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O turismo no governo de Jair Bolsonaro: políticas públicas e discursos ideológicos

Tourism in Jair Bolsonaro's government: public policies and ideological discourses

Turismo en el gobierno de Jair Bolsonaro: políticas públicas y discursos ideológicos

Resumo

O objetivo deste estudo é analisar a influência dos discursos de Jair Bolsonaro nas políticas públicas de turismo no Brasil, durante o seu governo. O corpus contemplou discursos do ex-presidente sobre turismo e documentos oficiais dos anos de 2019 e 2020. Os discursos foram analisados por meio do modelo da Semiótica Francesa. O estudo revelou que Bolsonaro construiu seus discursos e projetos políticos sobre turismo a partir da perspectiva do “eu” e as propostas por ele defendidas refletiram seus desejos, gostos pessoais, posicionamentos ideológicos e seus hobbies. Também evidenciou que o turismo é, na construção discursiva de Bolsonaro, uma figura que contribui para a construção temática da desregulação, em especial a ambiental. Também apurou que o ex-presidente manipulava seus eleitores e apoiadores, pedindo poder, manifestado em apoio e aderência para pôr em prática seus projetos. Em adição, revelou-se que o ex-presidente utilizava o recurso da polarização, reafirmando a retórica do “nós contra eles”. Assim, a principal contribuição desta pesquisa foi compreender como os valores ideológicos do bolsonarismo operam, por meio dos seus discursos, o que nos permite compreender as prioridades e as direções que este governo tomou com relação ao turismo.

Palavras-chave
Turismo; Discurso político; Políticas públicas; Semiótica Francesa; Governo Bolsonaro

Abstract

The objective of this paper is to analyze the influence that Jair Bolsonaro's speeches had on Brazilian public policies of tourism during his government. The corpus included speeches by the ex-president about tourism and official documents from the years 2019 and 2020. The speeches were analyzed through the model of French Semiotics. This study concluded that Bolsonaro constructed his political speeches and political projects about tourism from the perspective of the “self” and the proposals defended by him are those that reflect his desires, personal tastes, ideological position, and even his hobbies. It also demonstrated that tourism is, in the discursive construction of Bolsonaro, something that contributes to the issue of deregulation, specially an environmental one. Another highlighted point is that the ex-president manipulates his supporters, asking for power, manifested through support and adherence in order to put his projects in practice. In addition, it was revealed that the president constructed his speeches over polarization, reaffirming the rhetoric “we against them”. So, the main contribution is to understand how the ideological values of bolsonarism operates, through his speeches, what allow us to comprehend which priorities and directions that this government had in relation to tourism.

Keywords
Tourism; Political speech; Public policies; French Semiotics; Bolsonaro’s government

Resumen

El objetivo del artículo es analizar la influencia que tuvieron los discursos de Jair Bolsonaro en las políticas públicas de turismo en Brasil, durante su gobierno. El corpus incluyó discursos del expresidente sobre turismo y documentos oficiales de los años 2019 y 2020. Los discursos analizados a través del modelo de la Semiótica Francesa. El estudio reveló que Bolsonaro construye sus discursos y proyectos políticos sobre el turismo desde la perspectiva del “yo”, y las propuestas que defiende reflejan sus anhelos, gustos personales, posiciones ideológicas y sus aficiones. También mostró que el turismo es, en la construcción discursiva de Bolsonaro, una figura que contribuye a la construcción temática de la desregulación, especialmente la ambiental. También constató que el expresidente manipuló a sus votantes y simpatizantes, pidiendo poder, manifestado en apoyo y adhesión para poner en práctica sus proyectos. Además, se reveló que el expresidente utiliza el recurso de la polarización, reafirmando la retórica de “nosotros contra ellos”. Así, el principal aporte de esta investigación fue comprender cómo operan los valores ideológicos del bolsonarismo, a través de sus discursos, lo que permite comprender las prioridades y rumbos que tomó este gobierno en relación al turismo.

Palabras clave
Turismo; Discurso político; Políticas públicas; Semiótica Francesa; Gobierno de Bolsonaro

1 INTRODUÇÃO

A ascensão da extrema direita no cenário político é um fenômeno mundial (Campion & Poynting, 2021Campion, K., Poynting, S. (2021). International nets and national links: The global rise of the extreme right—Introduction to special issue. Social Sciences, 10(2), 61. https://doi.org/10.3390/socsci10020061.
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; Dibai, 2020Dibai, P.C. (2020). A ascensão do radicalismo de direita no mundo: novos dilemas de um velho problema. Revista de Ciências Sociais, 728-743. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2020v25n3p728
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; Higgins-Desbiolles, 2022Higgins-Desbiolles, F. (2022). The ongoingness of imperialism: The problem of tourism dependency and the promise of radical equality. Annals of Tourism Research, 94, 103382. https://doi.org/10.1016/j.annals.2022.103382
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). No Brasil, esse movimento tem como representação máxima Jair Bolsonaro, que se apresentou como opção nas eleições presidenciais de 2018, principalmente para os eleitores descontentes com a atuação dos governos petistas e o funcionamento do sistema político no país. Esses eleitores sentiram-se representados pela retórica antissistema, antiesquerda, militarizante e patriótica, pautadas na tradição e no conservadorismo, no nacionalismo e no discurso anticorrupção (Solano, 2021Solano, E. (2021). A evolução do bolsonarismo: análise qualitativa da percepção deste eleitorado em 2019 e 2020. Journal of Democracy, 10(1). https://www.plataformademocratica.org/Arquivos/mai-21/03_A_evolucao_do_bolsonarismo.pdf
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).

Há um amplo engajamento do discurso anticorrupção vinculado ao bolsonarismo, porém, o conceito de corrupção nesta perspectiva é bastante polissêmico. Não há um significado único para a corrupção, apresentando diferentes formas, em diferentes contextos (Kalil, 2019Kalil, I.O. (2018). Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. https://www.fespsp.org.br/upload/usersfiles/2018/Relat%C3%B3rio%20para%20Site%20FESPSP.pdf
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). No interior dos discursos bolsonaristas, há também uma banalização do discurso de ódio, legitimado como liberdade de expressão (Solano, 2018Solano, E. (2018). Crise da Democracia e extremismos de direita. Fundação Fierdrich Ebert.), o combate ao conhecimento científico e a confusão entre fatos e opiniões.

Jair Bolsonaro, enquanto presidente, trouxe consigo uma agenda específica de políticas que precisava atender as pautas de seus apoiadores, tornando sustentável seu projeto de poder. Assim, diversas áreas da gestão pública foram impactadas pelos discursos ideológicos proferidos pelo ex-presidente e por seu grupo, entre elas, o turismo.

No Brasil, compete ao presidente estabelecer diretrizes gerais para promover o desenvolvimento nacional (Brasil, 1988Agência Brasil. (2020). ICMBio autoriza pesca esportiva em unidades de conservação ambiental. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/icmbio-autoriza-pesca-esportiva-em-unidades-de-conservacao-ambiental
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). Além disso, Aguinis et. al. (2023)Aguinis, H., Kraus, S., Poček, J., Meyer, N., & Jensen, S. H. (2023). The why, how, and what of public policy implications of tourism and hospitality research. Tourism Management, 97, 104720. https://doi.org/10.1016/j.tourman.2023.104720
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, apuraram que os contextos institucional e ideológico afetam a formulação de políticas públicas em turismo. No entanto, há uma escassez de trabalhos que considerem os atores políticos, as dinâmicas de poder entre atores e o nível de compromisso de diferentes atores com as políticas públicas de turismo (Aguinis et. al., 2023).

Dito isso, justifica-se a necessidade de analisar a influência do contexto ideológico expresso nos discursos de Bolsonaro e seu grupo em relação ao turismo. Neste estudo, foram analisadas as declarações sobre turismo feitas durante os anos de 2019 e 2020, bem como a influência desses discursos nas políticas públicas federais de turismo desenvolvidas no mesmo período.

A estrutura do trabalho consiste de introdução, onde são apresentados os pressupostos que nortearam a investigação; revisão teórica, onde foram discutidos conceitos de discurso, poder e ideologia, análise de políticas públicas e políticas públicas de turismo; uma seção dedicada aos procedimentos metodológicos, onde são apresentados conceitos basilares da Semiótica Francesa, teoria do discurso que norteou as análises; uma seção de análises que estabelece a relação entre os discursos bolsonaristas e as políticas públicas de turismo e; considerações finais.

2 REVISÃO DE LITERATURA

2. 1 Discurso, poder e ideologia

A modalização fundamental do discurso político é o poder. O sujeito político busca poder, mesmo quando investido de poder, ao se dirigir ao povo, pede mais poder, sob a forma de renovação de confiança ou de apoio para realizar uma tarefa (Fiorin, 1988Fiorin, J.L. (1988). O regime de 1964: discurso e ideologia. Atual.). Assim, o sujeito político apresenta-se como sujeito de poder pelo papel temático que assume e pela manipulação que exerce em relação ao destinatário e, para que a manipulação do discurso político aconteça, o político precisa mostrar-se confiável, apresentando-se não somente como um sujeito do poder, mas também como um sujeito do saber, saber este, sobre a realidade, os acontecimentos, a sociedade ou sobre o saber-fazer, mostrando-se um sujeito competente (Barros, 2013Barros, D.L.P. (2013). Política e intolerância. In: Fulaneti, O. N.; Bueno, A.M. Linguagem e Política, 71-92.).

Fiorin (2013)Fiorin, J.L. (2013). A Sacralização da política. In. O.N. Fulaneti & A. M. Bueno. Linguagem e política: princípios teórico-discursivos. Contexto. concebe, a partir de Landowski (1982), que a verdade reconhecida no discurso político depende do reconhecimento prévio do sujeito. Nesse sentido, diz a verdade aquele em quem eu tenho confiança. Não há impessoalização da política, mas uma personalização, vota-se na credibilidade de alguém.

Sobre os discursos da extrema direta, Fiorin (2019)Fiorin, J.L. (2019). Operações enunciativas do discurso da extrema-direita. Discurso & Sociedad, 13(3), 370-382. apurou que uma das operações enunciativas utilizadas é a universalização abstrata, que “nega as diferenças, para afirmar uma unidade superior que engloba contrários e contraditórios” (Fiorin, 2019Fiorin, J.L. (2019). Operações enunciativas do discurso da extrema-direita. Discurso & Sociedad, 13(3), 370-382., p. 372). Acredita-se que na nação não há divisões, o que naturaliza os valores nacionalistas. Nestes discursos, as únicas diferenças aceitáveis são aquelas tidas como naturais, como as de gênero, que definem os papéis de homens e mulheres na sociedade, há também uma confusão entre nação, Estado e governo, tratados como uma coisa só (Fiorin, 2019Fiorin, J.L. (2019). Operações enunciativas do discurso da extrema-direita. Discurso & Sociedad, 13(3), 370-382.).

Outros mecanismos linguísticos usados pela extrema direita são: a exemplificação saliente, onde propõe-se generalizações a partir de casos isolados; o uso de hipérboles e eufemismos; além de um discurso que se pretende não ideológico, reinterpretando o termo “ideologia” como a visão de mundo da esquerda, o ponto de vista da direita estaria baseado em fatos, enquanto o da esquerda estaria distorcido ideologicamente (Fiorin, 2019Fiorin, J.L. (2019). Operações enunciativas do discurso da extrema-direita. Discurso & Sociedad, 13(3), 370-382.)

Volli (2015)Volli, U. (2015). Manual de Semiótica. Loyola. afirma que qualquer tipo de discurso é regido por códigos e exprime uma ideologia, definindo ideologia como os processos pelos quais as identidades são constituídas e reconstituídas, permitindo que sujeitos se tornam agentes num mundo dotado de sentido. Nessa concepção, a ideologia não representa uma estrutura rígida de sentido ou uma grade de valores imutável, mas o universo discursivo por meio do qual os indivíduos ou grupos sociais interpretam e reescrevem suas experiências.

Eagleton (1997)Eagleton, T. (1997). Ideologia: uma introdução. UNESP. sugere que a ideologia é mais uma questão de discurso do que de linguagem, pois o discurso ideológico só pode ser apreendido em seu contexto. Assim, a ideologia tem mais a ver com quem está falando o que, para quem e com qual finalidade, do que com as propriedades linguísticas inerentes do pronunciamento. Não se trata, com isso, de negar a existência de “idiomas ideológicos”. O fascismo teve seu léxico próprio, assim como o bolsonarismo também o tem, com seus “marxismos culturais” e “ideologias de gênero”. Mas o que há de mais ideológico nesses termos são os interesses de poder a que eles servem e os efeitos políticos que geram.

Ao renunciar o significado de ideologia como uma falsa representação da realidade, Zizek (1996)Zizek, S. (1996). Um mapa da ideologia. Contraponto. enfatiza a importância de compreender como o conteúdo de um discurso se relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu próprio processo de enunciação. Para o autor, estamos dentro do espaço ideológico quando um conteúdo, independente se verdadeiro ou falso, é funcional à alguma relação de dominação social de maneira intrinsecamente não transparente. Nesse sentido, sugere que o ponto de partida da crítica da ideologia tem que ser o reconhecimento do fato de que “é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade” (Zizek, 1996Zizek, S. (1996). Um mapa da ideologia. Contraponto., p. 14).

2.2 Da análise de políticas públicas à agenda do turismo no Brasil

A análise de políticas públicas é o estudo do Estado em ação (Jobert & Muller, 1987Jobert, B., Muller, P. (1987). L’etat en action. PUF.), por meio dela é possível interpretar situações concretas, examinar tecnicamente problemas empíricos e legitimar ou deslegitimar as escolhas políticas (Reis, 2003Reis, E.P. (2003). Reflexões leigas para a formulação de uma agenda de pesquisa em políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18(51). https://doi.org/10.1590/S0102-69092003000100002
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). As ciências políticas admitem dezenas de modelos teóricos válidos quando se trata de análises de políticas públicas (Araújo & Rodrigues, 2017Araújo, L., Rodrigues, M. L. (2017) Modelos de análises de políticas públicas. Rev. Sociologia, Problemas e Práticas, 83(11), 35. https://doi.org/10.7458/SPP2017839969
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).

O turismo, como campo de interesse das políticas públicas, tem sua agenda suscetível às mudanças de governo e de grupos de interesse. Dentro dos modelos disponíveis para análise de políticas públicas, o Modelo dos Fluxos Múltiplos de John Kingdon (1984; 2014) parece ser o que melhor explica as condições de agendamento, especialmente em momentos de mudanças políticas e de governo. Kingdon procurou explicar como um problema se transformam em um “problema político”, capturando a atenção dos decisores políticos e influenciando suas escolhas na formação das agendas. O processo de formação de agenda, é central em sua análise.

Kingdon (2014) chamou de sentimento nacional a situação em que, muitas pessoas de um país têm ideias semelhantes e afirmou que esse sentimento sofre mudanças ao longo do tempo e que essas mudanças têm impacto significativo nas agendas e nos resultados políticos. Araújo e Rodrigues (2017), ao explicarem o modelo de Kingdon, afirmam que se os governantes consideram que a maioria das forças e grupos de interesse apontam para a mesma direção, os governos tendem a apontar suas ações nesta direção. São nas mudanças de ciclo político e nas reconfigurações de governos, parlamentos e hierarquias da administração pública os momentos mais propícios para as alterações das agendas.

O Modelo dos Fluxos Múltiplos propõe que a formação das agendas ocorre por meio de três fluxos: o fluxo das políticas, onde se busca o consenso por meio da persuasão e da difusão de ideias; o fluxo da política, onde consensos são construídos por meio de negociações e coligações; e o fluxo dos problemas. Quando um problema consegue captar a atenção política e/ou quando ocorrem mudanças governamentais e pressões públicas e/ou alterações no sentimento nacional fica favorecida a abertura de uma janela de oportunidade, sendo, então, possível ocorrer a mudança de agenda.

Embora o alinhamento de cada um dos fluxos possa acontecer por acaso, na maioria das vezes isso ocorre pela ação concreta de um empreendedor político, que percebe uma oportunidade de obter algo pessoalmente gratificante, investindo recursos para promover problemas ou propostas, capturando a atenção de pessoas importantes e unindo problemas a soluções políticas que possam lhes trazer alguma vantagem (Kingdon, 2014).

Política pública de turismo pode ser vista como o direcionamento governamental, em diferentes instâncias, para o desenvolvimento da atividade turística. Localidades que desejam incrementar e desenvolver o turismo devem ter uma política pública clara que estabeleça diretrizes, estratégias, objetivos e ações para o setor (Lohmann & Panosso Netto, 2012Lohmann, G., Panosso Netto, A. (2012). Teoria do turismo: conceitos, modelos e sistemas. Aleph.). Ter uma política de turismo clara e bem definida também é importante para determinar os impactos positivos e negativos da atividade (Kanitz, Trigueiro & Araújo, 2010Kanitz, H.G., Trigueiro, R.P.C., Araújo, A.D.A. (2010). Perspectivas do Plano Nacional de Turismo 2007/2010: avanços ou utopias? Revista Turismo em Análise, 21(3), 644–666. https://doi.org/10.11606/issn.1984-4867.v21i3p644-667
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). Além disso, no Brasil, fatores governamentais, como a instabilidade política, a violência e a corrupção têm impacto significativo no setor de turismo (Lohmann et al., 2022Lohmann, G. et al (2022). O Futuro do Turismo no Brasil a partir da análise crítica do período 2000-2019. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo 16 (2456), 1-20. http://dx.doi.org/10.7784/rbtur.v162456
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).

O início das políticas nacionais de turismo no Brasil se deu há aproximadamente 90 anos e existem diversos estudos sobre o tema, conforme apresentado por Lopes (2021)Lopes, M.M. (2021). O turismo no governo de Jair Bolsonaro: políticas públicas e discursos ideológicos (2019-2020) [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. https://doi.org/10.11606/D.100.2021.tde-19012022-130309
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. Nessas nove décadas, percebe-se que nem sempre as mudanças no curso das políticas de turismo podem ser encaradas como adequação aos tempos, ajustes necessários ou correções após avaliação, diversos fatores implicaram nas continuidades e descontinuidades de políticas, na sua consolidação e nos resultados que essas políticas trouxeram a atividade turística no país: mudanças de regime, mudanças de governo, formatação das políticas, mudanças nas instituições responsáveis por criar e executar as políticas, os processos de implementação e outros fatores.

A chegada de Jair Bolsonaro à presidência representou, pela perspectiva de Kingdon (2014), a abertura de uma janela de oportunidade para mudanças na agenda de turismo. Por meio das análises realizadas neste estudo, é possível verificar se essas mudanças, de fato, se consolidaram. A seguir é apresentada a metodologia desenvolvida para atingir os objetivos do estudo.

3 METODOLOGIA

Esta é uma pesquisa de caráter qualitativo, abordagem aplicada e delineamento de estudo de caso (Veal, 2011Veal, A.J. (2011). Metodologia de pesquisa em lazer e turismo. Aleph.). Para o recorte temporal, foram estabelecidos os dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro (2019 e 2020). O corpus reuniu documentos oficiais que definiram as políticas federais de turismo e os discursos do ex-presidente onde figurou o tema do turismo. Para coleta de dados, foi elencada a pesquisa documental nos portais do Governo Federal, Palácio do Planalto, Ministério do Turismo, Embratur, Congresso Nacional, Diário Oficial da União, Mensagens do Presidente ao Congresso Nacional e pronunciamentos oficiais e extraoficiais do Presidente da República, que se relacionem com a temática do turismo.

Os discursos oficiais de Jair Bolsonaro elencados aconteceram nos seguintes eventos: a apresentação de Gilson Machado como presidente da Embratur em 29/05/20191 1 Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos ; a inauguração do aeroporto Glauber Rocha em Vitória da Conquista/BA em 23/07/20192 2 Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos ; a abertura do Fórum de Investimentos Brasil em 10/10/20193 3 Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos ; o lançamento do Programa Voo Simples em 07/10/20204 4 Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos ; o lançamento do Plano de Retomada do Turismo em 10/11/20205 5 Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=sYmx4UgJjTU&list=PL_vtLIQIuEsm71VyTgkVnN6nV7922v-e&index=1 ; a posse de Gilson Machado como Ministro do Turismo em 17/12/20206 6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9_hSeOOZFy4&list=PL_vtLIQIuEt_eClPnr2wmextVXcaY5Kc&index=2&t=53s . O portal do Palácio do Planalto disponibiliza a transcrição dos discursos do presidente, no entanto, algumas incoerências entre as falas e as transcrições disponibilizadas foram identificadas e nestes casos a transcrição foi realizada a partir dos vídeos ou áudios originais.

Os discursos extraoficiais foram coletados em lives semanais realizadas pelo ex-presidente em seu canal oficial no Youtube7 7 Disponíveis em: https://www.youtube.com/@jbolsonaro . As falas foram transcritas apenas nos trechos onde o ex-presidente e seus convidados, quando houveram, falaram sobre temas relacionados ao turismo. Trabalhou-se com trechos de dezessete lives semanais, nas quais se falou do turismo em: 28/03/2019, 23/05/2019, 19/09/2019, 31/10/2019, 07/11/2019, 28/11/2019, 26/12/2019, 02/01/2020, 20/02/2020, 05/02/2020, 04/06/2020, 02/07/2020, 30/07/2020, 13/09/2020, 08/10/2020, 03/12/2020 e 10/12/2020.

Os discursos foram submetidos à análise utilizando o modelo proposto pela Semiótica Francesa (doravante semiótica), inserida no quadro teórico das Teorias do Discurso. Segundo a semiótica, todos os textos possuem uma lógica geral que permite sua análise em três níveis, com diferentes graus de abstração, o conjunto desses níveis é chamado percurso gerativo de sentido.

No nível fundamental, o mais simples e abstrato, as estruturas elementares do texto são analisadas por meio de um esquema de oposições semânticas. No segundo nível, o narrativo, os elementos do nível fundamental são assumidos como valores por sujeitos e circulam entre sujeito graças à ação de outros sujeitos. Em outras palavras, há sempre um sujeito, que se coloca em busca de um objeto que representa um valor para ele, a narrativa simula então a história do sujeito em busca desses valores e os contratos, conflitos e consequências, que marcam essa busca (Barros, 2005Barros, D.L.P. (2005). Teoria semiótica do texto. Ática.).

Qualquer texto é uma narrativa complexa, composta por enunciados de estado e enunciados de fazer, organizados em uma sequência canônica que envolve as fases de manipulação, competência, performance e sanção (Fiorin, 2018Fiorin, J.L. (2018). Elementos de análise do discurso. Contexto.). A manipulação é a ação de alguém sobre outro alguém, visando fazê-los executar alguma coisa. Essa manipulação pode se manifestar por: intimidação - sob a proposta de um objeto-valor negativo; provocação - sob forma de juízo negativo do destinatário; tentação - sob a proposta de um objeto-valor positivo ou; sedução - sob forma de juízo positivo do destinatário (Greimas & Courtés, 2008Greimas, A.J., Courtés, J. (2008). Dicionário de semiótica. Contexto.).

Na fase da competência, o sujeito que vai realizar a transformação central da narrativa é dotado de um saber e/ou um poder, que o capacita para o fazer (Fiorin, 2018Fiorin, J.L. (2018). Elementos de análise do discurso. Contexto.). Na performance, a fase do fazer, ocorre uma transformação que produz um novo “estado de coisas” (Greimas & Courtés, 2008Greimas, A.J., Courtés, J. (2008). Dicionário de semiótica. Contexto., p. 329). Já na fase da sanção, há o reconhecimento do sujeito performante e são distribuídos prêmios e castigos decorrentes do cumprimento ou não dos acordos estabelecidos entre destinador e destinatário (Fiorin, 2018Fiorin, J.L. (2018). Elementos de análise do discurso. Contexto.). Nem sempre as fases da sequência canônica são bem arranjadas, eventualmente fases ficam ocultas ou não se realizam completamente. Além disso, uma narrativa não contém uma única sequência canônica, mas um conjunto delas, encaixando-se e sucedendo-se (Fiorin, 2018Fiorin, J.L. (2018). Elementos de análise do discurso. Contexto.).

No nível narrativo as formas ainda são abstratas, é no terceiro nível, o nível discursivo que essas formas serão “revertidas em termos que lhes dão concretude” (Fiorin, 2018Fiorin, J.L. (2018). Elementos de análise do discurso. Contexto., p. 41). As estruturas narrativas, serão transformadas em discurso e é neste nível onde se situam as estratégias de projeção do sujeito da enunciação nos enunciados. Essa projeção é feita por meio de marcas espalhadas no texto, especialmente, no que tange às categorias de pessoa, tempo e espaço (sintaxe discursiva) e no uso de temas e figuras (semântica discursiva).

Na sintaxe discursiva, o enunciado pode projetar-se para fora de si, inserindo pessoas, espaços e tempos no discurso, essa operação denomina-se debreagem (Fiorin, 2017Fiorin, J.L. (2017). Uma teoria da enunciação: Benveniste e Greimas. Gragoatá, 22(44), 970-985. https://doi.org/10.22409/gragoata.v22i44.33544
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). A debreagem é um mecanismo produtor de efeitos de sentido (Barros, 2005Barros, D.L.P. (2005). Teoria semiótica do texto. Ática.). A debreagem pode ser: enunciativa, onde projeta-se um eu-aqui-agora e cria-se efeito de subjetividade; ou enunciva, onde é projetado um eles-lá-então e cria-se efeito de objetividade.

O nível discursivo é o mais privilegiado em manifestações ideológicas, isso se demonstra por meio da análise de como os temas (valores abstratos) são concretizados sensorialmente em figuras de mundo (valores concretos) (Gomes & Mancini, 2007Gomes, R., Mancini, R. (2007). Textos midiáticos: uma introdução à semiótica discursiva. Atas do IX FELIN. UERJ. http://filologia.org.br/ixfelin/trabalhos/pdf/66.pdf
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). Tematizar um discurso é formular os valores de modo abstrato e organizá-los em percursos construídos pela recorrência de traços semânticos. É a repetição dos traços semânticos que tornam o discurso coerente. Os temas espalham-se pelo texto e são recobertos por figuras, que lhes dão concretude. A reiteração de temas e a recorrência de figuras num discurso é chamada de isotopia (Barros, 2005Barros, D.L.P. (2005). Teoria semiótica do texto. Ática.)

Outro conceito importante desenvolvido pela semiótica é o da veridicção, que parte do pressuposto que o enunciador persuade o enunciatário a crer na verdade do seu discurso por meio de um contrato de confiança estabelecido entre ambos e determinado por um conjunto de referências contextuais e situacionais inscritas no texto (Gomes & Mancini, 2007Gomes, R., Mancini, R. (2007). Textos midiáticos: uma introdução à semiótica discursiva. Atas do IX FELIN. UERJ. http://filologia.org.br/ixfelin/trabalhos/pdf/66.pdf
http://filologia.org.br/ixfelin/trabalho...
).

Para a semiótica, verdade, mentira, falsidade e segredo são integrantes dos efeitos de sentido e estabelecem-se na relação entre o ser e o parecer (Casquilho, 2013Casquilho, J.P. (2013). Veridicção, verosimilhança e informação. Revista Veritas, 1, 81-102.). A verdade é aquilo que parece ser o que é, é a produção do saber autêntico; a mentira é aquilo que parece ser, mas não é, é a simulação do saber (parecer saber); a falsidade é aquilo que nem é, nem parece ser, instaura-se na produção do não saber; o segredo é aquilo que é, mas não parece ser e apresenta-se na dissimulação do saber (Baldan, 1988Baldan, M.L.O.G. (1988). Veridicção: um problema de verdade. Alfa, 32, 47-52.).

Barros (2005)Barros, D.L.P. (2005). Teoria semiótica do texto. Ática. explica que como há um contrato de verdade entre enunciador e enunciatário, para negar a verdade de um discurso, há duas possibilidades: a primeira, na análise de discursos mal construídos, que não serão ditos verdadeiros pelo enunciatário que os interpreta; a segunda, quando um texto é inserido no contexto de outros textos e, pelo confronto pode-se então recusá-lo e dizê-lo mentiroso ou falso.

Na sequência, os discursos de Jair Bolsonaro sobre turismo, agrupados por temas, foram analisados pelo modelo metodológico da semiótica, em paralelo, foram comparados às políticas públicas implementadas no setor.

4 DISCUSSÃO E RESULTADOS

4.1 Baía de Angra, a Cancún brasileira

A Estação Ecológica de Tamoios é uma Unidade de Conservação Federal de Proteção Integral, demarcada pelo Decreto Presidencial nº 98.864 de 1990, cuja área ocupa aproximadamente 5,69% da Baía de Ilha Grande, entre os municípios de Angra dos Reis e Paraty e inclui 29 ilhas e seus respectivos entornos no raio de 1km. São proibidos na área protegida: fundeio, pesca, mergulho e visitação. O acesso às ilhas é controlado pela autoridade nacional, sendo permitido apenas para propósitos científicos (ICMBio, 2021Instituto Chico Mendes de Preservação da Biodiversidade-ICMBio. (2021). Estação Ecológica de Tamoios. https://www.icmbio.gov.br/esectamoios/
https://www.icmbio.gov.br/esectamoios/...
).

Derrubar o decreto que demarca a Estação Ecológica de Tamoios e transformar a Baía de Angra dos Reis em um polo turístico equivalente a Cancún pareceu ser um dos principais projetos políticos de Bolsonaro para o turismo em nível de discurso e já em primeira análise é possível identificar a relação pessoal que se estabelece entre o ex-presidente e a região. É em Angra dos Reis, especificamente na Vila Histórica de Mambucaba, onde Bolsonaro possui uma casa de veraneio e onde foi multado, em 2012, por realizar pesca ilegal.

Os discursos sobre a Baía de Angra apresentam, no nível fundamental, duas oposições semânticas: desregulação x regulação e desenvolvimento x atraso. Já neste nível é possível apreender a inclinação ideológica destes discursos, onde a demarcação é considerada fator de regulação e atraso e apresenta valor disfórico. Já a revogação do decreto de demarcação, a promessa de investimento na região e o projeto de fazer de Angra dos Reis um polo turístico, trazendo valorização imobiliária, recursos financeiros, empregos e infraestrutura para a região são vistos como fatores de desregulação e desenvolvimento e apresentam valor eufórico.

No percurso entre a regulação e a desregulação apresenta-se a não-regulação, na ideia defendida pelo ex-presidente de que a atividade do turismo, sozinha, seria capaz de preservar o meio-ambiente na região. Partindo do pressuposto de que o turismo é uma maneira “fácil” de conseguir recursos, não promover o turismo na região significa o não-desenvolvimento, o não-recurso e o não-emprego.

No nível narrativo, o sujeito é o governo Bolsonaro e revogação do decreto de demarcação é seu objeto-valor. Como anti-sujeitos, apresenta-se Estado com suas leis ambientais, burocracias e ritos institucionais, o poder judiciário e o ativismo ambiental. Ao observarmos os percursos narrativos, num primeiro momento, o ex-presidente acreditou ser ele próprio dotado de toda a competência necessária para derrubar o decreto que demarca a Estação Ecológica.

Como falei no dia de ontem, que a minha caneta é mais poderosa que o Rodrigo Maia (...) Mas é, ela tem força sim. Um decreto, a gente estuda, passa pela Secretaria, pela SAJ, a Secretaria Jurídica nossa, e nós podemos baixar um decreto regulando uma lei. E muitas vezes, uma lei que foi regulamentada por um decreto e o decreto foi abusivo. E nós temos que mudar esse decreto, por que não? Tem amparo jurídico, vamos mudar. E a Estação ecológica, é uma canetada minha. Nada contra o meio ambiente. E nós podemos sim, com essa bic

(Bolsonaro, 29/05/2019).

Na sequência, a narrativa começa a se construir de forma diferente. Bolsonaro, contrariando, ao descobrir que um decreto presidencial não seria suficiente para derrubar a demarcação da Estação e que seria necessária a aprovação de uma lei, afirmou:

E olha só o que é o ativismo ambiental? O que revoga uma lei é outra lei, não é isso? O que muda um artigo da Constituição, a não ser Cláusula Pétrea, é outro artigo da Constituição, o que revoga uma portaria é outra portaria, mas o decreto ambiental, quem revoga é uma lei, é uma lei, olha aí. E outra, se eu quiser revogar 3, 4 ou 10 decretos ambientais, eu tenho que ter 10 leis, 10 projetos de lei

(Bolsonaro, 31/10/2019).

É a partir daí que começa o processo de manipulação aos parlamentares, com o objetivo de induzi-los a pautarem e aprovarem a revogação do decreto nas casas legislativas. Essa manipulação se dá em alguns momentos por tentação, com o oferecimento de vantagens:

Já conversei com o presidente da câmara Rodrigo Maia, já conversei com Davi Alcolumbre, que são as pessoas que fazer a pauta na câmara, né. O Rodrigo Maia mostrou-se extremamente simpático a essa proposta. Agora pra gente conseguir realmente que o recurso venha pra cá e seja aplicado, nós temos que revogar um decreto

(Bolsonaro, 31/10/2019, grifo nosso).

Em outros momentos, por sedução, na forma de juízo positivo:

Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, tá na mão de nós três heim. E do parlamento depois, obviamente. Então se nós três... eu topo, o Davi Alcolumbre topa, o Rodrigo Maia praticamente, só faltou botar a aliança na mão esquerda, tá topando também, se Deus quiser vai topar, e vamos partir pra gente conseguir recursos da maneira menos difícil, que é através do turismo

(Bolsonaro, 31/10/2019, grifos nossos).

Ao manipular os parlamentares, o ex-presidente, também manipula seus eleitores, num percurso de fazer-crer que ele próprio está fazendo a sua parte, mas que os parlamentares também precisam fazer a deles, pedindo apoio político na pressão aos parlamentares para a revogação do decreto.

Ao construir o percurso sobre o interesse de investimentos no turismo na Baía de Angra dos Reis, Bolsonaro produz efeito de realidade por meio da ancoragem actancial. Não é um “alguém qualquer” é um “chefe de Estado”: “O chefe de Estado falou que poderia gastar conosco, né, por volta de 1 bilhão de reais” (Bolsonaro, 10/11/2020), supostamente de um grande país árabe: “tem um país aí de fora, um grande país árabe que quer investir nessa área de turismo lá, gastando quase 1 bilhão de dólares pra nós transformarmos aquela região da Baía de Angra num fenômeno próximo a Cancún” (Bolsonaro, 26/11/2019). Nesta construção, o efeito percebido é de uma maior importância e seriedade desses investimentos.

Ao analisar o uso de temas e figuras, encontra-se a construção temática do nacionalismo, recoberto por figuras como “Ninguém tem o potencial que nós temos” (Bolsonaro, 31/10/2019), ou “eu estive em Cancún uma vez, é muito melhor a Baía de Angra” (Bolsonaro, 10/11/2020). Ao afirmar que a Baía de Angra dos Reis é melhor que Cancún, pois tem águas paradas, temperatura agradável, águas transparentes e quentes e não tem ondas, o enunciador atribui traços de revestimento sensorial ao investimento semântico “melhor que Cancún”.

Outro tema presente é o neoliberalismo, recoberto em figuras como o investimento internacional, desenvolvimento econômico, diminuição do poder de atuação do Estado e autorregulação, amparada na ideia de que o próprio trade vai promover a preservação ambiental.

Na análise dos efeitos de sentido criados pelos discursos sobre a Baía de Angra, o principal efeitos percebido é o de esperança, de que novos tempos virão, com mais dinheiro, desenvolvimento, empregos e turistas e, portanto, mais felicidade para todos. Bolsonaro, por meio da figura do turismo, faz crer que a desregulação é o caminho do desenvolvimento, da felicidade e do bem estar da população.

Um dos questionamentos mais importantes aqui é o porquê de o ex-presidente estabelecer uma cruzada, repetida à exaustão, contra a Estação Ecológica de Tamoio. Em um trecho Bolsonaro afirma: “Eu conheço a região, não é à toa que eu fui multado no passado lá por crime ambiental né. Só que foi num dia que eu tava em Brasília. Caíram do cavalo, deram... a esquerdada deu azar de novo” (Bolsonaro, 20/02/2020).

Quando analisada sob a perspectiva da veridcção, essa declaração pode ser considerada mentirosa por meio da intertextualidade, pois o portal de checagem Aos Fatos (2021)Aos Fatos. (2021). Todas as declarações de Bolsonaro. Aos Fatos. https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/
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apurou que Jair Bolsonaro foi multado por pesca ilegal na região em 25 de janeiro de 2012, período em que exercia mandato de Deputado Federal e gozava de recesso parlamentar e portanto não estava em Brasília.

Enquanto política pública, não existiu de fato um projeto do Governo Federal para transformar a Baía de Angra em um polo turístico de valor proporcional a Cancún. No entanto, algumas ações de desenvolvimento do turismo na região foram incluídas em programas promovidos pelo MTur, é o caso do Programa Investe Turismo de 2019, que contemplou a região como uma das trinta rotas prioritárias para o desenvolvimento do turismo no país, sendo umas das cinco localidades escolhidas para sediar o projeto piloto do programa (Presidência, 2020).

Outra iniciativa Federal na região foi o apoio ao Projeto Orla, que visou o aprimoramento turístico do litoral da região em ação conjunta do MTur, da Prefeitura de Angra dos Reis e da Secretaria de Patrimônio da União do Ministério da Economia. Neste projeto o MTur empenhou, até agosto de 2020, o montante de 15 milhões de reais para obras na região.

No entanto, um dos maiores benefícios para a região parece ter sido a propaganda feita pelas falas do ex-presidente, no website da prefeitura de Angra dos Reis, o presidente da Fundação de Turismo de Angra dos Reis, Fernando Seabra Filho, afirmou: “A gente vive um momento importantíssimo de Angra e da nossa região (...) com o presidente Bolsonaro citando sempre o nome da nossa cidade” (Angra dos Reis, 2019Angra dos Reis. (2019). Programa Investe Turismo é lançado em Angra. Diário do Vale. https://diariodovale.com.br/cidade/programa-investe-turismo-e-lancado-em-angra-dos-reis-nesta-semana/
https://diariodovale.com.br/cidade/progr...
).

4.2 Jet-ski, uma solução para o Vale do Ribeira

O Vale do Ribeira é uma região geográfica que abrange municípios do sul do Estado de São Paulo e do leste do Estado do Paraná. Recebe este nome por conta da bacia hidrográfica do rio Ribeira de Iguape e seus afluentes (SIGRH, 2023Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo-SIGRH. (2023). Apresentação. http://www.sigrh.sp.gov.br/cbhrb/apresentacao
http://www.sigrh.sp.gov.br/cbhrb/apresen...
). Caracterizada pela forte presença de comunidades tradicionais (caiçaras, quilombolas e indígenas), a região que abriga 45 Unidades de Conservação, sendo 16 destas de Proteção Integral (Brasil, 2000Brasil. (2000). Lei no 9.985, 18 de julho de 2000. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.html
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
).

Segundo informações do Governo do Estado de São Paulo (2023)São Paulo. (2023). Programa Vale do Futuro. Governo do Estado de São Paulo. https://www.saopaulo.sp.gov.br/valedofuturo/#transformacao
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, as cidades paulistas do Vale do Ribeira têm as piores médias estaduais em indicadores como: PIB per capita; percentual de inscritos em programas sociais; renda média; emprego formal; mortalidade infantil etc. O governo reconhece que, apesar do grande potencial turístico, as condições históricas e geográficas do Vale do Ribeira acabaram isolando seus municípios das demais regiões do Estado.

Foi na parte paulista do Vale do Ribeira, no município de Eldorado Paulista, que o ex-presidente passou sua infância e adolescência: “Eu sou criado ali no Vale do Ribeira” (Bolsonaro, 28/11/2019); “O Vale do Ribeira, é a minha região ali, no interior de São Paulo” (Bolsonaro, 02/07/2020). Já pilotar jet-ski parecem ser os hobbies preferidos de Bolsonaro: “Eu tive um tempo atrás jet-ski. Até já apanhei muito da imprensa, porque quem tem jet-ski é marajá” (Bolsonaro, 10/11/2020).

Na análise dos discursos do ex-presidente sobre o turismo no Vale do Ribeira, identifica-se a oposição fundamental regulação x desregulação, passando pela não-regulação, onde a exigência de curso e horas de prática para a habilitação de jet-ski é visto como fator de regulação e tem valor disfórico, a possibilidade de o condutor assinar um termo, responsabilizando-se pela condução do jet-ski, mesmo sem ser habilitado, apresenta valor de não-regulação e, a desburocratização do processo de habilitação para fins de turismo são vistos como fator de desregulação e tem valor eufórico.

No nível narrativo, a população e os empresários do Vale do Ribeira estariam em disjunção com o objeto-valor turistas, que representam os valores de lucro, dinheiro e empregos. O lobby promovido pelas escolas de pilotagem de jet-ski junto ao parlamento se apresenta como anti-sujeito, que dificultariam a desburocratização. Bolsonaro, segundo suas falas, empreendeu então esforços para fazer a Marinha exercer uma transformação no processo de habilitação de jet-ski, permitindo assim que o Vale do Ribeira entrasse em conjunção com os turistas e os valores que estes representam.

Em seu discurso, Bolsonaro trabalhou para convencer os empresários, por tentação, a acreditarem no projeto de empreendimento de turismo de jet-ski no Vale do Ribeira, fazendo-crer, que a desregulação era necessária. Em outros momentos a manipulação ganhou ares de intimidação, pois, aquele que não apoiasse a desburocratização perderia os valores relacionados à atividade do turismo e permaneceria em conjunção com valores indesejados como a pobreza da região.

Assim como na conversão da Baía de Angra dos Reis em um polo turístico comparado a Cancún, não existiu uma política pública ou mesmo um projeto de governo que visasse a desburocratização do acesso a carteira de motonáutica ou o incentivo do turismo de jet-ski no Vale do Ribeira. Bolsonaro afirmou que fez tratativas sobre o tema com a Marinha, mas até o final do período de coletas deste estudo não houve de fato uma mudança no processo de habilitações nem foi implementado nenhum projeto que visasse a dispensa da carteira para fins de turismo.

4.3 Pesca esportiva em Áreas de Proteção Ambiental

No dia 04/02/2020 o Ministério do Meio Ambiente publicou a Portaria nº 91 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) sobre normas e procedimentos para a autorização da atividade de pesca esportiva em Unidades de Conservação Federais, inclusive em Unidades de Proteção Integral e em território de população tradicional (Agência Brasil, 2020Agência Brasil. (2019). Navios são afundados em programa para revitalizar ecoturismo náutico. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-09/navios-sao-afundados-em-programa-para-revitalizar-ecoturismo-nautico
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).

A norma é restrita à pesca amadora de peixes cujas espécies que não estejam ameaçadas de extinção. Os peixes pescados podem ser consumidos no local, mas é vedada a comercialização. A Portaria delega aos pescadores esportivos e aos prestadores de serviços de apoio à pesca a atenção à legislação vigente em questões como: uso de petrechos, espécies cuja captura seja proibida, legislações municipais e estaduais e respeito aos períodos de defeso. O texto não deixa claro se haverá ou como será a fiscalização do cumprimento das normas, nem possíveis sanções àqueles que descumprirem as regras.

Antes da publicação do decreto, o ex-presidente declarou:

Sou criado no Vale do Ribeira e ali tem a estação ecológica da Juréia, foi ampliada. Três cidades, Cananéia, Iguape e Ilha Comprida que em grande parte vivia do turismo da paulistada que tem recurso, que descia para pegar o robalo de currico ou para pegar um peixe sem qualquer valor comercial. Não pode fazer mais, e grande parte se volta para o que? Para o Bolsa Família, para um fraudulento, que dois terços é fraude no seguro defeso. Porque não mudar isso daí? Se depende de uma caneta que também é um decreto está à disposição do progresso e do meu país, e não em causa própria (Bolsonaro, 29/05/2019).

Ao analisarmos este trecho, no plano narrativo, identificamos que Bolsonaro pretende aplicar uma transformação, através de seu poder de decreto (caneta), com relação à permissão de pesca em áreas protegidas. E, uma vez em conjunção com a permissão de pesca, o país (no exemplo, o Vale do Ribeira) poderá ter acesso aos valores turistas, recursos e progresso. Porém, se não operada a transformação, o país recebe como sanção a necessidade de pagar o Bolsa Família e o Seguro Defeso, que, segundo Bolsonaro, “dois terços é fraude”.

Três pontos do trecho merecem destaque: o primeiro, a relação pessoal que Bolsonaro estabelece com frequência ao construir enunciados sobre turismo. Ele inicia a sua fala destacando sua relação com a região que utilizou como exemplo para construção da argumentação: “Sou criado no Vale do Ribeira” (Bolsonaro, 29/05/2019).

O segundo, é como o ex-presidente utiliza suas falas sobre o turismo para fazer acenos a temas que são caros a sua base de apoio. Kalil (2018)Kalil, I.O. (2018). Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. https://www.fespsp.org.br/upload/usersfiles/2018/Relat%C3%B3rio%20para%20Site%20FESPSP.pdf
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apurou que um dos temas que engajam os discursos anticorrupção da base de apoio à Bolsonaro é a crítica aos beneficiários de programas sociais. Nesta construção discursiva utiliza-se então o Bolsa Família e o Seguro Defeso como parte da estratégia manipulativa para pedir mais poder, em forma de apoio político ao tema da desregulação.

O terceiro ponto de destaque é justamente quando o então presidente afirma que a desregulação está “à disposição do progresso e do meu país, e não em causa própria”. Quando analisamos este trecho por meio da intertextualidade, é difícil acreditar que Bolsonaro não faz isso em causa própria, ou não o faz também em causa própria, já que Bolsonaro foi multado justamente por praticar pesca em uma área de proteção ambiental.

Na live de 20/02/2020, após a publicação do decreto que autorizou a pesca em áreas de proteção, o tema da multa veio à discussão. Ao receber de Jorge Seif, secretário da pesca na ocasião, a informação sobre a publicação do decreto, Bolsonaro o interrompe para direcionar a informação ao “pessoal de Mambucaba” (Bolsonaro, 20/02/2020), local onde possui uma residência de veraneio e onde exerce como hobbie a atividade da pesca. Seif então toma a palavra novamente e, após explicar brevemente a medida, completa “Se o senhor não estava lá, ok, mas se fosse hoje não seria mais multado” (Seif, 20/02/2020). Seif modaliza, criando o efeito de que é indiferente se Bolsonaro estava ou não estava, pois o importante é que agora, mesmo estando, por meio da transformação operada pelo seu governo, seria beneficiário da medida implementada.

Em 11/02/2020, o Deputado Federal Rodrigo Agostinho, do PSB de São Paulo, protocolou um Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo, onde questionou o texto e solicitou a anulação da Portaria nº 91/2020. Alguns dias depois do pedido, Seif voltou a live semanal do presidente, neste dia Bolsonaro muda ligeiramente o tom do seu discurso e ficam evidentes as estratégias manipulativas para que os deputados não revoguem o decreto: “E agora, o que os deputados querem fazer? Olha, eu já fui deputado por 28 anos, eu conheço a minha raça. O que alguns, poucos, deputados querem fazer?” (Bolsonaro, 05/03/2020), primeiro desumaniza os deputados com a expressão “raça”, depois fazendo o uso de atenuante “alguns poucos deputados”, separa claramente os “bons dos maus”.

Em outra fala, projeta seu discurso aos parlamentares, em especial àqueles que querem revogar o decreto, ameaçando os expor frente à opinião pública, exercendo manipulação por provocação.

Semana que vem nós vamos trazer aqui o nome desses parlamentares. Eu tenho certeza que é daqueles partidecos de esquerda, que só sabem atrapalhar o desenvolvimento do Brasil. Mas não quero antecipar, quero trazer o nome dos parlamentares que querem derrubar isso daí.

(Bolsonaro, 05/03/2020).

Jair Bolsonaro ameaça expor e eventualmente expõe aqueles que não colaboram com suas iniciativas. Ao tentar manipular os parlamentares, também exerce a manipulação aos seus eleitores, buscando obter aderência ao decreto e fazer com que estes também pressionem aos parlamentares.

4.4 Um recife artificial na Barra da Tijuca

Uma das principais políticas defendidas pelo Governo Bolsonaro de incentivo ao turismo foi a criação de recifes artificiais por meio de afundamento de estruturas como navios, barcos, tanques, vagões de trens, aviões, blocos de concreto, esculturas e outros em estados costeiros e no Lago Paranoá, no Distrito Federal (Presidência, 2019).

Como era previsto que algumas dessas estruturas fossem implantadas em áreas de preservação ambiental, pesquisadores e ambientalistas manifestaram preocupação com esta política. Miranda et. al. (2020)Miranda, R.J., Nunes, J.A.C.C.; Creed, J. C. et al. (2020). Brazil policy invites marine invasive species. Science, 368(6490), 481-481. https://doi.org/10.1126/science.abb7255
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afirmam desastrosa a proposta, pois espécies marinhas invasoras utilizam esses recifes artificiais como trampolins para recifes naturais, causando deterioração ambiental, social e econômica.

Os pesquisadores defendem que o plano é controverso, visto que nem os recifes naturais e naufrágios já existentes no Brasil são usados plenamente por mergulhadores, dado que o mergulho é um esporte elitizado. Eles defendem que, ao invés de instalar novos recifes artificiais, a política deveria desenvolver o mergulho nas estruturas já existentes, além do monitoramento dos recifes brasileiros (Miranda et al., 2020Miranda, R.J., Nunes, J.A.C.C.; Creed, J. C. et al. (2020). Brazil policy invites marine invasive species. Science, 368(6490), 481-481. https://doi.org/10.1126/science.abb7255
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).

No Brasil, as regras para instalação de recifes artificiais foram definidas pelo Ibama na Instrução Normativa (IN) Nº 22, de 2009. Em junho de 2019, o então presidente do Ibama, Eduardo Bim, revogou tal instrução e definiu que até a publicação da nova regra, os recifes artificiais seriam licenciados com base em critérios técnicos do Ibama, mas não apresentou tais critérios naquele momento. O que só aconteceu mais de um ano depois, através da IN nº 28, de 24 de dezembro de 2020.

Uma das partes mais polêmicas da IN nº 28/2020 é o artigo 10 da Seção III: “Considera-se inviável o projeto cuja estrutura do recife artificial contenha quantidade excessiva de materiais perigosos e potencialmente poluidores” (Brasil, 2020Brasil. (2020). Instrução Normativa nº 28, 24 de dezembro de 2020. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-28-de-24-de-dezembro-de-2020-296444001
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instr...
). Diferente da resolução de 2009, que previa “a remoção total de substâncias e materiais potencialmente poluentes” (Brasil, 2009Brasil. (2009). Instrução Normativa IBAMA nº 22, 10 de julho de 2009. https://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/Instrucao_normativa2009
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), a nova normativa define apenas que a estrutura não pode ter “quantidades excessivas” desses materiais. Porém, o texto não define qual quantidade seria considerada excessiva.

Outra lacuna na nova instrução é a flexibilização das regras para instalação dos recifes em Unidades de Conservação. O texto de 2009 trazia recomendações específicas que condicionavam a instalação dos recifes à anuência do órgão responsável pela administração da unidade, respeitando o plano de manejo ou as disposições da Instrução Normativa do ICMBio. Tais recomendações foram suprimidas no texto de 2020.

Até agosto de 2021, apenas dois afundamentos foram realizados durante a gestão de Bolsonaro. Os navios Riobaldo e Natureza foram afundados na costa do município de Tamandaré (PE) em setembro de 2019 (AgênciaBrasil, 2019Brasil. (2019). Decreto nº 9.731, 16 de março de 2019. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2019/decreto-9731-16-marco-2019-787838-publicacaooriginal-157601-pe.html
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
).

Nos discursos de Bolsonaro sobre os recifes artificiais identificou-se a oposição fundamental natureza x cultura, onde aquilo que é natural apresenta valor disfórico: a preservação da costa, da biodiversidade e dos peixes. Já o que é cultural apresenta valor eufórico: turismo, pesca, mergulho, economia, dinheiro, lucro e trabalho. Assim, o conteúdo mínimo fundamental é a negação da natureza e a afirmação da cultura.

No nível narrativo, é possível organizar os sentidos a partir da lógica em que Bolsonaro, no passado, enquanto parlamentar, dotado de valor modal querer-fazer, foi impedido de fazê-lo pelo “Ministro do Meio Ambiente do PT” (Bolsonaro, 19/09/2019), um “xiita ambiental” (Bolsonaro, 19/09/2019). Ao tornar-se presidente adquiriu o valor modal do poder-fazer e iniciou o trabalho de afundar os recifes artificiais na costa brasileira.

Por se tratar de um projeto desenvolvido pelo Governo Bolsonaro, a ênfase é nos programas de aquisição, onde se coloca, por meio dos naufrágios: os hotéis em conjunção com mais hóspedes, o Brasil em conjunção com mais turistas, empregos e dinheiro, os mergulhadores em conjunção com mais pontos de mergulho e os pescadores em conjunção com mais peixes. Os textos constroem-se todos nesta perspectiva, em que já existe um progresso em curso e a política de afundamentos trará mais.

Bolsonaro exerce manipulação por tentação aos empresários de empreendimentos hoteleiros de sol e mar, ao propor que, aqueles que quiserem aumentar a ocupação dos hotéis, entrem em contato com a Embratur, para que seja providenciado um afundamento em frente aos estabelecimentos, fazendo-crer que este procedimento é bastante simples e desburocratizado: “Se você [empresário] quiser que nós viermos a afundar alguma coisa aí, pra ajudar a aumentar a taxa de ocupação do hotel, só entrar em contato com a Embratur, que a gente vai botar no plano, a Marinha ali abona e a gente afunda esse material lá” (Bolsonaro, 02/07/2020).

Uma análise interessante das estratégias discursivas de Jair Bolsonaro é perceber como ele vai qualificando seus discursos ao longo do tempo. Em 29/05/2019, Gilson Machado leva os créditos por iniciar o projeto de afundar navios: “Gilson começa a afundar dois navios em Pernambuco, terra dele” (Bolsonaro, 29/05/2019). Em 19/09/2019, Bolsonaro faz-crer que a ideia é sua: “uma coisa que eu sempre quis fazer, desde quando era, lá atrás, deputado” (Bolsonaro, 19/09/2019). Em 02/06/2020, o projeto ganha investimentos semânticos: “um plano muito ousado, que está sendo posto em prática” (Bolsonaro, 02/07/2020). Em 13/09/2020, o projeto capacita o Brasil a ser o principal país do mundo na atividade de mergulho “É um programa que vai fazer com que o Brasil seja o principal país do mundo em mergulho” (Bolsonaro, 13/09/2020). Vale ressaltar que, como dito, nenhum novo naufrágio foi realizado desde setembro de 2019, o que significa que esses incrementos da política de afundamentos ficam tão somente no campo dos discursos.

Como já discutido, quando se fala de políticas de turismo, Bolsonaro pareceu definir as prioridades de seu governo a partir de gostos, motivações e percepções pessoais. No caso da política de recifes artificiais, não foi diferente. Um tema recorrente foi a alocação de um recife artificial em frente a um hotel localizado na Barra da Tijuca, bairro nobre do Rio de Janeiro, vizinho ao Residencial Vivendas da Barra, onde Bolsonaro possui um imóvel.

Desde 2018, o hotel localizado na Avenida Lúcio Costa, possui a bandeira Wyndham Hoteis & Resorts, mas, como por muitos anos o empreendimento foi administrado pela rede Sheraton, este nome ainda parece morar no imaginário de Bolsonaro. Em três trechos é possível identificar a recorrência deste tema:

  1. Eu quero um navio ali, no posto 4, onde eu tenho uma casa. Não é para eu praticar o mergulho. Tem um hotel do lado (...) o Hotel Sheraton (...) eu quero, o Hotel Sheraton, em afundando um navio ali na frente, 15, 20 metros de profundidade. Em afundando o navio, um dos turismos, uma das formas de fazer turismo, que é turismo de mergulho, não é? Com toda certeza, a gente vai manter o Sheraton cheio de gente lá

    (Bolsonaro, 29/05/2019).
  2. Barra da Tijuca por exemplo, que eu moro lá, tá certo. Ali no posto quatro tem o hotel Sheraton, então vamos ver se na reta do hotel Sheraton, uns 100 metros pra fora, não sei qual é a profundidade ali, mas se for possível 100 metros pra fora, afunda uma embarcação ali

    (Bolsonaro, 19/09/2019).
  3. O hotel Sheraton e o outro é o? (...) Windsor, tem mais hotéis na Barra, sei disso. Mas por exemplo, não só ali, mas na costa do Brasil todo, seria bom você... uma distância compatível, e também ver a profundidade. No meu entender, eu vou chutar aqui o ideal, pro meu pensamento, não mais que 10 metros de profundidade pra ajudar, esse mergulho de contemplação. Seria bom afundar navio na frente desses hotéis

    (Bolsonaro, 13/09/2020).

Uma estratégia discursiva aqui identificada, que corrobora com Fiorin (2019)Fiorin, J.L. (2019). Operações enunciativas do discurso da extrema-direita. Discurso & Sociedad, 13(3), 370-382. é o uso de exemplificação saliente, onde um único caso seria representativo do sucesso de uma política pública. Pela lógica do enunciador, uma vez afundado um recife artificial na Barra de Tijuca, e aumentadas as taxas de ocupação daquele hotel especificamente, teríamos a comprovação definitiva de que a política é eficiente.

Merece destaque aqui também a construção que Bolsonaro faz de si mesmo sobre o um sujeito do não-saber, contrastando com a perspectiva de Barros (2013)Barros, D.L.P. (2013). Política e intolerância. In: Fulaneti, O. N.; Bueno, A.M. Linguagem e Política, 71-92., especialmente quando há exigência de um conhecimento técnico sobre um determinado assunto. No primeiro trecho o afundamento deve ser feito a 15 ou 20 metros de profundidade, depois a 100 metros da costa, na terceira fala a 10 metros de profundidade. Esse efeito também se reforça com o uso de modalizadores: “não sei qual”, “se for possível”, “no meu entender”, “eu vou chutar”, “pro meu pensamento”.

4.5 A construção discursiva da Amazônia que não pega fogo

Não é o objetivo deste trabalho discutir o aumento das queimadas que destroem biomas e florestas brasileiras e têm impactos negativos diversos no meio ambiente, na saúde das pessoas, na manutenção da qualidade de vida no planeta e também no turismo das localidades afetadas. O objetivo aqui é tão somente compreender a estratégia discursiva utilizada por Bolsonaro de usar o turismo, de forma ideológica, como argumento para fazer-crer que não existem queimadas nas florestas brasileiras. Bolsonaro relacionou o turismo e as queimadas em pelo menos quatro ocasiões:

  1. Aproveito a oportunidade para convidar as pessoas de fora que estão aqui. Conheçam a Amazônia, vocês não serão queimados, podem ter certeza. Afinal de contas, o que muitas vezes muitos jornais e televisões mostram não é a realidade. É uma área lindíssima, quase totalmente preservado (Bolsonaro, 10/10/2019).

  2. “O turismo na Amazônia é bem-vindo, além de trazer recurso pra nós, mostra pra quem vem de fora que a Amazônia não pegou fogo, nem tá pegando fogo. É uma grande mentira” (Bolsonaro, 02/01/2020).

  3. “E por que não abrirmos, estimularmos a Amazônia para o turismo para mostrar para o gringo que aquele trem não pega fogo? Isso é muito bom para nós” (Bolsonaro, 07/10/2020).

  4. “A gringada eu quero é que venha para cá, pra andar na Amazonia, pra ver que aquele trem não pega fogo. É uma mentira o que falam sobre a Amazônia. Uma mentira deslavada” (Bolsonaro, 08/10/2020).

Mais uma vez Bolsonaro faz uso da exemplificação saliente, pois, se um turista, ou um grupo de turistas vier ao Brasil, conhecer a Amazônia e não for queimado, é a prova irrefutável de que a Amazônia não pega fogo, e que, portanto, o que se fala internacionalmente sobre o fogo no bioma brasileiro é mentira.

O enunciador também faz-crer que esta mentira está impregnada de interesses não revelados. O fomento do turismo, neste caso, tem interesse exclusivamente ideológico, de comprovar a tese bolsonarista de que a Amazônia não pega fogo e que, portanto, seu governo sofreu inúmeras injustiças ao ser acusado de se omitir e até de promover e incentivar queimadas nas florestas.

4.6 Política de flexibilização de vistos

Yang et al. (2022)Yang, F., Li, S., Yang, G. (2023). Political ideological distance and tourism demand: The cultural–political interplay. Annals of Tourism Research, 98, 103525. https://doi.org/10.1016/j.annals.2022.103525
https://doi.org/10.1016/j.annals.2022.10...
apuraram que quanto mais distantes dois países estiverem no espectro ideológico-político, mais provável que o país de destino imponha restrições de visto a turistas do país de origem. A partir desta análise, é possível inferir que países em espectros ideológicos semelhantes, tendam a uma maior flexibilização nas políticas de visto, o que se mostrou verdadeiro no Brasil no Governo Bolsonaro.

Em 16 de março de 2019, Bolsonaro, por meio do Decreto nº 9.731, dispensou a obrigatoriedade de visto de entrada no Brasil para fins de turismo para cidadãos do Canadá, Estados Unidos, Austrália e Japão (Brasil, 2019Brasil. (2019). Mensagem ao Congresso Nacional 2019. Presidência da República. https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2019/02/04/mensagem-presidencial
https://www12.senado.leg.br/noticias/arq...
). A dispensa de visto dos países citados foi unilateral, ou seja, brasileiros não foram dispensados do visto em nenhum dos países beneficiados. A unilateralidade rompe com a tradição diplomática do Itamaraty de impor as mesmas condições exigidas aos brasileiros nos demais países.

Nos discursos analisados sobre o tema, que contemplam falas de Jair Bolsonaro, Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores naquele momento e Gilson Machado, presidente da Embratur no momento, tem-se a oposição fundamental crescimento x estagnação, onde a política de flexibilização representa o crescimento do turismo e do número de turistas, enquanto sua não realização representa estagnação. Por isso, justifica-se fazê-la. Como se trata de uma medida implementada pelo governo, a ênfase é nos programas de aquisição, onde demonstra-se o que se ganha com tal política.

Uma das estratégias enunciativas utilizadas por Araújo, Machado e Bolsonaro na construção dos discursos é a utilização da debreagem enunciva, produzindo efeito de distanciamento e imparcialidade. Por meio dessa estratégia, os enunciadores fazem-parecer que sua função ali é meramente a de comunicar fatos. Os três trazem referências externas ao enunciado e utilizam dados para reforçar o efeito de verdade de suas declarações.

Como nesta fala de Araújo, que constrói seu argumento a partir de dados supostamente adquiridos de um site de viagens: “Só no primeiro dia depois de sair a notícia [da liberação dos vistos], um site de viagem já registrou mais 31% de interesse em viagens ao Brasil” (Araújo, 28/03/2019)

Machado constrói efeito parecido, mas desta vez trazendo não só uma outra pessoa ao enunciado, mas adicionando também elementos de tempo e lugar.

Automaticamente nós já tivemos um incremento de 52% de emissões reais de passagens, de acordo com um dado hoje, que eu recebi da ABIH, aqui no congresso, que teve aqui no auditório Nereu Ramos. A ABIH que representa 36 mil hotéis no Brasil, segundo o seu presidente, o Manuel Linhares, o baixinho de Crateús, né

(Machado, 23/05/2019, grifos nosso).

Jair Bolsonaro também utiliza estratégia parecida:

Tive é, a poucos dias no hospital... no hotel lá no Rio de Janeiro, perguntei pro... como é que estava a taxa de ocupação do hotel, ele falou que estava bem acima do esperado né, e perguntei se os demais né do Rio de Janeiro estavam na mesma situação, falou que sim. Então a taxa de ocupação dos hotéis subiu também, não tenho o valor exato aqui, mas subiu também e é sinal que tá vindo mais turistas pra cá. E vindo porquê? Porque nós né, em grande parte esses turistas vêm daqueles países que nós não exigimos a reciprocidade dos vistos né, na isenção de vistos, então o pessoal vem pra cá fazer turismo

(Bolsonaro, 26/11/2019).

No trecho destacado é possível identificar a exemplificação saliente. A partir da opinião de uma única pessoa, sobre a ocupação de um único hotel, conclui-se que a implementação da política aumentou a ocupação de todos os hotéis do país, e que isso bastaria como indicador do aumento de turistas. Segundo Fiorin (2019, p. 379)Fiorin, J.L. (2019). Operações enunciativas do discurso da extrema-direita. Discurso & Sociedad, 13(3), 370-382., “esse raciocínio é um sofisma de indução, pois chega-se à generalização com uma enumeração insuficiente de casos particulares”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da análise dos discursos de Jair Bolsonaro sobre o turismo destacaram-se seis características importantes, que foram brevemente reunidas a seguir:

  1. Os discursos de Bolsonaro sobre turismo constroem-se na perspectiva do “eu”, as propostas por ele defendidas são aquelas que refletem suas experiências pessoais, desejos, habilidades, gostos, posicionamentos ideológicos e hobbies.

  2. Na construção discursiva, Bolsonaro oscila entre o “sujeito do saber”, especialmente, quando faz afirmações sobre os projetos de seu governo e pautas de interesse ideológico, e o “sujeito do não-saber”, em especial, quando suas declarações exigem caráter técnico e conhecimento específico sobre um determinado assunto.

  3. Em seus discursos, Bolsonaro tem como “tu” projetado a sua base de apoio, direcionando seus discursos aos seus apoiadores. Fazendo a todo tempo acenos a temas que são caros a essa base e pedindo poder, manifestado através de apoio e aderência para conseguir pôr em prática seus projetos.

  4. O turismo é, na construção discursiva de Bolsonaro, uma figura que contribui para a construção temática da desregulação, em especial a desregulação ambiental. E a construção temático-figurativa do turismo e desregulação constroem a isotopia do neoliberalismo.

  5. Bolsonaro faz uso ideológico da temática do turismo, como na construção sobre os incêndios na Amazônia e na isenção de vistos a cidadãos de alguns países.

  6. Bolsonaro constrói seus discursos em cima da polarização, apontando um lado certo e um lado errado e trabalhando nesta polaridade, reafirma a retórica “nós contra eles”.

Este trabalho mostrou-se importante por dois motivos: o primeiro, como documentação histórica da agenda política do turismo no Governo Bolsonaro, para entender como os valores ideológicos desse grupo operaram durante a sua gestão; o segundo, mais subjetivo, por meio da compreensão do pensamento bolsonarista através de seus discursos.

O bolsonarismo influencia, ainda, os pensamentos e comportamentos de uma parte considerável da sociedade brasileira. Nessa linha, podemos supor que temas defendidos por Bolsonaro, como a transformação da Baía de Angra em um polo turístico, a pesca em áreas de proteção, o turismo de jet-ski, as iniciativas de desregulação ambiental e outros temas, ainda serão relevantes para uma parcela considerável da sociedade e ainda farão parte do debate sobre os rumos do turismo no país.

O debate do tema do turismo na política é relativamente novo se comparado a outros temas como segurança, saúde, educação, trabalho. Por isso, se não nos atentarmos, estamos sujeitos a cair em “chavões”, aplicações do senso comum, como a de que o turismo sozinho, e sem planejamento é “capaz de desenvolver a economia” ou “capaz de diminuir as desigualdades sociais”. Quem diz isso sem um teor de criticismo, ou o faz por ingenuidade, ou pautado pelo objetivo de iludir a população.

  • Como citar: Lopes, M. M., & Panosso Netto, A. (2023). O turismo no governo de Jair Bolsonaro: políticas públicas e discursos ideológicos. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 17, e-2777, 2023. https://doi.org/10.7784/rbtur.v17.2777

REFERÊNCIAS

Editado por

Editor: Leandro B. Brusadin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2023
  • Aceito
    16 Jun 2023
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