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A ética na era digital

"...Aquilo que, no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto." (Hipócrates, aproximadamente 400 a.C.).

Desde a era hipocrática já havia a preocupação com o sigilo médico e o respeito à confidencialidade, e consequentemente à autonomia dos pacientes. A essência deste princípio se mantém, porém, frente a novos contextos e novas tecnologias, algumas reflexões éticas são necessárias, dentre elas, o uso indevido de imagens (fotos e/ou vídeos) dos pacientes.

A tecnologia digital se desenvolveu rapidamente nos últimos anos, de forma que, hoje, é muito simples capturar e armazenar imagens e com aparelhos cada vez mais portáteis. É cena comum nos hospitais, hoje em dia, médicos, profissionais de enfermagem, residentes e estudantes registrando atendimentos aos pacientes ou "casos interessantes" em suas câmeras ou em telefones celulares, sem nenhum constrangimento e, na quase totalidade das vezes, sem o devido consentimento do paciente. Por outro lado, não há nenhuma normatização ou fiscalização por parte das instituições, gerando situações que podem ser prejudiciais não só aos pacientes como também aos responsáveis pela obtenção ou divulgação das imagens.

A documentação médica através de fotos ou vídeos pode nos trazer muitos benefícios, entre eles: a elaboração de textos, aulas e apresentações multimídia com objetivos educativos e de treinamento; documentação científica para acompanhamento evolutivo ou de pesquisa; utilização de imagens em telemedicina, permitindo a um especialista emitir um parecer à distância; documentação através de imagens para utilização em medicina forense e medicina legal. Entretanto, o uso ou armazenamento inadequado das imagens pode resultar em situações de risco para o paciente, principalmente através da exposição indevida da sua imagem e a quebra da confidencialidade.

As imagens obtidas num contexto médico pertencem ao paciente e, desta forma, a sua utilização carece de autorização expressa do paciente. Nas situações nas quais a imagem não permite a identificação do paciente (por exemplo, foto de uma lesão, imagem de ultrassonografia, raios X, tomografias computadorizadas, etc.), esta autorização não é necessária, entretanto, algumas revistas e periódicos, mesmo nestas situações, recomendam, e até exigem, no caso de publicação de artigo, a obtenção do consentimento do paciente.

Em situações eletivas, o consentimento é solicitado com maior frequência, pois, na maioria das vezes, existe um vínculo entre o médico e o paciente, permitindo ao médico explicar detalhadamente os objetivos da solicitação. Esta é uma prática frequente em cirurgias plásticas, quando os cirurgiões documentam o "antes" e o "depois" a fim de avaliar os resultados do procedimento. Uma questão importante em relação a esta prática é que, em nenhuma hipótese, estas fotos deverão ser utilizadas com o objetivo de publicidade favorecendo o cirurgião. Diversos protocolos de consentimento elaborados por sociedades de Cirurgia Plástica estão disponíveis para este fim.

Nos serviços de urgências e emergências, devido às características próprias destes ambientes, é que observamos com maior frequência a obtenção indevida de imagens. Nestas situações, muitas vezes o paciente não se encontra em condições de expressar o seu consentimento por uma série de razões: por estar inconsciente ou sob o efeito de drogas ou medicamentos, intubação ou prótese em vias aéreas, em condição crítica, estresse físico ou psicológico, situação de fragilidade, etc... Além destes fatores, é difícil manter um esquema de fiscalização eficiente 24 horas por dia num local onde circulam um grande número de pessoas e com diferentes níveis de informação. Estas dificuldades também estão presentes no ambiente pré-hospitalar, onde qualquer pessoa com uma câmera ou celular, registra as imagens na cena. Não é raro estas imagens, por se tratarem de cenas reais e chocantes, serem colocadas na internet sem o menor escrúpulo e, infelizmente, muitas vezes por pessoas envolvidas no atendimento pré-hospitalar (médicos, paramédicos, policiais, bombeiros, etc.).

Se partirmos do princípio que uma foto do paciente obtida durante a sua internação para fins de documentação médica é um registro (fotográfico) que faz parte do prontuário médico deste paciente, ao fazer o download do arquivo da foto para um computador pessoal, ou qualquer outra mídia, estaríamos copiando ou nos apoderando de parte do prontuário médico de forma indevida, uma vez que só poderíamos fazê-lo com autorização do paciente.

Outro ponto importante é como armazenar as imagens de forma segura. Uma vez autorizada a utilização das imagens, estas deverão ser armazenadas de preferência em programas específicos para este fim e que tenham códigos de segurança, só permitindo o acesso às pessoas autorizadas. O armazenamento em CD's, pendrives, no próprio laptop ou em máquinas fotográficas e celulares é extremamente inseguro, pois estas imagens acabarão sendo compartilhadas intencionalmente ou acidentalmente. Além disso, estes dispositivos estão sujeitos a furtos ou perdas.

Paradoxalmente, não são apenas os pacientes que estão expostos com o uso indevido de recursos de obtenção de imagens. Os profissionais de saúde e até as instituições também podem ser vítimas desta prática. Familiares ou acompanhantes podem registrar imagens de atendimentos, de ambientes ou fatos que ocorrem no hospital e depois utilizarem-nas em questionamentos jurídicos ou em denúncias na mídia.

Diante do exposto, algumas medidas devem ser consideradas com o objetivo de proteger os pacientes de exposições indevidas e os profissionais e instituições de situações litigiosas. Inicialmente a medida mais importante seria a conscientização e educação dos profissionais da saúde, residentes e estudantes em relação aos direitos fundamentais do paciente. Outras medidas seriam a elaboração de protocolos institucionais para a obtenção de imagens e fiscalização efetiva de sua aplicação.

Apesar da evolução incessante, das mudanças inevitáveis e da incorporação de novas tecnologias, a observância aos direitos básicos dos pacientes é imutável e deve orientar a conduta de todos os profissionais envolvidos direta ou indiretamente no cuidado aos doentes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2014
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