RESUMO
O princípio da dignidade humana adquiriu papel central nas constituições nacionais e nos tratados internacionais modernos e é frequentemente utilizado como base para decisões judiciais sobre os mais diversos assuntos. Apesar disso, o presente artigo defende que seu conteúdo é demasiadamente impreciso, o que reduz a objetividade dos documentos em que é empregado – um problema que fica evidente em ações envolvendo problemas distributivos, tais como as demandas judiciais por medicamentos. A primeira seção apresenta duas distinções: a diferença entre o sentido hierárquico e o sentido igualitário da dignidade e a diferença entre a função protetora e a função substancial dessa noção. As seções seguintes contêm as críticas à ambiguidade do conceito de dignidade e a proposta de Luís Roberto Barroso (2013) sobre como lidar com essa questão. A quarta seção aborda alguns problemas da proposta de Barroso e oferece em seu lugar três definições da dignidade humana: (a) uma partindo de alguma propriedade intrínseca, (b) outra baseada nas condições externas e (c) outra partindo de uma propriedade adquirida (a autonomia pessoal). A primeira definição é considerada insatisfatória dada sua vulnerabilidade à arbitrariedade e ao uso abusivo. Diante isso, a conclusão é que a dignidade humana deve ser definida a partir de uma combinação das duas últimas definições, isto é, da autonomia pessoal e das condições para desenvolvê-la e exercê-la.
Dignidade humana; autonomia pessoal; mínimo existencial; direitos fundamentais; Direito Constitucional
ABSTRACT
The principle of human dignity acquired a central role in modern national constitutions and international treaties and is often used as a foundation for sentences on a variety of issues. Nonetheless, the present paper argues that its content is very imprecise, and thus limits the objectivity of the documents and sentences which employ this notion – a problem which is evident in processes dealing with distributional problems, like the judicial processes to obtain prescription drugs from the State. The first section presents two relevant distinctions: the hierarchical versus the egalitarian meaning of human dignity and the protective versus the substantial function of this notion. The next sections contain criticisms to the ambiguity of concept of dignity and the proposal of Luís Roberto Barroso (2013) on how to circumvent this problem. The fourth section deals with some problems in Barroso’s proposal and offers instead three definitions of human dignity: (a) one based on some intrinsic property, (b) another one based on external conditions, and (c) another one based on an acquired property (personal autonomy). The first definition is considered unsatisfactory given its vulnerability to arbitrariness and excessive use. Thus, the conclusion is that human dignity should be based on the last two definitions, that is, personal autonomy and the conditions required to develop and deploy it.
Human dignity; existential minimum; personal autonomy; fundamental rights; Constitutional law
INTRODUÇÃO
A defesa da dignidade humana ocupa lugar central no discurso jurídico contemporâneo. É com ela que se inicia o esforço para evitar a repetição das atrocidades da Segunda Guerra Mundial. O primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (ONU, 1948). Ela é também um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da Constituição Federal – CF) e também a finalidade do sistema econômico brasileiro (“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, art. 170, da CF, grifo nosso).
O apelo à dignidade tem também sido recorrente nas decisões de diversos tribunais sobre diferentes matérias, como aquelas relacionadas à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (ADPF 54/DF), ao reconhecimento da união homoafetiva (ADPF 132/RJ e ADI 4.227/DF), às pesquisas com células-tronco embrionárias (ADI 3.510/DF), à proibição de trabalho escravo (RE 398.041/PA), dentre outras. Por exemplo:
[...] ignorar a existência e a validade jurídica das uniões homoafetivas é o mesmo que as pôr em situação de injustificada desvantagem em relação às uniões estáveis heterossexuais. Compete ao Estado assegurar que a lei conceda a todos a igualdade de oportunidades, de modo que cada um possa conduzir sua vida autonomamente segundo seus próprios desígnios e que a orientação sexual não constitua óbice à persecução dos objetivos pessoais. [...] Essa ordem de ideias remete à questão da autonomia privada dos indivíduos, concebida, em uma perspectiva kantiana, como o centro da dignidade da pessoa humana. [...] [a] previsão de que o indivíduo mereça do Estado e dos particulares o tratamento de sujeito e não de objeto de direito, respeitando-se-lhe a autonomia, pela sua simples condição de ser humano. (STF, ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, j. 5-5-2011, Diário da Justiça Eletrônico de 14-10-2011, grifo nosso).
Contudo, o apelo recorrente à defesa da dignidade como fundamento para as decisões judiciais pode levar a exageros, justamente porque a proteção à dignidade das pessoas é consensual. Por isso, o recurso a ela está sujeito a ser abusado, a ser utilizado em casos em que o que está em jogo é menos do que a dignidade da pessoa.
Um tipo de ação especialmente vulnerável a essa tendência são as demandas por medicamentos não previstos nas listas do Sistema Único de Saúde (SUS), por serem recém-lançados, experimentais ou sem comprovação de eficácia ou de custo-efetividade (LOPES; FRIAS, 2014LOPES, Nairo; FRIAS, Lincoln. A política pública de medicamentos e sua judicialização. Caderno de Estudos Interdisciplinares, v. 1, n. 1, p. 27-41, 2014.). Todavia, em muitas situações, pacientes e médicos consideram que um desses medicamentos é capaz de salvar o paciente e então exigem que o Estado o forneça. E, nesse momento, seus advogados defendem que seu não fornecimento ofenderia a dignidade do paciente.
Porém, os recursos orçamentários são escassos. A Advocacia Geral da União estimou que os gastos da União com esse tipo de ação foram de cerca de 355 milhões de reais em 2012 (ao passo que em 2005 foram apenas cerca de 2,5 milhões) (AGU, 2012ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (AGU). Intervenção judicial na saúde pública. Panorama no âmbito da Justiça Federal e apontamentos na seara das justiças estaduais. Brasília: Advocacia Geral da União; Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, 2012. Disponível em: http://u.saude.gov.br/images/pdf/2014/maio/29/Panorama-da-judicializa——o—-2012—-modificado-em-junho-de-2013.pdf. Acesso em: 9 jul. 2015.
http://u.saude.gov.br/images/pdf/2014/ma...
, p. 16). A controvérsia em relação a essas ações não está apenas no montante dos gastos, em sua imprevisibilidade ou na tensão gerada entre Poder Judiciário e Poder Executivo, mas também no fato de que, muitas vezes, atender ao pedido de um paciente pode significar deixar de fornecer serviços para milhares de pessoas.
Entretanto, muitas vezes a suposta defesa da dignidade humana é considerada mais importante do que essas razões contrárias:
Os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CFR) e da preservação da saúde dos cidadãos em geral (art. 6º da CRF) impõem ao Estado e ao Município a obrigação de fornecer, o medicamento e insumo necessitados por pessoa hipossuficiente, uma vez comprovada a necessidade. Violado um direito subjetivo fundamental, não há que se falar em ofensa aos princípios da isonomia, da tripartição de funções estatais e da discricionariedade da Administração. No quadro da tutela do mínimo existencial, não se justifica inibição à efetividade do direito ofendido sob os escudos de falta de receituários do SUS, de não inclusão do medicamento necessitado em lista oficial, de limitações orçamentárias ou de aplicação da teoria da reserva do possível. (TJMG, Ap Cível/Reexame Necessário 1.0145.11.058939-0/002, Rel. Des. Marcelo Rodrigues, 2ª Câmara Cível, j. 25-6-2013, Diário do Judiciário Eletrônico de 5-7-2013).
As ações e serviços na área de saúde têm por diretriz o atendimento integral do indivíduo, o que consiste no fornecimento de medicamentos necessários à preservação da vida, ainda que não sejam padronizados pelo SUS. Conforme relatório médico subscrito por profissional inscrito no Conselho Regional de Medicina, não há no país insumo semelhante ou genérico, o que corrobora a imprescindibilidade do suplemento. Os princípios informadores da administração pública e a cláusula da reserva do possível não se aplicam quando se está diante de direitos fundamentais, em que se busca preservar a dignidade da vida humana. (TJMG, Ap Cível/Reexame Necessário 1.0145.12.031069-6/002, Rel. Des. Raimundo Messias Júnior, 2ª Câmara Cível, j. 13-8-2013, Diário do Judiciário Eletrônico de 26-8-2013, grifo nosso).
[...] o art. 1º, incisos II e III, da Constituição Federal, diz que o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, dentre tantos, é zelar pela dignidade humana e pela cidadania. Não há dignidade humana nem cidadania mais forte a ser zelada pelo Estado do que proporcionar todos os meios que sejam possíveis a quem necessita da saúde, em uma situação como a descrita, para que haja uma tentativa de solução. (STJ, MS n. 8.895/DF, Rela. Mina. Eliana Calmon, Diário da Justiça Eletrônico de 7-6-2004).
À luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, valor erigido como um dos fundamentos da República, impõe-se a concessão dos medicamentos como instrumento de efetividade da regra constitucional que consagra o direito à saúde. (STJ, AgRg no REsp 950.725/RS, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 6-5-2008, Diário da Justiça eletrônico de 18-6-2008).
[...] embora o Sistema Único de Saúde não forneça os medicamentos de que tratam as decisões impugnadas, eles são absolutamente necessários para que os portadores de Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN) tenham uma vida minimamente digna. (STF, Suspensão de Liminar n. 558/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 15-10-2012, Diário da Justiça Eletrônico de 23-10-2012).
O objetivo do presente artigo não é avaliar essas decisões. Seu propósito é mostrar que, apesar de desempenhar uma função imprescindível, a noção de dignidade está sujeita a diversas imprecisões, o que leva a arbitrariedades em alguns casos. Diante disso, seria mais adequado interpretar o princípio da dignidade humana como redutível às ideias de igualdade de consideração e de respeito à autonomia pessoal, permitindo que ele desempenhasse seu papel e evitando diversos dos abusos e imprecisões a que tem estado sujeito.
A próxima seção mostra que a ideia de dignidade surgiu na Roma antiga com um sentido marcadamente hierárquico e baseado nas condições externas. Foi apenas na modernidade que o princípio adquiriu o sentido oposto, de valor intrínseco e anti-hierárquico, igualitário. Também são distinguidas duas funções do apelo à dignidade, uma função protetora e uma função substancial. A segunda seção apresenta as críticas à noção de dignidade (sua vulnerabilidade a usos arbitrários e sua redutibilidade à autonomia pessoal) e a resposta de Luís Roberto Barroso a essas críticas, cuja proposta é definir a dignidade humana a partir de três elementos (o valor intrínseco, a autonomia e o valor comunitário). A seção seguinte lida com algumas limitações da proposta de Barroso, defendendo que a ideia de dignidade é um conceito polissêmico e que pode ser definido de três maneiras: a definição intrínseca (inevitavelmente arbitrária), a definição a partir de condições exteriores (importante, porém incompleta) e a definição a partir de um atributo adquirido (provavelmente, a autonomia pessoal). Em nossa proposta, a dignidade deve ser compreendida como uma combinação das duas últimas definições: a posse da autonomia pessoal e das condições para desenvolvê-la e exercê-la.
1 As duas funções da dignidade
Ao longo do século XX a dignidade da pessoa humana se tornou um princípio presente em diversos documentos constitucionais e tratados internacionais, começando pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e se espalhando pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) (1976) e pelas constituições de Itália (1947, art. 3º), Alemanha (1949, art. 1º), Portugal (1976, art. 1º), Espanha (1978, art. 10), Grécia (1975, art. 7º), Peru (1979, art. 1º), Chile (1980), Paraguai (1992, art. 1º), Bélgica (após a revisão de 1994, art. 23) e Venezuela (1999, art. 3º), dentre diversos outros pactos, tratados, declarações e constituições. O conteúdo dos textos é bastante semelhante. Em geral, eles dizem que as pessoas têm a mesma dignidade, que esse é o parâmetro principal da ação estatal e/ou que o objetivo principal do Estado é promover a dignidade humana, como se vê na Constituição Brasileira de 1988:
Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 9 jul. 2015.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con... , grifo nosso).
Contudo, a ideia de dignidade não surgiu no século XX e nem sempre esteve associada aos direitos humanos ou fundamentais. No período romano ela se referia à qualidade de quem possuía certas ocupações e posições públicas. Foi apenas durante a modernidade que ela passou a se referir a um valor possuído por todas as pessoas. Essa diferenciação permite separar os sentidos pré-moderno e contemporâneo de dignidade (BARROSO, 2013BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013., p. 14).
O sentido pré-moderno, ou a visão hierárquica da dignidade, estabelecido desde a Roma antiga até o surgimento do Estado liberal, identifica a dignidade com ostatus pessoal dos indivíduos, sua posição social e sua integridade moral. A dignidade qualificava certas instituições, como o soberano, a coroa e o Estado, servindo para classificar os indivíduos entre superiores e inferiores. Um exemplo do emprego da palavra nesse sentido é a Constituição brasileira de 1824, a qual mencionava apenas a dignidade da nação, do imperador e de sua esposa (SARLET, 2013SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao art. 1º, III. In: CANOTILHO, José Joaquim G. et al. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 121-128., p. 123).
Em função do status das pessoas e das instituições, os súditos deveriam respeitá-las caso não quisessem sujeitar-se a sanções. Havia uma quantificação da dignidade, estabelecendo pessoas mais ou menos dignas. Portanto, nem todos os indivíduos eram “dignos”, apenas aqueles que ocupavam certos cargos ou que possuíam certas qualidades. Como se pode ver, essa claramente não é a concepção de dignidade mais utilizada atualmente.
A versão moderna da dignidade se desenvolveu a partir de três marcos fundamentais: (a) o marco religioso, resultado da tradição judaico-cristã; (b) o marco filosófico, a tradição ligada ao Iluminismo; e (c) o marco histórico, uma resposta aos atos da Segunda Guerra Mundial (BARROSO, 2013BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013., p. 14-15). Da primeira tradição vem a ideia de que os seres humanos ocupam um lugar especial na realidade porque foram feitos à imagem e semelhança de um ser superior.
Já o segundo marco fornece a principal justificativa não religiosa da dignidade da pessoa humana, sintetizada pelo filósofo iluminista Immanuel Kant ainda no século XVIII. Segundo ele (KANT, 1980, p. 74-78), o ser humano possui dignidade porque é capaz de dar fins a si mesmo, em vez de se submeter às suas inclinações. Por isso, ele deve ser visto como um fim em si mesmo, não como meio para a realização de projetos alheios. Essa capacidade de dar normas a si mesmo é aautonomia, em contraposição à heteronomia.Mas, para que não se reduza às suas inclinações, é preciso agir de acordo com a razão, de acordo com o dever, isto é, segundo o imperativo categórico, de maneira que a máxima de sua vontade possa ser tomada como lei universal (KANT, 1980KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980., p. 74-77).
Segundo Kant, a dignidade é a característica do que não tem preço, isto é, do que não pode ser trocado por nada equivalente. E o fundamento da dignidade é a autonomia, a capacidade de dar leis a si mesmo, em outras palavras, a moralidade entendida como a capacidade de agir de acordo com a lei moral:
Ora a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador no reino dos fins.Portanto a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no trabalho têm um preço venal; a argúcia de espírito, a imaginação viva e as fantasias têm um preço de sentimento; pelo contrário, a lealdade nas promessas, o bem-querer fundado em princípios (e não no instinto) têm um valor íntimo. A natureza bem como a arte nada contêm que à sua falta se possa pôr em seu lugar, pois que o seu valor não reside nos efeitos que delas derivam, na vantagem e utilidade que criam, mas sim nas intenções, isto é nas máximas da vontade sempre prestes a manifestar-se desta maneira por ações, ainda que o êxito as não favorecesse. [...] Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. (KANT, 1980KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980., p. 78, grifos nossos).
Em resumo, para Kant a “dignidade da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legislação” (KANT, 1980, p. 85) e, por isso, “a autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional” (KANT, 1980KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980., p. 79).
Por último, o terceiro marco, o histórico, refere-se ao fato que a dignidade da pessoa humana passou a ser prevista em diversos documentos após as atrocidades do fascismo e do nazismo como forma impedir que elas se repetissem. Isso pode ser verificado nos documentos citados no primeiro parágrafo desta seção.
Essas três tradições levaram à ideia de que a dignidade é uma propriedade que as pessoas possuem simplesmente pelo fato de pertencerem à espécie humana (BITTAR, 2015BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015., p. 42). Tal propriedade justificaria a exigência de que os interesses fundamentais das pessoas fossem protegidos. Esse é o raciocínio por detrás do apelo inaugural à dignidade contemporaneamente, o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (ONU, 1948). Há aqui o rompimento com a visão hierárquica da dignidade, pois no sentido pré-moderno não seria possível dizer que todos possuem dignidade, já que dignos eram aqueles que ocupavam lugares privilegiados na escala social.
O art. 1º da Declaração Universal oficializa, portanto, a visão igualitária da dignidade humana: ela é agora a propriedade que une todas as pessoas, não a que as diferencia entre si. Sua função não é mais identificar aqueles que merecem mais poder, mas sim impedir que algum grupo de pessoas se julgue inerentemente melhor do que outros grupos, como aconteceu com os nazistas em relação aos judeus, ciganos e portadores de necessidades especiais. Trata-se dafunção protetora da dignidade, que funciona como um limite à atuação do Estado e da sociedade, protegendo, consequentemente, direitos fundamentais. Sarlet (2010SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010., p. 135) se refere à essa função como “proteção pela dignidade”, referindo-se ao uso desse princípio como limite à restrição dos direitos fundamentais.
O uso comum que se faz da função protetora é o de proteger o núcleo essencial de determinado direito fundamental que eventualmente deva sofrer alguma restrição. A dignidade delimita o núcleo intangível desse direito fundamental, ideia que encontra expressa previsão, por exemplo, no Texto Constitucional alemão, em seu art. 1, I: “A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público.”
Essa função protetora, ou de defesa, é provavelmente a razão pela qual o princípio da dignidade humana foi adotado pelas constituições e tratados contemporâneos, que fez com que o respeito à dignidade humana se tornasse um valor universal. Esse uso do conceito é legítimo e não é a intenção deste artigo argumentar contra ele. A intenção aqui é mostrar que o apelo à noção de dignidade humana, para além dessa função, é inadequado, principalmente um uso que se pode chamar de função substancial do apelo à dignidade humana, no qual ela seria capaz de indicar quais fatores são necessários para que alguém seja considerado digno.
A função substancial é tratada na literatura jurídica constitucional como a indicadora das tarefas do Estado na promoção da dignidade, assumindo notávelstatus positivo. Desse modo, o Estado passaria a ter obrigação de promover os meios necessários para se alcançar a dignidade, bem como de afastar os obstáculos que impeçam as pessoas de viver com dignidade (SARLET, 2010SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010., p. 127). Estaria relacionada, evidentemente, à promoção dos direitos fundamentais de natureza social, que são aqueles que impõem uma obrigação de fazer ao Estado, a exemplo dos direitos à saúde, à educação, à seguridade social, ao trabalho, dentre outros.
Em resumo, dizer que todos têm a mesma dignidade significa dizer que todos merecem que seja dada a mesma consideração a seus interesses (a função protetora), mas a noção não é suficientemente objetiva para identificar a quais prestações outras pessoas ou o Estado são obrigados para que a dignidade de alguém seja respeitada (a função substancial). Essa segunda função é cumprida com mais precisão pelas ideias de igualdade de consideração e respeito à autonomia, como será defendido na terceira seção. Antes, é preciso identificar melhor quais as deficiências do conceito de dignidade humana em sua função substancial.
2 Imprecisão do conceito de dignidade humana e abusos em sua utilização
O apelo à dignidade é muito comum em debates bioéticos (aborto, eutanásia, células-tronco, clonagem, cirurgia para mudança de sexo, autópsia, transplante de órgãos etc.). Por isso, é também na literatura bioética que apareceram as críticas mais contundentes a esse conceito. Para Macklin (2003MACKLIN, Ruth. Dignity is a useless concept. British Medical Journal, London, n. 327, 2003., p. 1419-1420), a dignidade é um conceito “inútil” para a bioética e pode ser substituído sem qualquer perda de conteúdo pelo conceito de autonomia pessoal, que tem a vantagem de ser mais preciso. A defesa da dignidade seria “mero slogan” e uma “repetição vaga de noções já existentes”. De acordo com ela, o uso corriqueiro do termo “dignidade” como fundamento para se evitar determinadas práticas médicas permanece apenas por influência da religião, especialmente da Igreja Católica.
De acordo com essa crítica, o problema com a noção de dignidade é que, como não há uma delimitação clara do que é necessário ser respeitado para que se considere que a dignidade humana foi respeitada, é possível que haja quem considere que o sexo antes do casamento ofenda a dignidade do casal, que relações sexuais com pessoas do mesmo sexo ofenda a dignidade de quem as praticou, que as autópsias e o uso de cadáveres em aulas didáticas ofenda a dignidade dos donos desses corpos, que a reprodução assistida ofenda a dignidade de quem ainda não nasceu, dentre outros casos. Inclusive, se, por um lado, há quem considere que o suicídio retire a dignidade do suicida, por outro, os defensores da eutanásia consideram que ela é apenas uma expressão do direito de “morrer com dignidade” (pois a eutanásia voluntária – ou suicídio assistido – acontece quando se ajuda alguém a morrer para evitar uma vida considerada inaceitavelmente ruim pela própria pessoa que vai morrer).
Segundo Macklin (2003MACKLIN, Ruth. Dignity is a useless concept. British Medical Journal, London, n. 327, 2003., p. 1419-1420), nesses casos, o que se consegue com o apelo à dignidade seria conseguido de maneira mais simples apelando-se ao respeito pela autonomia das pessoas, um conceito mais claro do que a dignidade porque não apela a uma propriedade intrínseca sobre a qual não se oferecem explicações adicionais. Segundo a definição kantiana de dignidade (adotada por Barroso e outros, como se verá abaixo), a autonomia é mesmo o elemento central da dignidade. Contudo, muitos autores (inclusive Barroso) acrescentam à ideia de autonomia a ideia de valor intrínseco, que é o objeto da crítica de Macklin, pois é a parte mais obscura da noção de dignidade.
A diferença está em que alguns pesquisadores consideram que é possível ter dignidade sem ter autonomia, desde que se considere que a entidade em questão possua valor intrínseco (p. ex., o caso do feto, do cadáver e do paciente em estado terminal), enquanto outros, como Macklin, consideram que só faz sentido falar em dignidade quando há autonomia ou a expectativa dela (como no caso de alguém dormindo ou de uma criança). Para essa segunda vertente, dado que o segundo conceito é mais claro do que o primeiro, é melhor se restringir ao conceito de autonomia – atitude predominante entre os pesquisadores acadêmicos na área de bioética.
Os contornos da dignidade humana são tão imprecisos que, durante julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministro Cezar Peluso defendeu que as “brigas de galo” deveriam ser proibidas sob o argumento de que, além de causar maus-tratos aos animais, essa prática
ofende também a dignidade da pessoa humana porque, na verdade, ela implica de certo modo um estímulo às pulsões mais primitivas e irracionais do ser humano [...] a proibição também deita raiz nas proibições de todas as práticas que promovem, estimulam e incentivam essas coisas que diminuem o ser humano como tal e ofendem, portanto, a proteção constitucional, a dignidade do ser humano. (STF, Voto do Min. Cezar Peluso na ADI 1856, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 26-5-2011, Diário da Justiça Eletrônico de 14-10-2011, grifo nosso).
Há também diversas decisões baseadas na ideia de que o endividamento financeiro excessivo ofende a dignidade humana. Por exemplo:
[...] A falta de cautela quando da concessão de crédito pode levar o consumidor ao “superendividamento” e, nesses casos, mormente quando o desconto do valor dos empréstimos é efetuado em folha de pagamento ou conta salário, é medida abusiva e contrária à dignidade da pessoa humana quando tais descontos ultrapassem limites que retirem do devedor valores necessários à sua subsistência mínima e de sua família. (TJRJ, Ap. n. 0031316-43.2011.8.19.0001, 13ª Câmara Cível, Des. Rel. Valeria Dacheux, j. 29-4-2013, Diário da Justiça Eletrônico de 31-01-2014, grifo nosso).
Vale citar ainda o caso dos tratamentos de retinose pigmentar (uma anomalia degenerativa da retina) realizados em Cuba, cujos procedimentos eram pagos pelo SUS. Os tratamentos foram concedidos pelo Judiciário até aproximadamente o ano de 2004, época em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) mudou seu posicionamento, passando a entender, com base em Parecer Técnico do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, que o tratamento em Cuba não teria sua eficácia comprovada.
A decisão que negou ao cidadão brasileiro o direito ao tratamento e ao custeio de despesas de viagem até Cuba não foi unânime, contando com dois votos vencidos. Em um deles (Ministro José Delgado), o argumento utilizado para a concessão do pedido estava baseado na dignidade da pessoa humana:
[...] o art. 1º, incisos II e III, da Constituição Federal, diz que o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, dentre tantos, é zelar pela dignidade humana e pela cidadania. Não há dignidade humana nem cidadania mais forte a ser zelada pelo Estado do que proporcionar todos os meios que sejam possíveis a quem necessita da saúde, em uma situação como a descrita, para que haja uma tentativa de solução.
Não me impressiona a discussão científica a respeito porque não é o que está em jogo. O que me surpreende é que um cidadão está rigorosamente em vias de ficar cego, se já não ficou, sem direito à luz, sem direito ao sol, enfim, ao mínimo direito do cidadão, que é a visão. Concedo a segurança. (STJ, Voto do Min. José Delgado no MS n. 8.895/DF, Rela. Mina. Eliana Calmon, Diário da Justiça de 7-6-2004, p. 151, grifo nosso).
Como se pode notar nesse voto, além da dificuldade de decidir quando há ofensa à dignidade, há outro elemento que torna o conceito de dignidade humana muito problemático: sua tendência a ser utilizado de forma absoluta, como capaz de encerrar qualquer discussão, pois tem mais força do que todas as outras considerações. Isso fica claro na frase “não me impressiona a discussão científica a respeito porque não é o que está em jogo. O que me surpreende é que um cidadão está rigorosamente em vias de ficar cego”.
A literatura jurídica contemporânea se alinha a esse mesmo entendimento, ao considerar, de forma pacífica, o princípio da dignidade da pessoa humana como o “valor máximo” ou o “supremo alicerce” do ordenamento jurídico brasileiro (TEPEDINO, 2001TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001., p. 48; MORAES, 2003MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003., p. 83; SILVA, 1998SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 212, p. 89-94, abr.-jun. 1998.) e da ordem jurídica internacional (PIOVESAN, 2005PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição brasileira de 1988. Revista dos Tribunais. São Paulo, n. 833, p. 41-53, mar. 2005.). O problema em utilizar o termo de maneira absoluta é que, ainda que a disposição a sacrificar qualquer coisa em favor da mínima chance de salvar alguém seja adequada no âmbito privado, essa não é a atitude mais adequada para lidar com recursos públicos escassos. Nesses casos, a relação custo-efetividade e a equidade devem também ser levadas em consideração, sob pena de desperdiçar recursos públicos ou privilegiar alguns cidadãos em detrimento de outros – ofendendo, portanto, a própria igualdade de consideração, a motivação por detrás do respeito à dignidade humana.
3 A proposta de Luís Roberto Barroso
Em vista de tais imprecisões e abusos, Barroso (2013BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013., p. 72) propõe três elementos para garantir a unidade e a objetividade da dignidade humana: (a) o valor intrínseco, (b) a autonomia e (c) o valor comunitário. O valor intrínseco, oposto a um valor adquirido, possui caráter ontológico, pois está presente na natureza do ser humano, do ser enquanto ser, independentemente de suas determinações particulares. Essa perspectiva toma o indivíduo como um fim em si mesmo e, em última análise, abstrai o ser humano de seus atributos pessoais (aplica-se tanto a recém-nascidos quanto a pessoas senis ou com determinado grau de deficiência mental). A dignidade é um atributo que nasceria com a pessoa e que não poderia ser perdido, alienado ou renunciado.
O segundo elemento que compõe a dignidade, segundo Barroso (2013BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013., p. 81), é a já mencionada noção kantiana deautonomia (ou autonomia pessoal), o fato de que as pessoas são capazes de dar normas para si mesmas. Esse elemento dá dignidade às pessoas na medida em que elas são capazes de agir livremente, o que significa buscar realizar seus projetos de vida da forma que melhor desejarem, de acordo com sua visão do que é o bem e o correto, sendo capazes de resistir às tentações, coisa que os animais não humanos supostamente não são capazes de fazer.
O terceiro elemento da dignidade apresentado por Barroso (2013BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013., p. 87) é o valor comunitário, o papel da comunidade e do Estado no estabelecimento de crenças e metas coletivas. Nesse sentido, a dignidade seria uma restrição à autonomia individual, uma limitação a direitos e liberdades individuais em prol da dignidade de outros e de valores socialmente compartilhados. De acordo com Barroso, essas intervenções do Estado e da comunidade são legítimas apenas quando há um direito fundamental de outras pessoas sendo atingido ou há dano potencial para a própria pessoa, pressupondo que haja consenso social sobre a matéria.
A proposta de Barroso torna coerentes diversas ideias antes esparsas. Entretanto, como mostra a seção seguinte, há motivos para considerar que o princípio da dignidade humana deva ser substituído pelas noções de igualdade de consideração e respeito à autonomia. Mais especificamente, serão enfatizadas a vacuidade da noção de valor intrínseco, a redutibilidade da dignidade à autonomia e o fato de que o valor comunitário é uma limitação da dignidade, não um componente seu.
4 Uma nova proposta
Em vez de propor, como Barroso, que a ideia de dignidade tem um significado e três componentes, é mais adequado entender que ela possui três significados diferentes, mas inter-relacionados: a definição a partir de uma propriedade intrínseca, a definição a partir de condições externas (resumidas na ideia de mínimo existencial) e a definição a partir de propriedades adquiridas (em especial, a autonomia pessoal). Além dessa redefinição, nossa proposta inclui a indicação de que é mais adequado definir tecnicamente a dignidade humana sem utilizar o primeiro significado (mas reconhecendo que ele é empregado na linguagem comum e de alguns pesquisadores), preferindo uma combinação dos dois outros significados (o mínimo existencial e a autonomia pessoal).
4.1 A dignidade como uma propriedade intrínseca
A primeira definição da dignidade humana defende que as pessoas são dignas em si mesmas, não por causa de alguma qualidade que se esforçaram para ter ou por causa das condições em que vivem. Nessa versão, as pessoas não precisam fazer nada para se tornarem dignas e também nunca perdem sua dignidade (embora elas possam não ter a sua dignidade reconhecida por outros indivíduos). O que confere dignidade às pessoas é alguma propriedade intrínseca a elas, por exemplo, pertencer à espécie humana, a determinada família, ter sangue azul, ser filha de Deus ou ter o potencial para escrever poesias.
Suponhamos que o que confere dignidade às pessoas é o fato de pertencerem à espécie humana. Sob essa definição, mesmo depois de comandar a morte de milhões de inocentes, Hitler ainda teria dignidade. Em contrapartida, definida dessa maneira, a dignidade seria imediatamente perdida (ou melhor, nunca teria sido possuída) caso se descobrisse que a pessoa não pertence à espécie humana, apesar de possuir características semelhantes às de outras pessoas consideradas dignas. Isto é, Nelson Mandela seria considerado indigno caso se descobrisse que ele possuía cromossomos diferentes do que é próprio dos seres humanos.
Como se pode observar, há grande arbitrariedade na definição intrínseca da dignidade (e no valor intrínseco, previsto na proposta de Barroso). Mas é exatamente ela que foi utilizada na Declaração Universal (“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”). Ela é claramente uma tentativa de destruir a visão hierárquica da dignidade, a visão pré-moderna, segundo a qual há indivíduos com mais valor do que outros. Sua função é protetora, isto é, impedir que alguns indivíduos sejam considerados intrinsecamente piores – e por isso sejam tratados de maneiras que seriam inaceitáveis em relação aos brancos, cristãos, arianos, homens, saudáveis ou qualquer outro grupo que esteja no poder.
Contudo, a dignidade como uma propriedade intrínseca não possui conteúdo positivo. Por isso, ela seria melhor expressa de forma negativa, por exemplo, “nenhum indivíduo ou grupo é superior a outros” ao invés de “todos possuem dignidade”. Ela é uma forma retoricamente mais forte de defender que os interesses de todos devem ter o mesmo valor. Em outras palavras, deve haverigualdade de consideração. Portanto, apesar de normalmente ser formulada como uma afirmação descritiva positiva (todos possuem dignidade), seu verdadeiro significado é negativo e normativo (ninguém deve ser tratado como superior).
4.2 A dignidade como resultado de propriedades extrínsecas: o mínimo existencial
A noção de dignidade é tão polissêmica que é possível dar-lhe uma definição partindo de propriedades extrínsecas ao invés de intrínsecas: a dignidade entendida como reflexo das condições externas, do padrão de vida. Nesse caso, alguém se torna indigno (isto é, perde sua dignidade) caso viva em certas condições, que normalmente chamamos de “degradantes”. Considere, por exemplo, um mendigo que não se importa mais em tomar banho, que come restos de comida jogados no chão, urina em si mesmo e dorme no meio dos cachorros na rua. Na definição intrínseca de dignidade, esse indivíduo continua digno, ele continua merecendo igualdade de consideração, por exemplo, seu voto continua tendo o mesmo valor que o voto do presidente da República. Entretanto, segundo a definição extrínseca, esse indivíduo perdeu sua dignidade, sua vida é indigna de um ser humano.
É esse sentido da dignidade que está por detrás de expressões como “ele foi submetido a tratamento desumano”, que significa que alguém foi colocado em condições que não condizem com as capacidades humanas (fome, humilhação, tortura etc.). É também esse tipo de raciocínio que está por detrás da condenação de práticas como o arremesso de anões – um jogo em que o objetivo é arremessar um anão o mais distante possível, com seu consentimento. E é ainda esse o sentido que está por detrás do art. 170 da Constituição brasileira: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna” (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 9 jul. 2015.
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).
Em todos esses casos o raciocínio é que certas condições de vida ou práticas são “desumanizadoras” ou “indignas”, pois submetem os seres humanos a sentimentos e comportamentos abaixo do que eles são capazes, tratando-os como objetos ou como animais (isto é, animais não humanos). Tratar alguém como objeto ou como animal normalmente significa desconsiderar o seu sofrimento físico e emocional, seus planos de vida, sua autoestima, sua reputação, seu potencial intelectual etc. Por exemplo, arremessar o anão é tratá-lo como um peso, não como uma pessoa, e escravizar alguém é desconsiderar suas vontades. O problema em submeter os seres humanos a sentimentos e comportamentos abaixo do que são capazes estaria no fato de que isso poderia impedir o desenvolvimento ou o exercício das capacidades mais complexas de que eles são capazes.
A ligação entre as condições externas e a dignidade pode se dar de duas maneiras: elas podem ser sinais da dignidade oupré-requisitos para que ela exista. No primeiro tipo, certos elementos serviriam para relembrar e enfatizar o fato de que as pessoas não são objetos ou meros animais. Uma suposta ilustração desse primeiro tipo de ligação é fornecida por Leon Kass, ex-diretor do Conselho Presidencial de Bioética dos Estados Unidos durante o governo de George W. Bush:
Worst of all from this point of view are those more uncivilized forms of eating, like licking an ice cream cone – a catlike activity that has been made acceptable in informal America but that still offends those who know eating in public is offensive. [...] [E]ating on the street – even when undertaken, say, because one is between appointments and has no other time to eat – displays in fact such a lack of self-control: It beckons enslavement to the belly. [...] Lacking utensils for cutting and lifting to mouth, he will often be seen using his teeth for tearing off chewable portions, just like any animal. [...] This doglike feeding, if one must engage in it, ought to be kept from public view, where, even if we feel no shame, others are compelled to witness our shameful behavior (KASS, 1994KASS, Leon R. The hungry soul: Eating and the perfecting of our nature. Chicago: University of Chicago Press, 1994., p. 148-149).
Esse exemplo deixa patente o quanto há de normativo (e potencialmente arbitrário) na definição extrínseca da dignidade humana. Diferentes culturas, épocas, grupos e até mesmo pessoas podem divergir bastante em relação ao que consideram “indigno”. Por exemplo, há quem diga que “o trabalho dignifica o homem”, mas também há quem considere que certos trabalhos são degradantes. Alguns consideram que as danças de funk carioca, a prostituição e os relacionamentos homossexuais ferem a dignidade humana, enquanto outros as consideram perfeitamente aceitáveis.
Apesar da subjetividade da definição dos sinais da dignidade, é preciso enfatizar que uma importante justificativa para resguardá-los está no fato de que sua ausência pode gerar uma espiral de desumanização e maus-tratos (PINKER, 2008PINKER, Steven. The stupidity of dignity. The New Republic, Washington, May, 2008. Disponível em: <http://www.newrepublic.com/article/thestupidity-dignity>. Acesso em: 9 jul. 2015.
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). Por exemplo, quando prisioneiros são forçados a viver na miséria ou quando os judeus da Alemanha nazista eram degradados e humilhados, as pessoas tendiam a achar mais fácil desprezá-los. De acordo com tal abordagem, práticas que violem a dignidade poderiam gerar novas práticas violadoras, e assim por diante.
No segundo tipo de ligação entre a dignidade e os elementos externos, a causalidade é inversa: são os elementos externos que causam a dignidade, e não ela que dá origem a esses elementos, os sinais. Nesse sentido, certos elementos são condições ou pré-requisitos para que as pessoas tenham dignidade. Isso se aproxima do que se compreende como “mínimo existencial” ou “mínimo social” (WHITE, 2004), que também se relaciona à garantia, normalmente pelo Estado – mas que exige o respeito e a colaboração de toda a sociedade –, de uma esfera mínima e intocável de direitos e recursos, capaz de prover a subsistência do indivíduo (NOBRE JÚNIOR, 2000NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Administrativo.Rio de Janeiro, n. 219, p. 237-251, jan.-mar. 2000., p. 247). SegundoBarcellos (2002BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002., p. 305), o mínimo existencial “consiste em um conjunto de prestações mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade”.
Contudo, Sarlet (2007)SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 61, p. 90-125, jan.-mar. 2007. sustenta que o mínimo existencial não deve ser confundido ou identificado apenas com o mínimo vital capaz de garantir a sobrevivência. Com base na jurisprudência alemã e portuguesa, ele afirma que o mínimo existencial deve garantir uma vida com certa qualidade, se consubstanciando em um conjunto de garantias materiais para uma vida condigna. Nessa linha, o mínimo existencial exigiria um teto onde se abrigar, alimentos para se manter, roupas adequadas para vestir, educação, trabalho, segurança, salário de acordo com as necessidades mínimas de subsistência, dentre outras necessidades que garantam um mínimo de bem-estar ou uma “existência digna” (isto é, adequada a uma pessoa).
Por se relacionar, assim, ao conjunto de ações incumbidas ao Estado na promoção de direitos de natureza social, o conceito de mínimo existencial avança para o campo das políticas públicas, que podem ser conceituadas, nesse contexto, como “as metas e os instrumentos de ação que o poder público define para a consecução de interesses públicos que lhe incumbe proteger” (DI PIETRO, 2013DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo e dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, ano 13, n. 52, p. 13-33, abr./jun. 2013., p. 22). A garantia do mínimo existencial passaria, então, pela promoção estatal de condições razoáveis de bem-estar às pessoas, a partir, especialmente mas não exclusivamente, de direitos sociais.
No Brasil, há referências ao mínimo existencial em casos no âmbito do STF relacionados, por exemplo, ao acesso à educação (RE 410.715/SP), às ações afirmativas para pessoas com deficiência (ADI 2.649/DF), ao acesso à justiça por populações carentes e desassistidas por meio da Defensoria Pública (AI 598.212) e ao acesso a serviços de saúde e medicamentos (STA 175/CE). Por exemplo:
[...] defensores da atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais, em especial do direito à saúde, argumentam que tais direitos são indispensáveis para a realização da dignidade da pessoa humana. Assim, ao menos o “mínimo existencial” de cada um dos direitos – exigência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana – não poderia deixar de ser objeto de apreciação judicial. (STF, STA 175 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes (Presidente), Tribunal Pleno, j. 17-3-2010, Diário da Justiça Eletrônico de 30-4-2010).
O direito ao mínimo existencial não está previsto de forma expressa no direito brasileiro, mas é comum entendê-lo como decorrência tanto da dignidade da pessoa humana quanto da busca pela erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais:
A noção de mínimo existencial, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. (STF, ARE 639337 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. 23-8-2011, Diário da Justiça Eletrônico de 15-9-2011).
A noção de mínimo existencial busca proporcionar objetividade à noção de dignidade da pessoa humana entendida como condições externas condizentes com a igual consideração dos interesses de todas as pessoas dadas as capacidades que as separam dos objetos e dos outros animais. Em outras palavras, o mínimo existencial consiste no conteúdo básico dos direitos fundamentais que devem ser protegidos. Entretanto, a dificuldade apenas mudou de lugar, ela agora está em definir o que é esse conteúdo básico ou mínimo. Ele inclui apenas os nutrientes para se manter vivo ou também educação, moradia, emprego, cultura e lazer? Como definir onde terminam as necessidades básicas e começam os gostos supérfluos?
4.3 A dignidade como resultado de propriedades adquiridas: a autonomia pessoal
Um primeiro elemento para a solução desse impasse é identificar o que caracteriza uma pessoa. O mínimo existencial é composto pelas condições necessárias para que um ser humano possa ser uma pessoa. E esse movimento abre caminho para a terceira definição do que é a dignidade humana, a definição baseada nos atributos do indivíduo. Como vimos, a definição intrínseca é vazia, ela não explica por que as pessoas têm dignidade, por que merecem igualdade de consideração. Por sua vez, a definição baseada nas condições externas aponta para o perigo da desumanização, mas é incompleta porque não especifica quais os atributos cuja perda retiraria a dignidade.
De acordo com a terceira definição de dignidade, as pessoas precisam fazer algo para merecê-la, não basta possuir certa característica intrínseca ou possuir certas condições exteriores. É esse sentido que está por detrás de alguns usos cotidianos do conceito, tais como “ele não é digno de confiança”, “não sou digno do seu amor” ou “ele não é uma pessoa digna do convívio social”. Nessas expressões, utilizam-se versões mais específicas da dignidade (digno de amor, de confiança ou do convívio social), mas quando empregada no sentido mais geral, “a dignidade da pessoa humana”, também pode ser compreendida como exigindo que os indivíduos tenham certos atributos para que mereçam o statusassociado à pessoalidade.
Diversos atributos já foram propostos na literatura especializada como decisivos para conferir dignidade às pessoas (por exemplo, autoconsciência, racionalidade, inteligência, complexidade emocional e capacidade de se comunicar). Não há espaço aqui para analisar adequadamente qual deles (ou qual combinação entre eles) seria o mais adequado. Entretanto, um ponto de consenso entre Barroso, Kant, Macklin e Pinker é a afirmação de que a autonomia é um elemento central da dignidade. A diferença está em que Kant, Macklin e Pinker consideram que o respeito à autonomia exaure o que há de importante no conceito de dignidade humana, ao passo que Barroso considera que há ainda o valor intrínseco e o valor comunitário. Miranda (2001) bem observa que dignidade e autonomia são conceitos incindíveis, relacionados à própria garantia dos direitos de liberdade.
Acima, mostramos como a ideia de valor intrínseco abre espaço para arbitrariedades e por isso é inadequada quando a dignidade é empregada em uma função substancial, isto é, na solução de conflitos entre interesses individuais – apesar de ter sido decisiva para a ruptura com a visão hierárquica da dignidade, quando compreendida como a afirmação de que nenhum grupo tem mais dignidade do que outro.
Em relação ao valor comunitário proposto por Barroso (2013)BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013., há motivos para não considerá-lo como um elemento da dignidade, mas sim como um limite dela. Segundo o autor, esse valor seria fruto do papel da comunidade e do Estado no estabelecimento de crenças e metas coletivas. Contudo, dado que tal valor aponta para o problema de compatibilizar o respeito à dignidade de diferentes indivíduos entre si e deles com a sociedade em que vivem, ele deve ser compreendido como algo externo à dignidade individual.
As crenças e metas coletivas são barreiras (compreendendo-as em um sentido mais negativo) ou molduras (um sentido mais positivo) ao exercício dos direitos individuais. Em qualquer caso, são limitações a eles, são maneiras de lidar com os conflitos que surgem entre os indivíduos. Por isso, elas são restrições à dignidade que se confere a essas pessoas, não um componente dessestatus. Portanto, o valor comunitário é melhor compreendido como limite, e não como elemento da dignidade.
Diante desses problemas com o elemento intrínseco e com o elemento comunitário propostos por Barroso, resta como núcleo da ideia de dignidade da pessoa humana o elemento da autonomia, o ponto em que sua proposta converge com o que foi defendido por Kant, Macklin e Pinker (mas, vale ressaltar, a autonomia kantiana é um conceito mais exigente do que aquele empregado por esses dois últimos autores, ao remeter ao reino dos fins e à legislação universal).
Retomemos então as três definições de dignidade que apresentamos. A primeira delas diz que ser digno é possuir uma propriedade intrínseca, que não se faz por merecer e que não se pode perder. Essa proposta foi considerada excessivamente arbitrária para a função substancial. A segunda definição diz que a dignidade seria dada pelas condições em que se vive, mais especificamente, as pessoas são dignas quando possuem um mínimo existencial. Porém, para definir esse mínimo seria necessário identificar o que confere dignidade às pessoas, levando então à terceira definição de dignidade, aquela segundo a qual as pessoas são dignas – isto é, merecem igualdade de consideração de seus interesses – porque possuem algum atributo. Elas precisam fazer por merecer a dignidade e podem perdê-la caso percam esse atributo.
A autonomia pessoal é esse atributo. Ela é a capacidade que as pessoas têm de escolher seus objetivos, resistindo a tentações e fazendo escolhas livres. O mínimo existencial seria composto então por aqueles elementos necessários para o exercício da autonomia. Ele incluiria não apenas os nutrientes e serviços médicos imprescindíveis para se manter vivo, mas também a proteção à integridade física, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, à privacidade, o acesso à educação, a proteção contra danos morais, entre outros aspectos.
É preciso reconhecer, entretanto, que compreender o princípio da dignidade humana como respeito à autonomia apenas torna a noção menos controversa, não a torna imune a dúvidas. Ao menos duas delas merecem ser mencionadas. Um problema que aparece ao condicionar a dignidade humana à capacidade de ter autonomia está no fato de que nem todos os seres humanos a possuem, por exemplo, as crianças e os portadores de deficiências mentais graves. Isso implicaria que eles não são dignos, não merecem igualdade de consideração. Por isso, as questões do descarte de embriões e do aborto provocam grande controvérsia sobre o início da personalidade jurídica, pois nesses estágios do desenvolvimento aindanão é biologicamente possível haver as capacidades mentais necessárias para a autonomia (FRIAS, 2012FRIAS, Lincoln. A ética do uso e da seleção de embriões. Florianópolis: Ed. UFSC, 2012.; FRIAS, 2013FRIAS, Lincoln. O argumento do valor intrínseco da vida humana contra a morte de embriões humanos. Ethic@, v. 11, n. 3, 2013.). Contudo, uma dificuldade ainda maior está no caso dos indivíduos que nunca terão o desenvolvimento cognitivo suficiente para ter autonomia. Esse é um tema bastante controverso entre bioeticistas – McMahan (2002MCMAHAN, Jeff. The ethics of killing: problems at the margins of life. Oxford: Oxford University Press, 2002., p. 203-230) apresenta e analisa a literatura pertinente – e não é possível analisá-lo adequadamente aqui. Uma alternativa (não sem problemas) seria reconhecer que a justificativa para dar igualdade de consideração a seus interesses está, não na dignidade, mas sim na compaixão para com seu sofrimento e suas limitações.
Outro tipo de problema que surge ao se definir o respeito à dignidade como respeito à autonomia aparece naqueles casos em que os indivíduos consentem em algo que outros julgam que seja indigno. Estão nessa situação casos tão díspares quanto a prostituição, a pornografia violenta, o arremesso de anões, algumas brincadeiras televisivas (como algumas do Pânico na TV), sadomasoquismo, mutilação voluntária e o suicídio assistido (a eutanásia voluntária).
Há quem argumente contra essas práticas dizendo que a suposta renúncia voluntária à dignidade levaria à insensibilidade dos demais e à tendência a causar prejuízos a terceiros. Por exemplo, as brincadeiras sexistas, humilhantes e violentas com o consentimento dos participantes no Pânico na TVpoderiam levar a comportamentos semelhantes para com pessoas que não deram seu consentimento (como acontece algumas vezes no próprio programa); ao passo que a pornografia violenta poderia incentivar a violência contra as mulheres. No entanto, estabelecer esse tipo de causalidade não é tarefa simples.
De qualquer maneira, ainda que restem casos tão controversos quanto estes, compreender o respeito à dignidade como respeito à autonomia torna a discussão mais precisa do que compreendê-la como um valor intrínseco não explicável ou como certo padrão de vida definido de maneira não sistemática. De acordo com o que foi proposto aqui, as pessoas têm valor porque têm autonomia e uma vida digna é aquela que permite o desenvolvimento e o exercício da autonomia.
Considerações finais
“Devemos garantir que todos tenham uma vida digna”, “todas as pessoas têm a mesma dignidade e os mesmos direitos”, “ninguém deve sofrer tratamento desumano”, “devemos ajudar pessoas em situações degradantes”. O apelo à dignidade humana é comum não apenas no discurso jurídico, mas também na linguagem cotidiana. Esse conceito se originou na Roma antiga, ganhou mais força com o advento do Iluminismo e se tornou fundamental no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Antigamente, o conceito de dignidade servia para marcar uma hierarquia entre os indivíduos, porém, hoje ele é empregado no discurso transnacional para negar que haja uma hierarquia entre os indivíduos, para coibir violações aos direitos humanos, como as verificadas na Alemanha nazista.
No presente artigo, demonstrou-se que a dignidade não deve ser entendida como a afirmação positiva de uma propriedade intrínseca, o que gera imprecisões e arbitrariedades, mas sim como uma afirmação normativa sobre uma propriedade adquirida, que requer condições para se desenvolver e ser exercida. A dignidade é a propriedade que as pessoas possuem pelo fato de serem capazes de decidir sobre seus próprios objetivos, a autonomia pessoal. Tal propriedade justifica a exigência de que os interesses fundamentais das pessoas sejam protegidos por meio da garantia de um mínimo de condições básicas para sua existência, um mínimo existencial. Esse é o raciocínio que está por detrás da garantia dos direitos à vida, à saúde, à educação, à liberdade de expressão, dentre outros.
Em resumo, a conclusão deste trabalho é que frases tais como “as pessoas nascem iguais em dignidade e direitos” devem ser compreendidas como “ninguém deve ser tratado como tendo mais valor do que outras pessoas” e afirmações do tipo “o princípio da dignidade humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil” devem ser compreendidas como “devemos dar condições para as que as pessoas desenvolvam e exerçam sua capacidade de escolha”. Entendido dessa maneira, o apelo à dignidade humana mantém sua função protetiva e não tende a ser utilizado de maneira absoluta e demasiado exigente quando empregado em sua função substancial, porque a capacidade de escolha dos indivíduos deve ser limitada por diversos fatores, tais como a escassez de recursos e os interesses de outros indivíduos.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
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Recebido
02 Jul 2014 -
Aceito
26 Out 2015