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Treinamento auditivo acusticamente controlado em crianças com disfluência da fala: estudo de casos

RESUMO

O objetivo do estudo foi verificar a efetividade do treinamento auditivo acusticamente controlado na fluência da fala em crianças com diagnóstico de gagueira desenvolvimental. Dois pacientes foram submetidos à avaliação da fluência da fala, avaliação audiológica básica e avaliação do processamento auditivo central, antes e depois da intervenção por meio da plataforma digital. Participaram da pesquisa dois indivíduos do sexo masculino (P1 e P2), com 8 e 9 anos respectivamente, ambos com lateralidade manual destra, ambos falantes nativos do Português Brasileiro e com diagnóstico de gagueira desenvolvimental, sendo P1 com grau de gravidade moderada e o P2 leve a moderada. Houve melhora em algumas habilidades auditivas, contudo não houve melhora no padrão da fluência da fala nos dois casos estudados.

Descritores:
Gagueira; Transtornos da Audição; Reabilitação

ABSTRACT

The purpose of this study was to verify the effect of the acoustically controlled auditory training on the speech fluency of children diagnosed with developmental stuttering. Two patients were submitted to speech fluency evaluation, basic audiological assessment, and central auditory processing assessment, before and after the intervention with the digital platform. Two male individuals (P1 and P2) participated in the research. They were respectively 8 and 9 years old, both were right-handed, native Brazilian Portuguese speakers, diagnosed with developmental stuttering, P1 presenting a moderate, and P2, a mild-to-moderate degree. There was an improvement in some auditory skills. However, there was no improvement in the speech fluency pattern in neither of the cases studied.

Keywords:
Stuttering; Hearing Disorders; Rehabilitation

Introdução

A percepção e a produção da fala são eventos relacionados, nos quais a apreciação de frequência, intensidade e duração dos sons servem como base construtora da audição e da linguagem. Dessa forma, a produção da fala inteligível depende, em grande parte, das habilidades para processar os paradigmas do espectro acústico e da prosódia da fala do interlocutor11. Costa JB, Ritto AP, Juste FS, Andrade CRF. Comparison between the speech performance of fluent speakers and individuals who stutter. CoDAS. 2017;29(2):e20160136..

Nesse sentido, a fluência verbal pode ser definida como a fala de fluxo contínuo e suave decorrente de uma integração harmônica entre os processamentos neurais envolvidos tanto na linguagem quanto no ato motor22. Andrade CRF, Juste F. Aplicação de um teste americano de severidade da gagueira (SSI) em crianças fluentes falantes do Português brasileiro. Pró-Fono R Atual Cient. 2001;13(2):177-80.. O indivíduo fluente consegue então emitir sua fala sem esforço, não ocorrendo rupturas durante as progressões silábicas, gerando no interlocutor a percepção de uma fala normal33. Bohne AJ. Sobre paradigmas, linguagem e gagueira. Rev Fono Atual. 2000;3(14):8-13..

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a Gagueira ou Transtorno da Fluência com início na infância é definida como uma perturbação que ocorre tanto na fluência normal como no padrão temporal da fala, considerada inapropriada para a idade e para as habilidades linguísticas do indivíduo.

De caráter complexo e multidimensional, inúmeros fatores contribuem para o surgimento da gagueira. Fatores biológicos, psicológicos e sociais interagem entre si de forma complexa, influenciando o desenvolvimento pessoal e as interações sociais do indivíduo que gagueja. Dentre os fatores biológicos, destacam-se as habilidades auditivas como fator que influencia na fluência da fala, pois estudos mostraram a associação entre gagueira e processamento auditivo central (PAC) e o uso da retroalimentação auditiva atrasada (RAA) no tratamento da gagueira44. Silva R, Oliveira CMC, Cardoso ACV. Aplicação dos testes de padrão temporal em crianças com gagueira desenvolvimental persistente. Rev. CEFAC. 2011;13(5):902-8..

A alta resolução temporal exigida para o processamento da fala (tarefa de controle motor rápido) implica diretamente na fluência dos indivíduos gagos quando alteradas, uma vez que esta habilidade está relacionada ao processo dinâmico inibitório e excitatório dos movimentos realizados durante a produção da fala55. Santos JLF, Parreira LMMV. Habilidades de ordenação e resolução temporal em crianças com desvio fonológico. Rev. CEFAC. 2010;12(3):371-6.. Nesse sentido, estudos que investigaram o desempenho de indivíduos gagos na avaliação comportamental do processamento auditivo central mostraram prejuízo especialmente nos testes temporais66. Andrade NA, Gil D, Schiefer AM, Pereira LD. Processamento auditivo em gagos: análise do desempenho das orelhas direita e esquerda. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2008;13(1):20-9.,77. Andrade NA, Gil D, Schiefer AM, Pereira LD. Avaliação comportamental do processamento auditivo em indivíduos gagos. Pró-Fono R Atual Cient. 2008;20(1):43-8.. Outro estudo encontrou comprometimento da habilidade auditiva de resolução temporal em 85% dos indivíduos com gagueira que estudou, independentemente da gravidade88. Schmidt BC. Estudo da habilidade auditiva de resolução temporal em indivíduos com gagueira [Trabalho de Conclusão de Curso]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2014..

Para que a fala seja fluente, os sistemas simbólicos (responsável por integrar os componentes cognitivos, linguísticos e segmentais da fala, determinando forma e conteúdo da mensagem) e de sinais (responsável por determinar a duração proporcional da sílaba na palavra e a ordem de sequencialização dos espaços fonéticos) devem estar equilibrados temporalmente antes que a mensagem gerada chegue ao córtex motor. Se estes sistemas se desequilibram, o fluxo da fala é temporariamente rompido, gerando as disfluências99. Gomes MJC, Scrochio EF. Terapia da gagueira em grupo: experiência a partir de um grupo de apoio ao gago. RBTCC. 2001;3(2):25-34.. A imprecisão temporal na percepção de fala pode levar a momentos de disfluência e a diminuição das habilidades de processamento pode estar relacionada à incapacidade de manutenção da fala fluente1010. Meyers SC, Hughes LF, Schoeny ZG. Temporal-phonemic Processing Skills in Adult Stutterers and Nonstutterers. J Speech Lang Hear Res. 1989;32(2):274-80..

Um estudo com ressonância magnética funcional e tomografia computadorizada em indivíduos com gagueira evidenciaram uma assimetria funcional entre os hemisférios cerebrais nessa população. Nesse sentido, uma das explicações para a ocorrência da gagueira está relacionada à ativação para a fala e a linguagem, visto que em indivíduos fluentes, essa ativação é predominantemente esquerda, enquanto que, nos indivíduos com gagueira, essa ativação se dá predominantemente à direita ou de forma difusa. A mesma autora ainda relata outros aspectos relacionados às bases neurofuncionais envolvidas na gagueira que influenciam na fluência da fala: baixa ativação neural em indivíduos gagos durante a fala mesmo na ausência do movimento articulatório (leitura silenciosa), perda do controle da automatização da fala, redução da atividade dos componentes do circuito cerebelar, entre outros1111. Andrade CRF. Abordagem neurolinguística e motora da gagueira. In: Fernandes FDM, Mendes BCA, Navas ALGP (orgs). Tratado de Fonoaudiologia. 2. ed. São Paulo: Roca; 2009. p.423-53..

Nessa perspectiva, exames objetivos da função auditiva central, como P300 e a pesquisa do efeito de supressão das Emissões Otoacústicas (EOA), também demonstram pior desempenho em indivíduos gagos em comparação a fluentes1212. Arcuri CF, Schiefer AM, Azevedo MF. Research about suppression effect and auditory processing in individuals who stutter. CoDAS. 2017;29(3):e20160230..

Diante do exposto, a hipótese do presente estudo é de que exista comprometimento de habilidades do processamento auditivo central em indivíduos gagos e que, se essa alteração funcional for identificada e submetida a treinamento auditivo, possa haver melhora da fluência de crianças com gagueira.

Ressalta-se, portanto, a importância da verificação da eficácia da intervenção na função auditiva central de indivíduos gagos, focada e personalizada de acordo com a habilidade auditiva (s) alterada (s)determinadas na avaliação.

O objetivo deste estudo foi verificar o efeito do treinamento auditivo acusticamente controlado na fluência da fala em crianças com diagnóstico de gagueira desenvolvimental.

Apresentação dos Casos

Inicialmente, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro Universitário de Várzea Grande (UNIVAG) - MT, Brasil, vinculado à Plataforma Brasil, tendo sido aprovado sob o nº 98813018.3.0000.5692. Após sua aprovação e anteriormente ao início da coleta de dados, os responsáveis pelos participantes desse estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE e o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido - TALE, mediante explicação dos procedimentos do projeto.

Foram convidados para participar da pesquisa três pacientes que frequentavam o ambulatório de fluência do UNIVAG - MT e que estavam dentro dos critérios de inclusão propostos. Contudo, um paciente não aderiu ao treinamento, abandonando o mesmo a partir da quarta sessão devido à dificuldade de deslocamento até o local da pesquisa. A amostra foi composta, portanto, por dois pacientes.

Os critérios de inclusão para esta pesquisa compreenderam indivíduos que concordaram, por meio de assinatura dos pais e/ou responsáveis no TCLE e no TALE, com a realização dos procedimentos propostos para o estudo, que fossem falantes nativos do Português Brasileiro, na faixa etária de sete a dezoito anos de idade, destros, com diagnóstico de gagueira desenvolvimental (presença de no mínimo 3% (três por cento) de disfluências típicas da gagueira- DTG), avaliação audiológica básica dentro da normalidade, desempenho abaixo do esperado em dois ou mais testes da avaliação comportamental do processamento auditivo central, de ambos os sexos, sem síndromes associadas ou déficits cognitivos, que participaram efetivamente do treinamento auditivo acusticamente controlado (TAAC). É importante ressaltar que como critério de inclusão, os indivíduos com as características supracitadas, não poderiam ter realizado qualquer tipo de intervenção para a fluência da fala ou de treinamento auditivo. Foram excluídos da amostra aqueles indivíduos que apresentaram alterações neurológicas, auditivas, comportamentais, de aprendizagem, deficiência mental, síndromes genéticas, condições psiquiátricas ou outras alterações pertinentes que poderiam gerar erros no diagnóstico.

Primeiramente, os indivíduos foram submetidos à meatoscopia e à avaliação audiológica básica, composta por audiometria tonal liminar, logoaudiometria (limiar de reconhecimento de fala e índice percentual de reconhecimento de fala) e medidas de imitância acústica (timpanometria e medida do reflexo acústico do músculo estapédio).

Tendo em vista que os resultados destas avaliações estavam dentro da normalidade, os indivíduos foram então submetidos à avaliação comportamental do PAC, composta pelos seguintes testes: Teste de Identificações de Sentenças com Mensagem Competitiva (Synthetic Sentence Identification-SSI), Teste Fala com Ruído (TFR), Limiar Diferencial de Mascaramento (Masking Level Difference-MLD), Teste de Padrão de Frequência (Pitch Pattern Sequence-PPS), Teste de Detecção de Intervalos Aleatórios (Random Gap Detection Test-RGDT) e Teste Dicótico de Dígitos (TDD).

O Teste Dicótico Consoante Vogal na etapa de atenção livre (TDCV - AL), que avalia a habilidade de integração binaural, somente foi realizado, com o objetivo exclusivo de identificar a dominância hemisférica cerebral para a linguagem.

Os critérios de padrão de normalidade para os testes da avaliação do processamento auditivo central estão representados na Tabela 1, abaixo:

Tabela 1:
Padrões de normalidade dos testes do processamento auditivo central

A amostra para esta pesquisa foi composta por dois indivíduos do sexo masculino (P1 e P2), com 8 (oito) e 9 (nove) anos respectivamente, ambos com lateralidade manual destra e com desempenho compatível com dominância do hemisfério esquerdo, segundo o TDCV-AL.

Antes e após a intervenção, as crianças foram submetidas à avaliação da fluência da fala e à avaliação comportamental do PAC.

Para a avaliação da fluência da fala, utilizou-se o Protocolo de Avaliação do Perfil da Fluência - PAPF. Realizou-se a coleta de uma amostra de fala auto expressiva de cada participante, com o menor número de interrupções possíveis por parte das pesquisadoras (as interrupções ocorreram mediante a necessidade de incentivar a produção da fala dos participantes, os quais foram orientados a relatar assuntos do seu cotidiano e interesse) para a obtenção do perfil da fluência da fala de cada participante.

A coleta conteve uma amostra de 200 (duzentas) sílabas fluentes e foi realizada em ambiente silencioso. Após a coleta das amostras de fala, as mesmas foram transcritas na íntegra, ou seja, foram consideradas tanto as sílabas fluentes quanto as sílabas não fluentes. Posteriormente à transcrição, analisou-se três aspectos baseados nos valores de referência para o perfil da fluência da fala de acordo com o parâmetro comparativo por idade e por sexo para indivíduos fluentes nativos falantes do português brasileiro. Estes parâmetros levam em conta um intervalo de confiança em que cada resultado obtido deve ser analisado como pertencente ou não ao intervalo pertinente.

Para a verificação da gravidade da gagueira foi utilizado o Instrumento de Gravidade da Gagueira (SSI-3), versão disponível no serviço onde foi realizada a coleta de dados. Este instrumento possibilitou a definição de um escore, que identificou o grau de severidade da gagueira: leve, moderada, grave ou muito grave, de acordo com os parâmetros para cada faixa etária.

Nesta pesquisa, foi adotado como critério diagnóstico de gagueira a presença de no mínimo 3% (três porcento) de DTG, critério diagnóstico assumido internacionalmente, assim como os parâmetros da fluência, descritos a seguir: (I) avaliação da tipologia das rupturas, classificadas em Disfluências Típicas da Gagueira (DTG) ou Outras Disfluências (ODs), apresentadas no discurso auto expressivo dos sujeitos avaliados; (II) taxa de elocução (análise qualitativa e quantitativa) para a verificação da medida da taxa de velocidade com a qual o indivíduo é capaz de produzir o fluxo de informação (Fluxo de Palavras por Minuto - PPM) e a medida da velocidade articulatória (Fluxo de Sílabas por Minuto - SPM), ou seja, a velocidade com a qual o indivíduo pode mover as estruturas da fala; e por fim (III) a frequência das rupturas (análise qualitativa e quantitativa), para a identificação da taxa de rupturas no discurso (porcentagem de ODs), da taxa de rupturas consideradas sugestivas de gagueira (porcentagem de DTGs) e da porcentagem do Total de Disfluências presentes no discurso (ODs e DTGs).

O material para avaliação audiológica e do PAC foi:

  • Audiômetro Modelo AD229, Marca Interacoustics;

  • Notebook RV411, Marca Samsung;

  • Imitanciômetro Modelo AT235, Marca Interacoustics;

  • Compact Disc contendo os testes do PAC na língua portuguesa

  • Portal “Afinando o Cérebro”, para o treinamento auditivo.

O protocolo de treinamento auditivo contou, ao todo, com 8 (oito) sessões, na frequência de 1 (uma) vez por semana, cada qual com 50 (cinquenta) minutos de duração.

O protocolo de TAAC compreendeu a estimulação das seguintes habilidades: figura fundo auditiva (exercícios com ruído e fala competitiva), fechamento auditivo (exercícios com sinal de fala distorcido), integração binaural e separação binaural (por meio de tarefas dicóticas); as quais foram trabalhadas dentro de cabine acústica, por meio de fones supra-aurais conectados a um audiômetro. Foram utilizados jogos de uma plataforma digital online, desenvolvida para estimular as habilidades de processamento auditivo central (“Afinando o Cérebro”). As atividades foram escolhidos de acordo com as habilidades alteradas de cada indivíduo, identificadas na avaliação comportamental. Durante cada sessão, estimulou-se mais de uma habilidade auditiva e o nível de dificuldade foi progressivo. Para aumentar o grau de dificuldade da tarefa, o desempenho da criança deveria ser igual ou superior a 70% na atividade anterior; caso o desempenho na tarefa fosse inferior a 30%, o grau de dificuldade deveria ser diminuído. Após cada sessão, os pacientes e responsáveis eram orientados a utilizar o portal diariamente durante a semana em treino domiciliar com os jogos determinados pela terapeuta para estimular a habilidade auditiva alterada. Essa plataforma permite verificar o acesso e o desempenho do paciente durante o treinamento e fazer uma análise da amostra.

O treinamento executado se encontra descrito na Figura 1 abaixo:

Figura 1:
Atividades realizadas por sessão e classificadas de acordo com a habilidade auditiva estimulada

Resultados

Os resultados das avaliações da disfluência e do PAC dos participantes da amostra se apresentam de forma descritiva e individualizada de acordo com a análise realizada a partir das tabelas a seguir expostas.

A Tabela 2 se refere aos resultados das avaliações da disfluência pré- e pós-TAAC.

Tabela 2:
Resultados das avaliações da disfluência pré e pós treinamento auditivo

Na Tabela 3, apresentam-se os resultados da avaliação comportamental do processamento auditivo central pré- e pós-TAAC.

Tabela 3:
Resultados das avaliações comportamentais do processamento auditivo central pré e pós treinamento auditivo

Paciente P1, 8 anos

O paciente P1, com 8 anos de idade, apresentou desempenho compatível com gagueira moderada tanto na avaliação da disfluência pré-treinamento auditivo quanto na pós-treinamento auditivo. Conforme se observa na Tabela 2, os valores apresentados para ODs, velocidade da fala (PPM e SPM) e frequência de rupturas (porcentagem de descontinuidade de fala-% Desc.) estão dentro dos padrões de normalidade para a faixa etária de P1. No entanto, P1 foi considerado gago de grau moderado pela quantidade das DTG e devido aos concomitantes físicos associados, os quais, juntos, são os principais fatores para o critério de diagnóstico.

Na avaliação comportamental do processamento auditivo central (Tabela 3), o paciente P1 apresentou desempenho abaixo do padrão de normalidade no teste SSI, que avalia a habilidade auditiva de figura fundo, nas duas orelhas na relação S/R 0dB na avaliação pré-treinamento auditivo, mantendo esta condição na reavaliação pós-treinamento auditivo. Na relação S/R -15dB em ambas as orelhas no pré-treinamento auditivo, P1 apresentou valores abaixo do padrão de normalidade, situação esta que se alterou positivamente na avaliação pós-treinamento auditivo, pois tais valores atingiram o padrão de normalidade.

No teste TFR, que avalia a habilidade auditiva fechamento auditivo, os valores alcançados por P1 em ambas as orelhas, tanto no pré- quanto no pós-treinamento auditivo, estão dentro do padrão de normalidade.

No teste TDD, que avalia as habilidades auditivas de integração binaural e de separação binaural, P1 se mostrou abaixo do padrão de normalidade na habilidade de integração binaural em ambas as orelhas, em ambas as avaliações. Na habilidade de separação binaural, na escuta direcionada à direita (EDD), P1 se manteve dentro do padrão de normalidade em ambas as avaliações; na escuta direcionada à esquerda (EDE), P1 atingiu o padrão de normalidade na avaliação pós-treinamento auditivo, havendo uma melhora em relação a avaliação pré-treinamento auditivo, quando o valor correspondente estava abaixo do padrão de normalidade.

O teste TDCV em atenção livre mostrou que P1 tem dominância do hemisfério esquerdo para linguagem.

Nos testes PPS, que avalia a habilidade de ordenação temporal, MLD, que avalia a habilidade de interação binaural, e RGDT, que avalia a habilidade de resolução temporal, P1 se manteve dentro dos padrões de normalidade tanto no pré- quanto no pós-treinamento auditivo.

Os resultados de P1 obtidos em relação às habilidades auditivas de figura fundo, fechamento auditivo, ordenação temporal, resolução temporal, interação binaural e separação binaural estão dentro dos padrões de normalidade. A habilidade de integração binaural de P1, contudo, ainda não está totalmente dentro dos padrões de normalidade.

Paciente P2, 9 anos

O paciente P2, com 9 anos de idade, apresentou desempenho compatível com gagueira de grau leve a moderada na avaliação pré-treinamento auditivo e moderada pós-treinamento auditivo. Conforme se observa na Tabela 2, os valores apresentados para a frequência de rupturas no que diz respeito à descontinuidade de fala estão dentro dos padrões de normalidade para a faixa etária de P2. No que se refere às DTG, P2 apresentou melhora na condição pós-treinamento auditivo.

Quanto à velocidade de fala, referente às PPM, enquanto o valor apresentado na avaliação pré-treinamento auditivo pode indicar que P2 esteja passando mais informações do que é esperado para sua idade, na avaliação pós-treinamento auditivo, o valor alcançado se encontra entre o intervalo de confiança. Estes achados não são considerados como alteração, pois refletem a hipótese de que P2 tenha maior facilidade para se organizar na sua fala. O mesmo ocorre nas SPM no pré-treinamento auditivo em relação ao pós-treinamento auditivo, pois, antes, a velocidade articulatória de P2 é muito rápida, após a intervenção ela se apresenta dentro do esperado para sua idade. Nesse sentido, vale ressaltar que os dados apresentados sugerem melhora do parâmetro em questão, visto que para P2, houve uma adequação da velocidade.

O paciente P2 teve desempenho compatível com gagueira de grau moderado, apesar da diminuição da quantidade das DTG, devido aos concomitantes físicos associados.

Com relação à avaliação do PAC, conforme apresentado na Tabela 3, P2 apresentou desempenho abaixo do padrão de normalidade no SSI na orelha direita tanto na relação S/R 0dB quanto na -15dB na avaliação pré-treinamento auditivo. Esses resultados se normalizaram após o treinamento auditivo. Na orelha esquerda, P2 apresentou desempenho dentro do padrão de normalidade em ambas as avaliações.

No teste TFR, houve melhora em ambas as orelhas de P2 na avaliação pós-treinamento auditivo, pois os valores respectivos se enquadraram no padrão de normalidade em relação à avaliação pré-treinamento auditivo.

No teste TDD, P2 se manteve dentro do padrão de normalidade na habilidade de integração binaural na orelha direita, em ambas as avaliações; a orelha esquerda, contudo, apresentou desempenho abaixo do padrão de normalidade antes e depois do treinamento auditivo. Na habilidade de separação binaural, P2 apresentou resultados dentro dos padrões de normalidade antes e após a intervenção.

O teste TDCV, com atenção livre, mostrou que P2 apresenta dominância do hemisfério esquerdo para linguagem.

Nos testes PPS, MLD e RGDT, P2 se manteve dentro dos padrões de normalidade tanto no pré- quanto no pós-treinamento auditivo.

Os resultados de P2 obtidos em relação às habilidades auditivas de figura-fundo, fechamento auditivo, ordenação temporal, resolução temporal, interação binaural e separação binaural estão dentro dos padrões de normalidade. A habilidade de integração binaural de P2, todavia, ainda não está totalmente dentro dos padrões de normalidade.

Discussão

A gagueira é um distúrbio da fluência de alta prevalência, todavia, ainda não se sabe se há um marcador biológico. O perfil da fluência de crianças gagas é bastante heterogêneo, sendo considerável concluir que a gagueira não possui uma única causa, mas, sim, decorre da interação de processos fisiológicos diferentes1313. Gonçalves IC. Aspectos audiológicos da gagueira: evidências comportamentais e eletrofisiológicas [Tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2013..

A relação entre gagueira e audição é relatada por diversos estudos que demonstraram melhora da fala gaguejada sob condições de “retroalimentação auditiva”, ou seja, utilizando-se de mascaramento, delay auditory feedback(DAF), frequency altered feedback (FAF), ou a combinação entre eles, evidenciando forte correlação entre a gagueira e aspectos auditivos1414. Lincoln M, Walker C. A survey of Australian adult users of altered auditory feedback devices for stuttering: use patterns, perceived effectiveness and satisfaction. Disability and Rehabilitation. 2007;29(19):1510-7.

15. Van Borsel J, Eeckhout H. The speech naturalness of people who stutter speaking under delayed auditory feedback as perceived by different groups of listeners. J Fluency Disorders. 2008;33(3):241-51.

16. Armson J, Kiefte M. The effect of SpeechEasy on stuttering frequency, speech rate, and speech naturalness. J Fluency Disord. 2008;33(2):120-34.

17. Antipova EA, Purdy SC, Blakeley M, Willians S. Effects of altered auditory feedback (AAF) on stuttering frequency during monologue speech production. J Fluency Disord. 2008;33(4):274-90.
-1818. Pollard R, Ellis JB, Finan D, Ramig PR. Effects of the SpeechEasy on objective and perceived aspects of stuttering: a 6-month, phase i clinical trial in naturalistic environments. J Speech Lang Hear Res. 2009;52(2):516-33..

Estudos eletrofisiológicos evidenciam que há uma alteração no processamento do sinal acústico em indivíduos gagos se comparado aos seus pares fluentes, porém, não há consenso na literatura1919. Prestes R, Andrade AM, Santos RBF, Marangoni AT, Schiefer AM, Gil D. Temporal processing and long-latency auditory evoked potential in stutterers. Braz. j. otorhinolaryngol. 2017;83(2):142-6..

Atualmente, já se tem conhecimento de que indivíduos com gagueira podem apresentar alterações das habilidades auditivas, contudo, há pouca evidência científica na literatura sobre a eficácia do treinamento auditivo em indivíduos gagos.

No presente estudo, foram encontradas alterações nas habilidades de figura fundo, fechamento auditivo, integração e separação binaural. Estudos que tiveram por objetivo descrever as habilidades auditivas alteradas em indivíduos gagos demonstram resultados diversos. Em alguns estudos, verificou-se um desempenho menor por parte de indivíduos com gagueira em relação a não gagos44. Silva R, Oliveira CMC, Cardoso ACV. Aplicação dos testes de padrão temporal em crianças com gagueira desenvolvimental persistente. Rev. CEFAC. 2011;13(5):902-8.,2020. Arcuri CF. Pesquisa do efeito de supressão e do processamento auditivo [Tese]. São Paulo (SP): Universidade Federal de São Paulo; 2012..

Um dos estudos que observou desempenho significantemente menor em crianças com gagueira nos testes de processamento auditivo temporal, especificamente os testes de padrão de frequência (PPS - Pitch Pattern Sequence) e duração (Duration Pattern Sequence) hipotetizou que dificuldade em discriminar frequência, intensidade e duração sonoras adequadamente pode levar a um déficit de percepção em relação à prosódia e à entonação da fala44. Silva R, Oliveira CMC, Cardoso ACV. Aplicação dos testes de padrão temporal em crianças com gagueira desenvolvimental persistente. Rev. CEFAC. 2011;13(5):902-8..

Embora a literatura aponte que indivíduos com alterações de fluência podem apresentar alterações nos aspectos temporais auditivos1111. Andrade CRF. Abordagem neurolinguística e motora da gagueira. In: Fernandes FDM, Mendes BCA, Navas ALGP (orgs). Tratado de Fonoaudiologia. 2. ed. São Paulo: Roca; 2009. p.423-53., as crianças que participaram do presente estudo apresentaram desempenho dentro do esperado nos testes que avaliam estas habilidades, a saber PPS e RGDT. Sendo assim, não houve intervenção específica das habilidades do processamento auditivo temporal nos participantes deste estudo.

Uma das hipóteses para a falta de consenso na literatura sobre o desempenho de indivíduos gagos em testes de processamento auditivo temporal seria a heterogeneidade dos grupos de gagos em cada pesquisa. Além disso, uma vez que a gagueira é um distúrbio multifatorial e carrega em si influências biológicas, psicossociais e do meio, tais fatores também podem gerar resultados não conclusivos.

O teste dicótico consoante vogal na etapa de atenção livre tem sido utilizado para inferir sobre a dominância hemisférica para sons de fala, ou seja, verificar se há assimetria perceptual para estímulos linguísticos avaliados por meio da atenção livre. As diferenças entre as orelhas direita e esquerda nos testes verbais de escuta dicótica refletem as diferenças funcionais entre os hemisférios cerebrais e o fato de que cada orelha tem conexão mais forte com o hemisfério contralateral2121. Kimura D. Some effects of temporal-lobe damage on auditory perception. Lata J Exp Psychol.1961;15(3):156-65.. A vantagem de respostas corretas da orelha direita nos testes de escuta dicótica poderia ser interpretada como reflexo da dominância do hemisfério cerebral esquerdo para o processamento de fala e linguagem2222. Blood GW, Blood IM. Central auditory function in young stutterers. Percept Mot Skills.1996;59(3):699-705..

Os hemisférios cerebrais são organizados assimetricamente, sendo que o hemisfério cerebral esquerdo é mais especializado para a linguagem e o direito, mais envolvido com os componentes visuais e espaciais em indivíduos destros. Embora se encontre na literatura a teoria de que os indivíduos gagos não possuem dominância hemisférica para a fala, possuem dominância hemisférica invertida ou dominância hemisférica bilateral2323. Alvarez AMMA, Balen S, Misorelli MI, Sanchez ML. Processamento auditivo central: proposta de avaliação e diagnóstico diferencial. In: Munhoz MSL, Caovilla HH, Silva MLG, Ganança MM (orgs). Audiologia clínica série otoneurologia. São Paulo: Atheneu; 2000. p.103-20., estudos, como o presente, que utilizaram o TCV mostraram que indivíduos com gagueira possuem o mesmo padrão de dominância hemisférica para linguagem de indivíduos não gagos 66. Andrade NA, Gil D, Schiefer AM, Pereira LD. Processamento auditivo em gagos: análise do desempenho das orelhas direita e esquerda. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2008;13(1):20-9.,77. Andrade NA, Gil D, Schiefer AM, Pereira LD. Avaliação comportamental do processamento auditivo em indivíduos gagos. Pró-Fono R Atual Cient. 2008;20(1):43-8.,2424. Pascoinelli AT, Juste FS, Andrade CR, Schochat E, Murphy CFB. Escuta dicótica em indivíduos com gagueira: efeito do tipo de tarefa, estímulo e demanda cognitiva. In: Anais do 23 Congresso Brasileiro e 9 Congresso Internacional de Fonoaudiologia; 2015; Salvador, Bahia. Brasil: 2015.,2525. Andrade CRF, Schochat E. Comparação entre os achados neurolinguísticos e neuroaudiológicos nas gagueiras. Pró-Fono R Atual Cient. 1999;11(2):27-30..

Outra discussão nas investigações do processamento auditivo na gagueira diz respeito à possível relação entre a severidade da gagueira e os resultados da avaliação do processamento auditivo. Nesta linha de raciocínio, outro estudo2626. Schiefer AM, Barbosa LMG, Pereira LD. Considerações preliminares entre uma possível correlação entre a gagueira e os aspectos linguísticos e auditivos. Pró-Fono R Atual Cient. 1999;11(1):27-31. mostrou que a severidade da gagueira está diretamente relacionada com o desempenho nos testes de processamento auditivo não verbal, como o teste de padrão de frequência. Outros autores também correlacionaram os testes de processamento auditivo comportamental com o grau de severidade da gagueira e não observaram nenhum tipo de correlação, porém, sugerem que há, sim, uma relação entre as alterações de processamento auditivo e as manifestações da gagueira2727. Viléla LBFA. Eficácia do treinamento auditivo em indivíduos com gagueira [Dissertação]. Marília (SP): Universidade Estadual de São Paulo; 2019.. No presente estudo, foi observado que o paciente que apresentou o maior grau de severidade da gagueira no pré-treino teve um maior número de habilidades auditivas alteradas, contudo, não foi observada alteração nos aspectos temporais.

Os resultados referentes à avaliação e comparação das ocorrências de disfluências dos indivíduos com gagueira pré- e pós-treinamento auditivo não corroboram o estudo nacional2828. Andrade CRF. Fluência. In: Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF (orgs). ABFW: Teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. Carapicuíba: Pró-Fono, 2011. p. 51-81., que demonstrou haver diferença entre a gravidade da gagueira após o treino auditivo. Vale ressaltar que, para o treinamento auditivo desse estudo, a pesquisadora utilizou a mesma plataforma digital online de jogos para estimulação das habilidades auditivas.

Alguns aspectos devem ser considerados no que diz respeito ao aumento da gravidade da gagueira de P2. O processo de avaliação da fluência da fala leva em consideração a ocorrência de disfluências comuns e típicas da gagueira na tarefa de fala espontânea. Conforme proposto, durante a avaliação, o avaliador deve interromper o mínimo possível o sujeito avaliado para que seja coletada uma amostra fidedigna da fluência da fala do indivíduo avaliado2828. Andrade CRF. Fluência. In: Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF (orgs). ABFW: Teste de linguagem infantil nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. Carapicuíba: Pró-Fono, 2011. p. 51-81.. Nesse sentido, foram realizadas 4 (quatro) tentativas de avaliação com P2, pois nenhuma coleta atingiu as 200 (duzentas) sílabas fluentes conforme proposto pelo protocolo utilizado (foram utilizadas todas as amostras coletadas a fim de compor as 200 sílabas). Inicialmente, P2 mostrou-se bastante tímido, respondendo aos questionamentos de forma breve, com emissões curtas e diretas. Porém, ao longo do treinamento auditivo, P2 estabeleceu um maior vínculo com o terapeuta, o que permitiu um aumento na sua produção oral e, consequentemente, uma maior fluência na coleta pós treinamento auditivo, uma vez que não foram necessárias interrupções e questionamentos a fim de estimular a produção da fala espontânea. Nesse sentido, a última coleta realizada parece evidenciar de fato o perfil de sua fluência da fala, justificando o aumento da gravidade da gagueira. Ressalta-se a melhora na velocidade de fala do P2 após treino auditivo que pode ser justificada pelo treino das habilidades de fechamento e figura fundo com estímulos com degradação espectral que visam favorecer um bom reconhecimento e discriminação de fala em ambientes cujas condições de escuta não são ideais, como os que apresentam reverberação, eco, ruído ambiental, distância ou velocidade de fala acelerada. Sendo assim, houve um favorecimento para auto percepção de velocidade de fala levando a um aprimoramento dessa habilidade de comunicação. Outro aspecto relevante a ser considerado é de que existe uma maior tendência de tensão em tarefas de fala auto expressivas, associadas à representação linguística, planejamento e execução motora da fala, o que implica em uma maior demanda cognitiva2929. Ferreira AMM. Estudos para uma proposta de feedback de suavização e prolongamento da fala da pessoa que gagueja [Tese]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2019.. Ressalta-se que os resultados em questão não indicam uma piora decorrente do treinamento auditivo, e sim uma adequação do parâmetro avaliado, que pode ter ocorrido justamente pela melhora das habilidades auditivas.

Ainda quanto aos resultados do P2 após o treinamento auditivo, uma das hipóteses que poderia justificar a redução significante de DTGs, está relacionada ao fato de que dependendo dos fatores externos, a fluência do indivíduo gago pode apresentar melhora, denotando novamente seu carácter intermitente. Nesse sentido, nos parece pertinente entender essa redução resultante destes fatores. Autores3030. Healey CE, Trautman LS, Susca M. Clinical applications of a multidimensional approach for the assessment and treatment of stuttering. CICSD. 2004;(31):40-8. propuseram um modelo denominado CALMS composto por cinco componentes principais que podem contribuir e/ou manter a gagueira. São eles: componentes afetivos (sentimentos, emoções e atitudes), sociais (tipo de ouvinte e situação a que o indivíduo está exposto), motores (controle sensório motor dos movimentos da fala), cognitivos (pensamentos e percepções) e linguísticos (habilidades e demandas de linguagem e complexidade do discurso). Nos parece que essa redução de DTGs está mais relacionada à relação entre os componentes supracitados e não diretamente ao efeito do treinamento auditivo em sua fala.

Na comparação entre o desempenho de cada paciente nos testes de PAC antes e depois do treinamento auditivo, observou-se melhora nos resultados dos dois participantes na maioria das habilidades auditivas identificadas como disfuncionais na avaliação inicial. P1 apresentou melhora na condição -15dB do SSI, mas não na 0dB, o que parece incoerente, visto que a primeira é mais dificil (sinal de fala está 15dB mais fraco do que a mensagem competitiva). Portanto, uma vez que os testes são comportamentais e dependem da colaboração do paciente, pode ter ocorrido interferência de fatores como cansaço ou desatenção. Esse mesmo paciente manteve o desempenho alterado nas habilidades de integração e separação binaural. O participante P2, por sua vez, teve melhora em todas as habilidades alteradas após o treinamento, exceto na integração binaural.

A habilidade de integração binaural envolve amadurecimento de estruturas neuronais superiores como corpo caloso e demanda o desenvolvimento de um maior número de estruturas neuronais para o adequado neuro funcionamento. Um estudo nacional1313. Gonçalves IC. Aspectos audiológicos da gagueira: evidências comportamentais e eletrofisiológicas [Tese]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo; 2013. destaca que a presença de alterações em níveis mais baixos da via auditiva pode limitar a efetividade do processamento de determinadas informações acústicas em nível cortical. Sendo assim, acredita-se que um maior número de sessões terapêuticas poderia gerar resultados mais efetivos da habilidade de integração binaural.

Em relação ao uso da plataforma digital online de jogos para estimulação das habilidades auditivas, vale ressaltar a ótima aceitação pelos pacientes e familiares no treino domiciliar e sua efetividade em relação à estimulação das habilidades auditivas anteriormente alteradas. Notou-se, contudo, uma limitação da ferramenta em relação às atividades que deveriam ser realizadas em casa, pois a mesma não possibilita que os profissionais restrinjam as atividades não programadas segundo as necessidades específicas de cada paciente.

Finalmente, ressalta-se as limitações do presente estudo. A amostra foi reduzida devido à falta de aderência de alguns participantes que não tiveram assiduidade durante o tratamento proposto. O paciente P1 faltou duas sessões e o P2 não teve faltas. Sugere-se para próximas investigações que sejam feitos trabalhos com amostras mais robustas, que utilizem questionários de autopercepção dos pais quanto a gagueira do filho no pré- e no pós-treino, e também que seja realizado o treinamento auditivo em crianças menores a fim de verificar a influência desse treino precocemente na fluência da fala das crianças gagas.

Para a avaliação da severidade da gagueira, foi utilizado a versão 3 do SSI, por conveniência, uma vez que era a disponível no serviço onde foi realizado este estudo. No entanto, já está disponível no mercado o SSI-4, que é o instrumento mais atualizado, porém o que nos levou a não realizar nova análise com o SSI-4 é que o objeto de estudo principal da pesquisa foi entender se o treinamento auditivo poderia modificar o perfil da fluência da fala. Para tal e por ser o instrumento disponível no serviço, o SSI-3 possibilitou esta avaliação.

Permanece necessária a realização de novas pesquisas com o mesmo objetivo do presente estudo, com uma amostra significante e aderente a todos os quesitos do projeto - e com a exclusão de participantes com faltas irreparáveis (por exemplo, quando o participante realiza, em domicílio, uma atividade não programada sem supervisão do profissional responsável) -, de modo que se possa efetuar uma análise estatística relevante.

Conclusão

Não houve melhora no padrão da fluência da fala das crianças participantes após o treinamento auditivo, embora tenha sido observado melhora no desempenho das habilidades auditivas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2020
  • Aceito
    17 Set 2020
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