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Com quantos golpes se faz uma crise constitucional no Brasil? Constitucionalismo abusivo, estresse constitucional e juridicidade constitucional.

With how many strokes does a constitutional crisis take place in Brazil? Abusive constitutionalism, Constitutional stress and constitutional legality.

Resumo

O artigo realiza análise sobre como o conceito de constitucionalismo abusivo vem sendo abordado e aplicado à realidade brasileira. Em seguida, são explicitados os conceitos de crise constitucional e de estresse constitucional para a realização de um diagnóstico a respeito da saúde constitucional do Brasil pós-impeachment. Para o desenvolvimento da pesquisa foi utilizado o método hipotético-dedutivo e quanto ao procedimento, adotamos a investigação bibliográfica de abordagem qualitativa. Como conclusões, destaca-se a insuficiência decorrente da importação de um exame norte-americano para a compreensão da funcionalidade da política constitucional nacional e que as disputas em torno da interpretação constitucional irrompidas a partir do impeachment de 2016 possibilitaram a redefinição da juridicidade constitucional, de forma a corroborar a alteração (não eleitoral) de projetos de governo e ascensão de um candidato da direita populista à Presidência da República e para o agravamento das disputas interpretativas sobre a Constituição.

Palavras-chave:
Constitucionalismo abusivo; Crise Constitucional; Impeachment; Juridicidade Constitucional

Abstract

The article analyzes how the concept of abusive constitutionalism has been approached and applied to the Brazilian reality. Then, the concepts of constitutional crisis and constitutional stress are explained in order to make a diagnosis regarding the constitutional health of Brazil after impeachment. For the development of the research, the hypothetical-deductive method was used and as for the procedure, we adopted a bibliographic investigation with a qualitative approach. As conclusions, the insufficiency resulting from the importation of a North American exam for the understanding of the functionality of the national constitutional policy is highlighted and that the disputes over the constitutional interpretation erupted from the impeachment of 2016 enabled the redefinition of the constitutional legality, in order to corroborate the (non-electoral) alteration of government projects and the rise of a candidate from the populist right to the Presidency of the Republic and to aggravate the interpretative disputes over the Constitution.

Keywords:
Abusive constitutionalism; Constitutional Crisis; Impeachment; Constitutional Juridicality

Introdução

Nos últimos anos, a atenção de constitucionalistas do mundo inteiro tem se voltado para a crise da democracia constitucional no ocidente1 1 Conferir as contribuições de constitucionalistas originários de diferentes contextos geopolíticos e sociais no volume, GRABER, M.A., LEVINSON, S. y TUSHNET, M. (ed.) Constitutional Democracy in Crisis? Oxford: Oxford University Press, 2018. . As causas da crise e as possíveis vias para sua superação têm sido problematizadas por autores de diferentes origens geográficas, a demonstrar que esta crise não é uma exclusividade apenas das democracias tradicionalmente estabelecidas, como a dos Estados Unidos da América, lar de significa parcela dessa produção acadêmica.

A instabilidade política experimentada pelo Estado brasileiro desde 2013 (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 142 e ss.) ganhou contornos dramáticos com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, cujo desfecho alterou a forma pela qual os poderes da república passaram a se relacionar entre si. Por serem órgãos constitucionais que operam mediante regras abstratas que lhes atribuem e distribuem poderes e competências, conflitos e tensões decorrentes da interação entre esses atores indicam crises na interpretação das normas constitucionais.

Constitucionalistas brasileiros buscam entender e explicar a instabilidade política brasileira a partir da abundante produção acadêmica de autores norte-americanos, para quem, mediante termos impactantes (“crises”, “apodrecimento”, “constitucionalismo abusivo”, “jogo duro constitucional”), há fortes razões para desconfiar de que o tranquilo casamento bicentenário entre constitucionalismo e democracia esteja passando por mares revoltos. Esse cabedal conceitual e terminológico estrangeiro foi acolhido por nossa doutrina, em trabalhos que, por conta da urgência contingente ao turbilhão político que acomete o Brasil nos últimos anos, se tornaram pontos de referência obrigatórios para a compreensão de nossa saúde constitucional.

Pretendemos, com esse artigo, mapear os conceitos empregados pelos constitucionalistas brasileiros para explicar o período posterior ao impeachment de 2016 e a recente chegada ao poder do Presidente Bolsonaro, representante da direita populista2 2 CODATO, Adriano; BERLATTO, Fábia; BOLOGNESI, Bruno. Tipologia dos políticos de direita no Brasil: uma classificação empírica.Análise Social, n. 229, p. 870-897, 2018, p. 889 (Político indiferente a partidos, defende uma plataforma regressiva em termos de direitos humanos e direitos das minorias, usa o anticomunismo e a celebração das práticas e das políticas do regime ditatorial-militar como plataforma principal. Estatista e nacionalista, não possui uma doutrina económica elaborada e definida. Em termos de valores e costumes, aproxima-se do representante típico da nova direita popular, mas, politicamente, é muito semelhante ao que nas democracias europeias se denomina de “direita populista”). . O trabalho proporá, ademais, a tese segundo a qual o impeachment que derrubou o governo Dilma representou um ponto de inflexão em nosso constitucionalismo democrático, ao redefinir a lógica sobre a juridicidade constitucional.

Para o desenvolvimento da pesquisa foi utilizado o método hipotético-dedutivo, a fim de compreender em que medida o processo de impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff foi capaz de inserir novas características acerca do que denominamos, provisoriamente, de juridicidade constitucional. Quanto ao procedimento, adotamos a investigação bibliográfica de abordagem qualitativa, de modo a analisar criticamente como e a partir de quais referenciais teóricos a instabilidade político-institucional brasileira vem sendo apreciada pelos autores nacionais de Direito Constitucional. Com isso, visamos realizar uma pesquisa do tipo explicativa, para compreender o papel do impeachment de 2016 dentro de pensamento de nossos autores e a sua relação com os eventos político-institucionais que se sucederam.

Estruturalmente, o artigo se organiza em três seções. Na primeira seção é realizada uma análise sobre como o conceito de constitucionalismo abusivo, incorporado entre nós desde o impeachment, e teorizado por David Landau, vem sendo abordado e aplicado à realidade brasileira. Em seguida, são explicitados os conceitos de crise constitucional, proposto por Jack M. Balkin e Sanford Levinson, e de estresse constitucional, defendido por Oscar Vilhena Vieira, para a realização de um diagnóstico a respeito da saúde constitucional do Brasil pós-impeachment. Ao final desta seção, destaca-se a insuficiência decorrente da importação de um exame norte-americano para a compreensão da funcionalidade da política constitucional nacional. Na terceira seção, são apresentadas as particularidades do arranjo político-institucional brasileiro, com destaque para as disputas em torno da interpretação constitucional irrompidas a partir do impeachment de 2016, sustentando-se a tese de que o afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff possibilitou a redefinição da juridicidade constitucional, de forma a corroborar, sequencialmente: para a alteração (não eleitoral) de projetos de governo e ascensão de um candidato da direita populista à Presidência da República e para o agravamento das disputas interpretativas sobre a Constituição.

1) Constitucionalismo abusivo no Brasil: a mão de qual dos poderes chacoalha o berço democrático?

Landau (2013LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. University of California, Davis, Law Review, v. 47, n. 189, p. 189-260, 2013.) propõe a existência de um constitucionalismo abusivo quando instrumentos constitucionais são utilizados para enfraquecer a democracia. As ferramentas que viabilizam o ataque constitucional à democracia são manejadas pelo Poder Executivo na forma de mudanças constitucionais formais (substituição ou emendamento constitucional). O ideal político ‘constitucionalismo’ é útil para o Governante de turno, pois, ao mesmo tempo em que empreende medidas para tornar o sistema menos democrático, quando, por exemplo, dificulta a atuação da oposição política, ele pode sustentar um suposto ar de legitimidade em função da manutenção de um regime baseado formalmente em um texto constitucional.

As mudanças constitucionais formais feitas pelo chefe do poder executivo cooptam os demais poderes no intuito de atacar pontos estruturais do edifício democrático, afetando, em consequência, a qualidade da democracia constitucional. Estruturalmente, os ataques são endereçados ao campo das disputas eleitorais, principalmente a partir da criação de entraves à formação, manutenção e atuação da oposição política e na limitação de direitos fundamentais das pessoas e de minorias. Ou seja, o governo não se torna autocrático por conta das alterações constitucionais, pois eleições continuariam regulares, entretanto, o constitucionalismo abusivo abriria espaço para um regime híbrido de difícil detecção e combate (LANDAU, 2013LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. University of California, Davis, Law Review, v. 47, n. 189, p. 189-260, 2013., p. 192-197).

No caso brasileiro, um conjunto de autores redirecionam o conceito de constitucionalismo abusivo3 3 Em pesquisa no google acadêmico em busca de artigos em português que tenham citado o texto de Landau acima referido, mais de 25 (vinte e cinto) resultados foram encontrados. Entretanto, preferimos selecionar apenas aqueles que empregavam o termo de acordo com os interesses mais próximos dessa investigação. Ou seja, aqueles textos que utilizam o termo como uma categoria analítica da política constitucional brasileira. Mais recentemente, o Ministro Luis Roberto Barroso sugeriu que as práticas do Governo Bolsonaro estão no limiar de um Constitucionalismo Abusivo (cf. decisão monocrática na ADPF 622, DJe 19/12/2019). A conceituação de Barroso, como aquelas que serão vistas a seguir, corrobora nossa hipótese de que há a incorporação do termo desvinculada de sua tese central, uma vez que o ministro sugere que há atividade abusiva quando o Executivo “promove a interpretação ou a alteração do ordenamento jurídico” para concentrar mais poderes em suas mãos. Ora, aqui há uma distorção conceitual porque Barroso sugere que a alteração no plano da política ordinária infralegal cumpriria com os requisitos da tese de Landau, e não a mobilização de instrumentos constitucionais, formalmente, legítimos. O caso julgado pelo ministro dizia respeito a um decreto (10.003/2019), que alterou as normas sobre a constituição e o funcionamento do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente. para qualificar a atuação independente do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, ou seja, mesmo quando esses poderes não estejam cooptados por uma agenda do chefe do Executivo no poder.

No primeiro caso, o processo de impeachment que derrubou, de forma ilegítima, o governo da presidente Dilma Rousseff configuraria uma hipótese de constitucionalismo abusivo, em razão da parca evidência probatória de que Dilma teria cometido qualquer crime de responsabilidade. O fundamento formalmente utilizado para o impeachment de 2016 foi a inadequada utilização de créditos adicionais suplementares e extraordinários como meios de ampliação do poder orçamentário (as popularmente denominadas ‘pedaladas fiscais’), muito embora presidentes anteriores tivessem utilizado tais mecanismos com a mesma finalidade, sem que tenham sido alvo de qualquer processo de impedimento (BARBOZA; ROBL FILHO, 2019BARBOZA, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ ; INOMATA, A. . Constitucionalismo Abusivo e o Ataque ao Judiciário na Democracia Brasileira. In: CONCI, Luiz Guilherme Arcaro; DIAS, Roberto. (Org.). Crise das Democracias Liberais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. p. 428-434, 2019., p. 93-94).

Nessa esteira, Daniel Capecchi Nunes (2018NUNES, Daniel Capecchi. O desmembramento da Constituição de 1988: constitucionalismo abusivo e fim do ciclo político democrático. Revista Publicum, Rio de Janeiro, v. 4, edição comemorativa, p. 37-62, 2018., p. 55) destaca que o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff se deu, em verdade, pela ausência de apoio político congressual, e não pelo cometimento de um crime de responsabilidade. O golpe parlamentar de 2016, portanto, realizou-se por meio da utilização de mecanismos constitucionais contra a democracia, marcando o fim do ciclo político redemocratizante e o início de outro, cujos contornos ainda são incógnitos (NUNES, 2019, p. 55-57).

Por outro lado, Benvindo e Estorilio (2017ESTORILIO, Rafael; BENVINDO, Juliano Zaiden. O Supremo Tribunal Federal como Agente do Constitucionalismo Abusivo. In: VERONESE, Alexandre; BENVINDO, Juliano Zaiden. (Org.). Política e Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2017.) consideram que o STF é o artífice de práticas constitucionais abusivas, perpetradas por meio de critérios, essencialmente, interpretativos. Para os autores, a constituição poderia ser “estrategicamente trabalhada para favorecer agenciadores de interesses durante graves crises políticas” e o STF funcionaria como catalisador desse processo (ESTORILIO; BENVINDO, 2017ESTORILIO, Rafael; BENVINDO, Juliano Zaiden. O Supremo Tribunal Federal como Agente do Constitucionalismo Abusivo. In: VERONESE, Alexandre; BENVINDO, Juliano Zaiden. (Org.). Política e Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2017., p. 176). A interferência na política se daria por meio da sincronicidade e pela prática seletiva da subsunção. A sincronicidade ocorre quando decisões judiciais catalisam crises políticas, muito embora não seja possível fazer uma correlação direta e causal entre o processo em curso no STF, a decisão tomada pela corte e sua consequência política. Já na prática seletiva de subsunção, a corte age de forma abusiva quando falha na aplicação de padrões isonômicos no julgamento de casos semelhantes em um curto espaço de tempo (ESTORILIO; BENVINDO, 2017, p. 183-185)4 4 O exemplo de sincronicidade apresentado pelos autores se refere ao julgamento de medida cautelar na ADPF 402 e sua repercussão no Senado Federal. Por decisão monocrática proferida pelo Ministro Marco Aurélio Mello, foi determinado que os indivíduos tornados réus em processo criminal perante o STF não poderiam figurar, automaticamente, na linha sucessória presidencial, o que, imediatamente, serviu como base para o afastamento do Senador Renan Calheiros da Presidência do Senado. A decisão gerou inevitável conflito institucional, havendo a interposição de recurso por parte da respectiva casa legislativa, o qual foi julgado no sentido de solucionar o conflito de forma amigável, permitindo a permanência de Calheiros na Presidência do Senado, mas impedido de ocupar, ainda que temporariamente, o cargo de Presidente da República. O interessante efeito (sincrônico), apontado pelos autores, a respeito desta decisão foi a posterior desistência, por parte do Presidente do Senado, de colocar em votação um projeto de lei sobre abuso de autoridade, que muito pressionava os agentes públicos, especialmente aqueles integrantes do Judiciário. Por sua vez, o uso seletivo da subsunção é exemplificado pela ausência de isonomia em dois casos profundamente semelhantes decididos no âmbito do Supremo Tribunal Federal. O primeiro se refere à antecipação de tutela concedida pelo Ministro Gilmar Mendes, que impediu Luiz Inácio Lula da Silva de assumir o cargo de Ministro da Casa Civil em 2016, sob a fundamentação de desvio de finalidade na nomeação, o que ensejaria a nulidade do ato à medida que a posse objetivava a obtenção de foro por prerrogativa de função, haja vista as investigações judiciais que o ex-Presidente vinha sofrendo. Um ano depois, após a homologação das delações da operação Lava Jato pela Ministra Carmen Lúcia, o Presidente da República, Michel Temer, criou nova pasta ministerial, com o intuito de nomear Moreira Franco - indivíduo demasiadamente incurso na operação - para o cargo de Ministro de Estado, posição que lhe garantiria foro por prerrogativa de função em situação muito similar à de Luiz Inácio Lula da Silva. Diante disso, os partidos políticos PSOL e REDE de Sustentabilidade impetraram mandado de segurança contra a nomeação, porém a liminar requerida foi negada pelo STF, com fundamento em outros precedentes e sob o argumento, entre outros, da inexistência de evidências que demonstrassem a nulidade do ato. De acordo com os autores, os casos apresentavam profunda identidade entre si, sendo a decisão relativa ao processo de Lula formadora de precedente, de maneira que caberia ao Supremo explicitar as diferenças entre as demandas para poder decidir de maneira diversa em relação à nomeação de Moreira Franco, porém não foi isto o que ocorreu, a expor a seletividade interpretativa do tribunal. .

O desenvolvimento conceitual feito pelos autores nacionais elastece a formulação original de Laundau para abarcar ramos políticos alheios a sua caracterização inicial e instrumentos diversos das reformas constitucionais formais. Portanto, para os autores nacionais, o constitucionalismo abusivo pode ser levado a cabo pelo Poder Legislativo, quando, ao manejar o processo de impeachment, derruba mandatos presidenciais por meio de intepretações controversas sobre a lei de responsabilidade. Mas também, por outro lado, a abusividade pode ser posta em prática pelo Poder Judiciário em ação solitária5 5 Muito embora, à primeira vista, a formulação de Estorilio e Benvindo se aproxime do conceito de ‘controle de constitucionalidade abusivo forte’ (Strong Abusive Judicial Review), ela só se encaixaria com perfeição nas mais recentes contribuições de Dixon e Landau se a corte tiver sido, anteriormente, cooptada pelo que os últimos autores chamam em seu artigo de "regime" ou de "projeto autoritário", os quais supomos, se refiram às pautas dos chefes do Executivo. Portanto, os autores estrangeiros estão se referindo a Cortes que passaram por algum processo de captura, e o grau de sucesso dessa captura pode ser medido pela intenção da corte em interferir na qualidade democrática em prol de uma agenda política autoritária específica. Por essa razão, a ação judicial adjetivada como abusiva, e que esteja dentro da tese do constitucionalismo abusivo, não pode ser o resultado de uma contingência ou de um acidente de sincronicidade. Sem a demonstração de que o STF age ou agiu cooptado por um regime que pretenda aprovar medidas de constitucionalismo abusivo a partir de uma pauta autoritária, não nos parece pertinente sua atribuição a nossa suprema corte, ainda que suas decisões possam, eventualmente e inadvertidamente, afetar a qualidade de nossa democracia. DIXON, Rosalind; LANDAU, David. Abusive judicial review: courts against democracy. Davis Law Review, Davis, n. 53, 2019, p. 01-75. , quando a corte suprema aplica critérios interpretativos cambiantes capazes de afetar a política e quando, por meio de seu poder de pauta, catalisam controvérsias políticas de forma indireta.

Na linha defendida por Ginsbourg e Hucq (2018, p. 92), nos parece que o conceito de “constitucionalismo abusivo” está inserido dentro de um contexto mais amplo de crise da democracia constitucional. Dito em outras palavras, uma crise democrática pode se evidenciar por meio de práticas constitucionais tidas por abusivas, mas não exclusivamente por elas. Se considerarmos, com nossos autores, que no Brasil o uso considerado abusivo de instrumentos constitucionais tem sido usual entre os ramos Legislativo, Judiciário e Executivo6 6 Barboza e Inomata denunciam como propostas políticas do presidente recém-eleito, Jair Bolsonaro, poderiam converter-se em práticas abusivas (alteração no regime de aposentadoria dos ministros, ameaças de fechamento da corte, enfraquecimento das instituições de acccountability e propostas capazes de afetar direitos fundamentais). BARBOZA, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ ; INOMATA, A. . Constitucionalismo Abusivo e o Ataque ao Judiciário na Democracia Brasileira. In: CONCI, Luiz Guilherme Arcaro; DIAS, Roberto. (Org.). Crise das Democracias Liberais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, v. p. 428-434. , o caminho em direção à crise de nossa democrática está patente. Mas, por outro lado, a utilização do termo “constitucionalismo abusivo” pode sugerir que nossos autores estejam chamando nossa atenção para problemas mais graves experimentados por nossa democracia constitucional, ainda que os avisos estejam tomando de empréstimo o conceito desvinculado da tese original de Landau.

Não obstante a conclusão parcial sobre a utilização do termo desvinculando do substrato conceitual no Brasil, é possível sugerir a reorientação da discussão para inseri-la dentro do campo da literatura sobre erosão democrática. Ou seja, as leituras feitas por nossos autores demonstram como agentes políticos podem contribuir para o enfraquecimento gradual de pilares centrais da democracia liberal7 7 Utilizamos aqui, portanto, o pressuposto analítico de Ginsbourg e Hucq, para quem a erosão democrática seria o lento, mas substancial, decaimento de todos os pré-requisitos institucionais de uma democracia liberal constitucional: 1) eleições livres e justas; 2) direitos liberais de expressão e associação e 3) administração do estado de direito. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz Z. How to save a Constitutional Democracy. Chicago: University of Chicago Press, 2018, p. 71. , ainda que não o façam nos termos sugeridos de uma das espécies de erosão democrática, que é o constitucionalismo abusivo. No entanto, essas leituras compartilham em comum a identificação do impeachment de 2016 como um dos principais fatores para esse processo de decaimento.

A atuação abusiva do Legislador se caracterizaria pela utilização de um instituto constitucional para derrubar chefes do Poder Executivo que tenham perdido apoio congressual e popular fundamentado em interpretações estratégicas da lei de responsabilidade e no intuito de fraudar resultados eleitorais. De acordo com essa hipótese, a afetação democrática se faz presente na substituição de projetos políticos eleitos majoritariamente por plataformas políticas opostas e que ascenderam ao poder para descontinuar as políticas públicas do governo anterior, afetando direitos fundamentais políticos dos eleitores do presidente retirado à força do poder, ainda que a manobra abusiva não seja acompanhada da criação de dificuldades posteriores à atuação do partido sacado do poder por meio de reformas constitucionais formais. Ou seja, a fraude eleitoral golpeia a democracia e viola direitos políticos, mas não é seguida por alterações constitucionais que impeçam a oposição de voltar ao poder.

Por outro lado, a atuação abusiva do Judiciário que impactaria a qualidade democrática constitucional se manifestaria, nos parece, pela manutenção de um estado de incerteza sobre os padrões interpretativos constitucionais, que impediria que o povo e seus agentes políticos fossem capazes de se apropriar, com segurança, do significado das regras constitucionais. Além da via interpretativa, a atuação estratégica veiculada mediante o poder de pauta da corte poderia catalisar crises políticas de cores diversas, contingente e eventualmente dissociada de um projeto autoritário mais amplo. Em nenhuma das hipóteses de atuação judiciária abusiva, direitos políticos de uma minoria social são afetados ou, necessariamente, oposições políticas são afetadas no debate público, muito embora haja um empobrecimento da qualidade democrática.

Em comparação ao papel abusivo do legislativo, a atuação do STF pode ser diferenciada pelas ferramentas constitucionais utilizadas. O impeachment, por exemplo, não é instituto que, em si, atenta contra a democracia, da mesma forma que as reformas constitucionais sugeridas por Landau, também não o são. Todavia, a sincronicidade e a subsunção seletiva podem ser vistas como perversões da competência da corte para solucionar conflitos acerca do sentido das normas constitucionais. O problema conceitual, no entanto, pode ser solucionado se alterarmos a perspectiva ou o ponto de partida desta modalidade de afetação democrática: o instituto constitucional que o STF maneja para atacar a democracia seria a hermenêutica constitucional, ainda que em uma versão corrompida.

Portanto, para os autores nacionais, a atuação abusiva8 8 Pensamos, ademais, que causaria menos confusão a substituição do termo “constitucionalismo abusivo” por outro para explicar esse estado de coisas, uma vez que a manutenção do termo de Landau dificultará a formulação de diagnósticos mais precisos sobre nosso processo de erosão democrática. está sendo posta em prática por todos os Poderes da República, a partir de corruptelas de mecanismos intrínsecos e legítimos do constitucionalismo brasileiro (hermenêutica constitucional, impeachment, Decretos Executivos). Muito embora essa análise nacional não corresponda ao conceito original formulado por Laundau, ela sugere a existência de práticas que afetam a qualidade de nossa democracia. Em todos os casos, ademais, o problema reside em um desacordo sobre a legitimidade do resultado interpretativo, sobre o significado das regras constitucionais. No entanto, esse diagnóstico é capaz de indicar que o decaimento na qualidade democrática seria capaz de gestar uma crise constitucional? Bem, depende das concepções de constituição e democracia de quem está a fazer esse diagnóstico.

As noções de constitucionalidade e democracia não são necessariamente convergentes entre si. Enquanto o primeiro depende de certa avaliação de compatibilidade constitucional por parte do intérprete da constituição, a segunda é maleável de acordo com o conceito e os pressupostos utilizados para a definição de um regime democrático. Adam Przeworski (2020PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Tradução de Berilo Vargas. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020)9 9 Os referenciais teóricos adotados pelo autor para o desenvolvimento de sua tese são Landau, Ginsburg e Huq, de forma que sua conceituação de “subversão sub-reptícia” esteja diretamente relacionada a uma atuação abusiva por parte do governo de turno (poder executivo), por meio da paulatina utilização de mecanismos legais em sentido antidemocrático, provocando lentos deslizes rumo ao autoritarismo, o que dificulta a percepção da crise democrática. , por exemplo, explica como a “desconsolidação democrática” pode acontecer sem que necessariamente haja violação às normas constitucionais, quando os governos se valem daquilo que o autor denomina de subversão sub-reptícia, isto é, da utilização de mecanismos legais integrantes de regimes democráticos para finalidades antidemocráticas, sem qualquer ruptura direta e abrupta com a ordem constitucional.

Nesse sentido, o caráter antidemocrático de medidas constitucionais encontra outra dificuldade. Isso porque alegações sobre o que é ‘inconstitucional’ exigem critérios mais rigorosos do que alegações sobre o que seria ‘antidemocrático’ (PRZEWORSKI, 2020PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Tradução de Berilo Vargas. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 208), haja vista que as declarações de inconstitucionalidade são realizadas por órgãos especializados e designados pela própria constituição para fins da interpretação de seu texto, enquanto a definição de práticas antidemocráticas não encontra normas específicas para a sua definição. Dessa forma, e por essa razão, as noções sobre o que seria “antidemocrático” são extremamente variáveis, dependentes da ideologia partidária e dos grupos sociais consultados (PRZEWORSKI, 2020, p. 208-210).

Nossos autores, portanto, alertam para a utilização antidemocrática de instrumentos constitucionalmente legítimos e previstos legalmente, realizada pelos três poderes da república. Esta argumentação, embora não condizente a formulação inicial de “constitucionalismo abusivo” ou “subversão sub-reptícia”, aponta para um sério comprometimento da estrutura institucional brasileira, a qual deixa de interpretar os mecanismos constitucionais segundo princípios democráticos e passa a utilizá-los em uma lógica contra a democracia. Resta compreender se essa guinada implica uma crise constitucional.

2) Crise Constitucional? Depende dos olhos de quem vê.

O constitucionalismo moderno, como produto do racionalismo iluminista, consiste em uma ideologia política que objetiva conciliar a necessidade de organização governamental com o desejo de garantir a máxima liberdade possível aos cidadãos (VIEIRA, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 70). Com base nessa premissa, Oscar Vieira elege a capacidade de auxiliar a sociedade na coordenação de conflitos e divergências como a principal função a ser desempenhada por uma constituição democrática, que cumprirá seu mister por intermédio de procedimentos democráticos e princípios jurídicos constitucionalmente previstos. A presença de desacordos entre os atores políticos e institucionais, nesse sentido, seria intrínseca ao sistema constitucional, de tal modo que a suposição de que os poderes são harmônicos e independentes entre si passaria a soar como um grande eufemismo, uma vez que sua predisposição real é a de tensão e conflito (VIEIRA, 2018, p. 34).

Oscar Vieira, lançando mão de uma interpretação sobre a ideologia constitucionalista baseada em Stephen Holmes (2012HOLMES, Stephen. Constitutions and constitutionalism. In: ROSENFELD, Michel. SAJÓ, András (ed.). Comparative constitutional law. Oxford: Oxford University Press, p. 189-215, 2012.) e, em certa medida, Jeremy Waldron (2016WALDRON, Jeremy. Constitutionalism: a skeptical view. In.: WALDRON, Jeremy. Political Political Theory. Cambridge: Harvard University Press, p. 23-44, 2016.), tenta compreender a situação em que se encontra a saúde de nossa Constituição. Ao afastar-se de uma concepção de constitucionalismo corrente na dogmática brasileira, estruturada em torno da ideia de regras jurídicas que amarram e limitam o poder público, as quais serviriam de base para a tabulação de competências sobre o que os poderes não devem fazer10 10 Esse é a concepção compartilhada por constitucionalistas conservadores e progressistas no Brasil. No campo progressista, José Afonso da Silva entende que o “constitucionalismo, pelo visto, nasceu como o meio de limitar a ação do poder e garantir a vigência dos direitos da pessoa humana, por meio de uma constituição escrita”. O autor advoga, ademais, que a ideologia constitucionalista é dinâmica, pois varia de conteúdo de acordo com o processo histórico, mas ela é detentora de uma inafastável teleologia, qual seja, a domesticação do poder “a serviço dos direitos da pessoa humana através da constituição”. SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 66-69. No campo conservador, Manoel Gonçalves Ferreira Filho identifica o constitucionalismo moderno pela adoção de constituições escritas e, mais importante, pelo fato de elas terem como “desiderato de impedir o arbítrio. Ou seja, imponham uma organização limitativa do Poder”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 03-04. As concepções correntes não pensam o regramento constitucional como incentivos para interações políticas criadoras e viabilizadoras (enabling) da democracia. As formulações de Silva e Ferreira Filho são, na visão de Holmes, adeptas do constitucionalismo negativo, o qual vê na Constituição um instrumento para a limitação do poder. HOLMES, Stephen. Passions and Constraint: On the Theory of Liberal Democracy. Chicago: University of Chicago Press, 1995, p. 135. , o autor pôde apresentar ao leitor brasileiro uma leitura alternativa e pouco usual ao nosso público sobre constitucionalismo e, ao mesmo tempo, preparar terreno para a ideia de que confrontos diretos, violentos, ‘bicudos’, são esperados e naturais em uma ordem constitucional.

O termômetro utilizado por Oscar Vilhena para mensurar nossa saúde política é composto por uma mescla entre a formulação de um constitucionalismo positivo de Holmes e Waldron e as teses de Jack Balkin sobre crise constitucional no contexto dos EUA. Portanto, o autor subministrou conceitos talhados e aplicáveis, originalmente, a uma Constituição cuja estrutura política e funcionamento diferem da nossa. Nosso argumento sugere que essas escolhas influenciaram o diagnóstico positivo, mas merecedor de atenção, formulado pelo autor.

Por serem naturais, divergências institucionais, em si, não seriam capazes de configurar crises constitucionais. Essa nomenclatura específica seria destinada a situações em que houvesse uma quebra do sistema constitucional, isto é, do arranjo político-institucional constitucionalmente previsto, pois, neste cenário, os conflitos entre os atores políticos receberiam uma urgência especial, a qual poderia ser denominada de crise (LEVINSON; BALKIN, 2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., p. 707).

Segundo Levinson e Balkin (2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., 714-715), seria necessário um rompimento do equilíbrio anterior, a importunação à valores importantes e à própria ordem existente, para que se possa falar em crise constitucional. Em razão do cenário muito específico em que ocorrem, as crises constitucionais não se confundem, por exemplo, com emergências, isto é, não necessariamente um contexto emergencial implica uma crise constitucional ou vice-versa. Isso porque as crises constitucionais são “conflicts about the legitmate uses of power” pelas pessoas ou instituições, enquanto as emergências consistem em “perceptions of urgency” (LEVINSON; BALKIN, 2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., p. 716) sobre fatos ou como as pessoas os encaram. Crises, dessa forma, se apresentam como problemas sobre a funcionalidade e eficiência do desenho (design) constitucional e não sobre os desacordos (disagreement) constitucionais, desde que enfrentados e solucionados dentro dos seus limites.

Para tratar mais especificamente das hipóteses de crise constitucional, Levinson e Balkin (2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., p. 714) apresentam uma tipologia, segundo a qual seria possível identificar três diferentes espécies de crises. Para os autores, o que singulariza o conflito político gerador de uma crise constitucional é a falha na função básica do constitucionalismo de canalizar o conflito político corriqueiro e oferecer estabilidade política. Com efeito, há uma óbvia correlação entre sua concepção de constitucionalismo esposada e o conceito de crise constitucional. Balkin (2017, p. 147) alega, por exemplo, que a tarefa central da Constituição é manter o desacordo político dentro das fronteiras da política ordinária, evitando a anarquia, violência ou guerra civil. Sua concepção de crise em uma Constituição, por óbvio, gravita em torno da falha no cumprimento de sua tarefa central.

O primeiro tipo de crise é o de mais fácil identificação, pois ocorre quando os líderes políticos publicamente reclamam um direito de suspensão da aplicação constitucional, a fim de preservar a ordem social diante de um determinado contexto. É central para esta primeira modalidade que as autoridades expressem publicamente a ultrapassagem dos limites constitucionais, principalmente por meio da utilização de medidas de exceção (LEVINSON; BALKIN, 2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., p. 721-724).

Isso pois, no primeiro tipo de crise constitucional, os agentes políticos estão diante de conjunturas problemáticas e, apesar de possuírem a vontade de solucioná-las, acreditam não terem poderes suficientes para garantir a preservação do Estado, isto é, reputam estarem limitados pelas regras da constituição. Por isso, consciente e publicamente ultrapassam as barreiras constitucionais impostas, desencadeando um cenário crítico do ponto de vista constitucional (LEVINSON; BALKIN, 2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., p. 721). Os autores reconhecem o ônus carregado por políticos que defendem esse tipo de crise, os quais podem optar por formas menos ruidosas de infidelidade constitucional como a propositura de interpretações constitucionais a um texto enxuto e vago, como o dos Estados Unidos (LEVINSON; BALKIN, 2009, p. 725). Muito embora reconheçam que esse curso de ação escuso, eventualmente, encontraria a luz do dia.

Por outro lado, o segundo tipo de crise diz respeito à excessiva fidelidade a uma Constituição ineficiente. A crise, portanto, se dá quando os atores políticos relevantes cumprem ampla e minunciosamente com os ditames constitucionais, seguindo os entendimentos de uma Constituição que não tem condições de resolver a crise política, econômica ou social existente (LEVINSON; BALKIN, 2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., p. 729). O problema, agora, se encontra nos meios constitucionais disponíveis (ou não) e na dificuldade de os agentes políticos relevantes romperem com a Constituição para resolver um problema que se apresenta em um novo contexto, mas que não estava evidente no momento da criação daqueles meios (LEVINSON; BALKIN, 2009, p. 734-737). A este respeito, Oscar Vilhena Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 41) pontua que o excesso de fidelidade ao texto constitucional levaria à paralisia institucional ou ao agravamento da crise política, econômica e social, ameaçando a sobrevivência da própria ordem constitucional.

O terceiro tipo de crise, por sua vez, envolve lutas pelo poder que extrapolam os limites da política comum. Ocorre quando todos os poderes proclamam fidelidade constitucional, mas discordam entre si sobre o que a Constituição diz e sobre quem possui o adequado grau de poder. Trata-se de um jogo em que atores políticos acusam os demais de estarem violando as normas constitucionais (ou seja, apontam crises do primeiro tipo), sob uma perspectiva de luta pela melhor interpretação, independentemente dos limites que sejam necessários ultrapassar para se vencer uma controvérsia constitucional (LEVINSON; BALKIN, 2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., p. 738).

De acordo com Levinson e Balkin (2009LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack M. Constitutional crises. University of Pennsylvania Law Review, v. 157, nº 3, p. 707-753, fev./2009., p. 739-740), o que diferencia o tipo três de crise dos desacordos inerentes ao pacto constitucional são os meios pelos quais os agentes se valem para fazerem prevalecer sua leitura das regras constitucionais. Enquanto a Constituição é construída para manter os conflitos institucionais dentro dos limites por ela estabelecidos, a crise constitucional do tipo três acontece quando algum ou alguns poderes se movimentam para fora destas barreiras constitucionais, valendo-se de formas extraordinárias de luta e oposição. Nesses casos, o que demarca um conflito sobre o significado constitucional como uma crise é a crença (believe) dos atores políticos de que a prática de suas contrapartes é perigosa, inconstitucional e que ameaça a República. Tal crença justificaria a produção de formas de conflito extraordinárias.

Balkin (2017BALKIN, Jack. Constitutional Crisis and Constitutional Rot. Maryland Law Review. Vol 77, 2017., p. 151-156), por ocasião da chegada de Trump à presidência da República estadunidense, expandiu suas teses sobre crise para acomodar a ideia de apodrecimento constitucional (constitutional rot). Nessas hipóteses, democracias ou repúblicas constitucionais adoecem lentamente, quando políticos desconsideram regras de competição política, afetam a confiança política e expandem seus poderes por meio de ações que estressam o tecido constitucional em seu favor e para manterem-se no poder. O apodrecimento é acelerado pela perda de confiança no governo, pela polarização política, desigualdade econômica e por desastres nas escolhas políticas. Regimes que se tornam autocráticos podem não sofrer crises constitucionais, por manterem-se estáveis politicamente e por não experimentarem uma guerra civil, mas essas ocorrências significam que falharam como democracias constitucionais. Um procedimento de apodrecimento contínuo poderá levar a uma crise constitucional, mas nem sempre será o caso: poderá significar, no entanto, que um sistema se tornará menos democrático com o passar do tempo.

Por essa razão, Oscar Vilhena Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 33) define as crises constitucionais como períodos específicos em que a capacidade constitucional de canalizar os conflitos institucionais encontra-se abalada, o que impõe aos atores políticos e institucionais a necessidade de tomar decisões hábeis ao restabelecimento do equilíbrio e funcionalidade do sistema constitucional. Contudo, tais decisões devem ser constitucionalmente válidas. O que estaria em jogo, nessas hipóteses, seria a própria sobrevivência constitucional, a capacidade dos atores políticos e institucionais de coordenar seus conflitos em conformidade com as regras e procedimentos constitucionais.

Portanto, crises constitucionais demandam o abandono das regras do jogo sem que o desenho constitucional ofereça meios procedimentais para canalizar o conflito político de forma efetiva ou de correção de eventuais violações. Sendo possível, por razões conjunturais, a alteração das regras do jogo (VIEIRA, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 35). Em sua visão, o mais importante seria a não usurpação da função atribuída a um poder por outro, o não abuso das competências próprias, e o respeito às decisões de cada poder. As premissas para esse estado de coisas são duas: uma norma constitucional atribuidora de competências razoavelmente clara e autocontenção política (VIEIRA, p. 36). Por fim, após acalentada e precisa análise do contexto político brasileiro dos últimos sete anos, Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 42-43) sugere que estamos passando por um período de estresse constitucional, mas não por uma crise.

O diagnóstico de uma crise constitucional será tão preciso quanto o conceito de crise empregado na análise. Ao optar pelo conceito de Balkin e Levinson, Vieira fez uma escolha consciente de ignorar a conceituação de outros autores11 11 Tomando de empréstimo, por questões de tempo, o inventário formulado por Graber: “stealth constitutionalism” de Ozan Varol; “constitutional erosion” de Manoj Mate; “authoritarian constitutionalism” de Mark Tushnet. GRABER, Mark A. What's in crisis?: the postwar constitutional paradigm, tranformative constitutionalism, and the fate of constitutional democracy. Constitutional Democracy in Crisis? New York: OUP, 2018, p. 679. e de preferir utilizar um estetoscópio de fabricação norte-americana. A leitura de crises constitucionais baseada na contestação sobre os usos legítimos do poder, talvez precise de informações adicionais para se ajustar ao contexto brasileiro.

De início, o conceito de crise constitucional proposto por Balkin é dependente de sua leitura sobre a principal função a ser desempenhada por uma Constituição. Vamos denominar essa função de coordenadora. Em síntese, para os defensores dessa função, constituições seriam documentos jurídicos cuja função se limitaria à coordenação política, ou seja, ao estabelecimento de regras que delimitam os procedimentos a partir dos quais os ramos do Poder interagem e canalizam eventuais conflitos (BALKIN, 2017BALKIN, Jack. Constitutional Crisis and Constitutional Rot. Maryland Law Review. Vol 77, 2017., p. 147)12 12 Em suas palavras: “a constitutional crisis occurs when there is a serious danger that a constitution is about to fail at its central task. The central task of constitutions is to keep disagreement within the boundaries of ordinary politics rather than breaking down into anarchy, violence or civil war” BALKIN, Jack. Constitutional Crisis and Constitutional Rot. Maryland Law Review. Vol 77, 2017, p. 147. . Um constitucionalismo coordenador se satisfaz com um tipo de Constituição que não contempla objetivos ou metas políticas a serem alcançadas, transformações sociais ou qualquer vínculo com o ideal político democrático13 13 Ou, caso considerem que uma Constituição possa, formalmente, albergar metas ou ideais democráticos, o constitucionalismo coordenador não os reputa importantes, essenciais ou materialmente constitucionais. . Esse modelo de constitucionalismo permite a Balkin utilizar o sucesso do desempenho do desenho constitucional coordenador como critério único e suficiente para avaliar uma crise, ao mesmo tempo em que lhe permite reconhecer que uma Constituição pode abrigar um governo autocrático.

O critério metodológico escolhido por Vieira para avaliar o desempenho do aspecto coordenador de nossa Constituição pode ser caracterizado como externo, pois está preocupado em analisar o que faz as constituições, em geral (ou, como pensamos, apenas a dos EUA), bem-sucedidas, não o que torna a Constituição brasileira um caso de sucesso no cumprimento do seu objetivo14 14 O critério metodológico interno está preocupado, por sua vez, em avaliar o sucesso da empreitada constitucional de acordo com os termos da comunidade política regida pelo instrumento. Sua avaliação, portanto, parte dos objetivos postos pelo próprio texto. Não negamos que se trata, aqui, de escolhas metodológicas impossíveis de serem avaliadas a partir de critérios de veracidade. Entretanto, a metodologia implica escolhas que surtirão efeitos políticos: o foco em critérios externos pode acobertar problemas no desempenho de provisões ou funções constitucionais essenciais para uma comunidade política local, mas que impediriam uma análise comparativa mais holística com outras experiências constitucionais. . Umas das características dessa proposta metodológica é formular (ou no caso, acolher), normativamente e abstratamente, um conjunto de resultados desejáveis a serem alcançados por uma ordem constitucional15 15 Buscando uma solução de meio-termo, Ginsburg e Huq formulam o que chamam de critérios de meio alcance para avaliar, exemplificativamente, o sucesso de uma Constituição: (1) legitimidade sociológica aos olhos do público; (2) canalização de conflitos políticos potencialmente violentos para instituições constitucionais; (3) o controle dos custos de agência associados à institucionalização do governo; e (4) a criação de bens públicos apropriados. O conceito de crise constitucional de Balkin e esposado por Vieira parece restringir-se ao campo (2), deixando de lado outros fatores importantes identificados por autores experientes na análise comparada de textos constitucionais para aferir seu desempenho. O conceito de Ginsburg e Huq, de forma alguma, pode ser considerado como procedimental ou não substantivo, o que demonstra que os objetivos sociais das constituições precisam ser levados em conta na análise de sua performance. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. 2016. Assesing Constitutional Performance. New York: Cambridge University Press, pp. 03-38, p. 15. .

A adoção do critério externo para avaliar o desempenho coordenador da Constituição de 198816 16 Como alertam Ginsburg e Huq, a definição do sucesso constitucional em termos puramente tecnocráticos, focados na criação e operação das instituições, tende a ignorar suas aspirações democráticas e a função da constituição política. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. 2016. Assesing Constitutional Performance. New York: Cambridge University Press, pp. 03-38, p.14. é aplicado a um tipo de constituição que, dificilmente, pode ser encarada como o exemplo padrão pós-guerra17 17 ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. The Endurance of National Constitutions. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 25 (os autores sugerem que houve uma diminuição na semelhança geral das constituições do mundo com o documento dos EUA ao longo do tempo, sendo perceptível uma queda acentuada dessa similitude após a Segunda Guerra Mundial). No mesmo sentido, cf. LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. The declining influence of the United States Constitution. NYUL Rev., v. 87, , 2012, p. 769 (os autores demonstram, por meio de pesquisas empíricas, que as constituições escritas do mundo têm se afastado do modelo tradicional norte-americano). , além de desconsiderar elementos necessários para avaliar o que seria uma crise constitucional para outros modelos textuais. Pensamos, por exemplo, que, ao menos, dois elementos devem ser inseridos no cálculo para a identificação de uma crise de uma Constituição transformadora18 18 Não podemos deixar de concordar com Ginsburg e Huq, quando atestam problemas que as metodologias internas e externas de avaliação do desempenho e sucesso constitucional enfrentam: a análise a partir da seleção ou recorte de provisões especificas ou de funções pode restar prejudicada a depender do momento em que sejam estudadas, uma vez que funções e provisões se desenvolverão em espaços temporais diferenciados. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. 2016. Assesing Constitutional Performance. New York: Cambridge University Press, pp. 03-38, p.12. : sua estabilidade e o desempenho de suas funções sociais.

Sobre o primeiro elemento, Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 35) não o ignora, mas o desestima. O autor não atribui muita importância à capacidade de os agentes políticos mudarem as regras do jogo durante a partida, especialmente quando “o conflito é sobre a própria regulamentação da disputa”. O ponto, em nosso sentir, exemplifica o problema do conceito de crise Made in USA. A maleabilidade constitucional é característica das constituições do pós-45 (ELKINS; GINSBURG; MELTON, 2009ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. The Endurance of National Constitutions. Cambridge: Cambridge University Press, 2009., p. 84), além de ser um dos elementos para explicar a estabilidade constitucional, mas a nossa Constituição possui uma taxa de emendamento perigosamente elevada, não tendo passado por nenhum mandato presidencial incólume.

A dificuldade de emendar a Constituição estadunidense é o principal mote para o tipo II de crise, na acepção de Balkin. A certeza de que as regras do jogo, dificilmente, serão alteradas durante um período de estresse político justificaria a existência de crises de fidelidade a uma Constituição falida. No Brasil, alterações constitucionais são feitas por razões conjunturais19 19 Um dos exemplos mais contundentes de mudanças conjunturais foi a popularmente chamada “PEC da bengala” (EC 88/15), a partir da qual os ministros do STF passaram a se aposentar aos 75 anos de idade, e não mais aos 70 anos, de acordo com a redação original da Constituição. A justificativa para a emenda não era nada republicana: no curso da degradação da relação de Dilma com o Congresso, o último se apressou para aprovar a emenda que retirou da presidente a possibilidade de indicar até 05 ministros para o STF. De acordo com Abranches, os parceiros ocasionais da coalizão governista temiam que a presidenta indicasse juristas propensos a punir políticos do centro. ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e trajetória do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 298. Muitas das reformas constitucionais formais que aliviaram o intervencionismo estatal brasileiro foram levadas a cabo a partir de uma pauta neoliberal, caudatária do consenso de Washington. Muitas dessas reformas, conjunturais, porque fruto da política econômica do período, exigiram o que Vieira denominou de “realinhamento constitucional”. VIEIRA, Oscar Vilhena. Realinhamento Constitucional. VIEIRA, Oscar Vilhena; SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). Direito Global. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 15-49, p. 42-47. Como sentencia Celina Souza “A relativa facilidade do processo de “emendamento” tornou possível a adaptação ao novo contexto/conjuntura”. A autora se refere ao contexto econômico do início dos anos 90. SOUZA, Celina. Regras e contexto: as reformas da Constituição de 1988. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 51, nº 4, 2008, p. 815. e estruturais, a demonstrar que há pouca diferença entre crises políticas e constitucionais. O momento de criação da norma constitucional não é um momento único e extraordinário, mas uma ferramenta que está ao alcance do governo de turno20 20 SOUZA, Celina. Regras e contexto: as reformas da Constituição de 1988. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 51, nº 4, 2008, p. 791-823 (não apenas os chefes do Poder Executivo estavam por detrás da maior parte dos projetos de reforma constitucional que deram origem às emendas, diretamente ou por meio de alas governistas na Câmara, mas, também, as reformas constitucionais formais estavam diretamente ligadas à agenda de reformas conjunturais dos governos recém-eleitos, respaldados pelo apoio eleitoral). . O conceito de crise constitucional de Balkin sugere uma clara demarcação entre momentos extraordinários de política constitucional21 21 Essa distinção, por exemplo, fundamenta as teses sobre constitucionalismo como as de Bruce Ackerman. Ackerman sustenta a diferença entre o exercício da política constitucional (higher lawmaking) e a política comum ou normal (normal politics). Essa classificação distingue as decisões tomadas pelo povo (capazes de criar direito constitucional) e decisões tomadas pelo governo, rotineiras e baseadas na Constituição, mas não sobre ela. ACKERMAN, Bruce. We the People: Foundations. Cambridge: Belknap Press, 1991, p. 266 e ss. e situações de estresse político ordinário.

Em experiências políticas nas quais essa demarcação não seja clara, como a brasileira22 22 Fato reconhecido por Vieira ao tratar do papel do STF na ordem política: “o Supremo exerce o controle tanto sobre a política ordinária, analisando a constitucionalidade de leis e atos do Executivo, como sobre a política constitucional”. (VIEIRA, 2018, p. 166). , o argumento de que passamos, tão somente, por um estresse político, com o devido respeito, não é consistente. Quando teremos uma crise constitucional se, sob qualquer pretexto, a regra constitucional que gera o conflito puder ser alterada por contingências políticas do dia? Um conceito de crise constitucional apto a explicar o caso nacional precisa tomar em conta que estresses políticos envolvem a alteração das regras do jogo político no curso de uma jogada e que emendas constitucionais são um instrumento do governo de turno, e não indicativos de mobilização política extraordinária e fundacional.

Ou seja, a instabilidade do sentido do pacto constitucional de 1988, em desenvolvimento desde seu primeiro dia de vigência, demonstra que a confusão entre política ordinária e constitucional deve entrar no cálculo do que configura uma crise das funções da Constituição brasileira, sob pena de nunca esbarramos neste tipo de anormalidade funcional, ao insistirmos no elevado padrão criado por Levinson e Balkin para avaliar o funcionamento político das normas constitucionais dos EUA. A instabilidade constitucional brasileira, por exemplo, afasta crises do tipo I e II, porque o pacto constitucional é facilmente alterado quando problemas conjunturais ameaçam o curso da política ordinária e constitucional.

A constitucionalização de políticas públicas força o governo a utilizar a Constituição como um instrumento obrigatório de sua política ordinária23 23 A escolha de inserir políticas públicas, notórias por serem produtos políticos dependentes das conjunturas político-econômicas, no texto constitucional faz com que temas que ensejam controvérsias cotidianas passem a ser alvo de disputa no plano da política constitucional. Dessa forma, a coalizão majoritária vencedora do pleito para a chefia do Executivo federal não tem condições de pautar sua agenda apenas mediante leis ordinárias, forçando-a a atuar no campo da renovação constitucional, ou seja, da alteração dos elementos da política pública constitucionalizada. ARANTES, Rogério Bastos; COUTO, Cláudio Gonçalves. Construção democrática e modelos de Constituição. Dados, Rio de Janeiro, v. 53, n. 3. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, no 3, 2010, pp. 545 a 585, p. 573. , não servindo o texto político como um manual de instruções que se limita a indicar como os governantes devem se comportar interativamente. Dessa forma, qualquer mobilização (não apenas aquelas em momentos de crise) da política ordinária impacta a estabilidade do regramento constitucional. Essa não é uma avaliação valorativa, mas sim de como nossa política constitucional funciona.

Ao explicar sua categoria de apodrecimento, Balkin nos informa que está disposto a acatar a ideia de que uma constituição possa ser autocrática, conclusão da qual não discordamos. Afinal, a relação entre constitucionalismo e democracia pode variar de acordo com as premissas teóricas adotadas (WALDRON, 2016WALDRON, Jeremy. Constitutionalism: a skeptical view. In.: WALDRON, Jeremy. Political Political Theory. Cambridge: Harvard University Press, p. 23-44, 2016., p. 26). Tendo em vista que o critério para aferição de uma crise constitucional é o sucesso com que uma Constituição desempenha sua função coordenadora, uma carta que alberga um regime não democrático estará, igualmente, sujeita a entrar em crise24 24 Ginzburg e Huq concordam que o aspecto político do constitucionalismo, ou seja, sua capacidade de coordenar a ação política sem o recurso à violência, pode ser utilizado por países não-democráticos, muito embora pensem que essa função será mais bem desempenhada por democracias. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. 2016. Assesing Constitutional Performance. New York: Cambridge University Press, pp. 03-38, p. 05 . No entanto, uma Constituição que entrincheira a fidelidade a ideais democráticos em suas normas25 25 Cremos que José Afonso da Silva permaneça a grande referência na caracterização do Estado Democrático de Direito, afinal o conceito foi inserido na Constituição por sua influência. Para Silva, o Estado Democrático de Direito almeja a justiça social pela superação das desigualdades sociais. O constitucionalista paulista elenca alguns princípios inerentes ao nosso Estado Democrático de Direito: 1) da constitucionalidade, característico da legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular; 2) democrático, que contém os postulados da democracia representativa e participativa, pluralista e que garante a efetividade dos direitos fundamentais; 3) da justiça social (presente nos arts. 170 e 193 da CF/88); 4) da igualdade (art. 5º, I da CF/88); 5) da divisão dos poderes e independência do juiz (arts. 2º e 95 da CF/88); 6) da legalidade (art. 5º, II da CF/88); 7) da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII da CF/88) e 8) o sistema de direitos fundamentais. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. Marcelo Cattoni segue linha semelhante ao defender que o Estado Democrático de Direito brasileiro intenciona superar desigualdades sociais, através do aprofundamento da democracia participativa, como ideal de justiça social. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 63. , demanda do avaliador que os leve em conta, como um critério de aferição de suas funções, a qualidade do regime democrático.

Com base no analisado na seção anterior, o conceito brasileiro de práticas constitucionalmente abusivas pode ser lido como um possível índice da qualidade democrática de uma República e, por si só, um forte indício de que uma possível crise constitucional esteja em curso, muito embora, politicamente, a Constituição afetada por práticas abusivas esteja desempenhando com relativo sucesso sua função de coordenação política, tal como o defendido por Vieira. Os exemplos legislativo e judiciário citados anteriormente demonstram a preocupação de nossos constitucionalistas com a parcela de culpa dos três ramos do poder nesta situação conflitiva e não cremos que a adjetivação dessas práticas políticas como “abusivas” possa ser confortavelmente capturada ou substituída pela de “jogo duro”, sugerida por Vieira

O conflito distributivo constitucional é muito bem identificado por Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 26 e 31-32), como a contraposição de uma pauta de austeridade fiscal com a necessidade constitucional de que sejam cumpridos os objetivos relativos à concretização de direitos sociais. Entendemos que o cumprimento dos objetivos da República deve ser um dos critérios para a aferição de uma possível crise constitucional brasileira. Se os índices de melhoria no campo dos direitos sociais no Brasil foram uma constante nos últimos 25 anos e, ao mesmo tempo, importantes para a redução das desigualdades sociais (ARRETCHE, 2015ARRETCHE, Marta (org). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. 1ed.São Paulo: Unesp/CEM, 2015.), crises e reformas fiscais que afetam o regime constitucional de gastos sociais impactarão o cumprimento desta capital missão constitucional. Como atestado pelo próprio autor, as reformas constitucionais propostas pelo governo Temer “pôs (eram) em marcha um processo de revisão da natureza social do pacto de 1988” (VIEIRA, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 62).

O foco na canalização orgânica do conflito político, portanto, na função coordenadora de nossa Constituição, permitiu ao autor reconhecer a gravidade das reformas constitucionais que têm surtido efeito deletério nos índices sociais, e cujo objetivo evidente seria alterar uma decisão constituinte estrutural de natureza social (MAUÉS, 2020MAUÉS, Antonio Moreira. 30 Anos de Constituição, 30 Anos de Reforma Constitucional. Revista Direito GV, v. 16, n. 1, jan./abr. 2020., p. 26), como indicativos de um estresse e jogo duro políticos. Esse caso específico demonstra a instabilidade dos acordos constitucionais sobre o cumprimento das funções sociais do pacto de 1988 (MAUÉS; SANTOS, 2008). Por outro lado, essa constatação evidencia a sobreposição e interdependência entre os critérios da estabilidade constitucional e o da transformação social, ao expor que conflitos distributivos desaguam em instabilidade constitucional e na revisão de pactos e acordos constitucionais firmados desde a constituinte, os quais poderão afetar o cumprimento da função constitucional de câmbio social.

Conflitos políticos que ensejam crises do tipo III, por dependerem de critérios interpretativos, também precisam ser reavaliados quando transportados para nosso ordenamento constitucional. O uso, concomitante, de práticas abusivas por parte dos três poderes detectado por uma parcela da teoria constitucional será considerado um indício claro de crise constitucional se quem estiver avaliando seus comportamentos interpretarem que o impeachment de 2016 foi capaz de suscitar crises constitucionais de outros tipos (estabilidade constitucional e função social). A regularidade do funcionamento constitucional, portanto, pode estar nos olhos de quem a vê.

Conforme vimos até aqui, a utilização do termo “constitucionalismo abusivo” pelos autores brasileiros - a partir do elastecimento da proposta original de Landau para abarcar medidas adotadas pelos poderes Legislativo e Judiciário - sinaliza tanto uma atuação abusiva dos poderes, como certa alteração da relação destes entre si, por meio da utilização de mecanismos constitucionais (hermenêutica constitucional, impeachment e decretos executivos) de forma a comprometer a qualidade da democracia brasileira.

A questão posta, entretanto, seria entender se este decaimento democrático qualitativo é capaz de gerar uma crise constitucional. Como visto nesta seção, a utilização de um estetoscópio norte-americano para a avaliação da saúde constitucional brasileira nos apontará apenas para a presença de um estresse constitucional, tal como observado por Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.) a partir de seus recortes metodológico e bibliográfico específicos.

Por outro lado, se o parâmetro de avaliação for diverso e interno, isto é, se observarmos a dinâmica de relacionamento e os jogos interpretativos estabelecidos entre os poderes, partindo da ótica de uma Constituição transformadora, para além do caráter meramente coordenador, o cálculo poderá apresentar resultados diversos e dar sentido ao mal-estar identificado pelos autores brasileiros que buscam nos termos americanos uma tradução fiel deste comportamento político disfuncional.

Nossa análise caminha neste segundo sentido, de modo a considerar as particularidades do nosso sistema político-institucional, os recentes acontecimentos e o impacto gerado sobre a função coordenadora da Constituição, buscamos oferecer uma interpretação que seja mais condizente com o contexto nacional para fins de avaliação de eventual crise constitucional no Brasil, tendo em vista a Constituição transformadora que temos.

3) Desacordos interpretativos e critérios para avaliar a existência de uma crise constitucional: impactos no sentido da juridicidade constitucional.

Instabilidade e conflitualidade são elementos característicos do funcionamento da estrutura democrática brasileira, e são subproduto das escolhas de desenho político-institucional adotadas pela Constituição Federal de 1988. Institucionalmente, esse desenho foi alcunhado por Sérgio Abranches de ‘presidencialismo de coalizão’. Este arranjo político fundamenta-se, essencialmente, na interação entre cinco bases: presidencialismo, federalismo, bicameralismo, multipartidarismo e representação proporcional (ABRANCHES, 1988ABRANCHES, Sérgio Henrique H. de. O Presidencialismo de Coalizão: o dilema Institucional Brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 31, n.1, p. 5-34, 1988., p. 10).

Leonardo Avritzer (2016AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. 1 ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 10) explica, contudo, que a combinação destes elementos institucionais cria um sistema instável e conflituoso, à medida que o Presidente da República é eleito “com mais votos do que seu partido político recebe nas eleições para o Poder Legislativo, criando a necessidade de alianças políticas”. Estas coalizões, por sua vez, demonstram-se quase sempre volúveis, devido à elevada fragmentação partidária, o que gera a inevitável colisão entre interesses diversos (VIEIRA, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 26-29).

Desse modo, a sustentação congressual do presidente baseia-se no corrente desempenho do governo e em sua capacidade de respeitar os pontos ideológicos inegociáveis dos demais partidos políticos, os quais nem sempre são explicitamente estabelecidos quando da formação da coalizão (ABRANCHES, 1988ABRANCHES, Sérgio Henrique H. de. O Presidencialismo de Coalizão: o dilema Institucional Brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 31, n.1, p. 5-34, 1988., p. 27). Logo, a própria governabilidade fica condicionada às sucessivas e instáveis negociações entre o chefe do Poder Executivo e os diversos partidos políticos de representatividade legislativa. A manutenção da fidelidade daqueles que formam a coalizão está, ademais, condicionada ao apelo popular de quem ocupa o posto de Presidente (ABRANCHES, 2018).

Apesar da instabilidade que lhe é inerente, o presidencialismo de coalizão é uma conformação que visa atender a heterogeneidade da sociedade brasileira e, por isso, se trata de uma organização político-institucional que, por certo tempo, atendeu às expectativas dos brasileiros (AVRITZER, 2016AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. 1 ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 116). Contudo, o cenário vivenciado pelo Brasil a partir de 2013 - com as intensas manifestações contra o sistema político e os serviços públicos (AVRITZER, 2016, p. 8-9), seguidas pela bem sucedida insurgência contra os resultados eleitorais (impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff) e posterior ascensão de um candidato da direita populista, com posicionamentos expressamente contrários à Constituição (VIEIRA, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 34) -, aponta para um contexto de degradação democrática contínua identificado por cientistas políticos (AVRITZER, 2019, p. 14-17).

Esta conjuntura expressa contradições do ponto de vista da elasticidade do conceito de juridicidade constitucional, uma vez que eventos ilegítimos puderam ser desenvolvidos durante a vigência formal da ordem constitucional, e, inclusive, com fundamento jurídico na própria Constituição26 26 O Brasil não está em uma crise constitucional, na visão de Oscar Vieira, porque não foi possível identificar nenhum dos três tipos de crise elencados em seção anterior. No entanto, como o tipo III de crise não prescinde de aspectos interpretativos controversos acerca das normas constitucionais, escapamos desse tipo de crise em sua visão, porque Vieira interpreta o impeachment da Presidente Dilma como um movimento constitucional legítimo. Para o autor, não teria sido um golpe parlamentar, mas uma utilização estratégica das regras constitucionais para “ferir um adversário político” (VIEIRA, 2018, p. 59). Dito em outras palavras, um jogo duro, mas dentro do manual de funcionamento constitucional. . Dessa forma, responder se o Brasil se encontra ou não em um momento de crise constitucional-democrática depende, não apenas da reformulação de critérios analíticos, como explicado na seção imediatamente anterior, mas, também, pelo grau de desacordos interpretativos sobre a juridicidade acomodada e suportada pela Constituição27 27 Reconhecemos que o enfrentamento de temas tão relevantes por meio de conceitos que albergam índices gradativos pode não ser tão proveitoso, em função de sua maleabilidade e pela ausência de um instrumento capaz de mensurar tais índices. No entanto, sem embargo de refinamentos necessários em trabalhos posteriores, cremos que o experimentado nesses momentos são desacordos interpretativos irreconciliáveis sobre a submissão dos Poderes às regras do jogo. Esse tipo de desacordo se diferencia das naturais dúvidas interpretativas que surgem no momento da aplicação da Constituição. .

Vamos utilizar no texto a ideia de “crise na juridicidade constitucional” para nos referirmos às disputas interpretativas irreconciliáveis a respeito das regras constitucionais, especificadamente, aquelas que envolvam a atuação dos poderes da República e que suscitam debates sobre sua correspondência, ou não, com os ditames constitucionais. Ou seja, são desacordos interpretativos sobre aquilo que pode ser acomodado juridicamente, e de forma legítima, dentro da moldura da norma constitucional.

Dessa forma, pensamos que uma das premissas seria compreender a partir de qual grau de juridicidade constitucional as estruturas político-institucionais têm operado desde o impeachment de 2016.

De fato, como diversas vezes salientado por Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), há uma disputa de narrativas em torno do impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff. Por um lado, há autores que compreendem o afastamento como um golpe parlamentar, conforme sustentava Wanderley Guilherme dos Santos (2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.). De outro, há quem o entenda como o produto de uma forte, mas legítima, batalha institucional, à exemplo de Oscar Vilhena Vieira (2018). Em ambas as narrativas, no entanto, percebe-se uma discussão que circunda a acepção de juridicidade, o modo de manejo e interpretação da Constituição para o alcance de determinados interesses políticos.

Wanderley Guilherme dos Santos (2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.) percebe nas democracias contemporâneas uma diferente forma de substituição do poder, a qual acontece sob um verniz de legalidade e é instrumentalizada por indivíduos que possuem legitimidade democrática (parlamentares). Embora com características novas e distintas, Santos considera que tal fenômeno se insere na categoria de golpe, tratando-se daquilo que denomina de “golpe parlamentar”. De acordo com o autor, os golpes podem acontecer em qualquer forma de governo, desde monarquias até democracias, todavia o golpe parlamentar consiste em uma modalidade muito específica de assalto ao poder, pois toma lugar somente em democracias representativas. Trata-se de uma ruptura diferenciada, e um tanto recente, porquanto praticada sem a necessidade de violência institucional, apresentando ineditismo na história das democracias representativas (SANTOS, 2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017., p. 9-10).

De acordo com Wanderley Guilherme dos Santos (2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.), o golpe parlamentar implica uma substituição ilegal do representante do governo, executada por membros do parlamento, independentemente do uso de força militar para tanto. Na realidade, “todo o processo ocorre dentro do Congresso, conduzido por políticos com mandatos de representação, obedecendo formalmente à letra das leis vigentes no país” (SANTOS, 2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017., p. 17).

Característica essencial aos golpes parlamentares é a manutenção da ordem legal vigente, ao passo que se opera uma ilegítima ruptura de governo (SANTOS, 2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017., p. 17). O regime democrático, dessa forma, mantém-se formalmente intacto, uma vez que as instituições e leis aparentam estar sendo normalmente cumpridas, mas inegável é o caráter ilegítimo e antidemocrático por meio do qual ocorre o assalto ao poder. Santos (2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017., p. 17) explica que a estratégia argumentativa dos golpes parlamentares é a acusação de suposta violação às regras de administração, isto é, justifica-se a alteração precipitada do governo a partir de denúncias questionáveis, obedecendo, contudo, aos ritos legais costumeiros28 28 Problemas que Avritzer (2019, p. 55) atribui a uma possível má-administração pública, hipótese de impeachment evitada por outras democracias sólidas. SUNSTEIN, Cass. Impeachment: A Citizen's Guide. Cambridge: harvard University Press, 2017, p.132. .

Com isso, o golpe parlamentar torna-se exitoso à medida em que se passa a contestar exatamente o sentido da juridicidade, gerando dúvidas sobre o resultado do procedimento adotado: fora constitucional ou inconstitucional?

Em razão destes fatores, o impeachment de 2016, na acepção de Santos, caracteriza-se como um golpe parlamentar. Para o autor (2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017., p. 24), a decepção do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) com as eleições de 2014 foi intensa e letal para a democracia no Brasil. A oposição, liderada inicialmente por Aécio Neves, candidato derrotado em 2014, seguiu uma trajetória semelhante àquela dos antigos golpes: primeiramente, a denúncia por suposta fraude eleitoral e, depois, a acusação por corrupção (SANTOS, 2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017., p. 24-25).

O candidato Aécio Neves, derrotado no pleito de 2014, imediatamente, questionou a conclusão eleitoral, associando o resultado das eleições às investigações de corrupção que se iniciavam na Operação Lava Jato. Posteriormente, apresentou representação junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pedindo o cancelamento da chapa vencedora e a sua nomeação como novo presidente (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2019., p. 58). Desse modo, percebe-se que a reeleição da ex-presidente Dilma Rousseff, desde o princípio, não foi aceita pela oposição.

De acordo com Leonardo Avritzer (2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2019., p. 58-59), o processo eleitoral de 2014 representou um profundo retrocesso democrático, cujos desdobramentos foram, sequencialmente, a contestação das eleições pelo PSDB junto ao TSE ainda em 2014, a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara dos Deputados - fortalecendo questionamentos políticos contra o mandato da presidente -, a apresentação do pedido de impeachment e posterior aceitação do mesmo por Eduardo Cunha, em dezembro de 2015.

Diante deste contexto, Wanderley Guilherme dos Santos (2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017., p. 68) sustenta que o papel desempenhado pela oposição foi essencial para o assalto ao poder. Para o autor, quando Aécio Neves acenou para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, foi seguido por outros partidos políticos, o que permitiu a formação de uma grande coalizão parlamentar a favor da substituição do governo - reunião esta suficiente para dar início ao processo de impedimento e concretizar o golpe parlamentar (SANTOS, 2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017., p. 25).

Segundo Scott Mainwaring, Daniel Brinks e Aníbal Péres-Liñán (2001MAINWARING, Scott; BRINKS, Daniel; PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Classificando regimes políticos na América Latina, 1945-1999. Revista de Ciências Sociais - DADOS, Rio de Janeiro, v. 44, n. 4, p. 645-687, 2001.), uma definição mínima de democracia - que inclua somente os aspectos indispensáveis ao regime democrático - deve conter, entre outros elementos, a realização de eleições livres e competitivas para a escolha dos representantes dos poderes executivo e legislativo. Trata-se de elemento essencial à caracterização das democracias representativas contemporâneas, de forma que a coerção e fraude não possam determinar resultados eleitorais democráticos.

Dessa forma, os repetidos questionamentos em torno dos resultados eleitorais, somados à abrupta ruptura de governo, que culminou no afastamento de uma presidente democraticamente eleita e na alteração do projeto de governo eleitoralmente escolhido, podem colocar em xeque a compreensão mais básica de democracia, principalmente quando se observam os argumentos que fundamentaram o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff, corroborando ainda mais para a configuração de golpe parlamentar.

Esse processo de ruptura, que culminou na substituição de um projeto político por outro não chancelado eleitoralmente, ademais, chamou a atenção de nossos constitucionalistas, tal como desenvolvido na primeira seção, para uma possível prática ilegítima de tradicionais institutos constitucionais: o impeachment e o exercício da jurisdição constitucional por parte do STF. Em refinamento do argumento desenvolvido na primeira seção, podemos explicar a apressada adoção do termo “constitucionalismo abusivo” por parte de nossos autores como um recurso retórico capaz de verbalizar, com urgência, o aprofundamento dos desacordos interpretativos entre todos os Poderes sobre as regras constitucionais.

O que pode ser evidenciado, ademais, pela dúvida acerca da definição constitucional e legal de “crimes de responsabilidade” e sobre a ausência de parâmetros capazes de controlar a interpretação do texto constitucional feita pelo STF, uma vez que esta corte não cria condições para a construção de uma noção coerente das normas constitucionais. Em ambos os casos, há a identificação de uma disrupção sobre a juridicidade constitucional, muito embora canalizada através de um conceito empregado de maneira questionável. O diagnóstico de uma crise constitucional demanda que o intérprete esteja atento aos chamados desses constitucionalistas e cientistas políticos.

Leonardo Avritizer (2019, p. 13), entretanto, considera que golpes operam a partir de uma ruptura completa com a lei e a justiça, o que não aconteceu em 2016. Apesar de o Brasil ter entrado em um outro contexto após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff - com a presença de elementos antidemocráticos e a redução de direitos -, a ordem constitucional global se manteve como antes, mas o sentido de juridicidade29 29 Em verdade, o autor, utiliza a ideia de ‘legalidade’ (AVRITZER, 2019, p. 12). Preferimos trabalhar com juridicidade, em substituição, para não criar uma confusão conceitual ao sugerirmos, por exemplo, uma eventual alteração na “legalidade constitucional”. emergiu abalado.

Por tal característica, Avritzer (2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2019., p. 13) localiza o golpe parlamentar em um ponto de interseção entre aquilo que se entende por golpe e o que não pode ser assim considerado. Isso porque, nas palavras do autor: “a ruptura forte e imediata se restringe apenas ao campo do exercício do poder e não se estende à tessitura das relações legais que, ainda assim, foram abaladas pelo ato legalmente questionável de afastamento da presidente” (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2019., p. 13). Afirmando o mesmo, mas agora empregando os termos do debate travado neste artigo, nos últimos parágrafos Avritizer sugere que é possível afetar elementos centrais para uma ordem constitucional específica (fidelidade democrática, direitos políticos e direitos sociais), sem que sua função coordenadora reste, completamente, abalada.

Oscar Vilhena Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), por outro lado, analisa toda esta conjuntura como um período de forte mal-estar constitucional, que não se caracteriza como uma ruptura democrática ou constitucional, mas tão somente uma crise política - a qual impacta diretamente o funcionamento das instituições, uma vez que torna a disputa político-institucional mais intensa e polarizada. Sua análise, portanto, parece negligenciar que, ainda que se adote a métrica de Balkin e Levinson30 30 Da qual guardamos reservas quanto a sua aplicação no contexto brasileiro. , podemos estar diante de uma variante da crise do terceiro tipo. A disrupção na juridicidade constitucional se apresenta como um desacordo interpretativo insolúvel, de grau elevado, sobre as regras constitucionais. Esse desacordo faz com que haja uma grave fratura sobre a leitura feita do ordenamento constitucional e da democracia, dividindo a academia e os poderes envolvidos31 31 No âmbito do Executivo, a ex-presidente Dilma Rousseff, em entrevista aos correspondentes estrangeiros, denunciou o golpe, destacando a ausência de fundamento jurídico para o processo de impedimento (Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2016/marco/dilma-denuncia-golpe-de-estado-a-correspondentes-estrangeiros. Acesso em: 26 de out. de 2020). Por sua vez, Michel Temer, ao ser entrevistado pelo programa Roda Viva (TV Cultura), ressaltou que não foi adepto ao golpe e tão pouco empenhou-se neste sentido (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OGDCN8ikj8U. Acesso em 26 de out. de 2020). Na seara judiciária, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal também posicionaram-se acerca do assunto: Ricardo Lewandowski declarou que impeachment representou mais um cíclico tropeço na democracia brasileira (Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1817948-impeachment-foi-tropeco-da-democracia-diz-lewandowski.shtml. Acesso em 26 de out. de 2020), enquanto o Fachin, no VII Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral, afirmou que vivemos um período de recessão democrática, marcado, por manifestações ódio, pela crise socioeconômica e crescente desconfiança em torno do sistema democrático (Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/inequivocamente-vivemos-uma-recessao-democratica-diz-edson-fachin-17082020. Acesso em 26 de out. de 2020). .

Para Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 59-60), ademais, a narrativa do golpe compreende um grande esforço retórico, haja vista que a generalidade das regras relativas ao processo de impedimento e a competência exclusiva do parlamento para julgamento concebem o impeachment como arma letal, contra os presidentes que não possuem apoio de pelo menos um terço do parlamento. Ao carregar no acento retórico do discurso golpista, o autor acaba por desmerecer uma interpretação constitucional possível, e, ao mesmo tempo, enfraquece a argumentação de autores que lançam mão do critério mais refinado do golpe parlamentar. Santos e Avritzer sabem que não ocorreu um golpe em sentido clássico, mas uma manobra política que deve ser lida como violadora da juridicidade constitucional. O desacordo que separa Avritizer e Santos de um lado e Vieira de outro, é o mesmo que separa as percepções dos três poderes sobre o impeachment.

Ademais, a conclusão de Vieira segundo a qual o impeachment não fora ilegítimo, contrasta com as leituras feitas pelos nossos constitucionalistas das práticas abusivas por parte dos poderes, portanto os últimos sabem que não houve uma “fuga” total do funcionamento constitucional coordenador, mas, ainda assim, pontuam que as interpretações feitas pelo Congresso e pelo STF não se acomodam dentro do funcionamento regular do edifício constitucional brasileiro.

Apesar de discordar da caracterização do impeachment de 2016 como golpe parlamentar, Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 59-60) reconhece a predominância de seu caráter político e a existência de uma conspiração política da oposição contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Em ambas as interpretações se percebe um debate que circunda o sentido da juridicidade, isto é, daquilo que pode ser considerado legítimo do ponto de vista da interpretação constitucional. Wanderley Guilherme dos Santos observa o impeachment de 2016 como uma alteração fraudulenta do governo, orquestrada por membros do parlamento. Oscar Vilhena Vieira, por outro lado, repudia a noção de golpe de Estado, observando o impeachment como produto de “tempos de constitucionalismo bicudos” (estresse constitucional), em que o acirramento dos conflitos institucionais possibilitou o uso estratégico da Constituição.

A discussão levada à cabo a partir do impeachment de 2016 cinge-se exatamente em torno da adequada interpretação e cumprimento da Constituição Federal de 1988, o que divide a sociedade e diversos pesquisadores em torno da juridicidade do seu procedimento. Isso porque, enquanto manteve-se a ordem político-legal vigente globalmente considerada em sua vertente coordenadora, significativas alterações e alargamentos na compreensão do que pode ser constitucionalmente aceitável ameaçam a estabilidade do pacto constitucional, um elemento que pode indicar uma crise constitucional para além dos termos propostos por Vieira, ou no mínimo, se aproximar de uma crise do tipo III.

A partir do exposto, a hipótese sustentada é a de que o processo de impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff foi central para uma discussão e alteração daquilo que se entende como constitucionalmente aceitável, permitindo a utilização estratégica de instrumentos constitucionais contra o próprio sistema democrático-constitucional, sem que seja possível contestar a correção dessa argumentação em razão da ausência de parâmetros interpretativos seguros. Em outras palavras, seja pela narrativa do golpe parlamentar (SANTOS, 2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.) ou do mal-estar constitucional (VIEIRA, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), a substituição precipitada do governo em 2016 pode ter inserido novas características na compreensão de juridicidade e de direito, as quais tornaram-se determinantes para o modo de funcionamento dos poderes e manejo da Constituição.

Não só na academia se observa o dissenso em torno da juridicidade constitucional. Também central neste debate é o Supremo Tribunal Federal (STF), que, além de intérprete da constituição, figura atualmente como peça-chave nas disputas políticas e institucionais travadas no Brasil (MIGUEL; BOGÉA, 2020MIGUEL, Luis Felipe; BOGÉA, Daniel. O juiz constitucional me representa? O Supremo Tribunal Federal e a representação argumentativa. Revista brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-21, 2020.). Desde o processo do mensalão, o Supremo tem exercido função determinante no âmbito do sistema político, o que não foi diferente em relação ao impeachment de 2016.

Em uma análise acerca do papel desempenhado pelo STF no impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff, Eloísa Machado de Almeida (2019ALMEIDA, Eloísa Machado de. O papel do Supremo Tribunal Federal no impeachment da presidente Dilma Rousseff. DESC - Direito, Economia e Sociedade Contemporânea, v.2, n. 1, Campinas, p. 52-75, Jan/Jun 2019.) destaca a intrínseca relação entre o processamento do impeachment de 2016 junto às casas legislativas, de um lado, e o andamento da Operação Lava Jato, de outro, uma vez que ambos aconteciam simultaneamente e influenciavam-se mutuamente. A autora sustenta que o Supremo Tribunal Federal interferiu indiretamente no curso do impeachment de 2016, por meio de algumas decisões proferidas no seio da Operação Lava Jato, as quais neutralizaram atores em momentos relevantes e permitiram que estes mesmos agissem em outras ocasiões, gerando repercussões decisivas no impedimento de Dilma Rousseff.

Nas demandas que tratavam direta e expressamente sobre o impeachment, o Supremo expressou abstenção quanto ao controle material, reconhecendo ao Congresso Nacional a competência para processamento, julgamento e definição dos atos suscetíveis de enquadramento como crimes de responsabilidade, o que possibilitou um espaço favorável para articulações dentro da ampla coalizão contrária ao governo vigente à época, por meio da adoção de atos e argumentações juridicamente questionáveis, como a inclusão das “pedaladas fiscais” na categoria de crime de responsabilidade, embora trate-se de conduta amplamente utilizada por presidentes anteriores32 32 De acordo com Leonardo Avritzer, a conexão entre o Tribunal de Contas da União (TCU) e o sistema político é “elemento determinante das prestações de contas”. Em relação ao governo Dilma Rousseff, o autor sustenta que o TCU não atuou de maneira técnica no que tange à suplementações de contas, mas de modo claramente político, o que pode ser comprovado tanto pela ausência de punição em relação aos governos anteriores que se valeram da mesma manobra, como pelas relações pessoais entre os membros do TCU e a oposição ao governo de turno (AVRITZER, 2019, p. 63-64). Destaque-se, ainda, que após o impedimento da presidente Dilma Rousseff - encerrado em 31 de agosto de 2016 - foi publicada a Lei Federal nº 13.332, de 01 de setembro de 2016, que possibilitou a abertura de créditos suplementares até o limite de 20%, independentemente de autorização do Congresso Nacional. . Com isso, a corte limitou-se à regulação de aspectos procedimentais tais como o rito e os prazos relativos ao impeachment (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Eloísa Machado de. O papel do Supremo Tribunal Federal no impeachment da presidente Dilma Rousseff. DESC - Direito, Economia e Sociedade Contemporânea, v.2, n. 1, Campinas, p. 52-75, Jan/Jun 2019., p. 67).

No que se refere às demandas objeto da Operação Lava Jato, diferentemente, o Supremo Tribunal Federal atuou incisivamente, inclusive com a adoção de medidas excepcionais. Em novembro de 2015, houve a primeira prisão de um senador desde a promulgação da Constituição da República em 1988: Delcídio do Amaral, principal líder do governo Dilma no Senado Federal quando do debate acerca do impeachment, foi preso por ordem do STF a partir de um esforço argumentativo que o enquadrou em situação de flagrante delito com base na existência de uma “associação criminosa de ação contínua", mas pouco tempo depois o senador foi solto, em fevereiro de 2016 (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Eloísa Machado de. O papel do Supremo Tribunal Federal no impeachment da presidente Dilma Rousseff. DESC - Direito, Economia e Sociedade Contemporânea, v.2, n. 1, Campinas, p. 52-75, Jan/Jun 2019., p. 69-70). Já em março do mesmo ano a corte voltou-se à Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, tornando-o réu no inquérito policial 3893 pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Diante da acusação, o parlamentar tentou simultaneamente manter-se no cargo e evitar as votações na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, utilizando de sua função no impeachment como instrumento de barganha (ALMEIDA, 2019, p. 70).

Outras duas interferências pelo STF que influenciaram no afastamento da ex-Presidente Dilma Rousseff correspondem à suspensão da posse de Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil e ao afastamento de Eduardo Cunha somente após a aceitação do processo de impedimento pelo plenário da Câmara dos Deputados (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Eloísa Machado de. O papel do Supremo Tribunal Federal no impeachment da presidente Dilma Rousseff. DESC - Direito, Economia e Sociedade Contemporânea, v.2, n. 1, Campinas, p. 52-75, Jan/Jun 2019., p. 70-72) - duas decisões dotadas de excepcionalidade, demonstrando a volatilidade do sentindo de juridicidade constitucional a partir deste período.

No primeiro caso, a decisão liminar foi do Ministro Gilmar Mendes, que suspendeu a posse de Lula com fundamento em áudios de interceptação telefônica obtidos e divulgados de maneira ilícita por Sérgio Moro, permitindo a sustentação da tese de desvio de finalidade e obstrução da justiça da nomeação de Lula como ministro da Casa Civil (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Eloísa Machado de. O papel do Supremo Tribunal Federal no impeachment da presidente Dilma Rousseff. DESC - Direito, Economia e Sociedade Contemporânea, v.2, n. 1, Campinas, p. 52-75, Jan/Jun 2019., p. 70-71).

No segundo caso, a decisão liminar foi proferida pelo Ministro Teori Zavascki, que deferiu o pedido de suspensão do mandato do deputado federal, sob a justificativa de que Eduardo Cunha aproveitava-se das prerrogativas e abusava de seu poder para furtar-se de responsabilização. De acordo com Eloísa Almeida (2019ALMEIDA, Eloísa Machado de. O papel do Supremo Tribunal Federal no impeachment da presidente Dilma Rousseff. DESC - Direito, Economia e Sociedade Contemporânea, v.2, n. 1, Campinas, p. 52-75, Jan/Jun 2019., p. 72), a decisão foi dotada de alto grau de excepcionalidade, uma vez que a Constituição prevê diversas garantias aos parlamentares - até mesmo a impossibilidade de prisão - a fim de que permaneçam no exercício do cargo. Na liminar, o ministro reconheceu o caráter excepcional do afastamento, por ausência de previsão constitucional específica que autorizasse à justiça criminal afastar parlamentares de seu mandato, mas compreendeu como devida a medida naquele específico caso (AC 4070). Almeida destaca, ainda, caráter controverso na decisão: o pedido de afastamento de Cunha, quando anteriormente apresentado pela defesa da ex-presidente Dilma Rousseff sob os mesmos fundamentos (abuso de poder e desvio de finalidade), fora rejeitado pelo Supremo Tribunal Federal, mas, após o acolhimento do impeachment pela Câmara dos Deputados, o novo pedido proposto por meio da Ação Cautelar 4070 foi admitido em sede liminar e posteriormente referendado pelo pleno do STF (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Eloísa Machado de. O papel do Supremo Tribunal Federal no impeachment da presidente Dilma Rousseff. DESC - Direito, Economia e Sociedade Contemporânea, v.2, n. 1, Campinas, p. 52-75, Jan/Jun 2019., p. 72).

Dessa forma, o modo de interpretação da constituição por parte dos agentes públicos relevantes no momento de crise político-institucional, especialmente os parlamentares e ministros do Supremo Tribunal Federal, possibilitou a tomada de decisões políticas e judiciais que elasteceram o tecido constitucional para chancelar a adoção das medidas excepcionais e controversas que culminaram no afastamento da ex-Presidente Dilma Rousseff.

O momento posterior ao impeachment de 2016, de acordo com Avritzer (2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2019., p. 47), é caracterizado pelo aprofundamento da crise política e pela completa desvinculação entre o processo eleitoral e as políticas públicas implementadas. Por um lado, o novo presidente, Michel Temer, teve dificuldades em afirmar a sua legitimidade política, seja pela resistência que enfrentou em alguns círculos que verificavam no processo de impedimento um golpe ou pelo enfraquecimento de suas prerrogativas devido às suspeitas de envolvimento com Joesley Batista, um dos principais nomes nas investigações relativas à Operação Lava Jato (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2019., p. 65). De outro ângulo, o novo governo representava uma completa desvinculação entre eleição e políticas públicas (AVRITZER, 2019, p. 46-47), uma vez que o projeto de governo colocado em prática por Temer não fora aquele democraticamente eleito em 2014. Grande expressão desta desconexão talvez seja a Emenda Constitucional nº 95 - que estabeleceu teto de gastos públicos, limitando investimentos em educação e saúde, por exemplo - e a proposta de reforma da previdência - aprovada apenas posteriormente, no governo Bolsonaro.

Todo este contexto, vivenciado pelo Brasil desde 2013, é um indicativo daquilo que Marcos Nobre (2020NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2020.) chama de “colapso institucional”. De acordo com o autor, este fenômeno ocorre quando aqueles que fazem parte das instituições deixam de agir conforme as regras que todos esperam que sejam seguidas, tornando o sistema institucional imprevisível à medida que não se sabe como os resultados foram alcançados, isto é, segundo quais regramentos. Com isso, as regras se tornam arbitrárias e não transparentes, fazendo a instituição “(...) funcionar de maneira disfuncional: deixa de se pautar por sua própria história de procedimentos e de decisões e produz resultados casuísticos e arbitrários” (NOBRE, 2020NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2020., p. 11). O ‘colapso institucional’ de Nobre se aproxima da noção aqui proposta de “crise da juridicidade constitucional” e, além do mais, é indicativa de uma crise constitucional na função coordenadora, a qual se fez possível porque a interpretação das regras constitucionais deixou de ser transparente contingência que, em consequência, surte efeitos sobre o comportamento dos poderes, que passam a operar com base em uma juridicidade esgarçada - a partir desse estado de coisas, tudo é possível ou cabível sob as normas constitucionais e não há medidas políticas, jurídicas ou acadêmicas para aferir sua legitimidade.

Marcos Nobre (2020NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2020., p. 15) sustenta, outrossim, que, devido ao colapso, o sistema político-institucional vem operando sob desconfiança e rejeição pela sociedade, que passou a associar as instituições a todas as mazelas do Brasil, especialmente em razão dos escândalos de corrupção. Cenário este que possibilitou o surgimento e estabelecimento de forças antissistema nas eleições de 2018, cuja principal expressão se materializa no movimento bolsonarista.

As crises econômicas e política sobrepostas, somadas à disrupção institucional e devastação social foram, segundo Nobre (2020NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2020., p. 15), os fatores que possibilitaram a eleição de Jair Bolsonaro. A vitória do candidato da direita populista nas eleições de 2018 se deve, segundo o cientista político, ao sucesso de Bolsonaro em canalizar para a sua candidatura o caos social e institucional experimentado pelo Brasil nos últimos anos. Ao apresentar-se como outsider e político antissistema, cujo central objetivo era combater a “velha política”, Bolsonaro conseguiu filtrar votos de diferentes setores econômicos, políticos e sociais.

Contudo, a problemática nesta abordagem, na leitura de Nobre (2020NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2020., p. 16-17), é que o bolsonarismo identifica o sistema com a democracia, de maneira que um posicionamento antissistema seja, em realidade, contrário às instituições democráticas e à Constituição de 1988 - esta última permanentemente caracterizada como “de esquerda” pelo atual Presidente da República. Portanto, a eleição de um candidato que, na leitura de Vieira defende estar diante de um estágio de crise do tipo I e II permanentes.

Pode-se dizer, em conjunto com Nobre (2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.), que a constituição federal de 1988, embora tenha cristalizado um modelo de sociedade nacional-desenvolvimentista, também inseriu o embrião e a pretensão do social-desenvolvimentismo, de modo a expressar o caráter transformador do texto constitucional. Essa segunda perspectiva, entretanto, só entrou no debate público a partir da estabilização econômica e do desmonte do nacional-desenvolvimentismo promovidos pelo plano real, de modo a tornar-se parte dos programas políticos especialmente quando os governos do partidos dos trabalhadores chegaram à presidência da república, combinando a pauta econômica neoliberal com a implementação de programas sociais, os quais reduziram a pobreza no Brasil, embora ainda mantendo significativo nível de desigualdade (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.).

Essa construção social-desenvolvimentista, que vinha dando azo ao caráter transformador da constituição de 1988, entretanto, encontrou forte barreira a partir da crise econômico-financeira que atingiu o governo Dilma (2º mandato) e tornou-se ainda mais resistente às transformações sociais devido ao aprofundamento da política econômica neoliberal levada a cabo por Temer (EC 95) e utilizada como discurso político (antidireitos) de Bolsonaro. A partir do impeachment de 2016, portanto, podemos observar mais nitidamente o afastamento dos governos de turno do compromisso social da constituição de 1988, além de representar a ruptura entre políticas públicas e eleições já anunciada por Avritzer (2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2019.)33 33 A leitura de Avritzer (2019) sobre a nossa estrutura democrática compreende uma variação entre momentos de otimismo democrático e regressão da democracia, à semelhança de um pêndulo. De acordo com o autor, três são os pressupostos que possibilitam essa movimentação: a consideração de que o consenso em torno da democracia é circunstancial - o apoio ao regime democrático varia conforme a conjuntura político-econômica -; a existência de uma relação entre elites e instituições - o que possibilita a fácil emergência de elementos antidemocráticos por meio da desvinculação entre eleições (soberania popular) e políticas públicas -; bem como a ausência da institucionalização de uma estrutura de direitos e de não violência na sociabilidade e no sistema político. como elemento responsável por movimentar a democracia brasileira no sentido antidemocrático, o que vem sendo promovido inclusive por meio de emendamentos ao texto constitucional.

Nesse sentido, os parâmetros para a avaliação da saúde constitucional no Brasil, além da consideração do funcionamento formal das instituições - que oferecem o ar de normalidade democrática (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.) -, deve também considerar o compromisso com direitos sociais - os quais por sua vez são imprescindíveis para a redução de desigualdades e consequente aprofundamento democrático. O atual estado de crise da juridicidade constitucional, entretanto, nos aponta para problemas nestes dois aspectos: por um lado, a função coordenadora da Constituição aparenta estar profundamente comprometida - haja vista as intensas disputas interpretativas quanto ao que é constitucionalmente aceitável, a adoção de medidas excepcionais e a imprevisibilidade dos resultados dentro de procedimentos políticos e jurídicos -; de outro, o social-desenvolvimentismo que vinha sendo construído surgiu abalado pelo impeachment de 2016, pela implementação de medidas de austeridade ainda mais incisivas, na forma de emendas constitucionais, e pela eleição de um presidente que se opõe à carta de direitos sociais. Esse último aspecto corresponde aos critérios que devem ser levados em consideração para a avaliação de uma crise constitucional brasileira (estabilidade constitucional e desempenho de suas funções sociais).

Apesar da crise política no Brasil apresentar seu marco inicial em meados de 2013, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff - permeado por discussões acerca da constitucionalidade e pela adoção de medidas excepcionais do ponto de vista da tradição constitucional estabelecida até aquele momento - foi determinante para o sequenciamento de eventos político-institucionais posteriores e principalmente para o modo funcionamento do sistema democrático-constitucional, que passa a ser lido de maneira diversa: admite o manejo de instrumentos constitucionais contra a lógica da democracia constitucional, a partir de uma nova forma de juridicidade, a qual não apenas valida a alteração não eleitoral de governos, como também possibilita a “normalização do estado de crise” em que o Presidente da República representa um constante ataque à constituição e às instituições democráticas (NOBRE, 2020NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2020., p. 16).

Conclusão

A partir do processo de impeachment de impeachment de 2016, os constitucionalistas e cientistas políticos brasileiros buscaram desenvolver conceitos explicativos para o novo quadro político-institucional que se apresentava, especialmente marcado por decisões políticas e judiciais controversas. Neste esforço argumentativo, alguns autores nacionais importam conceituações formuladas por teóricos norte-americanos, a fim explicar a prática abusiva levada a cabo pelos Poderes da República, embora a partir de uma dilatação da teoria original para adequá-la à realidade brasileira, como é o caso da utilização do conceito “constitucionalismo abusivo”. Outros pesquisadores, como é o caso de Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), importam uma noção muito particular de constitucionalismo, de forma a limitar o escopo de avaliação de crises constitucionais no Brasil com base em estudos inicialmente pensados para a estrutura constitucional norte-americana.

Em ambos os casos, estes esforços argumentativos apontam para a constatação de um quadro de disfuncionalidade institucional e decaimento da qualidade democrática, seja pela avaliação de práticas abusivas por parte dos poderes - efetivadas mediante o uso de mecanismos constitucionais (hermenêutica constitucional, decretos executivos, impeachment) - ou pela observância do acirramento das disputas entre os poderes, caracterizando “tempos de constitucionalismo bicudos”, marcados por considerável grau “estresse constitucional”. Entretanto, as diferentes opções terminológicas, além de padecerem do rigor teórico devido, não nos explicam o que se alterou para que práticas abusivas, tempos de constitucionalismo bicudos e aprofundamento de medidas de austeridade passassem a ser prevalentes dentro da democracia constitucional brasileira, cuja base foi instituída por uma constituição de caráter transformador.

A análise da complexidade dos acontecimentos recentes e a avaliação de uma crise constitucional no Brasil não podem passar ao largo das particularidades do sistema político-institucional brasileiro, especialmente quanto às disputas interpretativas em torno constitucionalidade e seu impacto na (re)modelagem da juridicidade constitucional, marcadamente a partir do impeachment de 2016. Argumentamos, nesse sentido, que os acontecimentos recentes demonstram a ocorrência de uma crise de juridicidade constitucional e consequente funcionamento disfuncional dos poderes - dada a competição sobre a interpretação mais correta das normas constitucionais - fatores estes determinantes para a avaliar existência ou não de uma crise constitucional-democrática no Brasil, especialmente aquela do tipo III, na proposição de Levinson e Balkin.

O diagnóstico de que experimentamos um mal-estar democrático não é original em nossa histórica política, desde a fundação de nossa República. A república velha se encerra com um golpe de Estado perpetrado por Vargas, superado pela leve brisa de ares democráticos que sopraram de 1946 até que foram dissipados pela ditadura militar, em 1964. A Constituição de 1988, pavimentada pelos acordos feitos entre diferentes setores da elite política e que incorporava relevantes reivindicações sociais, prometia ser a pedra de salvação de nossa tão almejada consolidação democrática.

O período de euforia democrática que marcou a promulgação da Constituição hoje dá lugar a um amplo ceticismo popular e institucional sobre a eficiência de nossa democracia constitucional. A doutrina constitucional tenta explicar o contemporâneo mal-estar que circunda o funcionamento das instituições políticas e arrisca suplantar nossa democracia e, com ela, nossa Constituição, a partir da literatura produzida mais ao norte, principalmente das categorias de Levinson, Balkin e David Landau. Os problemas constitucionais brasileiros passaram a ser vistos a partir dos conceitos de “crise constitucional” ou “constitucionalismo abusivo”, o que, embora possa ser criticado pela ausência de rigor teórico na aplicação dos conceitos à conjuntura brasileira, é indicativo de que a nossa saúde constitucional encontra-se abalada.

Neste contexto, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff constitui ponto de análise obrigatória para compreensão do atual estado da democracia constitucional brasileira. Isso porque o impedimento de 2016 produziu significativa alteração na juridicidade constitucional, admitindo a adoção de medidas excepcionais por parte dos três poderes da república. Ainda que tal cenário não tenha implicado em uma ruptura completa com a Constituição Federal de 1988, certamente inseriu novos elementos no constitucionalismo democrático brasileiro, que passa a operar sob bases distintas e controversas a partir do impeachment.

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  • 1
    Conferir as contribuições de constitucionalistas originários de diferentes contextos geopolíticos e sociais no volume, GRABER, M.A., LEVINSON, S. y TUSHNET, M. (ed.) Constitutional Democracy in Crisis? Oxford: Oxford University Press, 2018.
  • 2
    CODATO, Adriano; BERLATTO, Fábia; BOLOGNESI, Bruno. Tipologia dos políticos de direita no Brasil: uma classificação empírica.Análise Social, n. 229, p. 870-897, 2018, p. 889 (Político indiferente a partidos, defende uma plataforma regressiva em termos de direitos humanos e direitos das minorias, usa o anticomunismo e a celebração das práticas e das políticas do regime ditatorial-militar como plataforma principal. Estatista e nacionalista, não possui uma doutrina económica elaborada e definida. Em termos de valores e costumes, aproxima-se do representante típico da nova direita popular, mas, politicamente, é muito semelhante ao que nas democracias europeias se denomina de “direita populista”).
  • 3
    Em pesquisa no google acadêmico em busca de artigos em português que tenham citado o texto de Landau acima referido, mais de 25 (vinte e cinto) resultados foram encontrados. Entretanto, preferimos selecionar apenas aqueles que empregavam o termo de acordo com os interesses mais próximos dessa investigação. Ou seja, aqueles textos que utilizam o termo como uma categoria analítica da política constitucional brasileira. Mais recentemente, o Ministro Luis Roberto Barroso sugeriu que as práticas do Governo Bolsonaro estão no limiar de um Constitucionalismo Abusivo (cf. decisão monocrática na ADPF 622, DJe 19/12/2019). A conceituação de Barroso, como aquelas que serão vistas a seguir, corrobora nossa hipótese de que há a incorporação do termo desvinculada de sua tese central, uma vez que o ministro sugere que há atividade abusiva quando o Executivo “promove a interpretação ou a alteração do ordenamento jurídico” para concentrar mais poderes em suas mãos. Ora, aqui há uma distorção conceitual porque Barroso sugere que a alteração no plano da política ordinária infralegal cumpriria com os requisitos da tese de Landau, e não a mobilização de instrumentos constitucionais, formalmente, legítimos. O caso julgado pelo ministro dizia respeito a um decreto (10.003/2019), que alterou as normas sobre a constituição e o funcionamento do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente.
  • 4
    O exemplo de sincronicidade apresentado pelos autores se refere ao julgamento de medida cautelar na ADPF 402 e sua repercussão no Senado Federal. Por decisão monocrática proferida pelo Ministro Marco Aurélio Mello, foi determinado que os indivíduos tornados réus em processo criminal perante o STF não poderiam figurar, automaticamente, na linha sucessória presidencial, o que, imediatamente, serviu como base para o afastamento do Senador Renan Calheiros da Presidência do Senado. A decisão gerou inevitável conflito institucional, havendo a interposição de recurso por parte da respectiva casa legislativa, o qual foi julgado no sentido de solucionar o conflito de forma amigável, permitindo a permanência de Calheiros na Presidência do Senado, mas impedido de ocupar, ainda que temporariamente, o cargo de Presidente da República. O interessante efeito (sincrônico), apontado pelos autores, a respeito desta decisão foi a posterior desistência, por parte do Presidente do Senado, de colocar em votação um projeto de lei sobre abuso de autoridade, que muito pressionava os agentes públicos, especialmente aqueles integrantes do Judiciário. Por sua vez, o uso seletivo da subsunção é exemplificado pela ausência de isonomia em dois casos profundamente semelhantes decididos no âmbito do Supremo Tribunal Federal. O primeiro se refere à antecipação de tutela concedida pelo Ministro Gilmar Mendes, que impediu Luiz Inácio Lula da Silva de assumir o cargo de Ministro da Casa Civil em 2016, sob a fundamentação de desvio de finalidade na nomeação, o que ensejaria a nulidade do ato à medida que a posse objetivava a obtenção de foro por prerrogativa de função, haja vista as investigações judiciais que o ex-Presidente vinha sofrendo. Um ano depois, após a homologação das delações da operação Lava Jato pela Ministra Carmen Lúcia, o Presidente da República, Michel Temer, criou nova pasta ministerial, com o intuito de nomear Moreira Franco - indivíduo demasiadamente incurso na operação - para o cargo de Ministro de Estado, posição que lhe garantiria foro por prerrogativa de função em situação muito similar à de Luiz Inácio Lula da Silva. Diante disso, os partidos políticos PSOL e REDE de Sustentabilidade impetraram mandado de segurança contra a nomeação, porém a liminar requerida foi negada pelo STF, com fundamento em outros precedentes e sob o argumento, entre outros, da inexistência de evidências que demonstrassem a nulidade do ato. De acordo com os autores, os casos apresentavam profunda identidade entre si, sendo a decisão relativa ao processo de Lula formadora de precedente, de maneira que caberia ao Supremo explicitar as diferenças entre as demandas para poder decidir de maneira diversa em relação à nomeação de Moreira Franco, porém não foi isto o que ocorreu, a expor a seletividade interpretativa do tribunal.
  • 5
    Muito embora, à primeira vista, a formulação de Estorilio e Benvindo se aproxime do conceito de ‘controle de constitucionalidade abusivo forte’ (Strong Abusive Judicial Review), ela só se encaixaria com perfeição nas mais recentes contribuições de Dixon e Landau se a corte tiver sido, anteriormente, cooptada pelo que os últimos autores chamam em seu artigo de "regime" ou de "projeto autoritário", os quais supomos, se refiram às pautas dos chefes do Executivo. Portanto, os autores estrangeiros estão se referindo a Cortes que passaram por algum processo de captura, e o grau de sucesso dessa captura pode ser medido pela intenção da corte em interferir na qualidade democrática em prol de uma agenda política autoritária específica. Por essa razão, a ação judicial adjetivada como abusiva, e que esteja dentro da tese do constitucionalismo abusivo, não pode ser o resultado de uma contingência ou de um acidente de sincronicidade. Sem a demonstração de que o STF age ou agiu cooptado por um regime que pretenda aprovar medidas de constitucionalismo abusivo a partir de uma pauta autoritária, não nos parece pertinente sua atribuição a nossa suprema corte, ainda que suas decisões possam, eventualmente e inadvertidamente, afetar a qualidade de nossa democracia. DIXON, Rosalind; LANDAU, David. Abusive judicial review: courts against democracy. Davis Law Review, Davis, n. 53, 2019, p. 01-75.
  • 6
    Barboza e Inomata denunciam como propostas políticas do presidente recém-eleito, Jair Bolsonaro, poderiam converter-se em práticas abusivas (alteração no regime de aposentadoria dos ministros, ameaças de fechamento da corte, enfraquecimento das instituições de acccountability e propostas capazes de afetar direitos fundamentais). BARBOZA, ESTEFÂNIA MARIA DE QUEIROZ ; INOMATA, A. . Constitucionalismo Abusivo e o Ataque ao Judiciário na Democracia Brasileira. In: CONCI, Luiz Guilherme Arcaro; DIAS, Roberto. (Org.). Crise das Democracias Liberais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, v. p. 428-434.
  • 7
    Utilizamos aqui, portanto, o pressuposto analítico de Ginsbourg e Hucq, para quem a erosão democrática seria o lento, mas substancial, decaimento de todos os pré-requisitos institucionais de uma democracia liberal constitucional: 1) eleições livres e justas; 2) direitos liberais de expressão e associação e 3) administração do estado de direito. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz Z. How to save a Constitutional Democracy. Chicago: University of Chicago Press, 2018, p. 71.
  • 8
    Pensamos, ademais, que causaria menos confusão a substituição do termo “constitucionalismo abusivo” por outro para explicar esse estado de coisas, uma vez que a manutenção do termo de Landau dificultará a formulação de diagnósticos mais precisos sobre nosso processo de erosão democrática.
  • 9
    Os referenciais teóricos adotados pelo autor para o desenvolvimento de sua tese são Landau, Ginsburg e Huq, de forma que sua conceituação de “subversão sub-reptícia” esteja diretamente relacionada a uma atuação abusiva por parte do governo de turno (poder executivo), por meio da paulatina utilização de mecanismos legais em sentido antidemocrático, provocando lentos deslizes rumo ao autoritarismo, o que dificulta a percepção da crise democrática.
  • 10
    Esse é a concepção compartilhada por constitucionalistas conservadores e progressistas no Brasil. No campo progressista, José Afonso da Silva entende que o “constitucionalismo, pelo visto, nasceu como o meio de limitar a ação do poder e garantir a vigência dos direitos da pessoa humana, por meio de uma constituição escrita”. O autor advoga, ademais, que a ideologia constitucionalista é dinâmica, pois varia de conteúdo de acordo com o processo histórico, mas ela é detentora de uma inafastável teleologia, qual seja, a domesticação do poder “a serviço dos direitos da pessoa humana através da constituição”. SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 66-69. No campo conservador, Manoel Gonçalves Ferreira Filho identifica o constitucionalismo moderno pela adoção de constituições escritas e, mais importante, pelo fato de elas terem como “desiderato de impedir o arbítrio. Ou seja, imponham uma organização limitativa do Poder”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 03-04. As concepções correntes não pensam o regramento constitucional como incentivos para interações políticas criadoras e viabilizadoras (enabling) da democracia. As formulações de Silva e Ferreira Filho são, na visão de Holmes, adeptas do constitucionalismo negativo, o qual vê na Constituição um instrumento para a limitação do poder. HOLMES, Stephen. Passions and Constraint: On the Theory of Liberal Democracy. Chicago: University of Chicago Press, 1995, p. 135.
  • 11
    Tomando de empréstimo, por questões de tempo, o inventário formulado por Graber: “stealth constitutionalism” de Ozan Varol; “constitutional erosion” de Manoj Mate; “authoritarian constitutionalism” de Mark Tushnet. GRABER, Mark A. What's in crisis?: the postwar constitutional paradigm, tranformative constitutionalism, and the fate of constitutional democracy. Constitutional Democracy in Crisis? New York: OUP, 2018, p. 679.
  • 12
    Em suas palavras: “a constitutional crisis occurs when there is a serious danger that a constitution is about to fail at its central task. The central task of constitutions is to keep disagreement within the boundaries of ordinary politics rather than breaking down into anarchy, violence or civil war” BALKIN, Jack. Constitutional Crisis and Constitutional Rot. Maryland Law Review. Vol 77, 2017, p. 147.
  • 13
    Ou, caso considerem que uma Constituição possa, formalmente, albergar metas ou ideais democráticos, o constitucionalismo coordenador não os reputa importantes, essenciais ou materialmente constitucionais.
  • 14
    O critério metodológico interno está preocupado, por sua vez, em avaliar o sucesso da empreitada constitucional de acordo com os termos da comunidade política regida pelo instrumento. Sua avaliação, portanto, parte dos objetivos postos pelo próprio texto. Não negamos que se trata, aqui, de escolhas metodológicas impossíveis de serem avaliadas a partir de critérios de veracidade. Entretanto, a metodologia implica escolhas que surtirão efeitos políticos: o foco em critérios externos pode acobertar problemas no desempenho de provisões ou funções constitucionais essenciais para uma comunidade política local, mas que impediriam uma análise comparativa mais holística com outras experiências constitucionais.
  • 15
    Buscando uma solução de meio-termo, Ginsburg e Huq formulam o que chamam de critérios de meio alcance para avaliar, exemplificativamente, o sucesso de uma Constituição: (1) legitimidade sociológica aos olhos do público; (2) canalização de conflitos políticos potencialmente violentos para instituições constitucionais; (3) o controle dos custos de agência associados à institucionalização do governo; e (4) a criação de bens públicos apropriados. O conceito de crise constitucional de Balkin e esposado por Vieira parece restringir-se ao campo (2), deixando de lado outros fatores importantes identificados por autores experientes na análise comparada de textos constitucionais para aferir seu desempenho. O conceito de Ginsburg e Huq, de forma alguma, pode ser considerado como procedimental ou não substantivo, o que demonstra que os objetivos sociais das constituições precisam ser levados em conta na análise de sua performance. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. 2016. Assesing Constitutional Performance. New York: Cambridge University Press, pp. 03-38, p. 15.
  • 16
    Como alertam Ginsburg e Huq, a definição do sucesso constitucional em termos puramente tecnocráticos, focados na criação e operação das instituições, tende a ignorar suas aspirações democráticas e a função da constituição política. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. 2016. Assesing Constitutional Performance. New York: Cambridge University Press, pp. 03-38, p.14.
  • 17
    ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. The Endurance of National Constitutions. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 25 (os autores sugerem que houve uma diminuição na semelhança geral das constituições do mundo com o documento dos EUA ao longo do tempo, sendo perceptível uma queda acentuada dessa similitude após a Segunda Guerra Mundial). No mesmo sentido, cf. LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. The declining influence of the United States Constitution. NYUL Rev., v. 87, , 2012, p. 769 (os autores demonstram, por meio de pesquisas empíricas, que as constituições escritas do mundo têm se afastado do modelo tradicional norte-americano).
  • 18
    Não podemos deixar de concordar com Ginsburg e Huq, quando atestam problemas que as metodologias internas e externas de avaliação do desempenho e sucesso constitucional enfrentam: a análise a partir da seleção ou recorte de provisões especificas ou de funções pode restar prejudicada a depender do momento em que sejam estudadas, uma vez que funções e provisões se desenvolverão em espaços temporais diferenciados. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. 2016. Assesing Constitutional Performance. New York: Cambridge University Press, pp. 03-38, p.12.
  • 19
    Um dos exemplos mais contundentes de mudanças conjunturais foi a popularmente chamada “PEC da bengala” (EC 88/15), a partir da qual os ministros do STF passaram a se aposentar aos 75 anos de idade, e não mais aos 70 anos, de acordo com a redação original da Constituição. A justificativa para a emenda não era nada republicana: no curso da degradação da relação de Dilma com o Congresso, o último se apressou para aprovar a emenda que retirou da presidente a possibilidade de indicar até 05 ministros para o STF. De acordo com Abranches, os parceiros ocasionais da coalizão governista temiam que a presidenta indicasse juristas propensos a punir políticos do centro. ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e trajetória do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 298. Muitas das reformas constitucionais formais que aliviaram o intervencionismo estatal brasileiro foram levadas a cabo a partir de uma pauta neoliberal, caudatária do consenso de Washington. Muitas dessas reformas, conjunturais, porque fruto da política econômica do período, exigiram o que Vieira denominou de “realinhamento constitucional”. VIEIRA, Oscar Vilhena. Realinhamento Constitucional. VIEIRA, Oscar Vilhena; SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). Direito Global. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 15-49, p. 42-47. Como sentencia Celina Souza “A relativa facilidade do processo de “emendamento” tornou possível a adaptação ao novo contexto/conjuntura”. A autora se refere ao contexto econômico do início dos anos 90. SOUZA, Celina. Regras e contexto: as reformas da Constituição de 1988. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 51, nº 4, 2008, p. 815.
  • 20
    SOUZA, Celina. Regras e contexto: as reformas da Constituição de 1988. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 51, nº 4, 2008, p. 791-823 (não apenas os chefes do Poder Executivo estavam por detrás da maior parte dos projetos de reforma constitucional que deram origem às emendas, diretamente ou por meio de alas governistas na Câmara, mas, também, as reformas constitucionais formais estavam diretamente ligadas à agenda de reformas conjunturais dos governos recém-eleitos, respaldados pelo apoio eleitoral).
  • 21
    Essa distinção, por exemplo, fundamenta as teses sobre constitucionalismo como as de Bruce Ackerman. Ackerman sustenta a diferença entre o exercício da política constitucional (higher lawmaking) e a política comum ou normal (normal politics). Essa classificação distingue as decisões tomadas pelo povo (capazes de criar direito constitucional) e decisões tomadas pelo governo, rotineiras e baseadas na Constituição, mas não sobre ela. ACKERMAN, Bruce. We the People: Foundations. Cambridge: Belknap Press, 1991, p. 266 e ss.
  • 22
    Fato reconhecido por Vieira ao tratar do papel do STF na ordem política: “o Supremo exerce o controle tanto sobre a política ordinária, analisando a constitucionalidade de leis e atos do Executivo, como sobre a política constitucional”. (VIEIRA, 2018, p. 166).
  • 23
    A escolha de inserir políticas públicas, notórias por serem produtos políticos dependentes das conjunturas político-econômicas, no texto constitucional faz com que temas que ensejam controvérsias cotidianas passem a ser alvo de disputa no plano da política constitucional. Dessa forma, a coalizão majoritária vencedora do pleito para a chefia do Executivo federal não tem condições de pautar sua agenda apenas mediante leis ordinárias, forçando-a a atuar no campo da renovação constitucional, ou seja, da alteração dos elementos da política pública constitucionalizada. ARANTES, Rogério Bastos; COUTO, Cláudio Gonçalves. Construção democrática e modelos de Constituição. Dados, Rio de Janeiro, v. 53, n. 3. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, no 3, 2010, pp. 545 a 585, p. 573.
  • 24
    Ginzburg e Huq concordam que o aspecto político do constitucionalismo, ou seja, sua capacidade de coordenar a ação política sem o recurso à violência, pode ser utilizado por países não-democráticos, muito embora pensem que essa função será mais bem desempenhada por democracias. GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. 2016. Assesing Constitutional Performance. New York: Cambridge University Press, pp. 03-38, p. 05
  • 25
    Cremos que José Afonso da Silva permaneça a grande referência na caracterização do Estado Democrático de Direito, afinal o conceito foi inserido na Constituição por sua influência. Para Silva, o Estado Democrático de Direito almeja a justiça social pela superação das desigualdades sociais. O constitucionalista paulista elenca alguns princípios inerentes ao nosso Estado Democrático de Direito: 1) da constitucionalidade, característico da legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular; 2) democrático, que contém os postulados da democracia representativa e participativa, pluralista e que garante a efetividade dos direitos fundamentais; 3) da justiça social (presente nos arts. 170 e 193 da CF/88); 4) da igualdade (art. 5º, I da CF/88); 5) da divisão dos poderes e independência do juiz (arts. 2º e 95 da CF/88); 6) da legalidade (art. 5º, II da CF/88); 7) da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII da CF/88) e 8) o sistema de direitos fundamentais. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. Marcelo Cattoni segue linha semelhante ao defender que o Estado Democrático de Direito brasileiro intenciona superar desigualdades sociais, através do aprofundamento da democracia participativa, como ideal de justiça social. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 63.
  • 26
    O Brasil não está em uma crise constitucional, na visão de Oscar Vieira, porque não foi possível identificar nenhum dos três tipos de crise elencados em seção anterior. No entanto, como o tipo III de crise não prescinde de aspectos interpretativos controversos acerca das normas constitucionais, escapamos desse tipo de crise em sua visão, porque Vieira interpreta o impeachment da Presidente Dilma como um movimento constitucional legítimo. Para o autor, não teria sido um golpe parlamentar, mas uma utilização estratégica das regras constitucionais para “ferir um adversário político” (VIEIRA, 2018, p. 59). Dito em outras palavras, um jogo duro, mas dentro do manual de funcionamento constitucional.
  • 27
    Reconhecemos que o enfrentamento de temas tão relevantes por meio de conceitos que albergam índices gradativos pode não ser tão proveitoso, em função de sua maleabilidade e pela ausência de um instrumento capaz de mensurar tais índices. No entanto, sem embargo de refinamentos necessários em trabalhos posteriores, cremos que o experimentado nesses momentos são desacordos interpretativos irreconciliáveis sobre a submissão dos Poderes às regras do jogo. Esse tipo de desacordo se diferencia das naturais dúvidas interpretativas que surgem no momento da aplicação da Constituição.
  • 28
    Problemas que Avritzer (2019, p. 55) atribui a uma possível má-administração pública, hipótese de impeachment evitada por outras democracias sólidas. SUNSTEIN, Cass. Impeachment: A Citizen's Guide. Cambridge: harvard University Press, 2017, p.132.
  • 29
    Em verdade, o autor, utiliza a ideia de ‘legalidade’ (AVRITZER, 2019, p. 12). Preferimos trabalhar com juridicidade, em substituição, para não criar uma confusão conceitual ao sugerirmos, por exemplo, uma eventual alteração na “legalidade constitucional”.
  • 30
    Da qual guardamos reservas quanto a sua aplicação no contexto brasileiro.
  • 31
    No âmbito do Executivo, a ex-presidente Dilma Rousseff, em entrevista aos correspondentes estrangeiros, denunciou o golpe, destacando a ausência de fundamento jurídico para o processo de impedimento (Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2016/marco/dilma-denuncia-golpe-de-estado-a-correspondentes-estrangeiros. Acesso em: 26 de out. de 2020). Por sua vez, Michel Temer, ao ser entrevistado pelo programa Roda Viva (TV Cultura), ressaltou que não foi adepto ao golpe e tão pouco empenhou-se neste sentido (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OGDCN8ikj8U. Acesso em 26 de out. de 2020). Na seara judiciária, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal também posicionaram-se acerca do assunto: Ricardo Lewandowski declarou que impeachment representou mais um cíclico tropeço na democracia brasileira (Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1817948-impeachment-foi-tropeco-da-democracia-diz-lewandowski.shtml. Acesso em 26 de out. de 2020), enquanto o Fachin, no VII Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral, afirmou que vivemos um período de recessão democrática, marcado, por manifestações ódio, pela crise socioeconômica e crescente desconfiança em torno do sistema democrático (Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/inequivocamente-vivemos-uma-recessao-democratica-diz-edson-fachin-17082020. Acesso em 26 de out. de 2020).
  • 32
    De acordo com Leonardo Avritzer, a conexão entre o Tribunal de Contas da União (TCU) e o sistema político é “elemento determinante das prestações de contas”. Em relação ao governo Dilma Rousseff, o autor sustenta que o TCU não atuou de maneira técnica no que tange à suplementações de contas, mas de modo claramente político, o que pode ser comprovado tanto pela ausência de punição em relação aos governos anteriores que se valeram da mesma manobra, como pelas relações pessoais entre os membros do TCU e a oposição ao governo de turno (AVRITZER, 2019, p. 63-64). Destaque-se, ainda, que após o impedimento da presidente Dilma Rousseff - encerrado em 31 de agosto de 2016 - foi publicada a Lei Federal nº 13.332, de 01 de setembro de 2016, que possibilitou a abertura de créditos suplementares até o limite de 20%, independentemente de autorização do Congresso Nacional.
  • 33
    A leitura de Avritzer (2019) sobre a nossa estrutura democrática compreende uma variação entre momentos de otimismo democrático e regressão da democracia, à semelhança de um pêndulo. De acordo com o autor, três são os pressupostos que possibilitam essa movimentação: a consideração de que o consenso em torno da democracia é circunstancial - o apoio ao regime democrático varia conforme a conjuntura político-econômica -; a existência de uma relação entre elites e instituições - o que possibilita a fácil emergência de elementos antidemocráticos por meio da desvinculação entre eleições (soberania popular) e políticas públicas -; bem como a ausência da institucionalização de uma estrutura de direitos e de não violência na sociabilidade e no sistema político.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2020
  • Aceito
    30 Abr 2021
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