Pancreatite aguda e COVID-19: uma revisão integrativa da literatura

RESUMO

Os primeiros casos da doença COVID-19 foram identificados no final de 2019 na China, mas não foi necessário muito tempo para que se tornasse pandêmica. Acreditava-se, a princípio, que ela fosse restrita apenas a sintomas respiratórios, até que manifestações extrapulmonares fossem mundialmente relatadas. Quadros de pancreatite aguda concomitantes ao diagnóstico de infecção por SARS-CoV-2 vêm sendo observados em alguns pacientes, na ausência das etiologias mais comuns descritas na literatura. Postula-se que a presença do receptor viral ECA-2 no pâncreas seja responsável pelo dano celular direto e que o estado hiperinflamatório da COVID-19 favoreça o desenvolvimento da pancreatite por mecanismo imunomediado. Este estudo teve como objetivo analisar a correlação entre pancreatite aguda e a doença COVID-19 como um provável fator de causalidade. Realizou-se uma revisão integrativa da literatura, foram incluídos estudos publicados entre janeiro de 2020 e dezembro de 2022 que trouxessem dados acerca de pacientes diagnosticados com pancreatite aguda conforme a Classificação de Atlanta revisada com diagnóstico confirmado de COVID-19 no mesmo período. Um total de trinta estudos foram revisados. Aspectos demográficos, clínicos, laboratoriais e de imagem foram analisados e discutidos. Acredita-se que o SARS-CoV-2 foi o responsável pelo desenvolvimento de pancreatite aguda nestes pacientes, devido à ausência de demais fatores de risco precipitantes, bem como à estreita relação temporal entre ambos. Uma atenção deve ser dada às manifestações gastrointestinais em pacientes acometidos pela COVID-19.

Palavras-chave:
COVID-19; SARS-CoV-2; Pancreatite

ABSTRACT

The first cases of the COVID-19 disease were identified in late 2019 in China, but it didnt take long for it to become pandemic. At first, it was believed that it was restricted to respiratory symptoms only, until extrapulmonary manifestations were reported worldwide. Acute pancreatitis concomitant with the diagnosis of SARS-CoV-2 infection has been observed in some patients, in the absence of the most common etiologies described in the literature. It is postulated that the presence of the ECA-2 viral receptor in the pancreas is responsible for the direct cellular damage and that the hyperinflammatory state of COVID-19 favors the development of pancreatitis through an immune-mediated mechanism. This study aimed to analyze the correlation between acute pancreatitis and COVID-19 disease as a probable causality factor. An integrative literature review was carried out, including studies published between January 2020 and December 2022 that brought data on patients diagnosed with acute pancreatitis according to the revised Atlanta Classification with a confirmed diagnosis of COVID-19 in the same period. A total of thirty studies were reviewed. Demographic, clinical, laboratory and imaging aspects were analyzed and discussed. It is believed that SARS-CoV-2 was responsible for the development of acute pancreatitis in these patients, due to the absence of other precipitating risk factors, as well as the close temporal relationship between both. Attention should be given to gastrointestinal manifestations in patients affected by COVID-19.

Keywords:
COVID-19; SARS-CoV-2; Pancreatitis

INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019 autoridades chinesas alertaram a Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o surgimento de casos de uma pneumonia atípica na cidade de Wuhan¹. Após o sequenciamento genético, um novo tipo de coronavírus foi identificado, definido então como SARS-CoV-2 e a doença como COVID-19^1-3. Tratava-se de um vírus de RNA de fita simples, o sétimo do grupo de coronavírus humanos a ser identificado, assim designado por sua alta homologia com o SARS-CoV, responsável por surtos de Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA) entre os anos de 2002 e 2003, a princípio também na China^1,3. Em janeiro de 2020 a OMS declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) e em março do mesmo ano foi definida como pandemia.1 Até 20 de abril de 2022, mais de 6,2 milhões de mortes relatadas foram atribuídas à COVID-19 em todo o mundo⁴.

Inicialmente, acreditava-se que ela possuía caráter estritamente respiratório³, no entanto, devido sua rápida disseminação, relatos das mais variadas apresentações dessa doença foram surgindo, levantando hipóteses de um acometimento multissistêmico⁵. Viu-se que sintomas gastrointestinais, por sua vez, podem estar presentes em até metade dos pacientes, com a presença ou não de sintomas respiratórios associados⁵. No suceder da pandemia já foi possível identificar, por exemplo, RNA do SARS-CoV-2 em amostras de fezes de 48,1% de pacientes⁶, no líquido peritoneal⁷ e no drenado de um pseudocisto pancreático de um paciente recém hospitalizado por pancreatite aguda edematosa de origem desconhecida⁸.

Assim como o relato deste último paciente, outros autores também observaram a ocorrência de pancreatite aguda em pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 na ausência de fatores de risco conhecidos - colelitíase, alcoolismo, hipertrigliceridemia e outros⁹. Particularmente, os agentes infecciosos são responsáveis por cerca de 10% dos casos, dentre as causas virais nota-se o vírus coxsackie, hepatite B, citomegalovírus (CMV), vírus da imunodeficiência humana (HIV), herpes simples (HSV), caxumba e varicela-zoster¹⁰. Postula-se que o acometimento pancreático atrelado à COVID-19 ocorra por dois mecanismos principais: 1) Lesão citotóxica direta: o SARS-CoV-2 utiliza o receptor da enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2) para adentrar nas células humanas, descobriu-se que ele é expresso também no pâncreas tanto nas glândulas exócrinas quanto nas células das ilhotas, explicando a afinidade viral pelo órgão^2,11-14. 2) Hiperinflamação sistêmica: o vírus induz uma resposta imune exacerbada e desregulada, conhecida como “tempestade de citocinas”, resultando então em falência múltipla de órgãos, inclusive pancreática^11,12.

Percebeu-se, por um estudo multicêntrico internacional de caráter prospectivo, que pacientes com pancreatite aguda e infecção por SARS-CoV-2 concomitantes, não só estão sujeitos a desfechos clínicos piores (aumento da gravidade da pancreatite, tempo de internação e falência de órgãos) como também apresentam um índice de mortalidade significativamente maior em 30 dias15.

OBJETIVO

Em virtude disso, nosso estudo tem como objetivo analisar a correlação entre pancreatite aguda e a doença COVID-19 como um provável fator de causalidade, na ausência das demais etiologias classicamente conhecidas..

MÉTODOS

Trata-se de uma Revisão Integrativa da Literatura executada em seis etapas: identificação do problema com elaboração de pergunta de norteadora, pesquisa de literatura, avaliação e análise criteriosa dos dados e, por fim, apresentação da revisão com seus resultados e limitações¹⁶.

A busca foi realizada na base de dados PubMed e os descritores utilizados foram “Acute Pancreatitis” AND “adults” “COVID-19”, todos disponíveis no MeSH e DeCS.

Critérios de elegibilidade

Os critérios de inclusão foram: estudos inéditos prospectivos ou retrospectivos, relatos e séries de casos, publicados entre 1º de janeiro de 2020 a 31 de dezembro de 2022, de língua inglesa, que apresentassem casos e dados acerca da pancreatite aguda em adultos associada à COVID-19 confirmada laboratorialmente e/ou radiologicamente. Sendo o diagnóstico de pancreatite necessariamente conforme a Classificação de Atlanta revisada¹⁷, com a presença de pelo menos 2 dos seguintes critérios: 1) dor abdominal consistente com pancreatite aguda (início agudo de dor epigástrica intensa e persistente, muitas vezes irradiando para as costas); 2) nível sérico de lipase ou amilase três ou mais vezes o limite superior do normal; 3) achados de imagem característicos de pancreatite aguda na tomografia computadorizada (TC), ressonância nuclear magnética (RNM) ou ultrassonografia (USG).

Foram excluídos: quadros de pancreatite aguda em crianças (<18 anos), estudos sem texto completo disponível ou pré-publicações e aqueles que não especificaram durante o relato ou metodologia o diagnóstico de pancreatite aguda baseado na Classificação de Atlanta. Relatos de pacientes portadores de fatores de risco conhecidos⁹ de pancreatite foram descartados, são eles: litíase biliar, histórico de abuso de álcool, hipertrigliceridemia (>1000mg/dL), hipercalcemia, infecções virais exceto o SARS-CoV-2, pacientes submetidos a procedimentos invasivos recentes como CPRE (colangiopancreatografia retrógrada endoscópica), pancreatite autoimune (níveis elevados de IgG4), pacientes com pancreatite aguda recorrente ou com história familiar que elevasse a suspeita de pancreatite hereditária, abuso de medicamentos, causas estruturais como pâncreas divisum, tumores ou lesões císticas próximas.

De início, foram identificados 94 estudos. Após a leitura dos títulos e resumos, excluiu-se 49 deles, restando 45 pré-selecionados para análise do texto na íntegra. Após a leitura integral, foram descartados 15 e a amostra final foi composta por 30 estudos eleitos para extração de dados e construção da revisão.

RESULTADOS

Trinta estudos foram revisados, dentre eles: vinte e quatro relatos de caso^8,18-40, duas cartas com descrição de casos^41,42, um estudo prospectivo com 316 pacientes na Turquia⁴³, um estudo transversal holandês⁴⁴, e outros 2 estudos retrospectivos, ambos estadunidenses^45,46.

Figura 1
A análise dos artigos foi realizada por meio dos critérios de: redução, exibição e comparação de dados.

A Tabela 1 descreve o perfil demográfico geral (idade e sexo) de 31 pacientes dos relatos de caso e cartas, bem como sintomatologia, níveis das enzimas pancreáticas, presença ou não de achados característicos de pancreatite em exames de imagem e desfecho (recuperado - se alta hospitalar ou descrição de melhora clínica - ou óbito). A Tabela 2 sintetiza os principais resultados dos estudos maiores e a metodologia utilizada.

Tabela 1
Primeiro autor, dados demográficos, clínicos, níveis de amilase e lipase, presença ou ausência de achados de pancreatite em imagem e desfecho dos pacientes dos relatos de caso e cartas.

1º Autor	Idade e Sexo	Sintomas constitucionais e/ou respiratórios	Manifestações gastrointestinais	Lipase e amilase sérica	Achados de imagem sugestivos de pancreatite aguda	Desfecho
Aloysius et al.18	36/F	Febre, tosse, dispneia	Dor e sensibilidade abdominal epigástrica irradiada para as costas, náuseas, vômitos, diarreia	L: 627U/L A: 325U/L	Sem anormalidades	Recuperado
Sharma et al.41	25/F	Febre, cefaleia, calafrios, odinofagia	Dor e sensibilidade abdominal epigástrica excruciante irradiada para as costas, vômitos	L: 11920,7U/L A: 1814,6U/L	Sim	Recuperado
Almutairi et al.19	71/M	Febre, tosse, dispneia	Dor abdominal com sensibilidade epigástrica irradiada para quadrante superior direito	L: 1023U/L A: 544U/L	Sim	NR
Nizamic et al.20	49/F	Não apresentou sintomas respiratórios	Dor abdominal, diarreia, ingesta oral limitada	L: 2864U/L A: NR	Sim	Recuperado
1º Autor	Idade e Sexo	Sintomas constitucionais e/ou respiratórios	Manifestações gastrointestinais	Lipase e amilase sérica	Achados de imagem sugestivos de pancreatite aguda	Desfecho
AlHarmi et al.21	52/F	Febre, tosse, dispneia	Dor abdominal epigástrica e em quadrante superior direito, em queimação, irradiada para as costas, agravada por ingesta oral, náuseas e vômitos	L: NR A: 47U/L	Sim	Recuperado
Tadkal et al.22	42/M	Febre, cefaleia	Dor abdominal	L: 119U/L A: 136U/L	Sim	Recuperado
	71/M	Febre, tosse, dispneia	Dor e distensão abdominal	L: 143U/L A: 93U/L	Sim	Recuperado
	63/M	Febre, tosse, dispneia	Dor abdominal com sensibilidade em região umbilical, vômitos	L: 178U/L A: 139U/L	Sim	Recuperado
	36/M	Febre, tosse	Dor abdominal com sensibilidade em região umbilical, vômitos	L: 185U/L A: 204U/L	Sim	Recuperado
	28/M	Febre, tosse	Dor abdominal com sensibilidade em região umbilical, vômitos	L: 2851U/L A: 834U/L	Sim	Óbito
Arbati et al.23	28/M	Febre, tosse, dispneia, mialgia	Dor abdominal epigástrica intensa, irradiada para as costas, distensão abdominal, náuseas e vômitos	L: 758U/L A: 1273U/L	Sim	Recuperado
Cheung et al.24	38/M	Febre	Dor abdominal epigástrica intensa, irradiada para as costas, náuseas e vômitos	L: 20320ukat/L A: U/L	Sim	Recuperado
Ferreira et al.25	35/M	Dispneia	Dor e sensibilidade abdominal epigástrica em pontada, irradiada para as costas, náuseas e vômitos	L: NR A: 1669U/L	Sim	Recuperado
Simou et al.26	67/ NR	Febre, dispneia, mialgia, artralgia	Não apresentou sintomas gastrointestinais característicos	L: 576U/L A: NR	Sim	Óbito
Hatch-Vallier et al.27	39/F	Febre, tosse, ageusia, anosmia	Dor e sensibilidade abdominal epigástrica, náuseas	L: 43U/L A: NR	Sim	Recuperado
Kumaran et al.28	67/F	Não apresentou sintomas respiratórios	Dor abdominal epigástrica, náuseas e vômitos, diarreia	L: NR A: 1483U/L	Sim	Recuperado
Jeelani et al.29	24/M	Febre, tosse, dispneia	Dor e sensibilidade abdominal epigástrica, náuseas e vômitos, diarreia	L: 2025U/L A: NR	Sim	Recuperado
Eldaly et al.30	44/M	Não apresentou sintomas respiratórios	Dor e sensibilidade abdominal epigástrica intensa, irradiada para as costas, vômitos	L: 286U/L A: 773U/L	Sim	Recuperado
1º Autor	Idade e Sexo	Sintomas constitucionais e/ou respiratórios	Manifestações gastrointestinais	Lipase e amilase sérica	Achados de imagem sugestivos de pancreatite aguda	Desfecho
Narang et al.31	20/F	Febre, tosse, dispneia, mialgia	Dor abdominal epigástrica aguda, irradiada para as costas, náuseas e vômitos	L: 916U/L A: 396U/L	Sim	Recuperado
Mitrovic et al.32	33/M	Não apresentou sintomas respiratórios	Dor abdominal epigástrica, irradiada para as costas, náuseas e vômitos	L: 1082U/L A: 1426U/L	Sim	Óbito
Hadi et al.33	47/F	Febre, cefaleia, dispneia	Não apresentou sintomas gastrointestinais característicos	L: NR A: 1500U/L	Sim	NR
	68/F	Febre, fadiga	Dor e sensibilidade abdominal epigástrica e periumbilical, distensão abdominal, vômitos, diarreia	L: NR A: 934U/L	NR	NR
Brikman et al.34	61/M	Febre, tosse, dispneia	Dor e sensibilidade abdominal difusa de início súbito, anorexia	L: 203U/L A: 142U/L	Sim	Recuperado
Fernandes et al.42	36/F	Febre, dispneia, cefaleia	Dor abdominal superior	L: 640U/L A: 710U/L	Sim	Recuperado
Karimzadeh et al.35	65/F	Mialgia, calafrios; não apresentou sintomas respiratórios à admissão	Dor e sensibilidade abdominal superior, náuseas	L: 283U/L A: 192U/L	Sem anormalidades.	Recuperado
Ghosh et al.36	63/M	Febre, tosse, dispneia	Não apresentou sintomas gastrointestinais característicos	L: 412U/L A: 58U/L	Sim	Recuperado
Ibrahim et al37	33/M	Dispneia	Dor abdominal com sensibilidade epigástrica e em hipocôndrio direito	L: >1200U/L A: 390U/L	Sim	Recuperado
Bokhari et al.38	32/M	Febre, tosse, mialgia, calafrios, odinofagia	Dor abdominal epigástrica intensa, irradiada para as costas, náuseas e vômitos, diarreia	L: 721U/L A: 672U/L	Sim	Recuperado
Kurihara et al.39	55/NR	Febre, tosse	Descrição de dor abdominal impossibilitada por causa da sedação	L: 263U/L A: 252U/L	Sim	Recuperado
Abraham et al.40	61/F	Febre, dispneia	Dor abdominal periumbilical, vômitos	L: 904U/L A: NR	NR	Recuperado
Schepis et al.8	67/F	Febre	Dor e sensibilidade abdominal epigástrica e mesogástrica, distensão abdominal, vômitos	L: 900U/L* A: NR	Sim	NR

• F: Feminino; M: Masculino; NR: não relatado. *Nível de lipase no líquido de um pseudocisto pancreático.

Tabela 2
Primeiro autor, objetivo, métodos e principais resultados obtidos pelos estudos inéditos prospectivos e retrospectivos.

1º Autor	Objetivo	Metodologia	Principais resultados
Akarsu et al.43	Investigar o dano pancreático causado pelo SARS-CoV-2 e os efeitos do desenvolvimento de pancreatite aguda na progressão da COVID-19.	Dados de 316 pacientes admitidos na instituição entre 25 de março de 2020 e 25 de abril de 2020 com diagnóstico de pneumonia por COVID-19 foram avaliados prospectivamente. O diagnóstico de COVID-19 foi via RT-PCR e achados de TC. O diagnóstico de pancreatite foi de acordo com os critérios revisados de Atlanta. Os pacientes foram categorizados em três de acordo com a gravidade da pneumonia (leve, grave, crítica). Demografia, taxa de pancreatite, parâmetros bioquímicos e radiológicos de cada grupo foram analisados. Os pacientes foram divididos em dois grupos e os resultados foram comparados: pacientes com COVID-19 com pancreatite aguda (Grupo P) e sem pancreatite aguda (Grupo C).	Pancreatite aguda foi detectada em 12,6% dos 316 pacientes. A idade média para aqueles com pancreatite aguda foi de 55. Houve correlação positiva entre idade avançada e mortalidade (p¼0,0003). O sexo masculino constituiu 59,1% dos pacientes. Sexo não fez uma diferença significativa em termos de mortalidade (p¼0,3999) e desenvolvimento de pancreatite (p¼0,4192). Sintomas gastrointestinais como dor abdominal, náusea, vômito e diarreia foram observados em 87,5% dos pacientes que tiveram pancreatite. Havia 50 pacientes (15,8%) em estado leve, 189 pacientes (59,8%) em estado grave e 77 pacientes (24,3%) em estado crítico. Não houve pancreatite aguda em pacientes leves. Em 7,9% dos pacientes em estado grave e 32,5% dos pacientes em estado crítico apresentavam pancreatite aguda. Houve uma correlação positiva entre a gravidade da pneumonia e pancreatite e a taxa de pancreatite aumentou com a gravidade da pneumonia (p<0,0001). As taxas de hospitalização e mortalidade foram maiores em pacientes com COVID-19 acompanhados de pancreatite aguda (p¼0,0038 e p<0,0001, respectivamente).
Kumar et al.45	Descrever a epidemiologia, curso clínico e desfecho de pacientes hospitalizados com COVID-19 e pancreatite aguda.	Análise retrospectiva do registro de dados de todos os pacientes adultos (>18 anos) que foram admitidos com diagnóstico de COVID-19 e pancreatite aguda (no mesmo encontro) de 1º de fevereiro a 30 de junho de 2020 em um dos cinco Hospitais da Partners Healthcare Network. A doença de COVID-19 foi confirmada por RT-PCR. O diagnóstico de pancreatite aguda foi realizado conforme a Classificação de Atlanta revisada. Os dados detalhados, incluindo dados demográficos, sintomas, insuficiência respiratória, choque, transferência para UTI, ventilação mecânica, anormalidades laboratoriais e achados de imagem foram registrados.	De 985 pacientes triados, 17 foram elegíveis para o estudo, 9 (52,9%) foram hospitalizados principalmente SDRA associada à doença do coronavírus, exigindo intubação e ventilação mecânica. Esses pacientes desenvolveram pancreatite aguda após uma média de 22,5 dias (intervalo de 13 a 76 dias) desde o início dos sintomas de COVID-19. Ao contrário, oito pacientes apresentaram sintomas típicos e foram diagnosticados com pancreatite aguda na admissão. De 8, três (37,5%) desenvolveram sintomas respiratórios e constitucionais da doença por COVID-19, um (12,5%) antes do diagnóstico de pancreatite aguda, enquanto dois pacientes (25%) desenvolveram febre e tosse após 3 dias de internação. Os pacientes admitidos principalmente com doença grave de COVID-19 eram mais jovens (idade média 57 x 63 anos), mulheres (55,6x25%), de etnia hispânica (55,6x25%) e obesos (88,9x37,5%). Dos 17 pacientes, a mediana do pico de lipase entre os pacientes ventilados mecanicamente foi maior (661 vs. 236U/L). Um paciente em cada grupo não apresentou elevação da lipase, mas seu curso clínico e a imagem de TC foram característicos de pancreatite aguda. Além disso, os níveis de outros marcadores usados para monitorar a doença de COVID-19, incluindo PCR, ferritina, lactato desidrogenase e D-dímero foram maiores entre os pacientes que desenvolveram posteriormente pancreatite aguda. Embora o pico de triglicerídeos tenha precedido o diagnóstico de pancreatite aguda entre esses pacientes, os níveis de triglicerídeos diminuíram rapidamente nesses pacientes com a descontinuação do propofol e/ ou alimentação por sonda. Entre 9 pacientes que apresentaram pancreatite aguda posteriormente, 5 (55,6%) apresentaram complicações tromboembólicas em comparação com um paciente (12,5%) que apresentou pancreatite aguda na admissão. Entre os pacientes que desenvolveram pancreatite aguda posteriormente, três pacientes morreram de SDRA e falência tissistêmica de órgãos, resultando em uma taxa de mortalidade intra-hospitalar de 33,3%. Já os pacientes internados principalmente por pancreatite aguda tiveram uma taxa de mortalidade intra-hospitalar de 12,5%.
1º Autor	Objetivo	Metodologia	Principais resultados
Bulthuis et al.44	Investigar a incidência, gravidade e impacto clínico da pancreatite aguda em pacientes com COVID-19.	Estudo transversal de uma coorte observacional prospectiva referente a todos os pacientes com COVID-19 internados em dois hospitais universitários holandeses entre 4 de março de 2020 e 26 de maio de 2020. A COVID-19 confirmada foi definida como um resultado positivo no sequenciamento de alto rendimento ou via RT-PCR e/ou achados característicos na TC de tórax. A pancreatite aguda foi definida de acordo com a Classificação de Atlanta revisada. O desfecho primário foi pancreatite aguda potencialmente relacionada à infecção por COVID-19. Uma relação potencial com COVID-19 foi definida como a ausência de uma etiologia clara de pancreatite aguda. Os desfechos secundários incluíram o desenvolvimento de necrose pancreática, falência de órgãos e impacto clínico da pancreatite aguda.	Entre 433 pacientes com COVID-19, cinco (1,2%) tinham pancreatite aguda potencialmente relacionada de acordo com a classificação revisada de Atlanta. A idade mediana destes 5 pacientes foi de 60 anos (47-71). Quatro pacientes (80%) eram do sexo masculino. Esses cinco pacientes sofriam de infecção grave por COVID-19. Todos sofreram falência de órgãos devido ao COVID-19: três (60%) sofreram de insuficiência respiratória, dois (40%) renais e três (60%) cardiovasculares. Quatro pacientes foram internados na UTI por uma média de 14 dias (12-14). Todos os pacientes com pancreatite aguda foram submetidos à TC abdominal com contraste. A mediana de internação foi de 21 dias (20-35). Nenhuma intervenção adicional relacionada à pancreatite aguda foi realizada. Três pacientes (60%) morreram.
Gubatan et al.46	Relatar a prevalência pontual, fatores de risco e resultados de pacientes hospitalizados com	Estudo de coorte observacional retrospectivo de pacientes com 18 anos ou mais internados em 12 hospitais dentro do Sistema de Saúde Northwell de 1º de março de 2020 a junho 1º de janeiro de 2020 em Nova York. Os pacientes foram identificados como apresentando pancreatite aguda se preenchessem todos os 3 critérios da Classificação de Atlanta revisada. Aqueles com pancreatite aguda e COVID-19 foram comparados a um grupo de pacientes com pancreatite aguda, mas sem COVID-19. Os prontuários dos foram revisados manualmente não apenas para confirmar o diagnóstico de pancreatite, mas também para determinar sua etiologia. Os desfechos primários de mortalidade, tempo de internação, necessidade de ventilação mecânica e desenvolvimento de necrose pancreática foram comparados entre os 2 grupos.	Durante o período do estudo, 48.012 pacientes foram hospitalizados e deles 11.883 (24,75%) eram positivos para COVID-19 na admissão. Um total de 189 atendidos para diagnóstico de pancreatite (prevalência pontual 0,39%) e 32 de 189 (17%) eram positivos para COVID-19, gerando uma prevalência pontual de 0,27% de pancreatite entre pacientes hospitalizados com COVID-19. Houve uma proporção maior de pacientes negros e hispânicos com pancreatite no grupo COVID-positivo em comparação com o grupo COVID-negativo. Entre o grupo de pacientes com COVID-19 negativo, as etiologias do cálculo biliar e do álcool foram as mais comuns, com 34% e 37%, respectivamente, semelhante à da população em geral. No entanto, entre os pacientes com COVID-19, essas etiologias representaram apenas 16% e 6% dos casos, respectivamente. Em vez disso, a pancreatite idiopática foi a etiologia mais comum neste grupo - 69%, em comparação com 21% em pacientes que eram COVID-19 negativos (p<0,0001). Pacientes com pancreatite que também eram positivos para COVID-19 eram mais propensos a necessitarem de ventilação mecânica e tinham maior tempo de hospitalização em comparação com pacientes com pancreatite sem COVID-19 (OR, 5,65; P¼0,01 e OR, 3,22; P¼0,009, respectivamente).

A média de idade dos 31 pacientes descritos nos 24 relatos e 2 cartas é de 46,97 anos, dois deles não especificaram o sexo de seus pacientes^26,39, nos demais o sexo masculino foi maioria (16/29). A história médica pregressa incluía majoritariamente hipertensão arterial sistêmica^{19,21,22,28,32,33,35,40}, obesidade^{18,21,25,26,31}, diabetes mellitus^{19,21,22,26,36} e doença renal crônica^{19,20,22,32,40}. Alguns pacientes não possuíam passado médico significativo^{24,27,29,30,33,34,38,39,41}. Uma foi submetida à laparotomia um ano antes para ressecção intestinal devido estenose de artéria mesentérica superior²⁸. Outra estava na 33ª semana de gestação do primeiro filho³¹.

O diagnóstico da infecção por SARS-CoV-2 foi confirmado primordialmente por RT-PCR (reação em cadeia da polimerase em tempo real) com amostras de swab nasofaríngeo^{18-26,28,30,31,34-40,42}; dois pacientes foram submetidos a testes rápidos^27,32; dois estudos não especificaram qual o teste diagnóstico realizado^33,41. Os achados radiológicos de tórax resumiram-se a opacidades periféricas bilaterais e em vidro fosco^{8,18,21-23,25,26,31-35,37,42}.

Doze pacientes apresentaram sintomas constitucionais e/ou respiratórios e gastrointestinais à admissão, com diagnóstico de pancreatite aguda e COVID-19 no mesmo internamento^{18,22,23,25,27,33,37,40}. Seis foram admitidos com sintomas constitucionais e/ou respiratórios e cursaram com pancreatite aguda durante o internamento^{21,26,31,33,34,39}. Dentre estes, um referiu posteriormente que a dor abdominal estava presente há pelo menos uma semana, mas foi tratada inicialmente como gastrite²¹. Um paciente não manifestou sintomas gastrointestinais e por isso seu diagnóstico foi dado por alteração laboratorial e exame de imagem²⁶ e em outro não houve registro de dor abdominal por causa da sedação³⁹.

Cinco pacientes foram inicialmente diagnosticados e tratados para COVID-19 e posteriormente retornaram ao serviço de saúde com sintomas gastrointestinais, recebendo diagnóstico de pancreatite^{19,24,29,38,41}. Um deles retornou ao pronto-socorro 2 dias após a alta com queixa de dor abdominal e foi reinternado por quadro de gastrite aguda, só depois investigou-se pancreatite aguda¹⁹. A COVID-19 de dois desses pacientes havia sido diagnosticada há duas²⁹ e uma²⁴ semana antes, mas nessa segunda admissão o teste ainda permanecia positivo. Este último²⁴ já havia recebido diagnóstico de “pancreatite aguda de etiologia incerta” em sua primeira admissão, mas recebeu alta e foi orientado a isolar-se em casa.

Um paciente em específico também recebeu diagnóstico de infecção por SARS-CoV-2 em um primeiro internamento, mas evoluiu com sonolência e foi reinternado dois dias após a alta; o diagnóstico de pancreatite aguda, por sua vez, deu-se por meio de exames laboratoriais e alterações em imagem, visto que não houve relato de sintomas gastrointestinais típicos36.

Já com seis pacientes os sintomas gastrointestinais foram a única manifestação da COVID-19, apesar da positividade do teste^{8,20,28,30,32,35}. Somente uma carta não trouxe informações dessa natureza⁴².

O diagnóstico de pancreatite aguda em todos os 30 estudos incluídos obedeceu à Classificação de Atlanta revisada¹⁷. Particularmente, o estudo de Gubatan et al. exigiu a presença de todos os três critérios da classificação, em vez do mínimo de dois deles⁴⁶.

A TC foi o exame de imagem de escolha para visualizar alterações pancreáticas. Alguns realizaram RNM, como o caso da paciente primigesta31. Os principais achados se referem a alterações inflamatórias pancreáticas e peripancreáticas^{19,24,27,29,31,38}, tais como: pâncreas de volume aumentado^{22,25,26,30,32,33,36,38,39,41}, com densidade heterogênea^23,34 e até mesmo áreas com ausência de realce indicativas de pancreatite necrotizante^22,28,32,36. Além de edema e densificação de gordura peripancreática^{20-23,25,26,28,29,32,34,37,39,41,42}, com líquido livre^22,23,25. A tomografia de um paciente revelou coleções necróticas agudas envolvendo a cabeça do pâncreas e sulco pancreaticoduodenal, dentro dessa formação se viu um componente de realce central de 16mm mostrando extravasamento de contraste, correlacionando-se com pseudoaneurisma da artéria pancreaticoduodenal³².

Também se identificou um pseudocisto pancreático de dimensões 16cm x 8cm x 12cm causando obstrução parcial da saída do estômago de um paciente, ele possuía histórico de hospitalização recente por pancreatite aguda edematosa de origem desconhecida. A análise do líquido demonstrou ausência de crescimento bacteriano, níveis normais de antígeno carcinoembrionário (CEA), níveis elevados de amilase (900U/L) e um RT-PCR para SARS-CoV-2 positivo para todos os três genes-alvo do SARS-CoV2 pesquisados⁸.

A busca por fatores de risco precipitantes de pancreatite seguiu o tripé de história clínica, exames laboratoriais e de imagem. Vale salientar que nem todos os relatos trouxeram todos os dados seguintes. Não havia histórico de tabagismo^{18,25-28,30,32,33}, nem etilismo ou a ingesta de álcool era mínima^{18-28,30-34,36,38,41,42}. Também se negou uso abusivo de medicamentos, exceto uso contínuo para o tratamento de comorbidades e condições de saúde do momento^{22-24,27,30-32,34,41,42}. Alguns pacientes não referiram episódios anteriores semelhantes nem histórico familiar que sugerissem natureza crônica ou predisposição genética^{18,21,25-27,30,34,40}, não houve trauma abdominal^21,24,41,42, cirurgia abdominal recente ou submissão a procedimentos invasivos^21,24,25,41.

Durante a investigação laboratorial, as alterações mais comuns foram: leucocitose^{19,21-25,27-32,34,37,38}, valores elevados de PCR^{18,19,22,25-28,30,32,33,36,38-41}, lactato desidrogenase^20,27,28,38, D-dímero^{19,20,22,27,31,39,40}, IL-6^22,41, VHS^40,41 e ferritina^26,40.

O nível de triglicerídeos estava adequado na maioria dos pacientes^{18,22-24,29,30,33,35,36,38,41} ou levemente elevado^{19-21,25-28,34,39}, mas nenhum acima de >1000mg/dL. Hipercalcemia também não foi identificada^{19,21,22,24-29,33-40}. Os parâmetros de bilirrubina também estavam dentro da normalidade^{18,21,23,24,27,30,34,38,39,41}, exceto em dois pacientes^25,28, assim como os de fosfatase alcalina^{18,23,29,34,38,41}. Os valores das transaminases hepáticas variaram, mas na maioria se mantiveram normais ou discretamente aumentados^{18,22,23,26,27,29,31,34,35,38,39,41}. Três relatos trouxeram valores normais de IgG4 ao pesquisarem pancreatite autoimune^28,29,31.

Quatro pacientes foram submetidos a outros testes sorológicos virais, todos foram negativos. O primeiro realizou os testes de VHA, VHB, VHC, VHD, VHE, HSV, VZV, EBV, CMV, HIV²⁶; o segundo citou apenas “testes para hepatite”²⁸; o terceiro mencionou sorologias para VHB, VHC e HIV³⁰; e o quarto influenza A e B³⁵.

A busca por etiologia biliar foi descrita na grande maioria dos relatos, nenhum apresentou evidência de colelitíase ou alterações de vias biliares aos exames de imagem - ultrassonografias e tomografias de abdômen^{18,19,22-25,27-30,32-34,37-39,41,42}. Três pacientes foram submetidos à colecistectomia no passado^21,26,31, outros relatos não mencionaram especificamente investigação radiológica por colelitíase, mas negaram sua presença de forma genérica^20,36,40. No paciente que cursou com um pseudocisto, sua pancreatite prévia foi classificada como de “origem desconhecida”, assim, supõe-se que a causa biliar foi investigada e descartada⁸.

A conduta perante esses pacientes foi essencialmente conservadora. Os cuidados de suporte incluíram: controle álgico, antieméticos, repouso intestinal e ressuscitação intravenosa com fluidos; antibioticoterapia empírica também foi realizada; preconizou-se um retorno gradual à alimentação oral conforme fosse tolerada^{18,19,21-30,33-42}.

No 6º dia de internamento, a paciente gestante cursou com ruptura precoce de membranas e posteriormente evoluiu para trabalho de parto ativo. Após o parto, ela retornou à UTI e cursou com melhora do desconforto epigástrico e de sua função respiratória, havendo redução dos níveis de amilase e lipase. Ela foi transferida para unidade obstétrica em ar ambiente no 2º dia pós-parto e teve alta hospitalar no 3º³¹.

O paciente em que foi visualizado o pseudoaneurisma de artéria pancreaticoduodenal foi inicialmente tratado de forma conservadora. Entretanto, devido sua deterioração clínica, a embolização endovascular foi proposta como a melhor opção terapêutica, ele seria encaminhado para outro hospital para realizá-la até que um sangramento retal maciço ocorreu repentinamente. Apesar de todos os esforços para estabilizá-lo, foi a óbito por choque hipovolêmico. Uma tomografia realizada durante a reanimação revelou hemorragia ativa por rotura completa do pseudoaneurisma associada à uma área de necrose pancreática mais extensa que a visualizada anteriormente³².

O caso do pseudocisto pancreático foi solucionado por uma drenagem transgástrica guiada por ultrassom endoscópico8.

Uma parcela dos pacientes necessitou de suporte ventilatório e/ou cuidados em UTI em algum momento do internamento^{18,19,22,23,25,26,28,31,33-37,39,41}. Um deles foi tratado com Oxigenação por Membrana Extracorpórea (ECMO) veno-venosa³⁹.

A taxa mortalidade dentre os 31 pacientes foi em torno de 10%. Válido salientar que não foram informados os desfechos clínicos de quatro pacientes^8,19,33.

DISCUSSÃO

Foi possível resumir os dados atualmente disponíveis acerca do desenvolvimento de pancreatite aguda concomitante à COVID-19, descrevendo demografia, apresentação clínica, achados laboratoriais e de imagem, condutas e desfechos. Embora não haja evidências comprovadamente claras que a infecção por SARS-CoV-2 seja responsável por quadros de pancreatite aguda, os resultados obtidos a partir desta revisão corroboram com tal hipótese em virtude da ausência dos fatores de risco mais comuns, bem como estreita relação temporal entre ambos.

A incidência geral de pancreatite aguda é de 110 para 140 por 100.000 habitantes⁹. A maioria desses pacientes apresenta pancreatite aguda leve, que é autolimitada e geralmente se resolve em uma semana. Cerca de 20% dos pacientes desenvolvem quadros moderados ou graves, com uma taxa de mortalidade de 20 a 40%⁴⁷. Poucos estudos trouxeram a estratificação de gravidade de seus pacientes, portanto, não achamos adequado inclui-la nos resultados.

As etiologias responsáveis por pancreatite aguda incluem: cálculos biliares e álcool principalmente, além de hipertrigliceridemia, hipercalcemia, causas iatrogênicas, infecções virais, bacterianas e fúngicas, fator hereditário, autoimune, medicamentoso e fatores anatômicos-estruturais^9,10,47. A possibilidade de pancreatite viral já é conhecida e bem estabelecida na literatura, já foram reconhecidos os vírus hepatotrópico, vírus Coxsackie, CMV, HIV, HSV, caxumba, vírus varicela-zoster e outros¹⁰. Um dos estudos incluídos, realizado por Gubatan et al., comparou um grupo de pacientes com “pancreatite sem COVID-19” a outro com “pancreatite e COVID-19”, viu-se que a etiologia biliar e alcoólica foram as mais comuns no primeiro - semelhantemente à população em geral, enquanto que “pancreatite idiopática” curiosamente esteve presente em 69% dos casos no segundo grupo46.

Até o momento, postula-se que a lesão pancreática associada à COVID-19 seja oriunda de dois mecanismos fisiopatológicos principais: efeito citopático direto e resposta imune desregulada.

Descobriu-se que o SARS-CoV-2 utiliza-se do receptor da Enzima Conversora de Angiotensina-2 (ECA-2) para adentrar nas células humanas³. Tal receptor está presente nas células alveolares tipo 2 do pulmão, enterócitos intestinais, endotélio vascular, coração, rins, adrenais, pâncreas, músculo esquelético e tecidos adiposos¹³. O estudo de Liu et al. observou que o receptor ECA-2 foi expresso tanto nas glândulas exócrinas quanto nas ilhotas pancreáticas e que sua expressão neste órgão pode ser maior que nos pulmões¹⁴. Isso explicaria o tropismo viral pelo pâncreas e o mecanismo de lesão direta.

Uma outra explicação fisiopatológica acerca do desenvolvimento da pancreatite aguda, não excludente da anterior, refere-se ao estado hiperinflamatório em que pacientes acometidos pela COVID-19 estão inseridos. A resposta inflamatória sistêmica e exacerbada desencadeada pelo SARS-CoV-2 resulta na denominada tempestade de citocinas, com produção descontrolada de citocinas pró-inflamatórias como IL-6, TNF-α e quimiocinas, levando à falência de múltiplos órgãos, inclusive pancreática^11,12,48.

Preconizou-se incluir estudos que especificassem o diagnóstico de pancreatite aguda conforme a Classificação de Atlanta¹⁷. Particularmente, o estudo de Gubatan et al. só considerou pancreatite aguda naqueles pacientes que preenchessem os três critérios, o que pode ter subestimado a taxa de pancreatite em sua amostra, já que o diagnóstico requer o mínimo de dois deles. A prevalência de pancreatite vista por eles entre pacientes hospitalizados com COVID-19 foi de 0,27%⁴⁶.

O primeiro critério refere-se à presença de dor abdominal característica¹⁷. Já se sabe que sintomas gastrointestinais podem surgir no contexto da COVID-19⁶. O estudo Pan et al. viu que 103 pacientes (50,5%) internados apresentaram um ou mais sintomas digestivos. Dentre eles, 97 desenvolveram sintomas respiratórios associados a sintomas digestivos e seis apresentaram apenas sintomas digestivos na ausência de sintomas respiratórios. Eles também viram que à medida que a gravidade da doença aumenta, os sintomas digestivos se tornam mais pronunciados⁵.

A dor abdominal esteve presente na maioria dos relatos, infelizmente foi pouco detalhada por alguns no que se refere à localização, intensidade e irradiação. Dor abdominal, náuseas, vômitos e diarreia foram observados em quase 90% dos pacientes que tiveram pancreatite no estudo de Akarsu et al.⁴³ Sabendo disso, é importante que as equipes de saúde estejam alertas às manifestações gastrointestinais dessa doença, pois podem ser indicativas de um acometimento multissistêmico, sobretudo pancreático, bem como reconheçam que um dos diagnósticos prováveis aos quadros abdominais agudos isolados pode ser uma infecção por SARS-CoV-2, mesmo na ausência de sintomas respiratórios associados.

Todavia, a dor abdominal típica pode não estar presente ou muito menos clara, como no caso do paciente sob efeito de sedação³⁹. Sendo assim, torna-se imperativa uma investigação laboratorial e radiológica de pancreatite.

O segundo critério diagnóstico consiste em atividade da lipase ou amilase sérica pelo menos três vezes maior que o limite superior da normalidade¹⁷. Este foi um critério presente de forma majoritária dentre os pacientes. A lipase tem uma sensibilidade ligeiramente maior para detecção de pancreatite aguda, sua elevação ocorre mais cedo e dura mais tempo que a elevação da amilase⁴⁹. Valores séricos normais de lipase são incomuns na prática clínica, contudo, a paciente relatada por Hatch-Vallier et al., por exemplo, possuía nível normal de lipase e seu diagnóstico foi obtido pela apresentação de dor epigástrica característica e achados radiológicos²⁷. No estudo de Pandanaboyana et al. 87% dos pacientes positivados para COVID-19 dentro de 14 dias após a admissão apresentaram hiperamilasemia e dor abdominal sugestiva de infecção concomitante por SARS-CoV-2 e pancreatite aguda¹⁵.

Por outro lado, o aumento isolado de enzimas pancreáticas durante a COVID-19 é bastante questionável e tem sido discutido pela comunidade científica. Um estudo realizado por Wang et al. observou uma incidência de 17% de lesão pancreática entre 52 pacientes infectados pelo SARS-CoV-2; eles definiram “lesão pancreática” como qualquer anormalidade no nível de amilase ou lipase⁵⁰. Entretanto, o fato é que essas enzimas podem ser secretadas por outros órgãos além do pâncreas^19,51. Este aumento, sob uma ótica individual, também poderia ser explicado por outros fatores além do provável dano pancreático em pacientes com COVID-19, tais como: acidose, insuficiência renal e diabetes⁵¹. Um exemplo claro foi visto em uma coorte de 110 pacientes diagnosticados com COVID-19, em que 24,5% deles apresentaram níveis aumentados de amilase e 16,4% níveis aumentados de lipase, mas apenas um paciente possuía níveis acima de três vezes o limite superior de normalidade e nenhum desenvolveu sinais clínicos ou radiológicos de pancreatite aguda⁵².

Sendo assim, ressaltamos que essa alteração laboratorial deve ser valorizada e serve como alerta durante o curso da pneumonia, mas não é, por si só, definidora de pancreatite aguda. Para isso, os demais critérios devem ser avaliados.

O terceiro e último está relacionado a achados condizentes com pancreatite aguda em tomografia computadorizada com contraste (mais comum), ressonância magnética ou ultrassonografia¹⁷. É certo que a pancreatite pode ser diagnosticada em cerca de 80% dos pacientes com base apenas na presença de dor abdominal clássica e enzimas pancreáticas elevadas. Contudo, a TC é um complemento útil para confirmar o diagnóstico na ausência de um dos outros critérios e para o diagnóstico diferencial com outras condições intra-abdominais que possam mimetizá-la^9,49.

A pancreatite aguda pode ser subdividida em dois tipos: edematosa intersticial e necrosante¹⁷; a tomografia é importante nessa distinção e pode ser fundamental para descartar possíveis complicações⁴⁹. Contudo, a necrose geralmente só pode ser detectada radiologicamente de três a quatro dias após o início dos sintomas^47,49. Assim, o exame só será devidamente indicado na admissão quando houver incerteza diagnóstica, já que ele pode subestimar ou classificar incorretamente a gravidade da doença se obtido em menos de 72 horas após o início dos sintomas⁹.

Em todos os estudos, a suspeita etiológica se deu por exclusão dos principais fatores de risco predisponentes.

Logo na admissão é necessário colher informações acerca de histórico pessoal ou familiar de pancreatite, doenças infecciosas, presença conhecida de cálculos biliares, consumo de álcool e medicamentos, cirurgias e procedimentos prévios⁴⁷. A rotina laboratorial deve incluir enzimas hepáticas, bilirrubina total e frações, triglicerídeos séricos, cálcio⁴⁷. Quando disponível e suspeitado, pesquisa sorológica de vírus conhecidos, como realizado em alguns lugares^26,28,30,35, e níveis de IgG4 para pesquisa de pancreatite autoimune^28,29,31. A ultrassonografia abdominal deve ser realizada em todos os pacientes para determinar a presença de cálculos biliares e avaliar o trato biliar; é um exame disponível, de baixo custo e sem exposição à radiação⁴⁹.

Níveis elevados de PCR já são conhecidos como preditores de pancreatite aguda grave e podem estar ainda mais elevados na presença da COVID-19, preconiza-se que sejam avaliados na admissão e durante o internamento^9,12,49.

O manejo inicial da pancreatite aguda é de suporte e inclui monitoramento rigoroso dos sinais vitais, ressuscitação com fluidos intravenosos, alívio da dor e nutrição adequada^47,49.

Antibióticos profiláticos não são recomendados49 e devem ser administrados apenas como tratamento de infecção secundária confirmada ou clinicamente suspeita⁴⁷. A maioria dos estudos incluídos mencionou que seus pacientes receberam antibioticoterapia empírica. O que se sabe é que não há redução estatisticamente significativa da mortalidade (p=0,07) nem uma redução importante nas taxas de infecção de necrose pancreática (p=0,47)⁴⁹.

Deve-se suspeitar de complicações locais na persistência ou recorrência de dor abdominal, aumento da atividade das enzimas pancreáticas, disfunção orgânica e/ou desenvolvimento de sinais de sepse¹⁷. As complicações locais da pancreatite podem ser: coleções líquidas pancreáticas/peripancreáticas agudas, pseudocisto pancreático, necrose, disfunção da saída gástrica, trombose esplênica e da veia porta e pseudoaneurismas^17,47. Geralmente, essas coleções líquidas se resolvem espontaneamente e a indicação para a intervenção em pseudocistos é determinada pela presença de sintomas^47,49, como aconteceu em um dos relatos⁸. O sangramento de um pseudoaneurisma geralmente requer atuação de radiologista intervencionista⁴⁷, algo que não foi passível de ser realizado a tempo no paciente relatado por Mitrovic et al.³² A maioria dos quadros com necrose estéril pode ser tratada de forma conservadora, pois também se solucionam espontaneamente com o tempo; a intervenção deve ser considerada na presença de sintomas persistentes, por exemplo, e nos quadros de infecção secundária⁴⁷.

A longo prazo, os pacientes correm o risco de desenvolver episódios recorrentes de pancreatite aguda, evoluir para pancreatite crônica e desenvolver insuficiência endócrina e exócrina⁹.

As complicações mais graves e comumente descritas da COVID-19, por sua vez, são: inflamação semelhante à sepse, coagulopatia e complicações respiratórias.

ou cardiovasculares⁴⁸. Os resultados do estudo de Akarsu et al. evidenciaram uma correlação entre a gravidade da COVID-19 e da pancreatite, a taxa de pancreatite aumentou à medida que a gravidade da pneumonia aumentou (p<0,0001), além disso, as taxas de hospitalização e mortalidade foram maiores em pacientes com COVID-19 acompanhados de pancreatite aguda⁴³. Dados semelhantes foram obtidos por Pandanaboyana et al., eles perceberam que pacientes com pancreatite aguda e infecção coexistente por SARS-CoV-2 têm risco aumentado de pancreatite aguda grave, piores desfechos clínicos, tempo prolongado de internação e mortalidade significativamente alta em 30 dias¹⁵.

O estudo de coorte de Gubatan et al. viu que pacientes com pancreatite que também eram positivos para COVID-19 eram mais propensos a necessitarem de ventilação mecânica em comparação com pacientes com pancreatite sem COVID-19⁴⁶. A necessidade de medidas de suporte ventilatório também foi descrita entre os relatos de caso^{18,19,22,23,25,26,28,31,33-37,39,41}.

Percebe-se que a coexistência de infecção por SARS-CoV-2 e pancreatite aguda podem ir além da provável causalidade, mas são fatores que se retroalimentam no que se refere à disfunção orgânica. A pancreatite, por si, é capaz de desencadear um aumento da lesão pulmonar aguda⁴³. O estado hiperinflamatório da COVID-19 induz a respostas imunomediadas indiretas, de cunho sistêmico, que afetam o pâncreas¹², piorando o curso clínico da pancreatite e tornando-a desafiadora.

Dessa forma, apesar de ainda não existirem dados robustos que defendam veementemente o SARS-CoV-2 como fator precipitante de quadros de pancreatite, as evidências acumuladas até então vêm favorecendo tal hipótese. As equipes de saúde devem estar atentas às repercussões gastrointestinais deste vírus, uma vez que a pancreatite aguda pode alternar de uma doença leve e autolimitada, que requer primordialmente medidas de suporte, a uma doença grave com complicações ameaçadoras à vida.

Aplicabilidade

Os resultados obtidos a partir dessa revisão propõe-se a advertir a comunidade médica sobre o provável acometimento pancreático decorrente do SARS-CoV-2, acrescentando evidências sobre seu cunho sistêmico e não apenas pulmonar. Tivemos o rigor de selecionar apenas estudos com o diagnóstico de pancreatite aguda conforme a Classificação de Atlanta revisada e não somente com alterações de enzimas pancreáticas. Além disso, excluímos relatos cujos pacientes apresentassem alguns dos principais fatores de risco conhecidos. Isso torna nossos resultados ainda mais confiáveis.

Limitações

Esta revisão possui inúmeras limitações. Devido à natureza do estudo, não é possível estabelecer uma relação causal entre a COVID-19 e o surgimento de pancreatite aguda. Uma revisão sistemática não foi realizada e, apesar da revisão integrativa permitir a inclusão de estudos de naturezas variadas¹⁶, isso abre caminho à heterogeneidade metodológica e estatística. A maioria das publicações ainda é restrita a relatos de caso e, infelizmente, a quantidade e qualidade de dados fornecidos acerca de história médica, investigação laboratorial e radiológica foi variável entre eles.

Logo, é necessário que estudos futuros sejam realizados a fim de investigarem de maneira mais minuciosa o mecanismo fisiopatológico associado. Uma atenção também deve ser dada ao início de sintomas gastrointestinais e seu intervalo de tempo em relação ao teste de COVID-19, bem como a achados laboratoriais e de imagem mais comuns. Recomendamos uma investigação mais abrangente dos fatores de risco predisponentes durante o atendimento destes pacientes e um melhor detalhamento de cada caso nas publicações vindouras.

CONCLUSÃO

Assim, os resultados provenientes desta revisão corroboram com a hipótese de que a infecção por SARS-CoV-2 possa ser responsável por quadros de pancreatite aguda em determinados pacientes, desde que afastadas as demais etiologias conhecidas. As justificativas fisiopatológicas incluem lesão pancreática por efeito citopático direto do vírus e por resposta imunomediada às custas do estado hiperinflamatório da pneumonia. Entretanto, dados mais robustos, capazes de estabelecer de fato uma relação causal entre ambos, devem ficar a cargo de estudos multicêntricos futuros.

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• Fonte de financiamento: nenhuma.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  10 Jul 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  18 Mar 2023
• Aceito
  09 Maio 2023