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O lado oculto da tragédia do coronavírus

A revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões tem contribuído para melhor informar os cirurgiões sobre os diferentes aspectos da COVID-19 desde o momento em que a pandemia de coronavírus alcançou o Brasil¹. Além das terríveis repercussões para a saúde da população e catastróficas repercussões econômicas, a pandemia possui um lado oculto que precisamos debater imediatamente. Enquanto quase todo o esforço e investimento estão direcionados para o combate da COVID-19, milhares de pessoas com outras doenças têm sua saúde piorada. Talvez, ao final da pandemia, esta realidade seja uma das piores consequências de todo este processo que estamos vivendo.

O combate ao coronavírus determinou que, de forma repentina, milhões de pacientes perdessem suas consultas, exames, cirurgias, muitas agendadas há meses. De uma hora para outra, os hospitais se transformaram em locais temíveis. Manchetes atemorizantes, continuadamente repetidas, contribuíram significativamente na configuração deste lado oculto da pandemia. É o dano colateral, um verdadeiro “pedágio” a ser pago pela imensa maioria da população.

O famoso cirurgião torácico gaúcho José Jesus Camargo discute este tema em crônica publicada no Jornal Zero Hora22 Camargo JJ. Quando o medo atropela a razão. Jornal Zero Hora. 2020 Abr 23. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/jj-camargo/noticia/2020/04/quando-o-medo-atropela-a-razao-ck9bknpx500br017ng9im0d3a.html. Acesso em 23 de abril de 2020.
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. Camargo sustenta que as autoridades da saúde devem orientar a população sem que pareça opressão ou lavagem cerebral e sem permitir que o medo multiplique o risco da doença. Camargo salienta que “o medo, que tantas vezes nos protege, pode se transformar ele próprio numa doença grave, rapidamente alastrável como uma pandemia, igualmente sem tratamento e sem perspectiva de vacina, porque ele está incrustado na nossa natureza, frágil e sugestionável”. O autor reforça que “é quase impossível evitar que as informações sejam mal-entendidas e, se não bastasse, ainda sofram subversões quando são levadas de boca em boca, se expondo a interpretações pessoais, muitas vezes marcadas pelo espírito catastrofista do mensageiro”. Camargo também ressalta a alteração da percepção das pessoas sobre os hospitais: “quando as autoridades da saúde recomendaram que as pessoas com sinais leves de gripe não corressem às emergências porque lá se exporiam ao contato com pacientes realmente doentes, estavam, sem pretender, demonizando o ambiente hospitalar. E, com isso, fazendo com que pacientes com doenças crônicas se agravem pelo retardo do atendimento médico”. Camargo encerra tocando em outra faceta do problema aqui no Rio Grande do Sul e na maioria das cidades brasileiras: “as emergências com metade da capacidade operacional e os hospitais vazios já estão causando mortes evitáveis e que, seguramente, não constarão dos boletins televisivos, que não contabilizam esta letalidade colateral do coronavírus”.

The New England Journal of Medicine em recente editorial33 Rosenbaum L. The Untold Toll - The Pandemic's Effects on Patients without Covid-19. N Engl J Med. 2020;382(24):2368-71. Epub 2020 Apr 17. questiona como cuidar melhor de pessoas com doenças não relacionadas à COVID-19. O artigo alerta para redução global de pacientes que apresentam síndromes coronárias devido às medidas de mitigação social que fazem os pacientes demorarem mais a procurar atendimento médico, mesmo em situação de urgência. Pacientes com infarto agudo do miocárdio que enfim acessam o hospital têm o tratamento alterado em função da preocupação dos serviços de saúde e dos próprios médicos com a exposição dos cardiologistas intervencionistas ao coronavírus. Condutas diagnósticas e terapêuticas baseadas em procedimentos invasivos (cateterismo cardíaco e colocação de “stents”/revascularização miocárdica) são substituídas por terapias clínicas (trombolíticos). O tratamento do câncer, que geralmente envolve terapia imunossupressora, ressecção de tumores e internação hospitalar, está sendo afetado desproporcionalmente com modificações de protocolo de químio e radioterapia e alterações no tipo de terapêutica, evitando operações durante a pandemia. O questionamento é: estamos nos protegendo à custa de piores resultados do paciente?

Mas não é somente nestas duas áreas que este “dano colateral” da COVID-19 se expressa. Proscrições no atendimento de casos menos urgentes também causam problemas a muitos pacientes. Para muitas operações, a linha entre urgente e não-urgente pode ser traçada apenas em retrospecto. Em outro artigo, publicado no British Journal of Surgery44 Søreide K, Hallet J, Matthews JB, Schnitzbauer AA, Line PD, Lai PBS, et al. Immediate and long-term impact of the COVID-19 pandemic on delivery of surgical services. Br J Surg. 2020 Apr 30; 10.1002/bjs.11670.
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, os autores também sustentam que os pacientes estão sendo privados de acesso cirúrgico, com perda incerta de função e risco de prognóstico adverso como efeito colateral da pandemia. Os autores afirmam que “os cuidados cirúrgicos que não são essenciais, sem tempo crítico, podem ser adiados. Por outro lado, cirurgias oncológicas, de emergência e transplantes devem ser realizadas mesmo em meio à pandemia”. Situações teoricamente mais benignas, como hérnias de parede abdominal e doença litiásica da vesícula biliar, também devem receber atenção para evitar a necessidade de tratamentos de urgência ou complicações graves associadas à evolução da doença. A negligência com certos serviços cirúrgicos aumentaria o número de mortes e anos de vida perdidos devido à pandemia de COVID-19.

Outra constatação é que os pacientes, além dos cirurgiões, também têm preferido postergar a operação eletiva por medo de contrair a doença no hospital pelo mesmo receio que também os leva a não procurarem atendimento para condições que seriam tratáveis ou curáveis. Perda de função e expectativa de vida reduzida podem resultar do atraso na apresentação e no diagnóstico tardio e esse ônus aumentará com a duração e a gravidade da pandemia.

A inevitável recessão econômica global causada pela pandemia também afeta diretamente tanto o Sistema Único de Saúde (SUS) quanto o privado. Muitas pessoas, ao perderem seus empregos, automaticamente tendem a perder o plano de saúde, sobrecarregando ainda mais o SUS. A saúde suplementar, com menos clientes e menos financiamento, tende a entrar em crise, assim como hospitais privados tendem a sofrer perdas financeiras muito significativas. O SUS sofrerá da falta de financiamento público pela diminuição de arrecadação em uma economia em recessão, afetando mais duramente os pobres e marginalizados.

Quando o governador gaúcho comemora taxa de ocupação de 70,6% das UTIs do estado com apenas 10% de pacientes confirmados com COVID-1955 Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Secretaria de Saúde do estado do Rio Grande do Sul. Monitoramento COVID-19 [Internet]. Disponível em: https://covid.saude.rs.gov.br. Acesso em 12 de maio de 2020.
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, esquece que esta baixa taxa de ocupação (comparada a taxas históricas) comprova o quanto pessoas com outras doenças estão sendo colocadas de lado neste momento. Embora a pandemia possa forçar escolhas difíceis, tomar decisões de maneira cuidadosa e transparente ajuda os pacientes a se sentirem cuidados. Basta seguir os princípios fundamentais da medicina. Não podemos esquecer que o mundo não para e a vida segue, assim como as doenças agudas e crônicas devem continuar a receber atenção para a prevenção e o tratamento. A necessidade de vigilância sobre a transmissão viral não diminui uma mensagem igualmente importante: “COVID ou não COVID, ainda estamos aqui para cuidar dos nossos pacientes”.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Correia MITD, Ramos RF, Bahten LCV. Os cirurgiões e a pandemia do COVID-19. Rev Col Bras Cir. 2020;47:e20202536.
  • 2
    Camargo JJ. Quando o medo atropela a razão. Jornal Zero Hora. 2020 Abr 23. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/jj-camargo/noticia/2020/04/quando-o-medo-atropela-a-razao-ck9bknpx500br017ng9im0d3a.html Acesso em 23 de abril de 2020.
    » https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/jj-camargo/noticia/2020/04/quando-o-medo-atropela-a-razao-ck9bknpx500br017ng9im0d3a.html
  • 3
    Rosenbaum L. The Untold Toll - The Pandemic's Effects on Patients without Covid-19. N Engl J Med. 2020;382(24):2368-71. Epub 2020 Apr 17.
  • 4
    Søreide K, Hallet J, Matthews JB, Schnitzbauer AA, Line PD, Lai PBS, et al. Immediate and long-term impact of the COVID-19 pandemic on delivery of surgical services. Br J Surg. 2020 Apr 30; 10.1002/bjs.11670.
    » https://doi.org/10.1002/bjs.11670
  • 5
    Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Secretaria de Saúde do estado do Rio Grande do Sul. Monitoramento COVID-19 [Internet]. Disponível em: https://covid.saude.rs.gov.br Acesso em 12 de maio de 2020.
    » https://covid.saude.rs.gov.br
  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2020
  • Aceito
    22 Maio 2020
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