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Estado de Direito e Democracia: a centralidade do conflito

Rule of Law and Democracy: the centrality of the conflict

Resumo

Este artigo busca problematizar a tensa relação entre Estado de Direito e Democracia. O desenvolvimento do argumento a ser defendido passa pela necessária consideração da presença do conflito como elemento central dos regimes democráticos, a despeito da tentativa de escamoteamento do mesmo pela tradição liberal ainda hoje hegemônica no pensamento político. Estabelecer as relações entre Estado, Direito, capitalismo e democracia, bem como apontar o sujeito destacado dos conflitos que vicejam na sociedade contemporânea é a pretensão deste texto acadêmico.

Palavras-chave:
Estado de Direito; Democracia; Conflito Social

Abstract

This article seeks to problematize the tense relationship between the rule of law and democracy. The development of the argument to be defended requires the necessary consideration of the presence of conflict as a central element of democratic regimes, despite the attempt to conceal it by the liberal tradition still today hegemonic in political thought. Establishing relations between state, law, capitalism and democracy, as well as pointing out the outstanding subject of the conflicts that flourish in contemporary society is the pretension of this academic text.

Keywords:
Rule of Law; Democracy; Social Conflict

Introdução

O presente artigo pretende problematizar a questão do “conflito” em relação ao Estado de Direito capitalista e à democracia. Contemplar o tema relacionando-o a Estado e democracia significa tentar explorar os dois flancos abertos pelo conflito, o das lutas travadas dentro e o das empreendidas fora dos espaços institucionais, em contato com alguns teóricos contemporâneos e suas produções recentes sobre a temática dissertada.

Para tanto, faz-se necessário discutir a relação essencial entre Estado e Capitalismo, bem como levantar a definição atualmente majoritária do regime democrático e as restrições que lhe são impostas pelo mainstream do pensamento político. Por fim, é de suma importância tentar identificar quem é o ator privilegiado da sociedade democrática, que estaria apto a protagonizar os conflitos sociais levando a sociedade a uma efetiva transformação estrutural.

É o que será desenvolvido nos tópicos a seguir.

1 - O conflito no Estado

Para Alysson Mascaro (2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 11, 14), o adequado entendimento do Estado (e da política) se dá por meio da compreensão de sua “posição relacional, estrutural, histórica, dinâmica, e contraditória dentro da totalidade da reprodução social”. Para o autor, o marxismo traz a mais alta contribuição para compreensão do Estado e da política nas sociedades atuais. Isso se dá através da reconfiguração do âmbito político e do âmbito estatal, “atrelando-o à dinâmica da totalidade da reprodução social capitalista”. É primacial que a compreensão do Estado se fundamente “na crítica da economia política capitalista, lastreada necessariamente na totalidade social”.

Mascaro (2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 17-18) recorda que a junção que reúne os poderes sociais é bastante sólida nos modos de produção pré-capitalistas. A vida social é controlada de maneira mais direta, mais simples, em virtude do congraçamento entre o econômico e o político. Não há intermediários institucionalizados de maneira universalizada a ponto de concentrarem em si a resolução dos conflitos e a imposição mediata do poder. Essa instância diferenciada que exercerá as aludidas funções só surgirá com a modernidade. O Estado, destarte, é uma instituição capitalista e moderna. A modernidade engendra uma sociedade sobre os parâmetros da troca, advindos da circulação mercantil, e o Estado ergue-se “como terceiro em relação à dinâmica entre Capital e Trabalho”. Ele garante a mercadoria, a propriedade privada e a própria exploração do Capital sobre o Trabalho, que conta com o ferramental jurídico para lhe conferir legitimidade e aparência de conformação livre da relação laboral.

Entretanto, aqui vale destacar que “não foi a partir de um plano voluntarioso da burguesia (...) que se estruturou o Estado”. A identidade entre Estado e capitalismo se perfaz de forma diversa, bem mais complexa e matizada do que propôs o marxismo clássico. O vínculo entre ambos é muito mais estrutural que ocasional ou dependente da vontade da classe dominante. A especificidade da separação entre o político e o econômico se deu no capitalismo, especificamente, já que nas sociedades pré-capitalistas os poderes político e econômico estão, em geral, imiscuídos (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 53-54, 57).

Enquanto as sociedades pré-capitalistas foram instituídas em dinâmicas diretas de dominação social, no capitalismo, diferentemente, a instituição estatal é forjada de maneira apartada dos agentes que transacionam mercadorias, tanto do capital quanto do trabalho, figurando o Estado como ente terceiro em relação aos indivíduos, sujeitos de direito, o que não lhe garante uma “indiferença” com relação às relações sociais. O Estado é decisivo na manutenção e desenvolvimento da dinâmica capitalista (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 59).

O Estado é capitalista, segundo Mascaro, não por ser um comitê gestor dos negócios burgueses (Cf. MARX; ENGELS, 2012MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 46), mas porque sua “forma estrutura as relações de reprodução do capital”, de modo que o liame entre a instituição e o capitalismo é intrínseco não por um poder de dominação imediata, mas por razões estruturais. O Estado é elemento fundamental para a estrutura capitalista. E a forma política estatal tem sua conformação apartada da captura imediata por qualquer classe, ao menos em situações de “normalidade”, e mesmo com a presença de setores progressistas nela ocupando espaços não há alteração da forma política estatal, que segue sendo capitalista e comprometida estruturalmente com a reprodução da sociabilidade capitalista (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 59-60).

Alysson Mascaro entende que pelo fato da luta dos trabalhadores estar embrenhada na lógica da mercadoria, ela serve em alguma medida para chancelar a própria reprodução do sistema capitalista. O mesmo vale para o Estado, que mesmo quando atua no sentido de ampliar o rol dos direitos sociais, permanece no âmbito “da lógica do valor”. O papel das classes inseridas nessa dinâmica é muito relevante, “na medida das possibilidades de legitimação, consolidação, resistência ou confronto em face da própria reprodução do capital”, sendo fundamental a compreensão da luta empreendida entre as classes para melhor entendimento da variedade das relações estabelecidas no âmago da sociedade capitalista. Mas se luta de classes denota a situação da política e da economia no capitalismo, para além dela própria “as formas sociais do capitalismo, lastreadas no valor e na mercadoria, revelam a natureza da forma política estatal”. E é, segundo Mascaro, na “forma” que “reside o núcleo da existência do Estado no capitalismo” (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 20).

Deve-se delinear a relevância da luta de classes no âmbito de um sistema capitalista, na tentativa de demarcar quais as suas potencialidades de transformação do Estado e da realidade social. Entende-se, desta maneira, que a luta de classes pode ter como resultado uma configuração outra da dinâmica instaurada entre Estado e Sociedade. Mesmo que não haja, através dela, o alcance ruptural propugnado pela tradição marxista, o nível de “tensão” por ela engendrado não pode ser de antemão mensurado. E é justamente com a possibilidade de um tensionamento impossível de se medir antecipadamente que se deve valorizar a luta social numa sociedade marcada pelo conflito.

E isso em virtude de que o Estado guarda relação profunda e estrutural com o capital, mas há certa indeterminação imediata com relação à reprodução mesmo, como defende a própria “teoria da derivação”, de modo que se há “derivação estrutural da forma política, há derivação relativamente singular de suas instituições”. A forma política estatal que deriva da forma-mercadoria apresenta variações parciais na formação de suas instituições. E o que determinará especialmente as singularidades na formação das instituições políticas é, justamente, a luta de classes (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 33).

Assim, há relativa autonomia1 1 Mascaro (2013, p. 46) relativiza (em nível estrutural) a autonomia do Estado perante os agentes econômicos, nos seguintes termos: “A autonomia do Estado em relação aos agentes econômicos, sendo real porque advinda das concretas relações econômicas capitalistas, é relativa se tomada justamente em tal nível estrutural. Capitalismo e Estado se relacionam no nível das formas e estruturas, não no nível da eventual contingência da captura do poder pela classe burguesa. O Estado é capitalista não por causa das variadas classes que disputam ou possuem diretamente o seu domínio. Também os Estados cujos governos são dominados por membros ou movimentos das classes trabalhadoras são necessariamente capitalistas. Havendo a necessidade de intermediar continuamente a relação de exploração da força de trabalho, por modo assalariado, regulando-a, bem como aos processos contínuos de valorização do capital, o Estado mantém a dinâmica capitalista ainda quando seus dirigentes declaram oposição às classes burguesas”. estatal frente a dinâmica das relações sociais, devido à posição do Estado de garantidor necessário às próprias relações capitalistas, sendo que a instituição estatal é capitalista pela sua forma, e se posiciona para a manutenção das condições estruturais (capitalistas) que lhe dão alicerce. O Estado é, portanto, “capitalista” já que depende do vigor desse tipo de sociabilidade para sua própria sobrevivência institucional. A instituição estatal depende do recolhimento dos tributos, o que depende, por sua vez, do desenvolvimento do capital. De modo que o Estado garante a propriedade privada e as relações jurídicas nela arrimadas, e se mantém em certa medida dependente do processo de valorização capitalista. Por isso o seu inescapável caráter intervencionista, que visa retirar o aporte financeiro que lhe é fundamental do “processo capitalista de produção e de valorização” (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 46-47; HIRSCH, 2010HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010., p. 34, 41).

Claus Offe e Volker Ronge (1984OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 122-5) também expõem uma visão “alternativa” ao paradigma restrito da teoria marxista do Estado, já que partem do pressuposto de que a instituição estatal não favoreceria interesses específicos, não servindo de “instrumento” de uma classe contra a outra, mas atuando no sentido da imposição e “garantia duradoura de regras que institucionalizam as relações de classe específicas de uma sociedade capitalista”. Assim, o conceito de Estado capitalista, abstraindo-se as idiossincrasias históricas, estruturais e funcionais, diz respeito a uma “forma institucional do poder público em sua relação com a produção material”, tendo quatro determinações funcionais mais proeminentes: a dependência dos impostos, a privatização da produção, a acumulação como ponto de referência e a legitimação democrática.

Em síntese, segundo os autores, o objetivo estatal é

[...] criar e preservar as condições sob as quais possa perpetuar-se o processo de troca através do qual todos os valores da sociedade capitalista são reproduzidos. O fato de que certos grupos capitalistas (ou categorias da força de trabalho) sejam mais favorecidos que outros, não é o objetivo, mas sub-produto necessário de uma política que está voltada, de forma abstrata, para a conservação e a universalização da forma-mercadoria (OFFE; RONGE, 1984OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 123).

Mas esse pressuposto estrutural do Estado e sua vinculação essencial com a manutenção das estruturas capitalistas não elimina o fato de suas instituições serem atravessadas pela luta de classes e influenciadas pelas relações sociais em disputa. A luta entre as classes e os grupos no capitalismo será conformada pela forma estatal, em um processo de implicação mútua: “se a luta de classes é conformada pelo Estado, este por sua vez está também enraizado nas contradições e disputas múltiplas das sociedades capitalistas”. Luta de classes e forma política estatal não são, neste sentido, categorias excludentes, mas implicadas, engendradas a partir da mesma dinâmica (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 47, 60).

O que vê é que a luta de classes e o Estado, nessa situação de imbricação, se modificam mutuamente, e “tanto a luta de classes está nas entranhas das formas econômicas do capitalismo quanto da forma política que lhe é própria”, de modo que as formas econômicas e políticas do capitalismo “reconfiguram os termos da luta de classes”. Mas, vale ressaltar que se o Estado não exerce o papel de um mero gestor do interesse burguês, ele serve ao amortecimento da luta de classes em seu interior. Em geral, atua na sustentação da luta de classes em seu interior mantendo-a em conformidade com o instrumental jurídico-político positivado (MASCARO, 2013MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013., p 60-63).

O Estado, deste modo,

Não é apenas aparelho de força, pois nele expressa-se ao mesmo tempo a comunidade política da sociedade capitalista - aparentemente colocado acima da concorrência e das lutas sociais existentes -, embora de modo fetichizado e coisificado. O Estado é a forma que a comunidade política assume sob as condições sociais dominantes no capitalismo. Não apenas o elo econômico, mas também o elo político de uma sociedade marcada pela concorrência e os antagonismos de classe manifestam-se em uma instância separada e contraposta a ela [...]. (HIRSCH, 2010HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010., p. 32).

A questão até aqui desenvolvida, deste modo, vai além do esforço teórico de ampliação da teoria do Estado empreendido por Gramsci, e diz respeito à luta social observada no âmbito do próprio Estado (em sentido estrito), ou seja, a presença da luta por hegemonia no interior da sociedade política, como dela tratou, entre outros autores, Nicos Poulantzas. Sua concepção de Estado como relação, como a condensação material de uma correlação de forças entre as classes, da forma como esta se expressa no âmbito estatal, articula a visão “restrita” do Estado com uma manifestação transfigurada, pois que o Estado passa a ser resultante do embate travado entre as forças, ideia esta que tem certo amparo no pensamento gramsciano. Coutinho aponta, destarte, que há superação (dialética) do pensamento gramsciano por Poulantzas, ao tratar da luta social a ser travada, também, no interior do Estado (em sentido estrito) (COUTINHO, 1996COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. 2.ª ed. São Paulo: Cortez, 1996., p. 65-66).

A instituição estatal é pensada pelo autor em toda a sua complexidade:

“[...] o Estado apresenta uma ossatura material própria que não pode de maneira alguma ser reduzida à simples dominação política. O aparelho de Estado, essa coisa de especial e por consequência temível, não se esgota no poder do Estado. Mas a dominação política está ela própria inscrita na materialidade institucional do Estado. Se o Estado não é integralmente produzido pelas classes dominantes, não o é também por elas monopolizado: o poder do Estado (o da burguesia no caso do Estado capitalista) está inscrito nessa materialidade. Nem todas as ações do Estado se reduzem à dominação política, mas nem por isso são constitutivamente menos marcadas” (POULANTZAS, 2000POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 2000., p. 12).

O Estado não pode ser qualificado apenas por suas facetas de violência e ideologia, pois também age de forma positiva, também “cria, transforma, realiza”. Conceber a ação estatal somente pelo viés repressivo e de imposição ideológica seria reducionista, pois a despeito de serem duas dimensões presentes nesta ação, não dão conta da complexidade do Estado (POULANTZAS, 2000POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 2000., p. 26-29).

Interessa sobremaneira ao argumento aqui desenvolvido esta visão de um Estado que organiza o espaço em que se travam as lutas sociais, o mesmo ocorrendo com relação ao mercado, instituindo o domínio público e até mesmo instaurando a classe politicamente dominante, além de demarcar a divisão social do trabalho e todo o quadro referencial da sociedade de classes sob o capitalismo (POULANTZAS, 2000POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 2000., p. 37).

O Estado organiza o interesse político das diversas frações da burguesia, e instaura estas frações como classes dominantes:

Em relação principalmente às classes dominantes, em particular a burguesia, o Estado tem um papel principal de organização. Ele representa e organiza a ou as classes dominantes, em suma representa, organiza o interesse político a longo prazo do bloco do poder, composto de várias frações de classe burguesas (pois a burguesia é dividida em frações de classe), do qual participam em certas circunstâncias as classes dominantes provenientes de outros modos de produção, presentes na formação social capitalista [...]. Organização, na perspectiva do Estado, da unidade conflitual da aliança de poder e do equilíbrio instável dos compromissos entre seus componentes, o que se faz sob a hegemonia e direção, nesse bloco, de uma de suas classes ou frações, a classe ou fração hegemônica (POULANTZAS, 1985, p. 145).

As políticas resultam das contradições de classe situadas no interior de sua própria estrutura relacional. A luta de classes ocorrida no seio do Estado é fundamental para o direcionamento da ação da instituição. Ocupar o espaço estatal é, deste modo, de suma importância:

Em resumo, as lutas populares estão inscritas na materialidade institucional do Estado, mesmo se não se esgotam aí, materialidade que traz a marca dessas lutas surdas e multiformes. As lutas políticas desencadeadas sobre o Estado não estão, tanto em qualquer luta frente aos aparelhos de poder, em posição de exterioridade frente ao Estado, mas derivam de sua configuração estratégica: o Estado, como é o caso de todo dispositivo de poder, é a condensação material de uma relação (POULANTZAS, 1985, p. 166-167, 147).

O Estado, portanto, não é o objeto de um poder essencial da classe dominante, nem um sujeito que teria um poder acima das classes. O Estado é um lugar, é um centro de exercício do poder, onde ocorre a “[...] organização estratégica da classe dominante em sua relação com as classes dominadas.” (POULANTZAS, 2000POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 2000., p. 150).

Aqui reside um ponto fundamental: se o Estado é um lugar, um centro de exercício de poder, é também um espaço a ser disputado pelo povo, e o direcionamento dado às políticas estatais dependerá fundamentalmente do resultado desta luta travada em seu interior.

2 - O conflito e a democracia

Partindo do pressuposto de que Estado e capitalismo têm uma ligação visceral que não pôde (e talvez nem possa) ser rompida por formas novas de constitucionalismo, nem sendo possível a transladação desse modelo socioeconômico para o socialismo, através da mudança nas feições institucionais do Estado e, em consequência (como não poderia deixar de ser), do próprio Direito, resta saber o papel do regime democrático nesta complexa conjugação institucional mantenedora do sistema capitalista, bem como as possibilidades que este regime político traz em seu âmago e que merecem ser exploradas na tentativa de, progressivamente, construir relações sociais ancoradas em valores outros e, só a partir disso, pensar numa transformação radical do status quo.

2.1 - Contornos gerais da teoria democrática atual

A constatação de que a democracia contemporânea está consideravelmente distante da concepção clássica (“governo do povo”) pode ser parcialmente explicada pelo fato dos regimes democráticos atuais partirem de pressupostos advindos da influência de uma corrente de pensamento que afirmava a impossibilidade da democracia, a saber, a “teoria das elites”, fundada por Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels. Segundo os citados autores, sempre haverá “[...] desigualdade na sociedade, em especial a desigualdade política. Isto é, sempre existirá uma minoria dirigente e uma maioria condenada a ser dirigida, o que significa dizer que a democracia, enquanto ‘governo do povo’, é uma fantasia inatingível.” A naturalização da desigualdade e a crença de que sua contestação era um sinal da crise do mundo à época, advieram de concepções formuladas por pensadores como Friedrich Nietzsche e Ortega y Gasset, responsáveis pela formulação dos princípios filosóficos do elitismo, mais ou menos na mesma época em que surgiu a teoria política das elites que buscava a demonstração científica de que a dominação das minorias era inevitável, bem como demonstrar a impossibilidade da democracia (MIGUEL, 2002MIGUEL, Luís Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados, Rio de Janeiro, v. 45, n.3, p. 483-511, 2002., p. 485, 492).

Luís Felipe Miguel (2002MIGUEL, Luís Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados, Rio de Janeiro, v. 45, n.3, p. 483-511, 2002., p. 495) entende ser “bizarro” que uma visão de mundo próxima à de Pareto, por exemplo, sirva de fundamento para a elaboração de uma teoria democrática, já que o autor franco-italiano se esforçou em demonstrar o caráter ilusório de qualquer ordenamento democrático. Mesmo assim,

[...] uma importante corrente da teoria democrática vai aceitar o argumento elitista como pressuposto. É a tese da “democracia concorrencial”, cujo pai é o economista austríaco Joseph Schumpeter. Não se trata apenas de uma tendência, entre outras, da teoria democrática. É a corrente amplamente dominante, que se enraizou no senso comum; é um divisor de águas, já que, a partir dela, qualquer estudioso da democracia tem que se colocar, em primeiro lugar, contra ou a favor das teses schumpeterianas. Entre aqueles que foram influenciados por elas, de diferentes maneiras, estão nomes do peso de Giovanni Sartori, Robert Dahl e Anthony Downs (MIGUEL, 2002MIGUEL, Luís Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados, Rio de Janeiro, v. 45, n.3, p. 483-511, 2002., p. 498-499).

À época da publicação das teses políticas de Schumpeter2 (1984SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984., passim), elaboradas em três dos capítulos de seu famoso livro “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, havia um problema no Ocidente, que era o de se demonstrar a existência de uma democracia verdadeira, apesar da ausência do “governo do povo”, e a teoria do economista austríaco se encaixou perfeitamente nesta necessidade, quando redefiniu a democracia de forma a eliminar seu principal critério, prestando-se à justificação do status quo (MIGUEL, 2002MIGUEL, Luís Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados, Rio de Janeiro, v. 45, n.3, p. 483-511, 2002., p. 499).

Luís Felipe Miguel (2012______. Democracia e sociedade de classes. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 9, p. 93-117, set./dez. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pdf>. Acesso em: jan. 2013.
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pd...
, p. 93-94) entende que o pensamento hegemônico da ciência política aderiu “ao en tendimento da democracia que, tributário da virada schumpeteriana dos anos 1940, esforça-se por reduzi-la a um método de seleção de minorias governantes que nada, ou muito pouco, se conecta com uma ideia de so berania popular”. No mesmo sentido é a opinião de Carole Pateman (1992PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 9-10) que, em lúcida síntese sobre a teoria da democracia atual, consignou que “[...] entre os teóricos da política e os sociólogos políticos a teoria da democracia mais aceita (aceita de maneira tão ampla que poderia chamá-la de doutrina ortodoxa) é aquela na qual o conceito de participação assume um papel menor”, sendo que a ênfase, inclusive, recai sobre os “[...] perigos inerentes à ampla participação popular em política.” Pateman (1992, p. 25) vincula a teoria contemporânea da democracia (identificada com autores como Berelson, Dahl, Sartori e Eckstein) com um “[...] método político ou uma série de arranjos institucionais a nível nacional”, sendo o elemento característico deste método a competição entre uma elite política pelo voto popular, em eleições livres. De acordo com a autora, as eleições exercem papel central nesta dinâmica democrática, pois seria por meio delas que a maioria da população poderia exercer o controle sobre os líderes da elite política, sancionando-os através da perda do mandato nas eleições, sendo que o outro modo de influir em suas decisões seria pressionando-os, na atuação dos grupos sociais ativos, no período entre eleições. A participação política da grande maioria população se restringiria ao voto e, quando muito, à pressão social exercida por grupos organizados.

Robert Dahl (1997DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: EDUSP, 1997., p. 25-27), por exemplo, expoente desta teoria democrática contemporânea, aponta como “característica-chave da democracia” a “contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos”, e afirma que um modelo que atendesse a esta característica seria o modelo ideal. O autor indica como três condições necessárias à democracia que seus cidadãos tenham oportunidades plenas de “formular suas preferências”, que possam “[...] expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e da coletiva” e, por fim, “[...] ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência.” Dahl liga estas três condições a oito garantias que também deverão ser fornecidas pelo sistema democrático, a saber: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio e votos; fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas; instituições que façam com que as políticas do governo dependam de eleições e outras manifestações de preferência. O autor ainda liga a questão da democratização a pelo menos duas dimensões: a contestação pública e o direito de participação, admitindo que há outras dimensões.

Vê-se bem que o modelo democrático propugnado pelo autor avança consideravelmente se comparado com a teoria schumpeteriana da democracia, mas não vai além do modelo descrito por Pateman. Neste sentido, Dahl (1997DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: EDUSP, 1997., p. 39) chega a endossar a opinião de Gaetano Mosca de que “[...] no fim das contas todo regime é dominado por uma minoria governante.” Pelo menos o autor admite que, no seu entender, “[...] nenhum grande sistema no mundo real é plenamente democratizado”, motivo pelo qual ele prefere designar regimes relativamente democráticos existentes como “poliarquias” (DAHL, 1997DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: EDUSP, 1997., p. 31).

Outro célebre representante da teoria da democracia contemporânea é o ex-professor da Universidade de Colúmbia Giovanni Sartori (1994SARTORI, Giovani. Teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994. v. 2., p. 18) que afirmou abertamente, em uma de suas obras, que “[...] o significado atual de democracia se afasta de seu sentido grego e tem pouco a ver com um povo que se autogoverna”, sendo que esta “[...] transformação reflete os repetidos fracassos históricos desse autogoverno.” Para o autor, “[...] a história demonstra que as democracias gregas e as comunas medievais que de certa forma as repetiram tiveram uma existência turbulenta, além de efêmera”, e que “[...] a democracia baseada na participação direta revelou-se muito frágil, mesmo em suas condições irreproduzíveis de teste: a comunidade compacta unificada por um ethos religioso, moral e político convergente que era a polis.” A democracia grega gerou, destarte, um modelo de “cidadania total” que, segundo o autor, teria ido longe demais (SARTORI, 1994SARTORI, Giovani. Teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994. v. 2., p. 38-39).

Sartori (1994SARTORI, Giovani. Teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994. v. 2., p. 37, grifo do autor) pontua a radical diferença entre a democracia clássica (direta) e a atual (indireta):

Nessa justaposição, a democracia direta permite a participação contínua do povo no exercício direto do poder, ao passo que a democracia indireta consiste, em grande parte, num sistema de limitação e controle do poder. Nas democracias atuais, existem os que governam e os que são governados; há o Estado, de um lado, e os cidadãos, do outro; há os que lidam com a política profissionalmente e os que se esquecem dela, exceto em raros intervalos. Nas democracias antigas, ao invés, essas diferenciações tinham muito pouco significado.

Ele entende que quanto maior o contingente envolvido na participação política, menos efetiva é a mesma, e que a democracia direta é impraticável em territórios amplos e em nações na sua integralidade. Entende, ainda, que “[...] uma ‘democracia de referendo’, uma democracia eletrônica, embora seja tecnicamente exequível, seria desastrosa e, com toda a probabilidade, suicida.” (SARTORI, 1994SARTORI, Giovani. Teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994. v. 2., p. 40-41).

Após fazer a crítica destes modelos de democracia direta, o autor faz o elogio da democracia liberal, cujo o controle do poder seria façanha de igual estatura comparada à democracia grega, já que houve a resolução do problema não enfrentado na vertente histórica de proporcionar uma liberdade segura para todos os indivíduos (SARTORI, 1994SARTORI, Giovani. Teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994. v. 2., p. 41).

Sartori (1994SARTORI, Giovani. Teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994. v. 2., p. 50) exalta, também, a relevante influência exercida pelo liberalismo no regime democrático atual:

[...] o progresso atual da democracia sobre o liberalismo é pequeno em comparação ao progresso feito pelo liberalismo moderno sobre a democracia antiga. Por menos que tenham consciência do fato, a democracia em que acreditamos e que praticamos é a democracia liberal.

Resta evidente nos poucos trechos destacados que Giovanni Sartori também faz coro junto aos resignados defensores da versão fraca de democracia que persiste na contemporaneidade, que se aferrou ao sufrágio e à igualdade formal para legitimação do modelo liberal.

Nesta teoria da democracia, segundo Pateman, cumpre demarcar que a “igualdade política” restringe-se ao sufrágio universal e à igual oportunidade de acessar os canais de influência sobre os líderes. A participação, neste contexto, torna-se participação na escolha dos líderes competentes para a tomada de decisões. E, “[...] por conseguinte, a função da participação nessa teoria é apenas de proteção; a proteção do indivíduo contra decisões arbitrárias dos líderes eleitos e a proteção de seus interesses privados. É na realização desse objetivo que reside a justificação do método democrático.” (PATEMAN, 1992PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 25).

Deste modo, “[...] a teoria democrática não está mais centrada na participação ‘do povo’, na participação do homem comum”, e “[...] o que importa é a participação da elite minoritária, e a não-participação do homem comum, apático, com pouco senso de eficácia política é vista como a principal salvaguarda contra a instabilidade.” (PATEMAN, 1992PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 138-139). Luis Felipe Miguel (2002MIGUEL, Luís Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados, Rio de Janeiro, v. 45, n.3, p. 483-511, 2002., p. 484) concorda que o povo não governa realmente em nenhum dos regimes tidos como democráticos, sendo que “[...] as decisões políticas são tomadas por uma minoria, via de regra mais rica e mais instruída do que os cidadãos comuns, e com forte tendência à hereditariedade.”

A participação popular, segundo Pateman, carrega o estigma do totalitarismo, pois a queda da República de Weimar contou com altas taxas de participação das massas com tendência fascista, e deu ensejo a um sistema totalitário, também caracterizado pela participação (só que forçada, coerciva). Este histórico fez com que a “participação” estivesse mais vinculada ao totalitarismo que à própria democracia (PATEMAN, 1992PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 11).

2.2 - A questão do conflito

Luís Felipe Miguel afirma que, após a virada schumpeteriana na teoria democrática, os princípios democráticos foram (e são) desconsiderados nas pesquisas acerca desse regime político, já que não há propriamente uma preocupação com seus elementos essenciais, tais como a soberania popular, a igualdade política e de participação política decisória entre os cidadãos. O que se observa é que “por trás de uma fachada de respeito à soberania popular e de igualdade política, importante sobretudo para garantir a legitimidade do sistema, um governo de minorias imperaria na democracia” (MIGUEL, 2017______. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2017., p. 44).

O autor destaca o caráter paradoxal da “democracia representativa”, na medida em que o regime político nela estabelecido confere ao povo a titularidade da soberania, mas o deixa distante dos locais em que o poder político é efetivamente exercido. Se as democracias modernas tiveram que aderir à representação formal, em virtude da extensão territorial e do tamanho das populações dos Estados, ainda mais após a expansão do sufrágio para a quase totalidade dos grupos sociais, é inegável que a representação dificulta consideravelmente a efetivação da democracia, o que evidentemente não será solucionado, e nem mesmo mitigado, com a intensificação de instrumentos como, por exemplo, a accountability (MIGUEL, 2017______. Consenso e conflito na democracia contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2017., p. 41).

Neste sentido, Jacques Rancière afirma que os especialistas sempre disseram haver um paradoxo democrático, já que a democracia seria o reino do excesso, como forma de vida sociopolítica, mas este elemento excessivo significaria a ruína da democracia, devendo ser reprimido. Hoje os governantes afirmam a ingovernabilidade da democracia (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 17-18).

E em virtude da “ingovernabilidade” que o ideal democrático geraria, caso levado a sério, impõe-se um regime político anódino, de baixa intensidade, que parece existir justamente para que se legitime a dominação política, ao mesmo tempo em que se bloqueia qualquer possibilidade efetivamente mudancista que poderia advir da atuação da soberania popular. Segundo Miguel, reduziu-se o regime democrático a um “método de seleção de minorias governantes que nada, ou muito pouco, se conecta com uma ideia de so berania popular. Uma ‘democracia domesticada’, em que os elementos de potencial atrito com a ordem capitalista foram eliminados”. Houve, ainda segundo o autor, uma “ressemantização” profunda do vocábulo democracia, o que “condiz com a tendência das correntes majoritárias das ciências sociais, em geral, e da ci ência política, em particular, à reificação da realidade existente” (MIGUEL, 2012______. Democracia e sociedade de classes. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 9, p. 93-117, set./dez. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pdf>. Acesso em: jan. 2013.
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pd...
, pp. 93-94).

Rancière lembra que, antes, dois paradigmas governamentais eram confrontados, a democracia e o totalitarismo, representando este último a negação dos elementos centrais ao primeiro, como os direitos individuais e as formas constitucionais de manifestação popular, como as eleições livres, a liberdade de expressão e de associação. O Estado totalitário era “total”, como o próprio nome indica, e representava a supressão da divisão tão cara ao Estado de Direito entre sociedade e Estado, significando, ao contrário, a completa inserção do poder público nas relações sociais, a extensão do Estado por toda a sociedade, em suma, “um Estado que devorava a sociedade”. Hoje, essa dicotomia simplesmente se perdeu, e passou a haver uma aproximação ostensiva entre participação popular e totalitarismo, passando a democracia (em sentido ideal, mais próximo de sua etimologia) a ser “concebida como uma sociedade que devora o Estado”. A crítica liberal consiste, portanto, em contrapor os “rigores totalitários da igualdade” à “sábia república das liberdades individuais e da representação parlamentar”. Procede-se à redução do princípio da igualdade democrática à igualdade da troca mercantil, à igualdade meramente formal, que torna inócuo o princípio democrático, instrumentalizando-o para a reprodução do sistema capitalista (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 21-24).

Miguel também destaca o “casamento” operado entre esta “democracia domesticada” e o capitalismo como elemento estrutural das sociedades ocidentais contemporâneas, juntamente com o patriarcado nos arranjos familiares. O autor destaca que há quem veja neste “casamento” o “fim da história”, a “organização social definitiva”, algo amplamente aceito tanto pelo senso comum, quanto pela mídia hegemônica e mesmo por boa parte das ciências sociais, sendo afastados os questionamentos acerca da problemática relação e os constrangimentos impostos pelo capitalismo ao funcionamento das democracias atuais. Mesmo as leituras consensuais da democracia (como a de matriz habermasiana) reconhecem a existência e a necessidade de enfrentamento de diferenças de raça, gênero, entre outras, mas muitas vezes mostram-se silentes com relação à desigualdade própria ao capitalismo (MIGUEL, 2012______. Democracia e sociedade de classes. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 9, p. 93-117, set./dez. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pdf>. Acesso em: jan. 2013.
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pd...
, pp. 93, 95).

O cientista político ainda destaca a existência de uma crença no caráter inevitável da ordem capitalista, fazendo com que as teorias sociais, mesmo as tidas como “críticas”, permaneçam resignadas ao sistema socioeconômico vigente que não mais tem o contraponto do comunismo em nenhum país poderoso, o que deu ensejo ao recrudescimento das posições liberais, mesmo em partidos políticos e teóricos de esquerda. Presenciou-se, nas últimas décadas, uma “evasão ao enfrentamento da questão das relações de produção”, tendo o pensamento progressista “privilegiado a busca do aprimoramento do convívio político, emblematizado em rótulos como ‘multiculturalismo’ ou ‘democracia deliberativa’” (MIGUEL, 2012______. Democracia e sociedade de classes. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 9, p. 93-117, set./dez. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pdf>. Acesso em: jan. 2013.
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pd...
, p. 96).

Mesmo a teoria crítica se afastou da influência teórica do marxismo3 3 Ocorre que, como nos adverte Jacques Rancière, pensar numa democracia “real” contra um regime das aparências, dos simulacros, é algo que pode ser encontrado no próprio bojo do pensamento marxista: “O jovem Marx não teve nenhuma dificuldade para desvendar o reino da propriedade no fundamento da constituição republicana. Os legisladores republicanos não fizeram nenhum mistério disso. Mas ele soube estabelecer um padrão de pensamento que ainda não se esgotou: as leis e as instituições da democracia formal são as aparências por trás das quais e os instrumentos com o quais se exerce o poder da classe burguesa. A luta contra essas aparências tornou-se então a via para uma democracia ‘real’, uma democracia em que a liberdade e a igualdade não seriam mais representadas nas instituições da lei e do Estado, mas seriam encarnadas nas próprias formas da vida material e da experiência sensível” (RANCIÈRE, 2014, p. 9). para se aproximar de modelos que rechaçavam o conflito:

O refluxo da influência do marxismo, desencadeado, em grande medida, pela crítica a insuficiências reais em seu arcabouço teó rico, associou-se ao paulatino avanço, mesmo entre as correntes “críticas” de pensamento, de modelos idealistas e com ojeriza ao conflito. O mais influente deles é, certamente, a busca do consenso comunicativo racional, de inspiração habermasiana. Ainda que não se possam universalizar as críticas às aplicações da obra de Habermas à teoria democrática, que são diversas e variadas, um ponto de partida comum é a ideia de que os atos de fala possuem caracterís ticas intrínsecas que fazem com que o consenso seja seu télos subjacente. E de que, como a razão se opõe ao interesse, mecanismos que forcem privilegiar a argumentação racional na esfera pública contribuirão para promover o bem comum, deixando em segundo plano os interesses particularistas (MIGUEL, 2012______. Democracia e sociedade de classes. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 9, p. 93-117, set./dez. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pdf>. Acesso em: jan. 2013.
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pd...
, pp. 99-100).

Por fim, Miguel aponta a compatibilização entre democracia e desigualdade social, já que à primeira foi esvaziado o sentido (clássico), sendo reduzida a um método de escolha de elites políticas governantes, estabelecendo-se um mercado político em consonância e a reboque do mercado econômico. Essa dependência com relação ao capital aparta a democracia da soberania popular e bloqueia “medidas que afetem os níveis de remuneração minimamente aceitáveis para o capital, que gerariam uma retração da atividade econômica que colo caria em risco todas as ações governamentais” (MIGUEL, 2012______. Democracia e sociedade de classes. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 9, p. 93-117, set./dez. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pdf>. Acesso em: jan. 2013.
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/04.pd...
, pp. 106, 107).

Esta democracia liberal já dá mostras de esgotamento, bastando observar a realidade de alguns países latino-americanos para que se possa confirmar tal diagnóstico:

Nesse sentido, o fracasso da experiência latino-americana, em especial em seu setor mais desenvolvido - capitaneado pelo Brasil -, não é apenas algo que diz respeito a uma região periférica do capitalismo mundial: ele representou a paulatina tomada de consciência de que o tempo da democracia liberal e seus acordos não mais existia. Nós havíamos chegado tarde demais. Por isso, a experiência latino-americana expôs, de forma mais explícita, o que o resto do mundo começará a descobrir de forma dramática. Ela trouxe como saldo a consciência de que uma política de conciliação impulsionada por ajustes gradualistas, facilmente anulados no primeiro retorno ao poder dos núcleos dirigentes tradicionais (como vemos claramente no Brasil desde o golpe parlamentar de 2016), não tem mais lugar (SAFATLE, 2017______. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 19).

Esgotamento este que, segundo Vladimir Safatle, foi catalisado pela ascensão do neoliberalismo e seu esvaziamento da política, que agora pouco decide sobre a economia:

Restringindo paulatinamente o horizonte de políticas públicas, impondo a versão de que, no que diz respeito à economia, “não há escolha”, mesmo diante do caráter suicida do sistema financeiro internacional, explícito desde a crise dos subprimes, o neoliberalismo conseguiu esvaziar a política e suas instituições. Seu mundo é a reedição de um mundo pré-político, no qual as relações sociais se resumem à gestão militarista da segurança e às garantias da perpetuação dos modos atuais de circulação da riqueza. Aos poucos, ficou evidente como a política mundial, depois de esvaziada da possibilidade de decidir modificações efetivas na esfera da economia, tornara-se uma mera pantomima, composta de personagens exímios em demonstrar sua impotência (SAFATLE, 2017______. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 28).

Mas, ainda segundo Safatle, se o neoliberalismo vendia promessas na década de 1980, hodiernamente só propaga o medo, propugnando uma sociedade cada vez mais militarizada e uma gestão social que mais parece a gestão de uma guerra civil permanente, valendo-se do terrorismo ou da violência nas ruas como elemento aglutinador da população. Daí o fenômeno de consolidação de uma extrema-direita cada vez mais ostensiva, desavergonhada, a ocupar um não negligenciável espaço no debate político. Neste contexto, a figura do gestor liberal, portador da racionalidade política e da tolerância, ganha vulto e aparece como uma boa opção diante da direita irracional e raivosa (SAFATLE, 2017______. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., pp. 33-34).

O que se observa hoje é, além da militarização da sociedade e da gestão do medo, a dissociação entre política e economia como elemento central da governabilidade, o que implica mais uma vez na máxima elitista de separação do povo em uma maioria apta ao governo e às decisões da esfera pública convivendo com uma maioria ignara, inapta para compreender assuntos complexos como o arranjo econômico e seus matizes, de modo que as “decisões econômicas não poderiam ser submetidas ao desejo político da mesma forma que a razão não poderia se submeter aos interesses e crenças”. Nas democracias liberais, portanto, haveria grande autonomia da economia, devendo esta permanecer imune à política e aos anseios populares. É a separação operada entre a economia e a soberania popular (SAFATLE, 2017______. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., pp. 123-124).

Rancière, de seu lado, defende que a democracia não seria nem mesmo um regime político ou uma forma de sociedade, sendo a “sociedade democrática” uma “pintura fantasiosa”, que serve de elemento legitimador das sociedades (do presente e do passado) que sempre foram governadas por oligarquias. Há a redução da discussão a uma pretensa dicotomia entre democracia direta e democracia indireta, sendo mais correto analisar os dois modelos históricos de democracia como modelos oligárquicos, governos de minorias sobre maiorias. Assim, para o filósofo francês, a representação não existe para fazer frente ao impacto na política do crescimento populacional, como se fosse a fórmula necessária de adaptação da democracia à modernidade, mas tão somente uma forma oligárquica, em que uma minoria se ocupa dos negócios públicos. Além disso, as eleições não seriam, em si, momentos de expressão da voz do povo, mas de um consentimento e da legitimação de um poder superior (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., pp. 68-70).

Contra a aceitação da acomodação da desigualdade na Democracia, bem como contra a construção de um regime político que rechaça o demos, seu elemento central, reivindicando a racionalidade política para poucos (elite capaz de governar) em detrimento da maioria irracional e incapaz de manifestar sua vontade na condução da coisa pública (Cf. SCHUMPETER, 1984SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984., passim), urge relembrar, mais uma vez com Rancière, que a Democracia é justamente o regime de governo que rompe com a “ordem de filiação” (humana ou divina), e com a ordem da riqueza, que quebra a noção de hierarquia social e hereditariedade no que concerne à detenção do poder político, o que implica no fato de que a democracia é o poder de “qualquer um”4 4 Ou, como assevera Alain Badiou (2010, pp. 9-10), “in effect, emancipatory politics is essentiality the politics of the anonymous masses; it is the victory of those with no names, of those who are held in a state of colossal insignificance by the State”. , daqueles que não detêm qualquer título, pautado pela indiferença das capacidades para se ocupar as posições de governante ou governado. Em suma, “a democracia não é nem uma sociedade a governar nem um governo da sociedade, mas é propriamente esse ingovernável sobre o qual todo governo deve, em última análise, descobrir-se fundamentado” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., pp. 61, 62, 63, 66).

Rancière indica que a luta a ser travada passa pela redefinição da divisão operada entre esfera pública e privada que, segundo ele, garantiria a dominação oligárquica em ambas as esferas, no Estado e na sociedade. A luta implica, portanto, na ampliação da esfera pública, o que implicou no reconhecimento da “qualidade de iguais e de sujeitos políticos àqueles que a lei do Estado repelia para a vida privada dos seres inferiores; conseguir que fosse reconhecido o caráter público de tipos de espaço e de relações que eram deixados à mercê do poder da riqueza”. Segundo o autor, seria a divisão entre as esferas componente da estratégia de dominação, com a separação entre a coisa pública e os interesses privados da sociedade, situando-se a igualdade entre as pessoas somente no âmbito público, da esfera jurídico-política, que pertenceria a todos, diferentemente da esfera privada em que reinaria a liberdade individual. Esta “liberdade” redundaria, efetivamente, na dominação dos que “detêm os poderes imanentes à sociedade”, os detentores das riquezas. O que se tem, portanto, é a divisão das duas esferas com a finalidade de se exercer a dominação oligárquica sobre ambas de forma mais eficaz (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., pp. 72-75).

Neste contexto, o “movimento democrático” seria, justamente, um movimento dirigido à transgressão dos limites estabelecidos oligarquicamente, em direção à igualdade radical, uma igualdade que chega a domínios outros da vida social e que contempla aqueles que não foram agraciados com a riqueza material capitalista, e que reafirma o pertencimento à esfera pública a todos, a despeito de sua incessante privatização. O processo democrático implica na “ação de sujeitos que, trabalhando no intervalo das identidades, reconfiguram as distribuições do privado e do público, do universal e do particular”, uma constante contestação da “perpétua privatização da vida pública”. A ausência de limitação democrática consiste, neste sentido, “não na multiplicação exponencial das necessidades ou dos desejos que emanam dos indivíduos, mas no movimento que desloca continuamente os limites do público e do privado, do político e do social”, deslocamento este contra o qual se insurge a “ideologia republicana”, que exige a delimitação dos dois âmbitos e a submissão ao império da lei, situando o Estado como um terceiro “neutro”, “indiferente às diferenças sociais”. A “república” funciona como “sistema de instituições, leis e costumes que suprime o excesso democrático homogeneizando Estado e sociedade” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., pp. 81-82, 88).

A grande aspiração da oligarquia é, para além de todo simulacro e toda ilusão, governar sem povo e sem política. O governo oligárquico, segundo Rancière, teria uma verdadeira compulsão de se livrar da política e do povo, e atuando como simples “gestores dos impactos locais da necessidade histórica mundial, nossos governos se empenham em rechaçar o suplemento democrático”, operando a despolitização dos assuntos públicos:

Inventando instituições supraestatais que não são Estados, que não prestam contas a nenhum povo, eles realizam o fim imanente a sua própria prática: despolitizar assuntos públicos, situá-los em lugares que sejam não-lugares, e não deixam espaço para a invenção democrática de lugares polêmicos. Assim, os Estados e seus especialistas podem se entender tranquilamente entre si (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., pp. 102, 103, 105).

Num diagnóstico de atualidade patente, o filósofo francês afirma que o enfraquecimento dos Estados seria um engodo, na medida em que a “nova partilha dos poderes entre capital internacional e Estados nacionais tende bem mais para o fortalecimento dos Estados do que para seu enfraquecimento”. A luta contra o Estado Providência é tão somente contra suas instituições de solidariedade, não configurando, propriamente, um recuo da instituição estatal, mas atendendo à lógica da redistribuição, “entre a lógica capitalista do seguro e a gestão estatal direta, de instituições e funcionamentos que se interpunham entre as duas” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., pp. 105, 106).

Por fim, adverte Rancière que “o ‘governo de qualquer um’ está fadado ao ódio infindável de todos aqueles que têm de apresentar títulos para o governo dos homens: nascimento, riqueza ou ciência”. Hodiernamente, este ódio está ainda mais pronunciado em virtude da não aceitação dos entraves democráticos ao crescimento do poder da riqueza. Ademais, os poderes da riqueza e do Estado estão cada vez mais conjugados na gestão dos “fluxos de dinheiro e populações” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., pp. 119, 120).

Ocorre que não se pode confundir a democracia nem com governo da oligarquia que busca se legitimar, nem com uma forma social controlada pelo poder da mercadoria, mas como “ação que arranca continuamente dos governos oligárquicos o monopólio da vida pública e da riqueza a onipotência sobre a vida” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 121).

Vladimir Safatle também destaca a perda da capacidade de “pensar a democracia como ponto de excesso em relação ao Estado de Direito porque acreditamos que tudo o que se coloca fora do Estado de Direito só poderia ter parte com o mais claro totalitarismo”. Ou seja, prossegue o autor, é pensar numa dimensão que comportaria uma posição “soberana”, ou de insubmissão à lei, como no caso de pessoas que rompem abertamente com as determinações normativas (os criminosos) ou daqueles que, em situações excepcionais, estabelecem a possibilidade de suspensão de certos dispositivos legais (o legislador). O autor fala de um terceiro caso de “excesso em relação ao Estado de Direito” que seria justamente a possibilidade tanto de exigência quanto de exclusão do próprio Direito (apoia-se em Jacques Derrida, para a construção deste argumento). Safatle aponta que, longe de fragilizar ou mesmo solapar as bases da democracia, esta “possibilidade” apontada é justamente um elemento de fortalecimento da democracia, é a manifestação soberana por parte de seu povo, que erige uma ordem normativa e pode excluí-la também, que constrói institucionalidades, bem como pode derrubá-las, é a soberania popular em sua plena potência. Além disso, o autor ainda afirma o fato inconteste de que “nenhum ordenamento jurídico pode falar em nome do povo”, o “ordenamento jurídico de uma sociedade democrática reconhece a sua própria fragilidade, sua incapacidade de ser a exposição plena e permanente da soberania popular” (SAFATLE, 2012SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012., pp. 40-41, 47).

É evidente, segundo o autor, que o “Direito se enfraquece quando não é mais capaz de reconhecer suas próprias limitações”, sendo que a própria formulação do Direito “contém a exigência de sua reformulação”, e “só assumindo esse excesso que a democracia pode existir”, excesso este que só teria um limite colocado que é sua “autodissolução”, como, por exemplo, com a estigmatização de parte do povo, o que redundaria na dissolução da própria soberania popular (SAFATLE, 2012SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012., pp. 49-50).

Trata-se, portanto, de se retirar poder da instituição estatal e, cada vez mais, devolvê-lo ao povo soberano:

Não deixa de ser dramático ver membros de certa esquerda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige instituições fortes: a democracia não exige um poder instituído forte e não deve depender de instituições que sempre funcionaram mal. Do ponto de vista institucional, a democracia tem uma plasticidade natural. Ela depende, e isso é totalmente diferente, de um poder instituinte soberano e sempre presente. Ou seja, depende de um aprofundamento da transferência do poder para as instâncias de decisão popular que podem e devem ser convocadas de maneira contínua (SAFATLE, 2012SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012., p. 51).

Safatle recorda que o pensamento progressista deve se ancorar em dois pontos cardeais: a já mencionada soberania popular e a defesa radical do igualitarismo. Nunca é demais lembrar que “a luta contra a desigualdade social e econômica é a principal luta política”, sendo ela a que “submete todas as demais”. E, além disso, não adianta erigir a igualdade como bandeira central a ser empunhada se junto com isso não vir um posicionamento claro que exorbite o âmbito retórico de tal exortação. Volta-se, mais uma vez, ao elemento institucional que, no contexto, configuraria o ponto inicial a ser disputado se se quiser dar materialidade ao princípio buscado. Safatle, sobre isso, adverte: “o problema da desigualdade só pode ser realmente minorado por meio da institucionalização de políticas que encontram no Estado seu agente”, já que, “de outra forma, elas nunca terão a escala e a universalidade necessárias para funcionar”. O Estado seria, neste sentido, “a única instituição que garante o estabelecimento de processos gerais capazes de submeter toda a extensão da sociedade” e, portanto, não pode ser negligenciado seu potencial transformador no contexto atual (SAFATLE, 2012SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012., pp. 21, 23).

A despeito das já mencionadas limitações ao caráter transformador do Estado, parece claro que o espaço político institucionalizado é um local privilegiado da luta pela mudança social.

Safatle destaca, ainda, o Estado como elemento que pode ser sensível às pressões sociais, não havendo outra instituição com tal magnitude e acessibilidade:

Por outro lado ele é resultado de uma rede de normas sociais cuja configuração é sensível à pressão da sociedade organizada. Tal pressão pôde, em vários momentos da história do século XX, transformar o Estado em força capaz de limitar interesses de concentração de riquezas vindos dos setores mais afluentes da sociedade. Não há outra instituição capaz de desempenhar papel semelhante. Por isso, em nome do combate à desigualdade econômica, a esquerda não pode abrir mão do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado (SAFATLE, 2012SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012., p. 23).

Rancière (2014RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 72) afirmou que a ampliação da esfera pública não significaria a exigência de uma maior intervenção estatal na sociedade, mas lutar contra a cisão entre público e privado que, segundo ele, garantiria a dominação oligárquica nos dois âmbitos. Ocorre que mesmo a demarcação operada entre público e privado, bem como a luta para mover os “marcos” delimitadores de tal diferenciação, passariam, ao menos num primeiro momento, pelo manejo da institucionalidade estatal. Ou seja, a operação de tal mudança requer, inicialmente, que o Estado ceda à mesma, e que dê os novos contornos normativos a tal divisão.

A luta pela igualdade radical não implica, necessariamente, numa luta a ser operada tão somente no interior das instituições vigentes, mas talvez tenha que passar pelo Estado num momento inicial, o que faz com que ele seja um instrumento privilegiado para o sucesso da empreitada.

Como recorda Safatle (2012SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012., p. 24), “os últimos trinta anos demonstraram claramente como dinâmicas de redistribuição e de luta contra fraturas sociais não se realizam sem a força de intervenção do Estado”.

Considerações Finais: quem está a ponto de emergir?5 5 Safatle dedicou seu último ensaio de intervenção (2017) “aos que estão a ponto de emergir”.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não têm cultura, e sim folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata. Eduardo Galeano (2014GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: Editora L&PM, 2014.).

Deve-se, deste modo, trazer novamente a soberania popular como elemento essencial da democracia.

A ideia de Fábio Konder Comparato (1989COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989., p. 61-82) de pensar a soberania em termos de uma “soberania dos pobres” é de suma importância. Comparato (1989, p. 68-69) ressalta que desde 1934 todas as Constituições brasileiras inscrevem, inicialmente, a proclamação de que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Ocorre que a solenidade desta fórmula que perdura na história constitucional brasileira serve para encobrir o efetivo recuo histórico da soberania popular, com a eliminação de todo poder ativo do povo soberano. Vale reforçar, a este respeito, que esta “emanação” não deve ser compreendida em um “sentido naturalista de um procedimento único”, mas enquanto uma instância permanente (MÜLLER, 2003MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? 3.ª ed. Trad. Peter Neumann. São Paulo: Max Limonad, 2003., p. 62). O poder “emana” do povo e deve ser por ele exercido permanentemente.

Comparato propõe a “soberania dos pobres” valendo-se da definição que Aristóteles atribuía à democracia não como o regime da soberania popular, mas da soberania dos pobres, assim como a oligarquia era identificada como regime do poder atribuído aos ricos. Ocorre que a teoria democrática moderna fez a opção pela soberania do “povo”, como entidade una, não contemplada em sua complexidade, composta por indivíduos estritamente iguais. Esta noção totalizante adotada, a qual cabe exercer o poder por meio do voto majoritário, “mais esconde do que revela a realidade do poder efetivo na sociedade” (COMPARATO, 1989COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989., p. 70).

A vinculação da teoria moderna da soberania popular com a ideologia do liberalismo econômico é evidenciada pelo autor:

[...] em ambas, reconhece-se o mesmo horror à realidade do poder, como fenômeno pudendo da vida social; a mesma ojeriza à submissão de um homem à vontade de outro homem. E assim como, no terreno econômico, a vida seria regulada pela organização espontânea e impessoal do mercado, da mesma forma, no campo político, a lei, expressão da ‘vontade geral’, racional e abstrata, ficaria sempre acima da vontade concreta dos homens (...). Ou seja, um poder político sem titular (COMPARATO, 1989COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989., p. 73).

Trata-se de optar, em reação a este quadro, pela democracia da soberania dos excluídos em vez da oligarquia do governo dos ricos, tendo-se em vista que os pobres são os maiores interessados na instauração de um regime de igualdade, em diversos níveis (cultura, poder, produção, etc.), além de representarem enormes contingentes, mormente em países subdesenvolvidos. E, ademais, conferir a soberania efetivamente ao povo significa modificar essencialmente o esquema de poder. (COMPARATO, 1989COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989., p. 73, 76).

Noutra vertente do pensamento, pode-se criticar, com Safatle, o abandono operado pela teoria social da categoria “proletariado” enquanto sujeito revolucionário:

Certamente, a forte integração do operariado aos sistemas de seguridade e às políticas corretivas dos ditos Estados do bem-estar social, a partir dos anos 1950, muito contribuiu para a consolidação desse diagnóstico. Note-se como Habermas - olhando para a ausência de candidatos a ocupar a vaga de atores globais de transformação revolucionária depois dessa integração da classe operária e do posterior enfraquecimento do próprio Estado do bem-estar social - insistirá em ler tal situação como expressão de esgotamento de “’uma determinada utopia que, no passado, cristalizou-se em torno do potencial de uma sociedade do trabalho”. Esgotamento que levará alguém como Axel Honneth a afirmar, recentemente, que a própria crença no papel privilegiado do proletariado no interior de uma política revolucionária não passava de um “dogma histórico-filosófico” (SAFATLE, 2015______. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 324; grifou-se).

O autor entende, no entanto, que “com a saída de cena do proletariado enquanto figura por excelência da subjetividade política, perde-se o mais importante dispositivo de determinação genérica das lutas sociais no século XX”. Ganham centralidade as “multiplicidades” em detrimento da universalidade do proletariado, ficando em segundo plano, igualmente, a questão da luta de classes. Ganhou vulto a concepção multiculturalista6 6 Por fim devemos lembrar como essa mutação acaba por se encontrar com outra série de modificações ligadas, por sua vez, à compreensão, ocorrida a partir dos anos 1970, das lutas de grupos historicamente vulneráveis e espoliados de direitos (negros, gays, mulheres) como lutas de afirmação cultural das diferenças. Isso significa afirmar que elas não foram apenas compreendidas como setores de uma luta mais ampla de ampliação de direitos universais a grupos até então excluídos, mas como processos de afirmação das diferenças diante de um quadro universalista pretensamente comprometido com a perpetuação de normas e formas de vida próprias a grupos culturalmente hegemônicos. O desenvolvimento das temáticas ligadas ao multiculturalismo muito colaborou para isso (SAFATLE, 2015, pp. 326-327). .

Passou-se, destarte, da centralidade da luta de classes para a luta por reconhecimento no campo da cultura:

Dessa forma, estavam dadas as condições gerais para que a compreensão filosófica das lutas políticas passasse necessariamente de uma abordagem centrada no conflito de classes a uma abordagem centrada em múltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida sexual, das etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais da pessoa. Uma multiplicidade de campos que teriam sido levados ao centro da cena política depois da aceitação tácita da impossibilidade de uma política revolucionária baseada na instrumentalização da luta de classes (SAFATLE, 2015______. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 328-329).

Safatle retoma a teoria marxista das revoluções e compreende que ela, mais que uma teoria das crises, seria uma “teoria da emergência de sujeitos políticos com força revolucionária”. Neste sentido, diante das crises econômicas, “se não houver a realização política de processos de emergência de novos sujeitos, nenhuma crise será a porta para a superação do capitalismo”. Na teoria marxista não resta dúvida de que o proletariado é o ator revolucionário por excelência, e que enquanto “categoria ontológica que diz respeito a certo modo de existência com grande força revolucionária, é um modo que depõe regimes de existência baseados na propriedade, no individualismo possessivo e na identidade, com seus sistemas defensivos e projetivos” Proletário é, portanto, mais que a designação de uma classe de trabalhadores desprovidos de propriedade, também a designação de uma condição própria da emergência de sujeitos políticos (SAFATLE, 2017______. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 102; 2015, p. 335).

O autor (SAFATLE, 2017______. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 103) lembra que as diversas revoltas sociais que infestaram a Europa no século XIX se converteram em verdadeiras ameaças “quando todas as ruas em chamas foram vistas como a expressão de um só corpo político, um só sujeito em marcha compacta pelo desabamento de um mundo que teimava em não cair”. E a formação desse sujeito político único só emergiu “quando os mineiros deixaram de ser mineiros, os tecelões deixaram de ser tecelões e se viram como um nome genérico, a saber, ‘proletários’, a descrição de quem é totalmente despossuído, de quem é ninguém”.

E aí, a multiplicidade se tornou um corpo só, em uníssono, em rebelião contra a sociedade injusta:

Foi quando a multiplicidade das vozes apareceu como a expressão da univocidade de um sujeito presente em todos os lugares, mas com a consciência de sua ausência radical de lugar, que a revolta deixou de ser apenas revolta. Pois essa força de síntese de outra ordem que aparece através da univocidade da nomeação era a condição para que a imaginação política entrasse em operação, permitindo a emergência de um novo sujeito. De certa forma, é isto que nos falta: precisamos ser, mais uma vez, proletários (SAFATLE, 2017______. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 103).

Safatle define o proletariado como uma “heterogeneidade social que simplesmente não pode ser integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária”, e que “desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de vida”. Um ser que é “ninguém”, já que nega a si mesmo, é inominável e não pode ser representado por nenhuma instituição (SAFATLE, 2017______. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., pp. 104, 105).

Deste modo, segundo Safatle, seria a absoluta despossessão que definiria a emergência do proletariado7 7 A categoria do proletariado também não se confunde com a do “povo”, já que esta se apresenta definida enquanto configuração identitária: “É possível dizer, inclusive, que o “proletariado” é a nomeação política da força social de desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade. Por essa razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a categoria de povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e limitadora que define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma espécie de antipovo, se pensarmos no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a provisoriedade das identidades, Estado e nações, assim como da pulsação constante de integração do que se afirma inicialmente como exceção não contada” (SAFATLE, 2015, p. 346). . Retomando a categoria tal como considerada em Roma antiga, o autor aponta que os proletários não tinham propriedade alguma, não sendo, em virtude disso, cidadãos com direito a votar, sendo sua única possessão a capacidade de procriação, e representando, por isso, a “condição biopolítica mais elementar”, seres reprodutores apenas, pessoas que fazem crianças, como indica a etimologia da palavra. Será apenas na revolução francesa que a expressão ganhará cada vez mais conotação política, abarcando aqueles que recebem salário para a necessidade mais basilar da própria conservação. Neste tema, a originalidade de Marx residiria em “vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou, antes, a uma teoria da luta de classes que é a expressão da ‘história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente’”, uma guerra de classes “no interior da qual cada uma das classes aparece como conjunto daqueles que de nada mais dispõem. Por isso, uma guerra que não pode levar à vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade (...)” (SAFATLE, 2015______. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015., pp. 336-337).

Sobre essa classe sem posses e sem identidade, que representa efetivamente a maioria da população, e que mandará para os ares a sociedade da exploração capitalista, há o célebre trecho de Marx e Engels:

Até hoje, todos os movimentos foram ou movimentos de minorias ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria em favor dos interesses dessa imensa maioria. O proletariado, a mais inferior das camadas da sociedade de hoje, não pode ser erguer, não tem como se levantar, sem que voe pelos ares a superestrutura das camadas que compõem a sociedade oficial (MARX; ENGELS, 2012MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., pp. 56-57).

É justamente ele, o proletariado, que volta à cena. Sem identidade e marcado pela despossessão. Os sem filiação, os malditos, os miseráveis, os que não foram ungidos, os que não são possuidores de riquezas e que não são determinados pelo poder da ciência. São esses seres inomináveis que estão prestes a emergir. Espera-se, apenas, que não demorem em demasia: há muito que fazer.

Referências Bibliográficas

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  • 1
    Mascaro (2013, p. 46) relativiza (em nível estrutural) a autonomia do Estado perante os agentes econômicos, nos seguintes termos: “A autonomia do Estado em relação aos agentes econômicos, sendo real porque advinda das concretas relações econômicas capitalistas, é relativa se tomada justamente em tal nível estrutural. Capitalismo e Estado se relacionam no nível das formas e estruturas, não no nível da eventual contingência da captura do poder pela classe burguesa. O Estado é capitalista não por causa das variadas classes que disputam ou possuem diretamente o seu domínio. Também os Estados cujos governos são dominados por membros ou movimentos das classes trabalhadoras são necessariamente capitalistas. Havendo a necessidade de intermediar continuamente a relação de exploração da força de trabalho, por modo assalariado, regulando-a, bem como aos processos contínuos de valorização do capital, o Estado mantém a dinâmica capitalista ainda quando seus dirigentes declaram oposição às classes burguesas”.
  • 2
    David Held (1987, p. 151) assim sintetizou a concepção schumpeteriana de democracia: “Por democracia, Schumpeter queria se referir a um método político, ou seja, uma estrutura institucional para chegar a decisões políticas (legislativas e administrativas) investindo certos indivíduos com o poder de decidir sobre todas as questões como consequência de sua dedicação bem sucedida à obtenção do voto popular. A vida democrática seria a luta entre líderes políticos rivais, organizados em partidos, pelo mandato para governar. Longe de ser uma forma de vida marcada pela promessa de igualdade e as melhores condições para o desenvolvimento humano em um rico contexto de participação, a democracia implicava no fato de que o destino do cidadão democrático era, de forma bem direta, o direito de escolher e autorizar periodicamente governos para agirem em seu benefício (...). A escolha das decisões políticas a serem tomadas era uma questão independente da forma correta de tomá-las: as condições de legitimidade de facto das decisões e das pessoas encarregadas de tomá-las como resultado da eleição periódica de elites políticas concorrentes”.
  • 3
    Ocorre que, como nos adverte Jacques Rancière, pensar numa democracia “real” contra um regime das aparências, dos simulacros, é algo que pode ser encontrado no próprio bojo do pensamento marxista: “O jovem Marx não teve nenhuma dificuldade para desvendar o reino da propriedade no fundamento da constituição republicana. Os legisladores republicanos não fizeram nenhum mistério disso. Mas ele soube estabelecer um padrão de pensamento que ainda não se esgotou: as leis e as instituições da democracia formal são as aparências por trás das quais e os instrumentos com o quais se exerce o poder da classe burguesa. A luta contra essas aparências tornou-se então a via para uma democracia ‘real’, uma democracia em que a liberdade e a igualdade não seriam mais representadas nas instituições da lei e do Estado, mas seriam encarnadas nas próprias formas da vida material e da experiência sensível” (RANCIÈRE, 2014, p. 9).
  • 4
    Ou, como assevera Alain Badiou (2010, pp. 9-10), “in effect, emancipatory politics is essentiality the politics of the anonymous masses; it is the victory of those with no names, of those who are held in a state of colossal insignificance by the State”.
  • 5
    Safatle dedicou seu último ensaio de intervenção (2017) “aos que estão a ponto de emergir”.
  • 6
    Por fim devemos lembrar como essa mutação acaba por se encontrar com outra série de modificações ligadas, por sua vez, à compreensão, ocorrida a partir dos anos 1970, das lutas de grupos historicamente vulneráveis e espoliados de direitos (negros, gays, mulheres) como lutas de afirmação cultural das diferenças. Isso significa afirmar que elas não foram apenas compreendidas como setores de uma luta mais ampla de ampliação de direitos universais a grupos até então excluídos, mas como processos de afirmação das diferenças diante de um quadro universalista pretensamente comprometido com a perpetuação de normas e formas de vida próprias a grupos culturalmente hegemônicos. O desenvolvimento das temáticas ligadas ao multiculturalismo muito colaborou para isso (SAFATLE, 2015, pp. 326-327).
  • 7
    A categoria do proletariado também não se confunde com a do “povo”, já que esta se apresenta definida enquanto configuração identitária: “É possível dizer, inclusive, que o “proletariado” é a nomeação política da força social de desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade. Por essa razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a categoria de povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e limitadora que define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma espécie de antipovo, se pensarmos no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a provisoriedade das identidades, Estado e nações, assim como da pulsação constante de integração do que se afirma inicialmente como exceção não contada” (SAFATLE, 2015, p. 346).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2018
  • Aceito
    05 Jul 2019
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