, Work, & Organization: an introduction. Oxford: Oxford University Press. ISBN 978-0-19-923159-1; Gherardi, 2012Gherardi, S. (2012). How to conduct a practice-based study: problems and methods. Cheltenham: Edward Elgar, pp. 155 - 177. https://doi.org/10.4337/9780857933386
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; Bispo & Godoy, 2012Bispo, M. de S., & Godoy, A. S. (2012). A etnometodologia enquanto caminho teórico-metodológico para investigação da aprendizagem nas organizações. RAC-Revista de Administração Contemporânea, v. 16, n. 5, p. 684-704. ISSN 1415-6555 (Print) 1982-7849 (Online). https://doi.org/10.1590/S1415-65552012000500004
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). A combinação de técnicas de coleta dados qualitativos é crescente nos estudos organizacionais, denominações que amplia o “olhar” do pesquisador sobre o fazer pesquisa, o que contribui para o desenvolvimento de metodologias próprias para os estudos sobre a prática (Pimentel & Nogueira, 2018Pimentel, R., & Nogueira, E. E. S. (2018). Estudos baseados na prática: possibilidades metodológicas para pesquisas em estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, v. 25, n. 86, p. 350-370. https://doi.org/10.1590/1984-9250861
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).

A fenomenologia (Pimentel & Nogueira, 2018Pimentel, R., & Nogueira, E. E. S. (2018). Estudos baseados na prática: possibilidades metodológicas para pesquisas em estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, v. 25, n. 86, p. 350-370. https://doi.org/10.1590/1984-9250861
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; Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.; 2007Van Manen, M. (2007). Phenomenolgy of practice. Phenomenology & Practice. (1)1: 11-30. https://doi.org/10.29173/pandpr19803
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; Nicolini, Gherardi & Yanow, 2003Nicolini, D., Gherardi, S., & Yanow, D. (2003). Knowing in organizations: a practice-based approach. Nova York: M. E. Sharpe.), abordagem muito utilizada nos EBP, objetiva estudar um fenômeno em si, e não o que pensam ou dizem sobre ele (Errasti-Ibarrondo et al., 2019Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2019). Van Manen's phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry, 26(1), p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1111/nin.12259
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; Küpers & Weibler, 2008Küpers, W., & Weibler, J. (2008) Emotions in organisation: an integral perspective. International Journal of Work Organisation and Emotion, v. 2, n. 3, p. 256-287. https://doi.org/10.1504/IJWOE.2008.019426
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). A realização de uma pesquisa fenomenológica busca alcançar a consciência do sujeito mediante a expressão de sua experiência original, pré-refletida, ou seja, o contato imediato com o mundo antes de se tornar consciente para o sujeito. Para a fenomenologia, um objeto deve ser estudado sem interferência de qualquer regra de observação. Nesse sentido, o fenômeno deve ser estudado tal como é (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.; 2007Van Manen, M. (2007). Phenomenolgy of practice. Phenomenology & Practice. (1)1: 11-30. https://doi.org/10.29173/pandpr19803
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) e as “questões fenomenológicas são questões de significado” (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., p. 23).

Os estudos fenomenológicos não buscam explicar a origem ou a causa da experiência do sujeito, mas sim descrever como é a experiência (Standal, 2014Standal, Ø. F. (2014) Phenomenology and adapted physical activity: Philosophy and professional practice. Adapted Physical Activity Quarterly, v. 31, n. 1, p. 35-48. https://doi.org/10.1123/apaq.2012-0064
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), sem padronizar ou generalizar o que está sendo analisado (Gibbs, 2014Gibbs, P. (2014). The phenomenology of professional practice: a currere. Studies in Continuing Education, v. 36, n. 2, p. 147-159. https://doi.org/10.1080/0158037X.2013.825765
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). O principal objetivo da fenomenologia é criar um texto que reflita o significado da experiência vivida. Pesquisar na fenomenologia é refletir e escrever (Errasti-Ibarrondo et al., 2018Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2018). Conducting phenomenological research: Rationalizing the methods and rigour of the phenomenology of practice. Journal of Advanced Nursing, v. 74, p. 1723–1734. 2018. https://doi.org/10.1111/jan.13569
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).

Apesar da abordagem fenomenológica ter abrangência epistemológica consistente e significativa para investigação dos mais variados problemas no campo dos estudos organizacionais (Gil & Silva, 2015Gil, A. C., & Silva, S. P. M. (2015). O método fenomenológico na pesquisa sobre empreendedorismo no Brasil. Revista de Ciências da Administração, v. 1, n. 1, p. 99-113. https://doi.org/10.5007/2175-8077.2015v17n41p99
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), ainda é reduzido o número de pesquisas em Turismo e Hotelaria com esta abordagem no Brasil. Pernecky e Jamal (2010, p. 1057)Pernecky, T., & Jamal, T. (2010). (Hermeneutic) Phenomenology in tourism studies. Annals of Tourism Research, 37(4), pp. 1.055-1.075, out. https://doi.org/10.1016/j.annals.2010.04.002
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destacam que a pesquisa fenomenológica tem sido mais utilizada pelas áreas de enfermagem, educação, estudos da religião, administração e psicologia, e “é em grande parte desconhecida na pesquisa turística” (Panosso Netto & Nechar, 2014Panosso Netto, A. P., & Nechar, M. C. (2014). Epistemologia do turismo: escolas teóricas e proposta crítica. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, 8(1), 120-144. https://doi.org/10.7784/rbtur.v8i1.719
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; Pernecky & Jamal, 2010Pernecky, T., & Jamal, T. (2010). (Hermeneutic) Phenomenology in tourism studies. Annals of Tourism Research, 37(4), pp. 1.055-1.075, out. https://doi.org/10.1016/j.annals.2010.04.002
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).

De Albuquerque Meneguel e Tricário (2019)de Albuquerque Meneguel, C. R., & Tricárico, L. T. (2019). Aplicação da abordagem fenomenológica e estudo epistêmico no turismo: análise dos artigos publicados em periódicos. Marketing & Tourism Review, 4(1). ISSN: 2177-3866. https://doi.org/10.29149/mtr.v4i1.5020
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apresentam por meio de uma pesquisa bibliométrica realizada em cinco periódicos da área de turismo (Annals of Tourism Research, Tourism Management, Estudios y Perspectivas en Turismo, Caderno Virtual de Turismo e Turismo: Visão e Ação), selecionados em decorrência de seu Fator de Impacto (FI) no ano de 2014 e pela seleção Sistema Qualis, um mapeamento da produção científica associada ao método fenomenológico dentro do recorte temporal dos anos de 2010 a 2014.

Os resultados do estudo bibliométrico mencionado demonstram que ainda que a abordagem seja considerada por muitos autores como a teoria que melhor explica a dinâmica transdisciplinar da área, devido o turismo ser um fenômeno dinâmico, a baixa utilização da abordagem fenomenológica nas pesquisas em turismo e a necessidade de maior discussão sobre essa abordagem em pesquisas da área, no âmbito da produção brasileira e internacional (De Albuquerque Meneguel & Tricário, 2019de Albuquerque Meneguel, C. R., & Tricárico, L. T. (2019). Aplicação da abordagem fenomenológica e estudo epistêmico no turismo: análise dos artigos publicados em periódicos. Marketing & Tourism Review, 4(1). ISSN: 2177-3866. https://doi.org/10.29149/mtr.v4i1.5020
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).

A baixa utilização da fenomenologia nos estudos organizacionais no contexto de turismo e hotelaria pode estar associada à complexidade de aplicação da abordagem, assim como à falta de clareza que existe na literatura fenomenológica sobre como implementar e articular métodos em estudos dessa natureza e à dificuldade de se encontrar diretrizes didáticas que orientam especificamente pesquisas desse tipo (Errasti-Ibarrondo et al., 2018Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2018). Conducting phenomenological research: Rationalizing the methods and rigour of the phenomenology of practice. Journal of Advanced Nursing, v. 74, p. 1723–1734. 2018. https://doi.org/10.1111/jan.13569
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; Errasti-Ibarrondo et al., 2019Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2019). Van Manen's phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry, 26(1), p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1111/nin.12259
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; De Albuquerque Meneguel & Tricário, 2019de Albuquerque Meneguel, C. R., & Tricárico, L. T. (2019). Aplicação da abordagem fenomenológica e estudo epistêmico no turismo: análise dos artigos publicados em periódicos. Marketing & Tourism Review, 4(1). ISSN: 2177-3866. https://doi.org/10.29149/mtr.v4i1.5020
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).

Pernecky e Jamal (2010, p. 1057) Pernecky, T., & Jamal, T. (2010). (Hermeneutic) Phenomenology in tourism studies. Annals of Tourism Research, 37(4), pp. 1.055-1.075, out. https://doi.org/10.1016/j.annals.2010.04.002
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reconhecem que “a pesquisa fenomenológica é altamente complexa; consome muito tempo, requer ativo envolvimento do pesquisador, atenção e conhecimento da abordagem filosófica da abordagem particular”. No entanto, incentivam a realização de estudos fenomenológicos do turismo, em decorrência de sua relevância para a observação e percepção da dinamicidade do fenômeno turístico, desenvolvido no tempo e no espaço por um indivíduo ou um grupo, tal como é, do modo que é (Panosso Netto & Nechar, 2014Panosso Netto, A. P., & Nechar, M. C. (2014). Epistemologia do turismo: escolas teóricas e proposta crítica. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, 8(1), 120-144. https://doi.org/10.7784/rbtur.v8i1.719
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; Panosso Netto, 2011Panosso Netto, A. (2011). Filosofia do turismo: teoria e epistemologia. 2.ed. São Paulo: Aleph. ISBN: 9788576571094.).

A realização de um estudo fenomenológico é complexa, uma vez que coexistem diversas abordagens ou correntes de pensamento e percursos metodológicos. Apesar da existência de vários aspectos comuns entre elas, há também características muito distintas (Errasti-Ibarrondo et al.,2019Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2019). Van Manen's phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry, 26(1), p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1111/nin.12259
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; Halling, 2012Halling, S. (2012). A Review of: “Massimlliano Tarozzi and Luigina Mortari (Eds.). (2010). Phenomenology and Human Science Research Today" Bucharest: Zeta Books. 325 pages, ISBN 978-973-1997-44-5 (paperback).). Além disso, a fenomenologia requer um tipo de atenção à experiência que é difícil de encontrar no mundo cotidiano ou na academia.

O estudo fenomenológico requer do pesquisador uma atitude de concentração e contemplação (Halling, 2012Halling, S. (2012). A Review of: “Massimlliano Tarozzi and Luigina Mortari (Eds.). (2010). Phenomenology and Human Science Research Today" Bucharest: Zeta Books. 325 pages, ISBN 978-973-1997-44-5 (paperback).), e uma capacidade crítica de se envolver na prática para analisar o conhecimento adquirido (Gibbs, 2014Gibbs, P. (2014). The phenomenology of professional practice: a currere. Studies in Continuing Education, v. 36, n. 2, p. 147-159. https://doi.org/10.1080/0158037X.2013.825765
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). Nos estudos fenomenológicos, apenas quando o pesquisador consegue desacelarar e direcionar total atenção à experiência é que se chega a uma prática de pesquisa “produtiva e profundamente satisfatória” (Halling, 2012Halling, S. (2012). A Review of: “Massimlliano Tarozzi and Luigina Mortari (Eds.). (2010). Phenomenology and Human Science Research Today" Bucharest: Zeta Books. 325 pages, ISBN 978-973-1997-44-5 (paperback)., p. 5).

Em síntese, os desafios em realizar uma pesquisa de abordagem fenomenológica consistem: (a) na necessidade de adquirir uma compreensão dos fundamentos filosóficos da fenomenologia, tais como: fenômeno, essência, intencionalidade, epoché- redução, entre outros; (b) na complexidade colocada pela leitura e compreensão da literatura fenomenológica; (c) na conveniência de basear uma visão em uma das diferentes vertentes fenomenológicas de pensamento e tomar uma posição em favor de um ou outro, baseada nas semelhanças com a visão do mundo do pesquisador, de sua disciplina e do fenômeno que ele pretende estudar; e (d) na dificuldade, ao considerar um método (ou autor), em encontrar um guia acessível - ou diretrizes concretas e fáceis de entender - que pode ajudar a moldar e levar adiante a pesquisa (Errasti-Ibarrondo et al., 2019Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2019). Van Manen's phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry, 26(1), p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1111/nin.12259
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).

Ao longo do tempo, diferentes correntes de pensamento fenomenológico (a fenomenologia descritiva, a hermenêutica e a híbrida da Escola de Utrecht) foram se definindo e buscando cobrir a lacuna deixada pelos criadores da fenomenologia (Gil & Silva, 2015Gil, A. C., & Silva, S. P. M. (2015). O método fenomenológico na pesquisa sobre empreendedorismo no Brasil. Revista de Ciências da Administração, v. 1, n. 1, p. 99-113. https://doi.org/10.5007/2175-8077.2015v17n41p99
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). Diferentes modelos foram sugeridos para a condução de pesquisa fenomenológica, a partir da orientação filosófica de seus autores: Van Kann (1959)Van Kann, A. (1959). Phenomenological analysis: exemplified by a study of the experience of really feeling understood. Journal of Individual Psychology, USA, v. 15, p. 66-72., Colaizzi (1978)Colaizzi, P. F. (1978). Psychological research as the phenomenologist views it. e Giorgi (1985)Giorgi, A. (1985). The phenomenological psychology of learning and the verbal learning tradition. In: Giorgi, A. Phenomenology and pshycological research. Pittsburg: Duquesne University. apresentaram propostas que se alinham à fenomenologia descritiva; Diekelmann, Allen e Tanner (1989)Diekelmann, N., Allen, D., & Tanner, C. (1989). The NLN criteria for appraisal of baccalaureate programs: A critical hermeneutic analysis (NLN Publication No. 15-2253). New York, NY: National League for Nursing. sugeriram procedimentos alinhados à fenomenologia hermenêutica; e Van Manen (1990)Van Manen, M. (1990). Researching lived experience: human science for an action sensitive pedagogy. New York (NY): SUNY Press., como principal nome da Escola de Utrecht, propõe que o estudo fenomenológico seja realizado de maneira eclética e aberta, ou seja, com a triangulação de perspectivas de diferentes pensadores, sem restringí-lo a procedimentos padronizados fechados que não estimulam a reflexão radical (Gil & Silva, 2015Gil, A. C., & Silva, S. P. M. (2015). O método fenomenológico na pesquisa sobre empreendedorismo no Brasil. Revista de Ciências da Administração, v. 1, n. 1, p. 99-113. https://doi.org/10.5007/2175-8077.2015v17n41p99
https://doi.org/10.5007/2175-8077.2015v1...
).

Errasti-Ibarrondo et al. (2019)Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2019). Van Manen's phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry, 26(1), p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1111/nin.12259
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destacam que, diante da existência de diversas abordagens filosóficas, existe uma grande variedade de abordagens e maneiras de conduzir a pesquisa fenomenológica. No entanto, há muitos pontos de consonância entre as correntes. As três abordagens: (a) dão mais ênfase à descrição do que à explicação; (b) destacam a necessidade da suspensão (epoché) sobre o que se pensa e o que se sabe sobre o fenômeno a fim de se chegar a essência do fenômeno; (c) recomendam o uso da variação imaginativa para clarear os temas ou essências durante a análise dos dados; (d) reconhecem que o foco de qualquer investigação fenomenológica está no fenômeno em si; e (e) concordam que o material empírico da pesquisa resulta das manifestações dos sujeitos acerca da experiência vivida, obtidas principalmente mediante entrevistas ou relatos escritos. Os procedimentos de análise são variáveis, sendo possível, de acordo com Van Manen (1990)Van Manen, M. (1990). Researching lived experience: human science for an action sensitive pedagogy. New York (NY): SUNY Press., a proposição de uma nova abordagem de análise de dados.

Com a demanda de se “fazer” fenomenologia e não apenas refleti-la de um modo acadêmico, surge a fenomenologia da prática, denominação atribuída por Max Van Manen. Este tipo de perspectiva de fenomenologia consiste em uma forma de pesquisa que busca abordar o modo como agimos e nos relacionamos enquanto pessoas e profissionais inseridos no mundo (Errasti-Ibarrondo et al., 2019Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2019). Van Manen's phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry, 26(1), p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1111/nin.12259
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).

Apesar de possuir raízes na fenomenologia filosófica pura, a fenomenologia da prática diferencia-se por ter como finalidade o estudo das práticas do cotidiano e não o estudo teórico-filosófico. Logo, as pesquisas realizadas com esta abordagem não têm fins teóricos prescritivos da prática, mas sim buscam possibilitar “a criação de relações formativas entre o ser e o agir, entre quem somos e como agimos, entre a reflexão e o tato” (Van Manen, 2007Van Manen, M. (2007). Phenomenolgy of practice. Phenomenology & Practice. (1)1: 11-30. https://doi.org/10.29173/pandpr19803
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, p. 13).

Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., ao apresentar a Fenomenologia da Prática, descreve um caminho, assim como diretrizes a serem adotadas na realização de uma pesquisa fenomenológica. Ao propor uma combinação de sugestões metodológicas, o autor também apresenta métodos que integram a aplicação prática do método fenomenológico-hermenêutico.

Este artigo tem como objetivo propor um Protocolo de Percepção de uma Prática (3Ps da Pesquisa) e pode auxiliar pesquisadores interessados em compreender a gestão hoteleira como prática.

O artigo contribui para o avanço da prática da pesquisa no campo das organizações hoteleiras em quatro dimensões: a) utiliza a fenomenologia da prática como base epistemológica e metodológica para a realização de pesquisas no contexto hoteleiro; b) propõe um protocolo de pesquisa para auxiliar pesquisadores no desenvolvimento de estudos no turismo e na hotelaria; c) corrobora com a formação de pesquisadores nas áreas de turismo e hotelaria e; d) propõe uma perspectiva alternativa para analisar e compreender as práticas nas organizações turísticas e hoteleiras.

A próxima seção aborda as etapas essenciais para a realização de um estudo baseado na fenomenologia da prática, bem como as particularidades dos procedimentos de coleta e análise do material empírico. Em seguida, apresentamos as etapas da proposta de 3Ps da Pesquisa e, finalmente, suscitamos algumas reflexões sobre a sua aplicação nos estudos organizacionais no contexto de turismo e hotelaria.

2 FENOMENOLOGIA DA PRÁTICA

A partir de estudos desenvolvidos por pesquisadores fenomenológicos da Utrecht School, Van Manen escreveu o livro Phenomenology of practice: meaning-giving methods in phenomenological research and writing, publicado em 2014, dedicado à fenomenologia da prática, configurando-se como um guia no qual os pesquisadores podem encontrar apoio para a pesquisa fenomenológica (Errasti-Ibarrondo et al., 2019Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2019). Van Manen's phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry, 26(1), p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1111/nin.12259
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; Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.).

Em sua proposta metodológica para o estudo da experiência vivida, Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. não estabelece um método específico, como tem sido feito por outros autores. Para ele, definir um método seria limitar as possibilidades de se fazer um estudo dessa natureza e reduzir o seu potencial. Logo, o autor defende uma metodologia aberta, para que o investigador faça o seu próprio percurso na pesquisa fenomenológica.

Em consonância com Merleau-Ponty (2010)Merleau-Ponty, M. (2010). Phenomenology of perception. New York (NY): Routledge Classics. ISBN: 9780415834339, que concebe a reflexão fenomenológica como uma reflexão radical, Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. destaca a necessidade de o pesquisador fenomenológico ter uma atitude de abertura para aquilo que se manifesta, mediante uma reflexão particularmente sensível e cuidadosa para observar as sutilezas do cotidiano. Para o autor, uma pesquisa fenomenológica não é apenas um conjunto de procedimentos sequenciados, com etapas isoladas.

Embora Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. enfatize a relevância de efetuar algumas tarefas seguindo uma ordem e destaque a necessidade da realização de determinadas “etapas” como a epoché, a redução e o vocativo, o autor rejeita que estas sejam realizadas em passos engessados, considerando que elas não ocorrem em uma ordem pré-determinada e que vários procedimentos do método ocorrem de forma simultânea, sem afirmar onde termina um e começa outro (Pereira, 2015Pereira, P. S. (2015). Fenomenologia da prática. Revista de Enfermagem UFPE, v. 9, n. 10, p. 9608-9615. doi: 10.5205/reuol.7944-69460-1-SM.0910201525.
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; Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.).

Além da proposta de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. se mostrar pluralista por reunir um conjunto de perspectivas de diferentes pesquisadores, é também aberta, pois o autor não estabelece procedimentos fechados e padronizados, que possam vir a bloquear a reflexão radical pretendida em um estudo fenomenológico.

Nas pesquisas fenomenológicas são utilizados diversos métodos empíricos para a coleta de material e métodos reflexivos para sua análise (Errasti-Ibarrondo et al., 2019Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2019). Van Manen's phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry, 26(1), p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1111/nin.12259
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). No entanto, ainda que sejam aplicados instrumentos comuns a outros tipos de investigação de caráter qualitativo (entrevista, observação, participação) (Silveira, Guerra & Gonçalvez, 2012Silveira, R. Z., Guerra, A. C., & Gonçalves, C. A. (2012) A Aplicação da Fenomenologia nos Estudos Organizacionais no Brasil. Administração: Ensino e Pesquisa, v. 13, n. 2, p. 269-300. ISNN 2177-6083. https://doi.org/10.13058/raep.2012.v13n2.92
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; Silveira, Fischer & Olivier, 2010Silveira, R. Z., Fischer, C., & Olivier, M. A. (2010). Fenomenologia como Método de Pesquisa: uma Análise a Partir dos Trabalhos Publicados nos Principais Eventos e Revistas Nacionais em Administração - 1997 a 2008. In: EnANPAD, 34, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPAD.), nos estudos fenomenológicos esses procedimentos são realizados de um modo diferente (Gil & Silva, 2015Gil, A. C., & Silva, S. P. M. (2015). O método fenomenológico na pesquisa sobre empreendedorismo no Brasil. Revista de Ciências da Administração, v. 1, n. 1, p. 99-113. https://doi.org/10.5007/2175-8077.2015v17n41p99
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).

A fenomenologia busca coletar relatos de experiências vividas, sobretudo pré-refletidas, uma vez que se busca apurar descrições que relatem tanto quanto possível a experiência tal como foi vivida no momento em que aconteceu. Conforme destacam Panosso Netto e Nechar (2014, p. 132)Panosso Netto, A. P., & Nechar, M. C. (2014). Epistemologia do turismo: escolas teóricas e proposta crítica. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, 8(1), 120-144. https://doi.org/10.7784/rbtur.v8i1.719
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, em relação ao fenômeno turístico, a fenomenologia “permite a interpretação do fato em si”, tal como é, evidenciando aspectos fundamentais na definição do que é e o que representa esse fenômeno.

Como o foco é na experiência e não na pessoa em particular, a compreensão do fenômeno ocorre a partir de fontes que tenham valor de posse de uma experiência. Logo, podem ser utilizados nos estudos fenomenológicos entrevistas, relatos pessoais (contados ou escritos), observação de experiências, descrições na literatura ou outras fontes artísticas. Ressalta-se que estas descrições devem ser concedidas sem interpretações; logo, preza-se por fontes e/ou relatos ricos e detalhados. A soma desses recursos permitirá, por meio da reflexão, levantar temas que orientarão a reflexão acerca do fenômeno em estudo para a criação do texto fenomenológico (Pereira, 2015Pereira, P. S. (2015). Fenomenologia da prática. Revista de Enfermagem UFPE, v. 9, n. 10, p. 9608-9615. doi: 10.5205/reuol.7944-69460-1-SM.0910201525.
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; Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.).

A análise do material coletado também é particular nos estudos fenomenológicos, tendo em vista que o processo é fundamentalmente reflexivo. A epoché e a redução se estendem por todo o processo de pesquisa, sendo imprescindível também na etapa da análise do material empírico. Epoché e redução são etapas centrais na pesquisa fenomenológica. Os termos, introduzidos por Husserl, ainda que possam ser compreendidos como elementos opostos, são, na totalidade da pesquisa, complementares e interrelacionados. Enquanto a epoché ou suspensão pressupõe uma abertura de nós mesmos à experiência e uma tentativa para suspender o que pensamos ou o que sabemos sobre o fenômeno, a redução é o movimento de retorno ao modo como o fenômeno se manifesta, ou seja, voltar ao modo como o fenômeno aparece, ir ao sentido original.

Em outras palavras, a epoché contribui para uma “descoberta menos contaminada”, “livre de pré-juízos” ou “pré-conceitos”, abrindo o caminho para a redução, possibilitando “a análise e reflexão do fenômeno em sua essência” (Pereira, 2015Pereira, P. S. (2015). Fenomenologia da prática. Revista de Enfermagem UFPE, v. 9, n. 10, p. 9608-9615. doi: 10.5205/reuol.7944-69460-1-SM.0910201525.
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; Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.). Nesse sentido, o investigador fenomenológico deve estar livre de suposições, pré-conceitos ou expectativas sobre o que irá encontrar no campo para que a análise do material coletado chegue à essência do fenômeno (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.).

O texto fenomenológico cumpre com sua finalidade quando esclarece o leitor acerca das experiências vivenciadas. Gallagher e Zahavi (2008)Gallagher, S., & Zahavi, D. (2008). The Phenomenological Mind: an introduction to philosophy of mind and cognitive science. London/New York: Routledge. ressaltam que a fenomenologia tem que fornecer uma compreensão da experiência subjetiva e não uma descrição subjetiva da experiência. Logo, a escrita tem muita importância na fenomenologia, na medida em que a partir dela se procura descrever a experiência vivida. Para isso, contrariamente a um texto com uma linguagem técnica, Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. destaca que o texto deverá apresentar a dimensão vocativa, que se destaca como sendo um imperativo estético (Marandola Júnior, 2016Marandola JR, E. (2016). Identidade e Autenticidade dos Lugares: O pensamento de Heidegger em place and placelessness, de Edward Relph. Geografia, v. 41, n. 1.) da pesquisa fenomenológica, a fim de evidenciar a dimensão prática do fenômeno. O texto evidencia a reflexão que compõe a essência da experiência.

O texto fenomenológico procura retratar na íntegra um fenômeno. Ainda que os pesquisadores fenomenológicos reconheçam a impossibilidade de atingir uma objetividade absoluta, considerando que a pesquisa é um empreendimento humano, em que perguntas são feitas e respondidas pelas pessoas que participam de um estudo, recomenda-se que as descrições fenomenológicas sejam objetivas e permitam ao leitor sentir a experiência. Em outras palavras, a descrição da experiência é validada como uma experiência que outros poderiam plausivelmente ter (Standal, 2014Standal, Ø. F. (2014) Phenomenology and adapted physical activity: Philosophy and professional practice. Adapted Physical Activity Quarterly, v. 31, n. 1, p. 35-48. https://doi.org/10.1123/apaq.2012-0064
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).

Silva (2010)Silva, A.B. (2010). A fenomenologia como método de pesquisa em estudos organizacionais. In: Godoi, C.K., Bandeira-De-Mello, R., & Silva, A.B. (Org.). Pesquisa Qualitativa em Estudos Organizacionais: Paradigmas, Estratégias e Métodos. 2 ed.São Paulo: Saraiva, p. 277-307. utilizou o método fenomenológico proposto por Van Manen (1990)Van Manen, M. (1990). Researching lived experience: human science for an action sensitive pedagogy. New York (NY): SUNY Press. e propôs um processo estruturado de análise denominado de “análise compreensiva interpretativa”, com o objetivo de auxiliar pesquisadores na condução do processo de análise de entrevistas a partir da estruturação dos resultados da pesquisa estruturados por meio de categorias temáticas.

O processo de pesquisa e de escrita caracterizam um mesmo processo (Errasti-Ibarrondo et al., 2018Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2018). Conducting phenomenological research: Rationalizing the methods and rigour of the phenomenology of practice. Journal of Advanced Nursing, v. 74, p. 1723–1734. 2018. https://doi.org/10.1111/jan.13569
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) e o texto fenomenológico tem que proporcionar ao leitor a “vivacidade da experiência”, promovendo a sua própria reflexão acerca do que foi vivido, a fim de gerar uma compreensão intuitiva, por meio de insights que explorem o sentido não cognitivo do fenômeno, ou seja, a dimensão sensível da experiência, que dificilmente pode ser captada por textos objetivos. Assim, na fenomenologia se recorre a diferentes recursos, como um exemplo, uma ilustração, uma metáfora, uma ficção, uma pintura, um poema ou mesmo uma música, a fim de melhor transmitir a dimensão subjetiva de um fenômeno. Assim, a linguagem escrita é utilizada para “trazer vividamente a experiência à presença” (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., p. 241).

O texto fenomenológico caracteriza-se ainda por ser questionador, desafiante e impactante. O objetivo é levar o leitor a refletir e promover insights acerca do fenômeno. Esta compreensão poderá surgir como uma “epifania”, no sentido de trazer para o consciente aquilo que estava escondido, sendo o leitor surpreendido por uma compreensão intuitiva acerca do significado da experiência que ilumina o seu entendimento (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.).

A proposta metodológica da fenomenologia da prática de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. inspirou o desenvolvimento de uma metodologia própria para compreender e analisar uma prática no contexto da hotelaria. Apesar do processo de pesquisa envolvendo uma prática abranger o contexto e o coletivo, entende-se que a partir das experiências dos sujeitos envolvidos numa prática, pode-se analisá-la porque a experiência vivida dos sujeitos como uma prática se reflete nas ações coletivas e no contexto onde o sujeito atua. Essa dinâmica entre contexto e ação na gestão de um hotel, por exemplo, é um campo de pesquisa que tem na fenomenologia da prática perspectiva metodológica com potencial de contribuição para o avanço de estudos na área.

Assim, fundamentando-se nas orientações Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., propomos um Protocolo de Percepção da Prática (3Ps da pesquisa), que pode ser utilizado na realização de estudos em organizações hoteleiras que objetivem compreender e analisar uma prática.

3 PROTOCOLO DE PERCEPÇÃO DE UMA PRÁTICA (3PS DA PESQUISA)

A proposição de um protocolo de pesquisa demanda a utilização de diferentes técnicas de coleta e análise de material empírico, e é o principal objetivo desta seção. Seguindo a recomendação de Nicolini (2013)Nicolini, D. (2013). Practice Theory, Work, & Organization: an introduction. Oxford: Oxford University Press. ISBN 978-0-19-923159-1, podemos delimitar um “combo” de ferramentas com alternativas metodológicas que podem ajudar o pesquisador a alcançar, em profundidade, a compreensão do fenômeno da prática.

A imersão no campo baseada na fenomenologia como método, somada à triangulação de diferentes estratégias de pesquisa, permite ampliar o envolvimento de pesquisadores na prática estudada no cotidiano organizacional, bem como assegurar confiabilidade e profundidade aos resultados (Pimentel & Nogueira, 2018Pimentel, R., & Nogueira, E. E. S. (2018). Estudos baseados na prática: possibilidades metodológicas para pesquisas em estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, v. 25, n. 86, p. 350-370. https://doi.org/10.1590/1984-9250861
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).

Os estudos no local de trabalho (workplace studies) são apontados por Gherardi (2006)Gherardi, S. (2006). Organizational knowledge: the texture of workplace learning. Oxford: Blackwell Publishing. ISBN 9781405125598 como uma das maneiras de enxergar as práticas no contexto do trabalho, a fim de conhecer as rotinas tácitas do contexto e compreender como as formas de realizar as atividades são incorporadas pelos indivíduos.

Nos Estudos Baseados em Prática (EBP), por exemplo, um local de trabalho não é compreendido apenas na sua condição física, de forma estática, e sim como algo dinâmico, construído socialmente por meio das interações entre os atores e, também, dos artefatos e tecnologias presentes no ambiente (Bispo & Godoy, 2012Bispo, M. de S., & Godoy, A. S. (2012). A etnometodologia enquanto caminho teórico-metodológico para investigação da aprendizagem nas organizações. RAC-Revista de Administração Contemporânea, v. 16, n. 5, p. 684-704. ISSN 1415-6555 (Print) 1982-7849 (Online). https://doi.org/10.1590/S1415-65552012000500004
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; Gherardi, 2006Gherardi, S. (2006). Organizational knowledge: the texture of workplace learning. Oxford: Blackwell Publishing. ISBN 9781405125598).

O Protocolo de Percepção de uma Prática para a realização de estudos em organizações hoteleiras, desenvolvido à luz da fenomenologia da prática, consiste em 4 fases: (a) a primeira referente à preparação para entrada no campo; (b) a segunda envolve a primeira etapa de imersão fenomenológica no campo utilizando o shadowing, com registro de observações e conversas informais em um diário de campo, (c) a terceira consiste na realização de entrevistas em profundidade estruturadas a partir da proposta de Seidman (2006)Seidman, I. E. (2006). Interviewing as qualitative research: A guide for researchers in education and the social sciences. Teachers College Press. e nas orientações de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., que configura a segunda etapa da imersão fenomenológica, e (d) a quarta fase abrange a descrição e análise do material empírico, realizada com base nas recomendações de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. sobre o “texto fenomenológico”, nas orientações de Strati (2007)Strati, A. (2007). Organização e Estética. Tradução Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro: Editora FGV. sobre a técnica do “texto aberto” e nas considerações de Cloutier (2016)Cloutier, C. (2016). How I write: An inquiry into the writing practices of academics. Journal of Management Inquiry, v. 25, n. 1, p. 69-84. https://doi.org/10.1177/1056492615585875
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sobre a escrita do texto. Cada uma das fases é detalhada a seguir.

3.1 Fase 1 - preparação para entrada no campo

Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. destaca que a epoché e a redução são etapas fundamentais na pesquisa fenomenológica. Logo, o processo de entrada no campo demanda de um(a) pesquisador(a) uma suspensão sobre o que pensa e sabe sobre o fenômeno, para observar o modo como ele se manifesta, ou seja, ir ao sentido original, à experiência primitiva, buscando, assim, uma descoberta menos “contaminada” por pré-julgamentos, possibilitando a análise e reflexão do fenômeno em sua essência.

Para observar a prática e buscar captar a percepção que represente a singularidade do contexto, tentando evitar que os juizos de valor interfiram nas observações, o(a) pesquisador(a) precisa desenvolver a atitude fenomenológica, que consiste num ‘estilo de pensamento’ (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.), um interesse profundo e permanente no fenômeno (Errasti-Ibarrondo et al., 2018Errasti-Ibarrondo, B., Jordán, J. A., Díez-Del-Corral, M. P., & Arantzamendi, M. (2018). Conducting phenomenological research: Rationalizing the methods and rigour of the phenomenology of practice. Journal of Advanced Nursing, v. 74, p. 1723–1734. 2018. https://doi.org/10.1111/jan.13569
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).

Uma ação relevante envolve realizar leituras de outros estudos fenomenológicos para se inspirar nos comportamentos dos pesquisadores que utilizam essa abordagem, assim como buscar aguçar suas percepções sensoriais utilizando como exercício contínuo as observações de elementos subjetivos em suas práticas cotidianas pessoais como, por exemplo, ao realizar uma reserva de hospedagem (seja por e-mail ou por contato telefônico), ao se hospedar em um hotel e vivenciar diversas experiências de consumo em um meio de hospedagem (alimentação, lazer, etc.).

Além disso, os pesquisadores interessados em utilizar o protocolo devem realizar uma autorreflexão sobre seus comportamentos e emoções visando desenvolver a capacidade de observar o contexto sem realizar inferências pessoais, o que demanda conhecimento de si e do outro. Ao realizar uma pesquisa desta natureza em uma organização hoteleira, o pesquisador vai vivenciar junto aos atores sociais da pesquisa diferentes experiências emocionais inerentes às relações interpessoais (entre colaboradores, clientes, gerentes, investidores e fornecedores) existentes na organização. Logo, o conhecimento e o controle emocional são essenciais para não se deixar envolver e interferir nas práticas que estão sendo observadas.

3.2 Fase 2 – imersão fenomenológica no campo: etapa I – shadowing

A fase de imersão fenomenológica deste protocolo envolve dois momentos: primeiramente recomendamos a utilização da técnica do shadowing, bastante aplicada nos estudos baseados em prática e, posteriormente, a realização de entrevistas em profundidade com os atores sociais da pesquisa.

A aplicação da técnica do shadowing, método de pesquisa que consiste em acompanhar uma pessoa continuamente durante o seu dia de trabalho (Czarniawska, 2008Czarniawska, B. (2008). Organizing: how to study it and how to write about it. Qualitative Research in Organizations and Management: An International Journal, v. 3 n. 1, p. 4-20. https://doi.org/10.1108/17465640810870364
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), é recomendada a fim de observar e entender suas interações, práticas e contextos. Ao utilizar esse método, é possível chegar a constatações que dificilmente seriam detectadas por meio de outros métodos (Czarniawska, 2008Czarniawska, B. (2008). Organizing: how to study it and how to write about it. Qualitative Research in Organizations and Management: An International Journal, v. 3 n. 1, p. 4-20. https://doi.org/10.1108/17465640810870364
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; Gill, Barbour & Dean, 2014Gill, R., Barbour, J., & Dean, M. (2014). Shadowing in/as work: ten recommendations for shadowing field work practice. Qualitative Research in Organizations and Management: An International Journal, v. 9. n. 1, p. 69-89. https://doi.org/10.1108/QROM-09-2012-1100
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), em especial, em um contexto tão dinâmico e complexo, como é o caso das organizações hoteleiras.

Nesta fase da pesquisa, o(a) pesquisador(a) deve desenvolver o seu conhecimento sensível a partir do sombreamento dos sujeitos em ação, acompanhando in loco durante um período mínimo de uma semana toda a sua jornada de trabalho. Recomendamos a utilização de um diário de campo para o registro das observações sobre as práticas, os comportamentos humanos, os vínculos entre os elementos humanos (atores sociais) e não humanos (objetos, artefatos), o ambiente, a atmosfera do trabalho e as relações intra e interpessoais. Nesse período, ocorre um processo reflexivo dos sujeitos da pesquisa sobre sua prática. Para captar a percepção sobre o contexto da atuação profissional, devem ser realizadas conversas informais com vários profissionais que atuam com os participantes da pesquisa, visando compreender, em profundidade, os elementos que caracterizam a prática.

As observações devem ser registradas no diário de campo e, posteriormente, transcritas para um editor de texto eletrônico. Durante as notas de campo, recomendamos anotar o tempo dedicado as observações diariamente. Para a identificação do sujeito da pesquisa durante a etapa de observação, pode-se adotar um nome fictício. Durante a observação da prática de um sujeito, o(a) pesquisador(a) também tem a oportunidade de perceber a dinâmica e a complexidade do cotidiano da prática e os vínculos com outros sujeitos da pesquisa, ampliando a sua percepção do fenômeno em análise para o nível das interações sociais.

A adoção do shadowing é muito comum na realização de pesquisas visando compreender e analisar uma prática e um questionamento de pesquisadores que utilizam a fenomenologia é que essa técnica pode não ser coerente com o nível de análise da fenomenologia, orientada para a experiência vivida das pessoas. Como o ambiente é fundamental para compreender a prática e como as pessoas a vivenciam, o uso da observação pode auxiliar pesquisadores a perceberem que a experiência vivida, que tem a sua singularidade, é vivida em um contexto particular e o vínculo entre níveis de análise (individual e contextual) é fundamental para compreender um fenômeno. Adotar a atitude fenomenológica é determinante na realização do shadowing, de modo que a percepção da prática pelo(a) pesquisador(a) não seja contaminada com pré-julgamentos e juízos de valor, que podem interferir na análise do fenômeno.

O shadowing dos atores sociais do estudo também auxilia na aproximação do(a) pesquisador(a) com o campo e com os sujeitos da pesquisa, que podem se sentir mais à vontade para falar abertamente sobre as suas experiências vividas no contexto da prática, assim como auxiliar os pesquisadores a compreender em maior profundidade o cotidiano da prática dos sujeitos, uma vez que vivenciam junto ao sujeitos boa parte das situações e que podem servir de base para a definição dos temas da entrevista, segunda etapa da imersão fenomenológica no campo.

3.3 Fase 3 – imersão fenomenológica no campo: etapa II – entrevistas em profundidade

A compreensão do cotidiano da prática dos sujeitos da pesquisa, realizada a partir do shadowing, tem um papel determinante na realização das entrevistas, pois pode auxiliar os pesquisadores a definir os principais temas que serão abordados nessa etapa.

As entrevistas fenomenológicas são consideradas uma estratégia poderosa para alcançar uma compreensão das experiências. No protocolo proposto, as entrevistas seguem as orientações de Seidman (1991)Seidman, I. E. (1991). Interviewing as qualitative research. A Guide for Researchers in Education and the Social Sciences. Columbia: Teachers College Press. e as recomendações de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.. O modelo proposto por Seidman (2006)Seidman, I. E. (2006). Interviewing as qualitative research: A guide for researchers in education and the social sciences. Teachers College Press., que combina entrevistas sobre histórias de vida seguindo os pressupostos da fenomenologia, envolve três momentos distintos com o mesmo sujeito de pesquisa. Conforme o autor, na primeira seção de entrevista, o(a) pesquisador(a) deve estabelecer uma aproximação ao contexto da experiência dos participantes; já no segundo momento, deve permitir que os participantes reconstruam os detalhes de sua experiência dentro do contexto em que ocorreram; e, por fim, a terceira etapa da entrevista deve incentivar os participantes a refletirem sobre os significados das experiências vividas.

No Protocolo de Percepções de uma Prática, o que Seidman (1991)Seidman, I. E. (1991). Interviewing as qualitative research. A Guide for Researchers in Education and the Social Sciences. Columbia: Teachers College Press. orienta como primeiro momento de entrevista envolve a etapa do shadowing. Esta primeira etapa da pesquisa geralmente possibilita um extenso material empírico, obtido por meio das observações e das conversas informais registradas no diário de campo.

As outras duas etapas da entrevista recomendadas por Seidman (1991)Seidman, I. E. (1991). Interviewing as qualitative research. A Guide for Researchers in Education and the Social Sciences. Columbia: Teachers College Press. devem ser realizadas em dois momentos distintos com duração aproximada de 90 minutos cada uma delas. No protocolo proposto neste estudo, existe a flexibilidade de realizar as duas entrevistas ou apenas uma delas, dependendo do objetivo e da disponibilidade dos sujeitos da pesquisa.

A depender da natureza do trabalho dos sujeitos da pesquisa também podemos adotar a estratégia de entrevista em profundidade com pausas. Isso permite que uma entrevista seja realizada ao longo de várias horas do dia no contexto da atuação profissional do sujeito, com pausas decorrentes da necessidade de realização de atividades profissionais, o que é muito comum no setor de turismo e hotelaria.

Nas entrevistas pausadas, o objetivo é levar os sujeitos a reconstruírem os detalhes das experiências vivenciadas dentro do cotidiano organizacional e refletirem sobre os significados dessas experiências. Seguindo a recomendação de Seidman (2006Seidman, I. E. (2006). Interviewing as qualitative research: A guide for researchers in education and the social sciences. Teachers College Press., 1991)Seidman, I. E. (1991). Interviewing as qualitative research. A Guide for Researchers in Education and the Social Sciences. Columbia: Teachers College Press., a entrevista vai além das memórias e recordações dos informantes, ao solicitar que eles reconstruam suas experiências elucidando seus detalhes.

Apesar de ser um processo cansativo para o pesquisador, a entrevista pausada pode atender as particularidades de vários estudos, pois permite aos sujeitos responderem a determinadas questões enquanto praticam a gestão, gerando o menor impacto possível em sua rotina, bem como pode aprimorar o processo de coleta de dados da pesquisa, uma vez que durante as pausas para atender as demandas da prática, o sujeito não se desconecta do tema da entrevista e passa a refletir sobre o que está sendo abordado, como também é uma tentativa de alcançar maior nível de profundidade na análise do fenômeno.

Geralmente, o roteiro de entrevistas é semiestruturado, com a indicação dos principais tópicos a serem abordados. O roteiro pode ser definido a partir da análise dos registros do diário de campo, realizados durante a etapa do shadowing. Ressaltamos que o uso de um roteiro pré-estabelecido deve ser utilizado para conduzir as entrevistas, sem, no entanto, restringi-las. Logo, alguns questionamentos reflexivos, que não constam no roteiro, podem emergir ao longo do processo.

Algumas observações de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. sobre o planejamento das entrevistas também devem ser consideradas, sobretudo as relacionadas a “onde”, “quando” e “como” realizar uma entrevista fenomenológica.

Ao abordar sobre o local adequado para a realização das entrevistas, o autor destaca que essa técnica “nem sempre é melhor conduzida em ambientes formais, como escritórios” (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., p. 315). De acordo com Van Manen (2014, p. 315)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., “as pessoas estão mais inclinadas a lembrar e contar histórias de vida quando os arredores são propícios a pensar nessas experiências”. O autor ainda enfatiza que “algumas entrevistas são melhor realizadas na mesa da cozinha, em uma cafeteria ou em qualquer outro ambiente que pareça adequado” (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., p. 315). Na realização de entrevistas em um hotel, por exemplo, essa especificidade indicada por Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. é muito comum. Em um estudo com gerentes de hotéis, por exemplo, a entrevista realizada com pausas pode ocorrer em vários espaços do hotel e essa ligação entre sujeito e contexto é mais uma especificidade do protocolo proposto.

Sobre o momento adequado para a realização da entrevista, Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. destaca que o pesquisador deve tentar agendar com o participante um horário em que a entrevista possa ser concedida sem pressa. Conforme o autor, “Tomar um café ou uma refeição juntos cria a atmosfera, bem como o espaço de tempo para explorar a experiência” (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., p. 315). O uso de entrevistas pausadas pode ser uma alternativa para considerar essa observação de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445..

Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. aborda ainda as atitudes do entrevistador que propiciam uma entrevista bem-sucedida. Conforme o autor, “o pesquisador deve ser gentil para conquistar a confiança do entrevistado, principalmente, se o fenômeno em estudo tocar em assuntos frágeis”, enfatizando a importância de se “desenvolver um relacionamento de compartilhamento pessoal, proximidade ou amizade antes de abrir seriamente o tópico da pesquisa” (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., p. 315). Essa esfera interacional, que contribui para o sucesso de uma entrevista, pode ser conquistada durante o período de imersão no campo da pesquisa, na fase do shadowing.

A aproximação entre entrevistador e entrevistado durante a fase do shadowing permite o estabelecimento de uma relação de confiança. Entretanto, o pesquisador deve ter o cuidado e realizar um esforço para evitar reforçar alguma fala do entrevistado, para não correr o risco de distorcer as respostas dos participantes. Segundo Seidman (2006)Seidman, I. E. (2006). Interviewing as qualitative research: A guide for researchers in education and the social sciences. Teachers College Press., o ato de reforçar as falas dos participantes, durante a entrevista, seja positiva, seja negativamente — com expressões como “unhum”, “sim”, “não”, pode comprometer a qualidade/veracidade das informações e não retratar de forma adequada a experiência do entrevistado.

Buscando a profundidade da entrevista, também deve-se seguir a recomendação de Van Manen ao afirmar que perguntas como “Você pode dar um exemplo? Você se lembra de um incidente em particular?” auxilia o pesquisador a chegar na essência do que está sendo investigado na pesquisa (Van Manen, 2014Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., p. 315).

Sobre o processo de coleta do material empírico, Van Manen (2014, p. 315)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. destaca que “se possível, deve-se coletar relatos de experiências pessoais por meio de conversas gravadas”. Considerando a relevância desse recurso para não perder informações, o gravador de voz deve ser utilizado em todas as entrevistas, com o consentimento livre e esclarecido dos participantes, de acordo com os protocolos de ética em pesquisa.

Cabe ressaltar que as questões elaboradas previamente apenas se configuraram como direcionamentos reflexivos utilizados na pesquisa. Além disso, os questionamentos utilizados para fomentar reflexões nos sujeitos da pesquisa ao longo dessa fase não devem se limitar aos indicados no roteiro de entrevista, pois seguir um script engessado de coleta de material empírico vai de encontro aos pressupostos metodológicos da fenomenologia como prática.

3.4 Fase 4– descrição e análise do material empírico

A última fase do Protocolo de Percepção de uma Prática (3Ps) foi estruturada a partir das orientações de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. sobre o “texto fenomenológico” e a técnica do “texto aberto” (Strati, 2007Strati, A. (2007). Organização e Estética. Tradução Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro: Editora FGV.). Essa fase consiste na estruturação do texto final, na qual são realizadas a apresentação e a análise das observações e dos relatos dos atores sociais da pesquisa, buscando evidenciar a dimensão prática do fenômeno.

Nesta etapa, recomendados ter uma preocupação especial com a escrita do texto, levando-se em consideração o que Cloutier (2016, p. 69)Cloutier, C. (2016). How I write: An inquiry into the writing practices of academics. Journal of Management Inquiry, v. 25, n. 1, p. 69-84. https://doi.org/10.1177/1056492615585875
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enfatiza, em seu artigo intitulado How I write: an inquiry in to thew riting practices of academics: “como escrevemos está intimamente interligado ao como os outros são convencidos pelo que temos a dizer”.

A autora apresenta um caminho reflexivo para os pesquisadores e escritores avaliarem suas práticas de escrita e, assim, produzir textos significativos sobre o que foi pesquisado, observado e teorizado na pesquisa (Cloutier, 2015Cloutier, C. (2016). How I write: An inquiry into the writing practices of academics. Journal of Management Inquiry, v. 25, n. 1, p. 69-84. https://doi.org/10.1177/1056492615585875
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), conforme se observa na Figura 1.

Figura 1
A diversidade de práticas inerentes à prática de escrita de um texto

É possível observar que a prática da escrita do texto compreende uma série de outras práticas (Cloutier, 2016Cloutier, C. (2016). How I write: An inquiry into the writing practices of academics. Journal of Management Inquiry, v. 25, n. 1, p. 69-84. https://doi.org/10.1177/1056492615585875
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), estando essas associadas ao processo reflexivo, à leitura, à elaboração de esquemas e aos diálogos realizados por um pesquisador ou pesquisadora enquanto elabora o texto fenomenológico, podendo-se, assim, caracterizar a prática da escrita, como uma atividade social, produzida a partir do contínuo envolvimento com os sujeitos da pesquisa, por meio dos diálogos, leituras e pensamentos (Cloutier, 2016Cloutier, C. (2016). How I write: An inquiry into the writing practices of academics. Journal of Management Inquiry, v. 25, n. 1, p. 69-84. https://doi.org/10.1177/1056492615585875
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). Essa perspectiva de cloutier revela a natureza singular da produção de um texto fenomenológico. O pesquisador atua como um bricoleur, que usa a sua habilidade para adaptar materiais diversos e ferramentas (Coffey & Atkinson, 1996Coffey, A., & Atkinson, P. (1996). Making sense of qualitative data. Thousand Oaks (CA): Sage.)

Somadas a isso, a análise e a apresentação dos resultados deve ser fundamentada nas premissas do texto fenomenológico, defendidas por Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445., dando ênfase ao imperativo estético, que se desdobra em diferentes modos de escrever que permitem que o intuitivo, o sensível e o não dizível encoberto possa se revelar no ato de escrita-leitura. Nesse sentido, a descrição fenomenológica permitirá ao leitor sentir a experiência (Standal, 2014Standal, Ø. F. (2014) Phenomenology and adapted physical activity: Philosophy and professional practice. Adapted Physical Activity Quarterly, v. 31, n. 1, p. 35-48. https://doi.org/10.1123/apaq.2012-0064
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).

Conforme Van Manen (2014, p. 320)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. orienta, deve-se realizar inicialmente o que o autor denomina de “wholistic reading approach”, isto é, a abordagem holística da leitura, fazendo a seguinte reflexão: “como o significado eidético, originário ou fenomenológico – principal significado do texto – como um todo, pode ser capturado?”. Em seguida, realiza-se a “selective reading approach”, ou seja, a abordagem seletiva da leitura, que se refere à etapa em que o texto deve ser lido várias vezes e com uma pergunta inicial: “que afirmação ou frase parece particularmente essencial ou reveladora sobre o fenômeno ou a experiência descrita?”. Por fim, chega-se à terceira etapa: “detailed reading approach”, ou seja, a abordagem detalhada da leitura, na qual se analisa cada frase ou conjunto de frases e pergunta-se “o que isso pode revelar sobre o fenômeno ou a experiência descrita?”. No Quadro 1, é possível visualizar trechos de relatos de uma pesquisa realizada no contexto hoteleiro sobre as etapas do processo de análise fenomenológica.

Aplicar a análise fenomenológica de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. é visualizar o texto como fonte de significado e explorar seus temas e ideias buscando a compreensão da história como um todo, do parágrafo separado, da sentença, da frase, da expressão e de uma única palavra que permita o acesso ao significado fenomenológico da experiência.

Conforme Van Manen (2014, p. 320)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. orienta, deve-se realizar inicialmente o que o autor denomina de “wholistic reading approach”, isto é, a abordagem holística da leitura, fazendo a seguinte reflexão: “como o significado eidético, originário ou fenomenológico – principal significado do texto – como um todo, pode ser capturado?”. Em seguida, realiza-se a “selective reading approach”, ou seja, a abordagem seletiva da leitura, que se refere à etapa em que o texto deve ser lido várias vezes e com uma pergunta inicial: “que afirmação ou frase parece particularmente essencial ou reveladora sobre o fenômeno ou a experiência descrita?”. Por fim, chega-se à terceira etapa: “detailed reading approach”, ou seja, a abordagem detalhada da leitura, na qual se analisa cada frase ou conjunto de frases e pergunta-se “o que isso pode revelar sobre o fenômeno ou a experiência descrita?”. No Quadro 1, é possível visualizar trechos de relatos de uma pesquisa realizada no contexto hoteleiro sobre as etapas do processo de análise fenomenológica.

Quadro 1
Exemplo da aplicação da análise fenomenológica de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445.

Aplicar a análise fenomenológica de Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. é visualizar o texto como fonte de significado e explorar seus temas e ideias buscando a compreensão da história como um todo, do parágrafo separado, da sentença, da frase, da expressão e de uma única palavra que permita o acesso ao significado fenomenológico da experiência.

Como recursos para a realização da “selective reading approach”, as notas de campo e os relatos dos entrevistados são organizados por categorias usando, por exemplo, formatações e recursos de mudança de cores de um editor de texto. Após a realização da “detailed reading approach”, é possível identificar as palavras mais recorrentes nos relatos das entrevistas, em cada categoria abordada. Um recurso que pode ser utilizado para exemplificar os termos-chaves interentes aos aspectos da pesquisa envolve a criação de “Word Clouds” - nuvens de palavras.

Uma nuvem de palavra é uma representação visual, utilizada para destacar a frequência com que um termo específico aparece em um conjunto de dados. Nesse sentido, quanto mais vezes uma palavra-chave estiver presente, maior e mais forte ela será e capaz de revelar os significados do fenômeno em análise.

O processo de codificação e análise de datos também pode ser realizado a partir de softwares de análise de dados, como o Nvivo ou Atlas.ti. Outra especificidade do processo de análise dos dados envolve a interpretação das constatações e a escrita das reflexões finais do estudo, que são estruturadas na forma de “texto aberto” (Strati, 2007Strati, A. (2007). Organização e Estética. Tradução Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro: Editora FGV., p. 116), que se caracteriza como um reexame do que foi observado, imaginado, vivido, lido e refletido sobre a prática no cotidiano onde o estudo foi realizado. No processo de interpretação, é estabelecida uma relação entre pesquisador, o que está sendo descrito e os autores que fundamentam o estudo.

Todo o material empírico coletado pode ser organizado em categorias de análises que emergiram no processo de coleta de dados, na etapa do shadowing e das entrevistas em profundidade. Um exemplo de categorias de análise é apresentado no Quadro 2.

Quadro 2
Exemplo de categorias de análise da pesquisa

Além da delimitação de categorias, é interessante que a apresentação e análise dos resultados incluam uma seção final, com reflexões que articulem todas as categorias de análise à luz do estado da arte sobre o tema.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A finalidade deste artigo foi propor um Protocolo de Percepção de uma Prática (3Ps da Pesquisa) para auxiliar pesquisadores interessados em investigar e compreender uma prática, no contexto do turismo e hotelaria, a partir de uma perspectiva fenomenológica.

O protocolo de pesquisa proposto neste trabalho foi elaborado a partir da experiência prática de pesquisadores que desenvolveram um estudo empírico sobre gestão como prática em um hotel, e sua estruturação e aplicação revelam sua potencial contribuição para os estudos organizacionais, por se configurar como uma “lente” alternativa para analisar e compreender as práticas nas organizações turísticas e hoteleiras.

Assumimos uma orientação mais propositiva em função da experiência vivenciada na prática da pesquisa, que possibilitou estabelecer as fases propostas neste artigo. Entretanto, ressaltamos que a proposta não é rígida e pode ser ajustada de acordo com a questão de pesquisa delimitada para compreender o fenômeno em estudo. O nosso interesse é que a proposta possibilite a geração de insighs nos pesquisadores que realizam estudos no contexto do turismo e hotelaria.

Estudar a prática à luz da fenomenologia demanda compreender práticas que envolvam essa relação entre a experiência vivida do sujeito e o cotidiano, e que essas dimensões individuais e coletivas podem ser percebidas de uma forma mais ampla quando o ponto de partida é a experiência e de como ela é vivenciada no cotidiano, nos vínculos entre os elementos humanos e não humanos envolvidos na prática. Isso significa que a proposta do 3Ps da Pesquisa pode não ser adequada para fenômenos relacionados à uma prática que não considerem as experiências vividas pelos sujeitos como determinantes para sua compreensão ou análise.

No entanto, considerando que a experiência humana é um dos elementos principais da atividade turística e hoteleira (Panosso Netto & Nechar, 2014Panosso Netto, A. P., & Nechar, M. C. (2014). Epistemologia do turismo: escolas teóricas e proposta crítica. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, 8(1), 120-144. https://doi.org/10.7784/rbtur.v8i1.719
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; Panosso Netto, 2011Panosso Netto, A. (2011). Filosofia do turismo: teoria e epistemologia. 2.ed. São Paulo: Aleph. ISBN: 9788576571094.), e por isso a aplicação do método de pesquisa fenomenólogica apresentada nesse estudo, tem potencial de contribuição (teórica, prática e sociais) significativa para compreender fenômenos vivenciados por pessoas que atuam no contexto do turismo e hotelaria.

Entendemos que os 3Ps da Pesquisa podem auxiliar o pesquisador na condução de estudos em organizações turísticas e hoteleiras, e tem potencial contribuição metodológica e prática para pesquisadores interessados em analisar a gestão como prática em diferentes contextos e ambientes de atuação profissional.

Ressaltamos, ainda, que a utilização do termo “combo” teve o objetivo de levar os pesquisadores a perceberem que alguns elementos devem integrá-lo, tais como atitude fenomenológica, os métodos de coleta de dados e os procedimentos para a estruturação do texto fenomenológico. Alguns detalhes para tornar o combo único no processo de pesquisa envolvem a questão de pesquisa e o contexto onde o estudo será realizado.

A utilização do protocolo também demanda levar os atores sociais em estudo a tomarem consciência da presença de aspectos subjetivos (estéticos, sensíveis e tácitos) inerentes ao contexto onde estão inseridos, suscitando uma reflexão sobre como realizam a prática, com o objetivo de transformar e/ou ressignificar o modo de fazer gestão hoteleira, e potencializar a contribuição teórica, prática e social da pesquisa nos estudos organizacionais no contexto do turismo e da hotelaria.

As principais limitações enfrentadas na realização desta pesquisa estão relacionadas ao desafio de desenvolver um trabalho desta natureza, em termos de abordagem e profundidade, e à dificuldade na realização da segunda parte da pesquisa, que consistiu no processo das entrevistas com gerentes.

Um estudo fenomenológico sobre uma prática exige dedicação do pesquisador, tanto durante o processo de imersão no campo quanto na fase de análise do material empírico. O desafio inerente à realização de uma pesquisa dessa natureza consiste no esforço por parte do pesquisador em neutralizar seu julgamento e suas emoções, diante das diversas situações inusitadas e conflituosas que existem nas organizações que integram o sistema turístico, para que não haja interferência no modo de agir dos atores organizacionais e na análise da prática em estudo. Logo, desenvolver uma atitude fenomenológica, conforme recomenda Van Manen (2014)Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Routledge. ISBN 9781611329445. ao descrever as “etapas” de epoché, a redução e o vocativo para a realização de uma observação menos “contaminada” por pré-julgamentos é certamente um dos principais desafios inerentes à aplicação deste protocolo de pesquisa.

No que se refere à realização das entrevistas, o desafio consistiu no fato dos gerentes de hotéis vivenciarem uma rotina muito intensa e acelerada, e parar para conceder entrevistas com questões que demandam tempo para reflexão não foi uma tarefa fácil. Diante do desafio de alcançar um nível de reflexividade nos participantes, utilizou-se como estratégia operacional a realização de “entrevista pausada”, o que possibilitou alcançar um nível de profundidade dos relatos dos gerentes, sem prejudicar a dinâmica da atividade gerencial no hotel.

Esperamos que a proposta dos 3Ps da pesquisa apresentada neste artigo motive e oriente outros pesquisadores para a realização de estudos qualitativos e que revele a singularidade e a complexidade da gestão como prática no contexto das organizações que atuam no contexto do turismo e hotelaria ampliando assim, o “olhar” dos pesquisadores sobre o fenômeno a auxiliando os praticantes em sua atuação profissional.

  • Como Citar: Brandão, J. M. F.; Silva, A. B. (2022). Fenomenologia da prática nas organizações hoteleiras: proposição de um protocolo de pesquisa. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 16, e-2304.http://dx.doi.org/10.7784/rbtur.v16.2304

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Editado por

Editor:

Leandro B. Brusadin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2020
  • Aceito
    05 Abr 2021
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