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O distúrbio de linguagem em dois sujeitos com risco para o desenvolvimento em uma perspectiva enunciativa do funcionamento de linguagem

Resumos

Este estudo tem como objetivo analisar a importância de uma hipótese de funcionamento de linguagem, considerando as relações forma/sentido e os mecanismos e estratégias enunciativas na análise da linguagem de dois sujeitos com distúrbio de linguagem e risco ao desenvolvimento. Dois sujeitos e seus familiares foram acompanhados do primeiro ao décimo oitavo mês de idade, por meio dos Índices de Risco ao Desenvolvimento Infantil. Entre 21 e 24 meses, foram filmados com familiares (mãe, pai, irmão) e com a pesquisadora, em situação lúdica, de modo similar ao que acontece em casa. As filmagens foram analisadas e transcritas ortograficamente e analisadas por meio dos mecanismos e estratégias enunciativas, da relação forma/sentido, buscando-se identificar o funcionamento de linguagem. Enquanto um dos sujeitos evidenciou maiores possibilidades de realização vocal, mas com mecanismos e estratégias enunciativas restritas, o outro apresentou quase ausência de fala, induzindo o adulto a falar por ele. Houve diferenças no funcionamento de linguagem, nos recursos para relacionar forma e sentido, bem como no uso de mecanismos e estratégias enunciativas entre ambos sujeitos, o que demonstra a necessidade de identificar uma hipótese de funcionamento de linguagem no processo de avaliação da linguagem infantil.

Desenvolvimento da Linguagem; Desenvolvimento Infantil; Risco; Saúde da Criança


This study aims to analyze the importance of a hypothesis of language working, considering the form/meaning relationships and the enunciative mechanisms and strategies in the analysis of language of two subjects with language impairment and risk to development. Two subjects and their families were followed from the first to the eighteenth month of age, through the Indexes of Risk to Child Development. Between 21 and 24 months, the subjects were filmed with relatives (mother, father, brother) and with the researcher, in a playful situation, in a similar way to what happens at home. The recordings were orthographically analyzed and transcribed and also analyzed by means of mechanisms and enunciative strategies, the relative form/meaning, trying to identify the function of language. While one of the subjects showed greater possibilities of vocal accomplishment, but with restricted enunciative strategies and mechanisms, the other one had almost no speech, inducing the adult to speak in his place. There were differences in the functioning of language, the resources to relate form and meaning, as well as the use of enunciative mechanisms and strategies between both subjects, which demonstrates the need to identify a hypothesis of language working in the evaluation process of the children language.

Language Development; Child Development; Risk; Child Health


Introdução

Tradicionalmente, dos estudos que focam os distúrbios de linguagem na infância têm explanado os limites biológicos e linguísticos de casos clínicos11. Befi-Lopes DM, Bento ACP, Perissinoto J. Narração de histórias por crianças com distúrbio específico de linguagem. Pró-Fono R. Atual. Cient. 2008;20(2):93-8.

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- 1010. Tamanaha AC, Oshiro LT, Kawano CE, Okumura M, Ghiringhelli R, Minaguchi T. Queixa nos distúrbios de linguagem. J Soc Bras Fonoaudiol. 2011;23(2):124-8., enquanto outros têm abordado as interações iniciais1111. Wiethan FM, Souza APR, Klinger EF. Abordagem terapêutica grupal com mães de crianças portadoras de distúrbios de linguagem. Rev. Soc. Bras. Fonoaudiol. 2010;15(3):442-51. , 1212. Crestani AH, Rosa FFM, Souza APR, Pretto JP, Moro MP, Dias L. A experiência da maternidade e a dialogia mãe-filho com distúrbio de linguagem. Rev CEFAC. 2012;14(2):350-60.. São recentes, por outro lado, os estudos em uma perspectiva enunciativa, em especial, aqueles voltados à natureza da relação sujeito-linguagem. Destacam-se, neste campo, Surreaux1313. Surreaux LM. Linguagem, sintoma e clínica de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2006. e Cardoso1414. Cardoso JL. Princípios de análise enunciativa na clinica dos distúrbios de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010. que abordam tal relação nos distúrbios de linguagem, em uma perspectiva enunciativa. Tais autores, assim como Silva1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009. no campo da aquisição da linguagem, inauguram um novo pensar sobre a linguagem que traz contribuições importantes à clínica fonoaudiológica de intervenção precoce.

Silva 1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009., ao deslocar a perspectiva enunciativa de Benveniste para a aquisição da linguagem, pressupõe que, por meio da enunciação, a criança inscreve-se na linguagem, porque emerge como sujeito de linguagem (constitui-se como eu) quando é constituída pelo outro (o tu). A relação dialógica do eu e do tu marca um espaço de presença (eu-tu) e, ao mesmo tempo, de ausência (ele). Assim, a criança na enunciação, instaura-se no uso da língua pela estrutura de diálogo, essencial para a constituição do sujeito na linguagem1616. Benveniste E. Problemas de Línguística Geral I: tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri: revisão do Prof. Isaac Nicolau Salum. 4 ed. Campinas, SP: Pontes, 1995.. Requer do outro que a torne sujeito1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009., instancia-se na linguagem, lugar de habitação das relações intersubjetivas e se apropria da língua como sistema de unidades1414. Cardoso JL. Princípios de análise enunciativa na clinica dos distúrbios de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010.. Os autores do campo enunciativo explicam que enunciar é assumir o lugar do eu no diálogo, para, em seguida, abandoná-lo em favor de tu, para que este assuma também o lugar do eu.

Cardoso1414. Cardoso JL. Princípios de análise enunciativa na clinica dos distúrbios de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010. entende que o distúrbio de linguagem apresenta uma face específica da relação do falante com a língua. Os erros ditos patológicos, que fazem presença na fala, em uma concepção de linguagem enunciativa, integram o conjunto de elementos, linguísticos e extralinguísticos, que possibilitam ao falante enunciar. A língua compreende dois universos: o do repertório dos signos (semiótico) e o do discurso (semântico). O signo deve ser reconhecido, e o discurso compreendido. No distúrbio de linguagem, há um problema de reconhecimento do signo (semiótico) ou uma dificuldade na compreensão da ideia (semântico), ou, ainda, há os casos em que ambos os aspectos estão envolvidos. Nessa perspectiva, vê a fala desviante como uma forma de organização singular do sistema da língua de um falante que, ao transformar a língua em discurso por um ato individual, ascende à condição de sujeito. Propõe que a unidade de análise dessa construção, tendo em vista a importância do adulto na mesma, deve ser o diálogo. Surreaux1313. Surreaux LM. Linguagem, sintoma e clínica de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2006. afirma que pensar essas relações demanda levar em consideração o sujeito que enuncia, do modo como é possível enunciar naquele momento. Afirma ainda que é, a partir da sustentação da fala sintomática, que o terapeuta permite ao sujeito atendido se apropriar desta fala e produzir deslocamentos, ou seja, fazer uso criativo de seu sintoma para poder sair dele1717. Surreaux LM . Sobre o sintoma de linguagem na clínica de linguagem. In: Graña, CG (org.) Quando a fala falta: Fonoaudiologia, linguística e psicanálise. Porto Alegre: Casa do Psicólogo, 2009.. Para tanto, o terapeuta necessita estar capturado pelo funcionamento de língua, e distinguir-se das abordagens que pensam a fala desviante apenas como sinal de sistema linguístico patológico1818. Bender S, Surreaux LM . Os efeitos da fala da criança: a escuta do sintoma na clínica de linguagem. Cadernos do IL (UFRGS). 2011;42:129-45..

Na clínica de bebês, o sintoma de linguagem geralmente se configura como ausência de fala ou um pouco falar. Assim, torna-se interessante pensar numa hipótese sobre o funcionamento da linguagem de crianças em processo de aquisição, pois, compreende-se que o discurso da criança comporta as (ir) regularidades da língua e a singularidade do sujeito que enuncia1313. Surreaux LM. Linguagem, sintoma e clínica de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2006.. Também é importante pensar nas relações forma/sentido1414. Cardoso JL. Princípios de análise enunciativa na clinica dos distúrbios de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010. e nos mecanismos e estratégias enunciativas de aquisição presentes nesses casos1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009..

O estudo de casos, apresentado neste artigo, provêm de uma pesquisa longitudinal realizada em uma cidade de porte médio do Rio Grande do Sul, na qual os sujeitos foram acompanhados por meio dos Índices de Risco ao Desenvolvimento Infantil1919. Kupfer MCM, Jerusalinsky AN, Bernardino LMF, Wanderley D, Rocha PSB, Molina SE et al. Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. 2010;13(1):31-52., cujos resultados quantitativos já foram divulgados em outros artigos 2020. Flores MR, Ramos AP, Moraes A, Beltrami L. Associação entre indicadores de risco ao desenvolvimento infantil e estado emocional materno. Rev CEFAC. 2012. Ahead of print, p.00-00. ISSN 1516-1846. , 2121. Vendrusculo J, Bolzan GM, Crestani AH, Souza AP, Moraes AB. A relação entre o aleitamento, transição alimentar e os indicadores de risco para o desenvolvimento infantil. Distúrb Comum. 2012;24(1):41-52. Este estudo, de foco qualitativo, aborda o funcionamento de linguagem de dois meninos que chegaram ao processo terapêutico em idades diferentes.

Assim, o objetivo deste artigo é refletir sobre o funcionamento de linguagem, considerando as relações forma/sentido e os mecanismos e estratégias enunciativas na análise das manifestações da linguagem de dois sujeitos com risco para distúrbio de linguagem e para alterações no desenvolvimento.

Apresentação dos casos

Esta pesquisa está vinculada à pesquisa "Funções parentais e risco para aquisição da linguagem: intervenções fonoaudiológicas" aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade sob protocolo número do CAEE n. 0284.0.243.000-09.

Tal projeto de pesquisa realizou o acompanhamento longitudinal de um grupo de crianças a partir dos Índices de Risco ao Desenvolvimento Infantil (IRDIs) na realidade de cidade de porte médio. Para este estudo, a amostra de conveniência constitui-se de dois sujeitos na faixa etária de 2 anos, aqui nomeados como T e M. O critério de seleção foi porque ambos desenvolveram distúrbio de linguagem, e apresentaram risco ao desenvolvimento no estudo de coorte da pesquisa mais ampla. Foram excluídos, os bebês que apresentaram malformações congênitas, síndromes genéticas ou infecção congênita detectadas no período neonatal, antes do início do estudo, pois essas por si só já representariam fatores de risco para o seu desenvolvimento.

Os bebês e seus familiares foram contatados durante a realização da triagem auditiva neonatal realizada no Hospital Universitário. Nesse momento, os responsáveis foram convidados a participar e tiveram explicações detalhadas sobre os objetivos e os procedimentos da pesquisa, ressaltando-se seu direito de voluntariado e de sigilo de identidade. Quando autorizaram a pesquisa, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Os pais e bebês foram acompanhados desde o primeiro ao décimo oitavo mês de idade, por meio da aplicação dos IRDIs, de acordo com o previsto para cada faixa etária e também por meio de entrevistas continuadas. Ressalta-se que no primeiro mês de coleta foram aplicadas entrevistas acerca da experiência da maternidade2222. Schwengber DDS, Piccinini CA. Protocolo de análise da interação mãe-bebê de um ano de idade durante a interação livre. Trabalho não publicado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001. In: Depressão materna e interação mãe-bebê no final do primeiro ano de vida. Psic. Teor. E Pesq. 2004;20(3):233-40. e escala de Beck2323. Beck AT, Steer RA. Beck Depression Inventory Manual. San Antonio: Psychological Corporation, 1993. por psicólogas, avaliada a linguagem aos 12 meses e 24 meses de modo qualitativo por fonoaudiólogas. Assim, considerou-se para a análise deste artigo o histórico de cada criança no estudo de 1 a 18 meses, bem como a coleta específica realizada aos 24 meses.

Os dois meninos foram filmados com seus familiares (mãe, pai, irmãos) e com a pesquisadora na clínica escola do Curso de Fonoaudiologia, no qual se realizou a pesquisa. Pediu-se para mãe (pai e/ou irmão) que brincassem com a criança como em casa. As gravações foram analisadas e transcritas ortograficamente. Conforme Surreaux e Deus2424. Surreaux LM, Deus VF. A especificidade da transcrição com base enunciativa na clínica fonoaudiológica. Verba Volant. 2010;1(1):110-20., a transcrição de dados linguísticos nos distúrbios de linguagem é um ato enunciativo, no qual estão em jogo dois enunciadores: o que fala (na cena) e o que transcreve. Assim, na clínica de linguagem, configura-se como um recurso da escrita que permite escutar, perceber o que uma enunciação singular evoca2424. Surreaux LM, Deus VF. A especificidade da transcrição com base enunciativa na clínica fonoaudiológica. Verba Volant. 2010;1(1):110-20..

Na transcrição ortográfica da cena os sujeitos são indicados por suas iniciais T, M, as mães pela letra M, seguida da inicial dos sujeitos (MT, MM), o irmão a letra I seguida da inicial (IT), o pai de M como PM e a pesquisadora por P. Para transcrever os dados de linguagem utilizou-se as normas de transcrição adotadas pelo banco de dados Enunsil (Enunciação e Sintoma na Linguagem) da pesquisa "Enunciação e Distúrbios de Linguagem", coordenada pelo Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores, junto ao Instituto de Letras da instituição de origem1818. Bender S, Surreaux LM . Os efeitos da fala da criança: a escuta do sintoma na clínica de linguagem. Cadernos do IL (UFRGS). 2011;42:129-45.. Em cada início de transcrição é fornecido o contexto da cena enunciativa. Os atos de fala são divididos em duas/três colunas, conforme os interlocutores. As convenções de transcrição encontram-se na Figura 1.

Figura 1:
Convenções de transcrição1818. Bender S, Surreaux LM . Os efeitos da fala da criança: a escuta do sintoma na clínica de linguagem. Cadernos do IL (UFRGS). 2011;42:129-45.

A análise de linguagem das crianças realizou-se pelos mecanismos enunciativos de Silva1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009., de modo a verificar a sustentação enunciativa da criança, a partir das categorias enunciativas e seus mecanismos, a saber: 1º mecanismo enunciativo-as relações de conjunção eu-tu e de disjunção eu/tu, 2º mecanismo enunciativo-a semantização da língua e a construção da co-referência pela díade (eu-tu)/ele e 3º mecanismo enunciativo- a instauração do sujeito na língua-discurso. Também se recorreu ao trabalho de Surreaux1313. Surreaux LM. Linguagem, sintoma e clínica de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2006. para se pensar em uma hipótese de funcionamento de linguagem singular aos três casos, a partir da análise do sintoma, ou seja, do modo como o bebê pode enunciar na interlocução com adulto familiar. O trabalho de Cardoso1414. Cardoso JL. Princípios de análise enunciativa na clinica dos distúrbios de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010. propiciou a análise de linguagem a partir das relações forma/sentido e da distinção entre nível semiótico e semântico.

O relato dos casos se dará pela exposição do histórico de cada criança e por cenas enunciativas que revelam o funcionamento de linguagem das mesmas.

Resultados

A seguir são apresentados os resultados, por meio de breve histórico dos sujeitos, sobretudo em relação aos índices de risco, e de recortes de filmagem das crianças, suas mães e pesquisadora em interação.

O sujeito T.

T. nasceu de uma gravidez não planejada, pré-termo e não teve nenhuma intercorrência ao nascimento. O menino é o quarto filho de MT (27 anos) e esposo (29 anos), que têm ainda mais quatro filhos, duas meninas de (4 e 10 anos) e dois meninos (6 meses e 8 anos). A mãe não conta com auxílio de seus familiares nos cuidados do filho. Nas avaliações mostrava-se visivelmente cansada e depressiva. Todos habitam a mesma casa, e as crianças maiores frequentam a escola do bairro. A mãe de T é dona de casa e tem o 1º grau incompleto, o pai trabalha como pedreiro e tem o 2º grau incompleto.

Na primeira fase dos IRDIs, a mãe apresentou nível moderado de depressão (resultado obtido a partir de avaliação objetiva - Inventário de Beck2323. Beck AT, Steer RA. Beck Depression Inventory Manual. San Antonio: Psychological Corporation, 1993.). Havia a ausência do IRDI 2: ("A mãe fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela [manhês])". Salienta-se que quando a pesquisadora falou com o bebê utilizando o manhês, T. respondeu com sorriso e vocalizações. MT apresentou dificuldade para sintonizar sua fala com as manifestações de T., evidenciando uma falha na interpretação de suas ações, embora pudesse estabelecer a sua demanda quando chorava (IRDI 1).

Esse fato pode ser observado na Figura 2 que mostra a interação entre MT e T. A pesquisadora (P) também participou do encontro.

Figura 2:
Cena de Interação entre T, MT e P.

Considerando a contextualização enunciativa, na cena, estão presentes, MT, T., P e a avó de T. O bebê está no colo da mãe na avaliação dos IRDIs (próxima aos 4 meses). P. pede à mãe que ela converse com o bebê, como faz em casa.

Nesta cena, observa-se que a mãe não deixa turnos de "fala" para T em alguns momentos (linhas 1,2,3,4). Além disso, o tom de sua voz é agressivo, em muitas vezes reprovando, o comportamento de T. (linhas 1,4,9,11). Percebe-se que MT não estava sintonizada às demandas de T., não havendo o preenchimento de turno pelo outro (mãe) de modo sintonizado, o que se materializa como uma dificuldade no primeiro mecanismo enunciativo observado por Silva1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009., na fala sintonizada do tu (adulto) à demanda do eu (criança).

MT interpretou os gestos de T na exploração de seu rosto como uma agressão a ela. Salienta-se que na ocasião, a mãe foi convidada a participar de um grupo de mães que apresentavam sinais de depressão, porém, não achou importante participar.

Durante a segunda e terceira fases de avaliação, T. com 6 e 10 meses, respectivamente, não houve índices ausentes na observação da díade. Ao ser avaliada a quarta fase dos IRDIs, aos 13 meses, observou-se a ausência do IRDI 16 ("A criança suporta bem as breves ausências da mãe e reage às ausências prolongadas"), e 18: ("Os pais colocam pequenas regras de comportamento para a criança"). T. não ficava com ninguém além da mãe, pois chorava muito em sua ausência. Além disso, nenhuma regra foi inserida em sua educação. Na presença de estranhos, T. apegava-se mais à mãe, que também relatou que ele era amamentado em livre demanda.

Aos 24 meses de T., foi realizada nova filmagem da interação da díade e, neste dia, estava seu irmão com 8 anos (indicado na transcrição como IT). A Figura 3 apresenta recortes da filmagem realizada com o sujeito e seus familiares.

Figura 3:
Cenas de Interação entre T, MT e IT, aos 24 meses

T., MT e IT estão presentes na cena, na qual há brinquedos distribuídos pela sala. T. e IT e MT exploram os brinquedos, mas o fazem de forma superficial.

Na cena 1 da Figura 3, observa-se que houve uma melhora em relação à dificuldade de MT em dar turnos de fala ao filho, quando comparada à cena exposta na Figura 2, mas MT e IT falam quase que ao mesmo tempo (linhas 1,2,3), dando pouco tempo para que T. possa tomar uma iniciativa por conta própria, ou seja, MT e IT são diretivos no diálogo com T. (linhas 1, 6). Pode ser que tais atividades sejam pela ansiedade do encontro, e por querem mostrar o que T. consegue fazer em termos de fala à terapeuta. Nessa angústia, MT e IT dão comandos, às vezes, dúbios a T. (linhas 47, 49).

Percebe-se que, no início da filmagem, MT interage com T, tentando interpretá-lo, este por sua vez, espelha a fala da mãe ao enunciar "aô" (linhas 4,7) para "alô", reproduzindo o dizer do tu (MT) no discurso do eu (T). Ele passa da referência mostrada à falada, conforme prevê Silva1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009. no segundo mecanismo, mas há um funcionamento colocado à fala do outro. No entanto, cabe ressaltar que durante o todo da filmagem, a mãe de T. não sustenta o filho enunciativamente, por muito tempo.

Na cena 2 (Figura 3), também, nota-se algo que é comum a toda filmagem, que não há espaço para uma brincadeira mais concentrada. T, assim como seu irmão, permanece agitado durante toda a filmagem, e a linguagem do adulto não possui função reguladora de seu comportamento. Ainda, nesta cena, observa-se que a dificuldade de relação entre a díade MT-T que era evidente na primeira fase dos IRDIs, retorna em muitos momentos, como nas linhas 17 e 19 em que a mãe toma o espaço enunciativo de T. e o contém em suas ações, mostrando-se bastante irritada com o filho.

Já nas linhas 20 a 45 da cena 3 (Figura 3) percebe-se os avanços de T. no nível semiótico, pois está utilizando recursos para a realização vocal da língua, como os fonemas /k/, /p/, /v/, /t/, /m/ e a produção de sílabas, e espelhando a fala de IT. Há na cena um jogo de repetição do dizer do tu no dizer do eu, que embora previsto como estratégia enunciativa para o estabelecimento de co-referência, espera-se que não seja a única estratégia neste mecanismo, e que o diálogo não seja direcionado apenas a demonstrar para os demais presentes o que o sujeito pode enunciar em termos semióticos. Parece, portanto, que IT está mais preocupado em mostrar, à pesquisadora, o que T. pode falar do que em dialogar com ele. Não parece haver uma expectativa em IT e MT de que T tenha algo a dizer por si mesmo. Eles não proporcionam um diálogo que ancore produções de sentido, ou seja, em que a forma seja mobilizada para produzir um sentido conjunto. Quando T se manifesta espontaneamente, a mãe interpreta suas manifestações como grito. Esse fato foi observado não só durante a filmagem, mas em outros atendimentos em que a família não parecia estar preocupada com a observação do terapeuta.

Embora T. possua estratégias do primeiro e segundo mecanismos enunciativos, elas estão restritas, pois não se percebe a emergência de estratégias mais elaboradas como a combinação de palavras ou mesmo a iniciativa do diálogo por T e o reconhecimento desta iniciativa por IT e MT, esperadas para o segundo mecanismo. Em termos semióticos, há restrição em relação ao domínio dos recursos vocais, mas não há sinais fisiopatológicos, pois T não parece ter dificuldades de memorizar/reter o signo, tanto em sua dimensão vocal quanto em termos de significado.

T. compreende frases e pode, quando concentrado, entender os enunciados do interlocutor. Já no processo de semantização, observa-se que dominam estratégias em que sua fala ainda está colada à fala do outro, e limita-se a repetir a produção do outro, não sendo reconhecido quando utiliza os recursos linguísticos que possui para dizer o que deseja. De um modo geral, os diálogos não se encaminham para uma elaboração maior tanto do domínio semiótico de T., quanto com o estabelecimento de autoria em seu dizer.

O sujeito M.

M. nasceu aos 8 meses e meio de gestação de uma gravidez planejada. É o menino é o 2º filho de uma família que se constitui de sua mãe (40 anos), seu pai (33 anos), e sua irmã de 14 anos. Quanto à escolaridade, o pai tem o 1º grau completo e a mãe, o 2º grau incompleto. A mãe é dona de casa, e o pai trabalha como gesseiro. Possuem renda familiar de R$ 2000,00.

O bebê não teve nenhuma intercorrência ao nascer. Na avaliação da primeira fase dos IRDIs, M. estava com um mês de vida; a mãe estava bastante tímida durante a filmagem, mas parecia estar bem e, conforme seu relato, o bebê já procurava a voz dos pais quando falavam com ele.

Na entrevista inicial, a mãe relatou que teve depressão por um ano devido a preocupações no trabalho, mas que resolveu sair para engravidar e melhorou. Tomou medicação por poucos meses (receitada por clínico geral), parando por conta própria.

Entre um e oito meses M. não apresentou risco ao desenvolvimento. Já na terceira fase, quando estava com 12 meses, detectou-se ausência do IRDI 12 ("A criança estranha pessoas desconhecidas a ela"). Na última fase dos IRDIs, M. estava com 15 meses e muito apegado à mãe, só ficava com o pai além dela. A mãe disse que ele passou a ter medo de caminhar desde que caiu. Na avaliação só ficou no colo da mãe, não quis descer, nem brincar com as avaliadoras. M. ainda tinha livre demanda do seio à noite. Observou-se ausência do IRDI 15 ("A mãe alterna momentos de dedicação à criança com outros interesses") e 16 ("A criança suporta bem as breves ausências da mãe e reage às ausências prolongadas").

Aos 21 meses, M e sua mãe retornaram para avaliação; na Figura 4, observa-se, a interação entre a mãe (MM) e o bebê (M). Há boa alternância de turnos entre a mãe e M., que o engaja na cena. Em alguns momentos, percebe-se que MM oferta vários signos em pouco tempo, isto parece ocorrer pela ansiedade devido à quase ausência de fala de M; ele produz apenas algumas onomatopeias (linhas 8, 23).

Figura 4:
Cenas de Interação entre M, MM e PM, aos 21 meses

Na linha 2 constata-se a instanciação pelo tu (MM) de estruturas rotineiras da família para o eu (M), que preenche seu lugar enunciativo com gestos. Outro momento interessante a ser observado nesta cena, é a rejeição do M. quando a mãe coloca o telefone perto de sua orelha (linha 28).

Na cena 1, do Figura 4, MM e M brincam sozinhos na sala, com os brinquedos disponíveis. A cena 2 da mesma Figura, mostra a interação de PM e M, brincando sozinhos na sala.

Na cena 2, linha 31 (Figura 4) observa-se a presença da estratégia do primeiro mecanismo enunciativo1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009., de apresentação pelo eu (M) de estruturas sonoras indistintas a partir da convocação do tu (MM). Ainda nesta cena, observa-se boa alternância de turnos entre o pai (PM) e M. O pai demonstra menor ansiedade em relação à mãe na oferta de signos a M. Nessa cena com o pai, novamente M. recusa-se a falar ao telefone (linha 49), o que é compreensível ao se perceber que os recursos vocais de M. são muito precários.

Nota-se que tanto na cena com a mãe quanto na cena com o pai não há a criação de um tema para a brincadeira. M. vocaliza pouco, com algumas onomatopeias e prolongamentos de vogais, o que demonstra uma limitação importante inclusive nas possibilidades de balbucio. Sua compreensão é satisfatória, pois, consegue atentar aos pedidos da mãe e do pai que, por sua vez, procuram sustentá-lo (via linguagem) especialmente por nomeação de objetos. Assim, M. apresenta estratégias evolutivas iniciais, como a produção de estruturas sonoras indiferenciadas (comuns ao primeiro mecanismo enunciativo), mas o segundo mecanismo (relacionado ao estabelecimento da co-referência verbal) está ausente. Percebe-se que M. praticamente induz os pais a ocuparem turnos com nomeação na tentativa de fazer o menino falar.

Discussão

Considerando os objetivos deste artigo alguns aspectos são fundamentais: as possíveis relações entre risco ao desenvolvimento e a emergência do distúrbio de linguagem, a análise dos mecanismos e estratégias enunciativas e como emergem as relações de forma e sentido na interlocução entre os meninos e familiares, e a importância de se lançar uma hipótese de funcionamento de linguagem no processo de avaliação da linguagem dos sujeitos.

Em relação aos IRDIs, T apresentou alterações na primeira fase, o que demonstrava problemas no exercício da função materna, e na quarta fase, com comprometimento da função paterna. M., por outro lado, apresentou alterações a partir da terceira fase, na qual entra em questão o exercício da função paterna. Ambos apresentaram distúrbio de linguagem, considerado aqui como uma condição enunciativa restrita, o que comprova o valor preditivo dos IRDIs em relação a risco ao desenvolvimento1919. Kupfer MCM, Jerusalinsky AN, Bernardino LMF, Wanderley D, Rocha PSB, Molina SE et al. Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. 2010;13(1):31-52., pois, entre os aspectos instrumentais do desenvolvimento, encontra-se a linguagem. Também a presença de estados de humor materno alterados, a depressão pós-parto de MT e anterior ao parto de MM, o que demonstra a importância do acompanhamento da saúde mental da gestante, como já observado em outros estudos1212. Crestani AH, Rosa FFM, Souza APR, Pretto JP, Moro MP, Dias L. A experiência da maternidade e a dialogia mãe-filho com distúrbio de linguagem. Rev CEFAC. 2012;14(2):350-60. , 2020. Flores MR, Ramos AP, Moraes A, Beltrami L. Associação entre indicadores de risco ao desenvolvimento infantil e estado emocional materno. Rev CEFAC. 2012. Ahead of print, p.00-00. ISSN 1516-1846..

Aprofundando a relação entre os eixos alterados nos IRDIs e o observado no funcionamento de linguagem, percebe-se que em T. houve problemas com o estabelecimento de demanda (ED) e suposição de um sujeito (SS) 1919. Kupfer MCM, Jerusalinsky AN, Bernardino LMF, Wanderley D, Rocha PSB, Molina SE et al. Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. 2010;13(1):31-52.. Tais ausências foram identificadas por meio da dificuldade de a mãe sustentar uma protoconversação com seu filho. MT não conseguiu sintonizar suas expressões às de T., pareceu ligada unicamente em expressar seus sentimentos de cansaço e desânimo na relação com T. O estabelecimento da demanda é ressaltado com Kupfer1919. Kupfer MCM, Jerusalinsky AN, Bernardino LMF, Wanderley D, Rocha PSB, Molina SE et al. Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. 2010;13(1):31-52. como o eixo que embasa toda a atividade posterior de inserção do sujeito no campo da linguagem e da relação com os outros. A suposição de um sujeito (SS) refere-se a uma antecipação fundamental para o bebê acessar as significações oferecidas pela mãe aos seus apelos e de como ela o vê. Observa-se que MT, não estava sintonizada às demandas de seus filhos, e assim não conseguia atribuir sentido (via linguagem) às manifestações dele. O modo como isso emergiu na interlocução entre MT e T foi a dificuldade de preenchimento de turno por MT de modo sintonizado às manifestações de T. Como efeito na relação forma-sentido, percebe-se um desencontro nas cenas da Figura 2, em que a exploração facial de T na mãe é significada como uma agressão. O mecanismo está presente, mas com um funcionamento peculiar que irá reaparecer nas cenas de T. aos 24 meses. Em situações de distúrbio de linguagem, pode ocorrer de os significantes não encontrarem o significado, ou produzirem um encontro desarranjado2525. Souza TNU, Payão LMC, Costa RCC. Apraxia da fala na infância em foco: perspectivas teóricas e tendências atuais. Pró-Fono R Atual. Cient. 2009;21(1):75-80..

As alterações da função paterna, detectadas na avaliação de T. após 12 meses, superficializam-se em um comportamento agitado e hiperativo, já evidenciado em outros estudos2626. Kupfer MCM, Bernardino LMF . As relações entre construção da imagem corporal, função paterna e hiperatividade: reflexões a partir da Pesquisa IRDI. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. 2009;12(1):45-58.. Kupfer e Bernardino2626. Kupfer MCM, Bernardino LMF . As relações entre construção da imagem corporal, função paterna e hiperatividade: reflexões a partir da Pesquisa IRDI. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. 2009;12(1):45-58., a partir dos resultados da pesquisa multicêntrica IRDIs, observam uma relação estatisticamente significante entre o sintoma clínico dificuldade de separação dos pais, de um lado, e os sintomas clínicos agitação motora, condutas agressivas e dificuldades de aceitação da lei, de outro lado.

Também, na terceira fase dos IRDIs, o prolongamento do aleitamento por livre demanda ao seio por parte de T e MT parece ser uma forma de T. ter a mãe para si, e demonstra a dificuldade na transição alimentar e alteração do eixo função paterna, também demonstrada em estudos quantitativos2121. Vendrusculo J, Bolzan GM, Crestani AH, Souza AP, Moraes AB. A relação entre o aleitamento, transição alimentar e os indicadores de risco para o desenvolvimento infantil. Distúrb Comum. 2012;24(1):41-52..

Já no caso de M. há alterações nas fases finais da avaliação dos IRDIs, correspondente a alterações na função paterna. Embora o pai de M. esteja presente inclusive no processo terapêutico, pois foi o único a participar da consulta fonoaudiológica, enfrenta maior resistência da mãe ao corte simbiótico. Observa-se uma mãe protetora e ansiosa que tenta preencher as necessidades do filho por meio da nomeação excessiva, ou seja, falando por ele. Diferentemente de MT em que o pai se faz presente em seu discurso, no caso de M. o pai está ausente no discurso de MM.

A alteração da função paterna, nos dois casos, demonstra a dificuldade na estabilização psíquica dos meninos. Essa função, devido a um trabalho de enodamento dos três registros que ele lhe oferece: uma simbolização da falta, uma resposta ao real da angústia de castração e uma contenção imaginária para o corpo2626. Kupfer MCM, Bernardino LMF . As relações entre construção da imagem corporal, função paterna e hiperatividade: reflexões a partir da Pesquisa IRDI. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund. 2009;12(1):45-58. é fundamental para o pleno acesso ao simbolismo. Enquanto em T. a dificuldade na função paterna se superficializa na agitação motora, em M. em um retraimento visto na falta de iniciativa no brincar e na inclusão do outro no mesmo. As cenas de brincadeira são restritas nos dois casos, pois o corte simbólico não permite que as crianças transitem para uma fase de maior exploração simbólica dos objetos e pleno acesso à linguagem. Cabe ressaltar que não se está formulando uma relação de causa entre alteração da função paterna e problemas no brincar e na linguagem, mas tentando demonstrar a combinação complexa e singular que uma alteração na mesma imprime nas relações de cada menino com seus familiares.

Considerando as relações entre forma e sentido, T possui um distúrbio de linguagem em que é evidente um comprometimento maior do processo de semantização da língua e M. possui uma restrição importante tanto no estabelecimento do domínio semiótico da língua, quanto no processo de semantização dos poucos recursos que possui, o que compensa com a utilização de expressões faciais, gestos e sons não verbais2525. Souza TNU, Payão LMC, Costa RCC. Apraxia da fala na infância em foco: perspectivas teóricas e tendências atuais. Pró-Fono R Atual. Cient. 2009;21(1):75-80.. Tanto a mãe (MM) como o pai (PM) esforçam-se por tentar incluir M. em um funcionamento linguístico, mas seu domínio semiótico na época da filmagem, além de limitar sua participação no diálogo, cria uma ansiedade nos pais que provoca desencontros entre M. e os mesmos durante o diálogo, por exemplo, o excesso de nomeação da mãe em seus turnos. Esse comportamento no diálogo também foi observado em outros casos de limites biológicos para a linguagem em que as mães apresentavam depressão e/ou ansiedade1212. Crestani AH, Rosa FFM, Souza APR, Pretto JP, Moro MP, Dias L. A experiência da maternidade e a dialogia mãe-filho com distúrbio de linguagem. Rev CEFAC. 2012;14(2):350-60.. Nos dois casos existe restrição de mecanismos e estratégias enunciativas1515. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores; 2009., demonstrando que o funcionamento de linguagem está por anunciar um sintoma, ou seja, um distúrbio de linguagem.

Na análise dos dois casos, fica evidente a singularidade de cada caso no funcionamento de linguagem conforme aponta Surreaux1313. Surreaux LM. Linguagem, sintoma e clínica de linguagem [Tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2006.. Para Surreaux e Lima2727. Surreaux LM, Lima TM. Relações possíveis entre a Linguística da Enunciação e a Clínica de Linguagem. ReVEL. 2011;9:356-70. falar desta singularidade implica considerar a particularidade por meio da qual um determinado falante fará seu percurso na apropriação de uma dada língua. T. e M. apresentam comportamentos singulares nas interações com MT, IT, MM e MP, que apontam para a necessidade de lançar uma hipótese de funcionamento de linguagem. Esta inclui não apenas o domínio semiótico da língua, como também o modo como T e M utilizam seus recursos linguísticos na semantização da língua, quando em interlocução com seus familiares. A análise dos mecanismos e estratégias enunciativas permitiram identificar restrições no processo de apropriação da linguagem pelos sujeitos em interlocução com a família, que parecem fundamentais na discussão da proposta terapêutica, pois os distintos comportamentos dos meninos e da família demandarão distintas abordagens em sessões conjuntas entre familiares e sujeitos.

Conclusão

Os dois casos permitem pensar que a detecção precoce de risco favorece o cuidado precoce em linguagem. De como o bebê enuncia e, da análise das ações do interlocutor, no período de aquisição da linguagem, pode-se perceber a emergência do sintoma de linguagem.

Salienta-se ainda a necessidade de se considerar cada caso em sua forma particular de funcionamento da linguagem, pois os recursos para relacionar forma e sentido, bem como o uso de mecanismos enunciativos de aquisição da linguagem emergiram de modo singular e com estratégias específicas, por vezes restritas, para cada sujeito e se relacionam com as ações dos interlocutores. Isto demonstra a necessidade de identificar uma hipótese de funcionamento de linguagem no processo de avaliação da linguagem infantil, para se pensar a terapêutica de modo a abranger os sujeitos e seus familiares.

Observa-se também a importância da detecção precoce de risco para o desenvolvimento a partir dos índices de risco ao desenvolvimento infantil, não apenas para aspectos psíquicos, mas sua correlação com o processo de aquisição da linguagem. O acompanhamento de bebês por tais índices pode manter os profissionais de saúde alertas ao risco de déficits de desenvolvimento associados aos de linguagem, por meio da protoconversação inicial e da observação dos sentidos veiculados entre o bebê e seus familiares.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2013
  • Aceito
    13 Nov 2013
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