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Primeiro transplante duplo de fígado esquerdo intervivos adultos do Brasil

The first dual left lobe adult-to-adult liver transplantation in Brazil

Resumos

O transplante hepático inter vivos adulto expandiu as possibilidades terapêuticas para pacientes com insuficiência hepática terminal. A necessidade de um volume hepático adequado que será retirado do doador e necessário ao receptor limita sua utilização em alguns casos. Apresentamos um caso em que se utilizou dois lobos esquerdos de dois doadores vivos no intuito de prover parênquima hepático suficiente ao receptor.

Pacientes; Insuficiência hepática; Transplantes; Doadores vivos; Transplante de fígado


Living donor liver transplantation expanded the therapeutic possibilities for liver failure patients. The necessary correct match between the liver mass donated and received sometimes limits its use. A case that was used two left liver grafts from adult living donors is reported.

Patients; Hepatic insufficiency; Transplants; Living donors; Liver transplantation


NOTA TÉCNICA

Primeiro transplante duplo de fígado esquerdo intervivos adultos do Brasil

The first dual left lobe adult-to-adult liver transplantation in Brazil

João Eduardo Leal Nicoluzzi, TCBC-PRI; Fábio SilveiraII; Fábio Porto SilveiraII; Matheus Martin MacriII; Mauro MonteiroII; Vinícius WoitoviczII; Fábio StalchimidtII

IChefe do Serviço de Transplantes do Hospital Angelina Caron- Curitiba -PR-BR

IIMédicos do Serviço de Transplantes do Hospital Angelina Caron- Curitiba -PR-BR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: João Eduardo Leal Nicoluzzi E-mail: jenicoluzz@yahoo.com

RESUMO

O transplante hepático inter vivos adulto expandiu as possibilidades terapêuticas para pacientes com insuficiência hepática terminal. A necessidade de um volume hepático adequado que será retirado do doador e necessário ao receptor limita sua utilização em alguns casos. Apresentamos um caso em que se utilizou dois lobos esquerdos de dois doadores vivos no intuito de prover parênquima hepático suficiente ao receptor.

Descritores: Pacientes. Insuficiência hepática. Transplantes. Doadores vivos. Transplante de fígado.

ABSTRACT

Living donor liver transplantation expanded the therapeutic possibilities for liver failure patients. The necessary correct match between the liver mass donated and received sometimes limits its use. A case that was used two left liver grafts from adult living donors is reported.

Key words: Patients. Hepatic insufficiency. Transplants. Living donors. Liver transplantation.

INTRODUÇÃO

O transplante hepático utilizando doadores vivos (THV), pioneiramente realizado em 1988 por Raia1, surgiu voltado para a população pediátrica sendo que o seu refinamento técnico acabou por sedimentá-lo como um valioso procedimento2 na redução da mortalidade em lista desses pacientes3. A escassez de órgãos impingiu a evolução da técnica para seu uso em pacientes adultos, inicialmente utilizando fígados esquerdos, mas em virtude da limitação de tamanho, foi expandido para fígados direitos4.

O THV envolve questões técnicas e éticas que estão em contínuo debate e evolução. As vantagens do THV incluem um tempo de espera significativamente diminuído, planejamento da cirurgia (permitindo estabilização clínica do paciente) e uso de um enxerto de um doador saudável com mínimo tempo de isquemia5. As desvantagens incluem o recebimento de um enxerto de menor tamanho e uma potencial taxa de complicações cirúrgicas maior, tanto para o receptor quanto para o doador.

Atualmente o sistema brasileiro de alocação de fígado para transplante é determinado pelo modelo de doença hepática terminal (MELD), que é capaz de prever a sobrevida em três meses de pacientes com doença hepática terminal6, porém esse método possui conhecidas limitações, principalmente em pacientes com hemorragia digestiva, ascite refratária, hiponatremia e encefalopatia hepática7.

QUADRO CLÍNICO

O receptor em questão era do sexo masculino, 52 anos, portador de insuficiência hepática crônica terminal devido ao álcool, em abstinência e que apresentou em sua descompensação inicial episódio de hemorragia digestiva alta e encefalopatia hepática, com um MELD de 17. Sua evolução clínica resultou em melhora de seu escore MELD, que flutuava entre 9-12, porém com episódios recorrentes de encefalopatia, necessitando algumas vezes manejo em unidade de terapia intensiva. Em virtude de seu baixo MELD, e conseqüente baixa probabilidade de receber um órgão de doador cadáver, indicou-se THV. A avaliação de seus dois potenciais doadores (filho e sobrinha), respeitando as diretrizes já estabelecidas8,9, está exposta na tabela 1.

Baseando-se na avaliação da volumetria pré-operatória foi contra-indicada a doação do fígado direito de ambos os potenciais doadores, em virtude dos seus baixos volumes residuais. Na inexistência de outros potenciais doadores, optou-se pela utilização dos dois fígados esquerdos de ambos os doadores, permitindo um volume de enxerto adequado para as necessidades do receptor e associado a seguros volumes remanescentes aos doadores.

ASPECTOS TÉCNICOS

O chamado transplante duplo de fígado esquerdo inter vivos adultos (DLLT) foi realizado pela primeira vez no ano 2000, na Coréia do Sul10. Dentre suas variantes técnicas, utilizamos os segmentos hepáticos II-IV e incluindo a veia hepática média, conforme ilustrado na figura 1.


A anatomia arterial de ambos os doadores não apresentava dificuldades ao procedimento, sendo que o doador 1 apresentava a artéria hepática esquerda proveniente como tronco único da artéria gástrica esquerda. Em relação à anatomia da veia porta, ambos não possuíam variação anatômica. A avaliação da anatomia biliar foi realizada com colangiografia intra-operatória.

A hepatectomia do receptor foi realizada preservando-se a veia cava inferior e os óstios da veia hepática direita, média e esquerda, assim como os ramos direito e esquerdo da veia porta. A drenagem venosa dos enxertos foi realizada em tronco único reconstruído na cirurgia de mesa (veia hepática média e esquerda), sendo que o enxerto esquerdo foi implantado em tronco único da veia hepática média e esquerda do receptor, e o enxerto direito na veia hepática direita do receptor. A reconstrução portal foi realizada utilizando-se os respectivos ramos portais para o enxerto esquerdo e direito. Após essa etapa os enxertos foram reperfundidos, seguidos da reconstrução arterial. A reconstrução biliar foi realizada com uma colédoco-colédoco anastomose término-terminal para o enxerto direito e hepático-jejunoanastomose para o enxerto esquerdo (Figura 2).


Para evitar esgarçamento das anastomoses vasculares decorrentes do menor tamanho do enxerto esquerdo comparado à cavidade abdominal do receptor, um expansor tecidual foi posicionado no hipocôndrio direito (Figura 3).


A recuperação pós-operatória dos doadores ocorreu sem intercorrências, ambos receberam alta hospitalar no quinto dia de pós-operatório, não necessitando novos internamentos.

O receptor recebeu imunossupressão padrão (tacrolimus, micofenolato mofetil e prednisona) e necessitou três sessões de hemodiálise no pós-operatório (PO). Apresentou alteração neurológica do tipo delirium no 11ºPO, sendo manejada com suporte hidro-eletrolítico e substituição do tacrolimus por ciclosporina. Apresentou complicação cirúrgica de fístula biliar da anastomose bíleo-digestiva, tratada com drenagem percutânea. Recebeu alta no 21ºPO e apresenta funcionamento adequado do enxerto até a presente data (três meses follow-up).

O aspecto tomográfico de controle pós-operatório está demonstrado na figura 4.


O THV envolve uma cirurgia em um ser humano vivo e saudável, e essa questão é uma controvérsia ética há tempos, especialmente em países em que os doadores cadáveres são razoavelmente disponíveis11. Indubitavelmente o THV salva vidas, mas a um custo potencialmente muito alto8. Por esse motivo ainda é razão de debate se o THV é uma revolução ou uma "era negra" na história do transplante hepático12.

A demanda de recursos e a complexidade técnica do procedimento descrito é muito maior que os outros tipos de enxerto, porém é capaz de expandir a aplicabilidade do THV.

Agradecimentos

Os autores agradecem a imensa gama de profissionais envolvidos no pré, intra e pós-operatório que ajudaram decisivamente na realização do procedimento.

Conflito de interesse: nenhum

Fonte de financiamento: nenhuma

Recebido em 03/06/2011

Aceito para publicação em 09/09/2011

Trabalho realizado no Hospital e Maternidade Angelina Caron e Instituto para Cuidado do Fígado - Curitiba - Paraná - Brasil.

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  • Endereço para correspondência:
    João Eduardo Leal Nicoluzzi
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      03 Jun 2011
    • Aceito
      09 Set 2011
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