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Cirurgia geral e o sistema de saúde

EDITORIAL

Cirurgia geral e o sistema de saúde

Alcino Lázaro da SiIva, TCBC-MG

Professor Titular de Cirurgia do Aparelho Digestivo do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG

O exercício da cirurgia no mundo contemporâneo pode ser dividido em operações gerais e especializadas. Quando se trata de hospitais universitários e grandes centros, apoiados em melhor sistema econômico, o geral se dilui quase completamente no especializado. A característica fundamental deste exercício operatório é o envolvimento de um ou mais especialistas para resolver um só problema. Quando, no entanto, caminhamos para os lados, que são os previdenciários, o exercício se inverte. Há na periferia dos grandes centros e no interior um volume de pacientes que não têm acesso fácil, ágil e eficiente às áreas gerais da assistência médica e, muito menos, e bem longe, dos especialistas.

Quem conhece o exercício clinicocirúrgico e o vive no quotidiano sabe que a solução dos problemas que os pacientes nos trazem é simples, dentro do prevalente e comum. Poder-se-ia dizer que, entre todas as atenções médicas, 70% a 80% são perfeitamente solucionadas nas sete áreas básicas da medicina: clínica médica, pediatria, cirurgia geral, ginecologia e obstetrícia e saúde mental, urgências, coroadas pela prevenção.

Se assim se coloca a medicina quotidiana, há que se hierarquizar o sistema. Como fazê-lo? Através de dois princípios.

No primeiro, a escola médica e o sistema de saúde têm que se dividir em duas partes distintas, que se seguem ou se complementam.

O que isto quer dizer? A escola, na primeira etapa, tem que formar o médico voltado para o prevalente e o comum, e o sistema de saúde tem que prestigiar as áreas básicas, criando trabalho mais fácil e mais ágil para os recém-formados. Na segunda etapa, a escola e o sistema têm que investir no especialista, prestigiando a residência (pós-graduação) e a reciclagem. A escola médica não termina na graduação. Seu maior compromisso é com esta. Não pode, no entanto, deixar de, junto ou no hospital universitário, assumir o controle didático e dar à residência e à especialização o conteúdo disciplinar do conhecimento. Não se pode conceber hospital universitário sem ação efetiva, contínua e esmerada da escola médica gerenciando os processos didáticos e disciplinares relativos à matéria que se estuda.

Nesse primeiro princípio fica fácil, pois, entender o papel didático da especialidade. O hospital universitário é uma empresa de prestação de serviço e antes de tudo um instrumento de ensino da faculdade para preparar o médico e o especialista. Este participará na graduação, fornecendo as bases e operações fundamentais de sua especialidade, que são os procedimentos limítrofes entre o geral e o especializado, perfeitamente desenvolvidos, com qualidade, por ambos. Na residência e no curso especializado ser-lhe-á, então, atribuída a responsabilidade de se aprofundar para qualificar um profissional que dê solução à propedêutica requintada e tecnológica e à demanda vertical do ato médico. O especialista, na graduação, deve participar como consultor e não como dirigente do processo didático, porque este tem que ser voltado para as áreas básicas, além, é obvio, da prevenção.

No segundo princípio, há que se prestigiar e remunerar muito bem o profissional que trabalha e desenvolve o sistema de atendimento básico. Isto aumentaria, certamente, o interesse e a formação de jovens. Uma parte somente dos médicos ficaria por mais tempo em formação, para tornar-se conhecedora mais profunda e mais vertical de uma área restrita ou especializada. Teríamos o maior contingente no ato médico comum, e o menor, no campo especializado ou vertical. As associações de classe cuidariam, com as escolas e os governantes, da atualização, reciclagem e estímulo da área básica, e as sociedades especializadas responsabilizar-se-iam pela reciclagem e defesa dos especialistas.

Sem querer ser simplista ou excessivamente racional a solução não depende tanto de dinheiro. Ao Ministério da Educação cabe um ato de coragem em reformular o ensino médico básico, adaptado a cada região do Brasil, sem fugir do objetivo de formar um homem que resolva bem o prevalente na assistência médica. Ao Ministério da Saúde, outro ato de coragem, enfrentando as opiniões contrárias ou interesses dirigidos, prestigiando o homem que atende as áreas médicas de que a população tanto carece. Em cima deste prestígio, remunerando-lhe bem para que haja dignidade profissional e humana e poder cobrar-lhe o aprimoramento contínuo e a manutenção da qualidade e eficiência.

A Cirurgia Geral (CG) imperou durante séculos como uma das áreas médicas de maior abrangência e capacidade para resolver problemas prevalentes e comuns. Com o desenvolvimento da tecnologia, o aumento do número de profissionais e o seu aperfeiçoamento dirigido aos setores específicos, a CG foi-se esvaziando. O esvaziamento tornou-se quase total na medida em que os centros maiores oferecem campo para aprimoramentos selecionados e os profissionais assim entenderam até para suas sobrevivências.

Mas no torvelinho de pacientes com inúmeras doenças não existem especialistas suficientes nem na solução unilateral e, muito menos, na de equipe. Dentro da tecnologia de ponta consegue-se, a duras penas, absorver parte da demanda. No cotidiano, no comum e no prevalente, a cada dia, mais se avolumam as filas pela demanda aumentada ou represada.

Ninguém nega que há procedimentos nas especialidades que são divididos em avançados (tecnologia) e comuns (habilidade). Estes últimos, especialmente, saem de princípios e operações básicas ou fundamentais e estes, ninguém pode negar, saem da CG. Esta, como a palma da mão, sustenta os princípios e bases fundamentais e estes se distribuem pelas especialidades, enriquecidas pelos métodos e recursos tecnológicos requintados.

A CG, então, coloca-se na posição de mãe de todas as outras e pode exercitar-se, técnica e eticamente, nos casos comuns, prevalentes e limítrofes.

Se o sistema de saúde de um país quiser ter seu problema mais bem resolvido, mais ágil e menos oneroso tem que fazer cumprir e prestigiar determinados pontos vitais, a saber:

• incrementar as áreas básicas (v.g., CG)

• prestigiá-las

• remunerá-las dignamente, para não dizer melhor que para as especialidades

• reciclá-las periodicamente

• colocá-las no sistema em duas frentes: a do atendimento e a da seleção (triagem). Em CG, no atendimento, dependendo do hospital e da demanda, o cirurgião geral resolve de 70% a 80% dos casos. Na seleção ele é superior. Conhecendo os princípios e bases fundamentais, melhor orienta e melhor seleciona o paciente para o profissional especializado. Previne o perambular do paciente e evita gastos repetidos quando ele não é bem encaminhado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2008
  • Data do Fascículo
    Out 2002
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