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Cidadania, propriedade e direitos dos animais

Resumo

Muitas vezes os humanos precisam de um advogado para afirmar seus direitos. O exercício dos direitos dos animais segue o mesmo raciocínio: aqui, todas as espécies são legalmente iguais. A base para o exercício dos direitos é o que Rousseau chama de ser juiz dos meios para se preservar. Nas últimas décadas, uma multiplicidade de estudos etológicos, assim como múltiplos textos filosóficos, mostraram que, em algumas espécies animais, tal capacidade de julgamento pode ser reconhecida. No entanto, essa capacidade não é levada em conta pelas teorias da propriedade da terra - uma unidade coerente de seres vivos e minerais - proposta respectivamente por Locke, Kant e Hegel, que influenciam muito a lei ocidental. Uma reflexão sobre o conceito de cidadania oferece uma base para o direito dos animais decidirem sobre sua vida em uma Terra compartilhada com os seres humanos. Os direitos dos animais não são uma quebra no sistema legal, mas parte de sua evolução natural.

Palavras-chave:
Cidadania; Direitos dos animais; Propriedade privada sobre os seres vivos

Abstract

Frequently human beings need a layer to enforce their rights. So would need enforcing animals’ rights: from this point of view all species are juridical equal. The base of the exercise of rights is Rousseau’s assertion about being the judge of the means for self preservation. During the last decades countless ethological studies, as well as several philosophical texts, have shown that it is possible to recognize in some species such a judgement capability. Nevertheless, this capability is not taken into account by the theories of property on land –a coherent unity of living beings and minerals- proposed, respectively, by Locke, Kant and Hegel, which have a decisive influence in Western right. A reflection on the concept of citizenship provides a foundation to the right of some animals to decide on their own life on Earth, an Earth shared with human beings. Animals’ rights do not represent a break in the juridical system, but a part of its natural evolution.

Keywords:
Citizenship; Animal rights; Private property over living beings

Resumen

Muchas veces los humanos requieren de un abogado para hacer valer sus derechos. El ejercicio de los derechos animales también: en eso, todas las especies animales son iguales jurídicamente. La base del ejercicio de los derechos es lo que Rousseau denomina ser juez de los medios para conservarse. En las últimas décadas, una multitud de estudios etológicos así como múltiples textos filosóficos han mostrado que se puede reconocer en algunas especies animales tal capacidad de juicio. Sin embargo, esta capacidad no es tomada en cuenta por las teorías de la propiedad del suelo –unidad coherente de seres vivos y minerales- propuestas respectivamente por Locke, Kant y Hegel, que mucho influyen en el derecho occidental. Una reflexión sobre el concepto de ciudadanía ofrece un fundamento al derecho a que los animales decidan sobre su vida en una Tierra compartida con los humanos. Los derechos a los animales no son un quiebre en el sistema jurídico, sino parte de su evolución natural.

Palabras-clave:
ciudadanía; derechos de los animales; propiedad privada sobre los seres vivos

Introdução 1 1 Todas as citações do texto se encontravam traduzidas para o espanhol pelo autor no artigo originário. Foi feita a tradução direta para o português desses trechos, a partir dessas traduções do autor. (N.T.)

Jacques Derrida argumenta que a humanidade está numa mutação que “afeta a experiência do que continuamos chamando imperturbavelmente, como se nada tivesse acontecido, o animal e/ou os animais” (Derrida, 2016 Derrida, J. (2006). L’animal que donc je suis . (Galilée, Ed.) París, Francia: Galilée. , p. 44), o que nos forçaria a nos questionar sobre os conceitos e problematizá-los. A consideração da possibilidade de se atribuir direitos aos animais se situa nesse contexto, em que se move o limite da lei, o que, para alguns filósofos iluministas, como Kant, é uma exclusividade do ser humano, único ser vivo a que atribuiu a razão e, consequentemente, capacidade moral e jurídica. De fato, desde meados do século XX, algumas linhas fundamentais da era chamada Modernidade têm sido questionadas. O resultado desse questionamento é a iniciativa de conceder alguns direitos aos animais. Além disso, recentemente foi conhecida a proposta ética e política Zoopolis ( Donaldson e Kymlicka 2011 Donaldson, S., & Kymlicka, W. (2011). Zoopolis. A Political Theory of Animal Rights. Nueva York, Estados Unidos de Norteamérica: Oxford University Press. ), que propõe dar a animais, quer a cidadania (citzenship), direitos de residência (denizenship) ou reconhecer a sua soberania:

como no caso humano, alguns animais são melhor vistos como co-cidadãos em nossa comunidade política cujo interesse conta na determinação de nossa comida coletiva; outros são melhor vistos como visitantes temporários, ou residentes não-cidadãos [...] e outros ainda são melhor vistos como residentes de suas próprias comunidades políticas, cuja soberania e território devemos respeitar ( Donaldson & Kymlicka, 2011 Donaldson, S., & Kymlicka, W. (2011). Zoopolis. A Political Theory of Animal Rights. Nueva York, Estados Unidos de Norteamérica: Oxford University Press. , p. 24).

A proposta de Zoopolis tem dois eixos. Por um lado, um trabalho anterior de Kymlicka, intitulado Multicultural citizenship ( Kymlicka 2003 Kymlicka, W. (2003). Multicultural Citenzhip. Oxford, Reino Unidos: Oxford University Press. ), no qual se propõe uma cidadania com direitos diferenciados para grupos humanos como povos indígenas posteriormente conquistados por populações que formariam entidades nacionais maiores, e para imigrantes que chegam nessas nações em tempos recentes. O segundo eixo consiste em vincular aos animais as funções de nacionalidade, soberania popular e agência política democrática (Hernández Hernández Iglesias, M. (2018). Zoópolis, una revolución animalista. Lecturas de nuestro tiempo (3), 83-84. 84). Sem prejuízo dos valores da Multicultural citizenship e Zoopolis, a partir destas propostas, pode-se fazer a seguinte pergunta: é possível alargar a extensão do conceito de cidadania ao ponto de incluir os animais não-humanos, ou, ao realizar essa ampliação, já deixamos de pensar esse conceito cunhado na modernidade, de forma que restamos diante de uma nova ideia, um novo conteúdo, talvez contraditório com o clássico e, ademais, impensável ou dificilmente impensável pela filosofia do direito? Em outras palavras, o conceito de cidadania animal enfatiza tanto o conceito de cidadania quanto o conceito de direito; por um lado, não é frequente atribuir aos animais direitos de cidadania e, por outro, o direito tem como sujeito, tradicionalmente, as pessoas, naturais (físicas), ou as entidades coletivas (organizações nacionais ou internacionais), mas em oportunidades muito limitadas, e não na modernidade, os animais.

O conceito de cidadania

O conceito de cidadania é marcado pelo paradoxo de ser, ao mesmo tempo, desde seus primeiros enunciados, instrumento de inclusão e instrumento de exclusão. No Livro I de La política, Aristóteles define a cidade (πολιϖ ) como uma comunidade (κοινωνιαν ) composta de cidadãos, uma comunidade a partir da qual chamaremos de polis ou cidade, indistintamente. Para Aristóteles, ela aponta para um bem comum, porque os humanos sempre agem olhando para o que parece bom (Aristóteles, 1262A). Todavia, a polis não abriga a todos ou não cobre todos igualmente. Alguns não fazem parte da comunidade política; outros fazem, mas não da mesma maneira ou no mesmo grau. Tanto no espaço legal como no espaço físico, diferentes indivíduos vivem em territórios hierárquicos: os cidadãos têm o direito a ocupar funções públicas e decidir sobre os destinos da cidade, mas não os estrangeiros, nem as mulheres, nem os escravos (Aristóteles 1252-1254); e os senhores não dividem o quarto com os escravos, embora a casa doméstica o faça. Os escravos, além disso, são definidos pela incapacidade de conhecer o seu bem e a falta de fins próprios, de onde Aristóteles fundamenta que eles podem ser propriedade do senhor, que a eles concede essas capacidades. Essa ausência de fins adequados os exclui do conceito de cidadão. Para Aristóteles, o cidadão ( πολιτοζ) conhece o bem - o da cidade - e seu bem - o individual -, por isso pode ter fins e por isso também pode ocupar cargos públicos.

Muito mais tarde, durante o século XVIII, a Enciclopédia (L'Encyclopédie ) define cité ou cidade de maneira política também. A cité é o lugar onde:

os atos da vontade e o uso das forças são designados a uma pessoa física ou a um ser moral, por segurança, tranquilidade interior e exterior ( Diderot, 1753 Didérot, D. (1753). Entrada “Cité”. In D. Didérot, & J. l. Étienne Bonnot de Condillac, Encyclopédie, ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (Vol. 3). París, Francia. , entrada “cité”, v. 3, p. 486).

Esse modo político de entender a cidade se assemelha ao conceito clássico de polis, unidade política e urbana, que reúne aqueles que vivem em um lugar povoado, mas não de qualquer forma, senão sob regras legitimamente decididas. Norma política é aquela à qual todas as outras normas sociais são adaptadas. Portanto, o cidadão é:

Aquele que e membro de uma sociedade libre de várias famílias, que compartilha os direitos dessa sociedade e que gosta de suas franquias [...] Quem mora em tal sociedade para algum negócio e que deve se afastar, terminar seu negócio, não é cidadão [...] Esse título [de cidadão] é dado às mulheres, às crianças, aos servos apenas como membros da família de uma cidadão propriamente dito; mas eles não são realmente cidadãos ( Diderot, 1753 Didérot, D. (1753). Entrada “Cité”. In D. Didérot, & J. l. Étienne Bonnot de Condillac, Encyclopédie, ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (Vol. 3). París, Francia. entrada “citoyen”, v. 3, p. 3488).

O conceito “cidadão” facilita a compreensão da relação política e jurídica de uma pessoa com o território em que as normas da cidade se aplicam; o “indivíduo”, por outro lado, pode ser considerado em diferentes cidades e podemos (ou deveríamos) supor que ele retém alguns direitos inalienáveis, independentemente de onde ele resida. Esta definição, como a de Aristóteles, marca claramente que o cidadão não é um membro do gênero humano “universal”, senão uma pessoa humana vista em relação a um grupo mais ou menos extenso de outras pessoas politicamente organizadas, e todas consideradas enquanto ligadas ao mesmo território ( cité, polis) determinado. Isto implica que os direitos dos cidadãos não são deduzidos da natureza única do indivíduo, mas da conjunção com os direitos de outros indivíduos, considerados como uma unidade política, em um território. A cidadania é uma confluência de direitos, confluência que pode ser mais ou menos coerente, mais ou menos contraditória, na medida em que alguns direitos podem se opor aos outros.

Da mesma forma, a natureza inclusiva ou excludente da cidadania não depende de que o ser humano seja naturalmente social, ou que o seja por convenção, porque aqui não é suficiente conviver socialmente, pois a cidadania é dada a (ou privada de) quem que, além de viver socialmente, o faz em um determinado território. A cidadania serve para conceber e estabelecer alguns critérios para a atribuição e exclusão de direitos e obrigações para grupos populacionais segmentados em um território onde um sistema social governa, direitos e obrigações que são deduzidos da ligação com dito sistema e território, comumente através de um sistema político estruturado por meio de normas, que, muitas vezes, tomam a forma de constituições e legislações.

Vejamos um caso: o chamado Code Noir (Reino da França, 2011 Reino de Francia. (2011 [1685]). Le code noir. In L. Sala-Molins, Le Code Noir ou le calvaire de Canaan (pp. 84-197). París, Francia: Presses Universitaires de France. [1685]), vigente durante a monarquia e, mais tarde, durante a Primeira República e o Primeiro Império Francês, referia-se especificamente à população qualificada como “negra” e que também residia nas colônias francesas. O Code Noir declarava que os escravos não têm direito à propriedade (artigo 28) - o que é facilmente compreensível, uma vez que eram propriedade de um senhor -, nem podem ser demandantes nem demandados na seara civil, embora o possam na seara penal (artigo 31), são propriedade móvel (artigo 44) e, finalmente, que o Estado deve recompensar o proprietário que denuncia seu escravo se, por conta da denúncia, o Estado o condena à morte (artigo 40). No Reino da Espanha, a Instrução de 1789 foi um pouco mais suave em relação aos escravos das colônias, mas não eliminava seu caráter de bem móvel; contudo, por causa dessa mesma suavidade, foi rejeitado pelos escravistas, que conseguiram que não entrasse em vigência. Em ambos os casos, o tratamento da população negra se originava no fato de residirem em um território, nesse caso, colonial. Portanto, a escravidão não se aplica ao negro como indivíduo, mas desde que esse indivíduo esteja territorialmente ligado a uma sociedade politicamente organizada e que supostamente tenha autoridades e leis legítimas.

O principal instrumento jurídico para atribuir ou excluir direitos na polis contemporânea é usualmente chamado de “constituição”, que geralmente é o mais alto nível de regulação política, seguido pelo código civil e pelo código penal. Um dos eixos da constituição é conceder ou privar direitos, mas, entre eles, deve-se destacar um principal: participar da decisão sobre o destino da polis em que se vive. Isso está de acordo com a ideia aristotélica de que o cidadão é aquele que pode ocupar cargos que hoje chamamos de públicos e decidir sobre o destino comum, bem como sobre o individual. Algumas constituições contemporâneas, não escravistas, colocam limites aos atos privados, tais como a disposição de propriedades imóveis em algumas áreas da polis e restrições ao casamento na polis etc., mas, sobretudo, definem quem pode participar do governo ou do sistema judicial. Entre os direitos dos cidadãos, a prioridade é decidir sobre o destino da polis em que se vive. O Code Noir impedia não só que os negros decidissem sobre seu destino privado, já que eram considerados bens móveis, mas também e principalmente o destino comum deles do ponto de vista coletivo. Em relação à participação política, várias constituições contemporâneas concedem direitos para alguém ser eleitor e elegível para cargos públicos de acordo com certos princípios, que não são universais, senão exclusivos para indivíduos que preenchem certos requisitos e no território de jurisdição.

A análise da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América ajuda a entender que o sistema constitucional distribui a cidadania a grupos, independentemente da pessoa. A Declaração de 1776 sustenta que os treze estados que a assinam consideram evidente que:

todos os homens são criados iguais, são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, dentre os quais a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. Para garantir esses direitos, os Governos são instituídos entre os Homens, obtendo seus justos poderes do consentimento dos governado. (Estados Unidos da América. National Archives, 1776 Estados Unidos de Norteamérica. National Archives. (04 de 07 de 1776). The Declaration of Independance. A Transciption. Retrieved 24 de 09 de 2018 from National Archives: https://www.archives.gov/founding-docs/declaration-transcript.
https://www.archives.gov/founding-docs/...
).

Mas, onze anos depois, a Constituição de 1787 afirma, em seu preâmbulo, o sujeito de tais direitos, que não são todos os grupos, senão alguns: o “Nós, o povo [We the People] dos Estados Unidos”, que, com o propósito de formar “a mais perfeita União, “uma união mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade doméstica [sic], prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e assegurar as Bênçãos da Liberdade a nós mesmos e à nossa posteridade 2 2 “Nosotros, el Pueblo de los Estados Unidos, a fin de formar una Unión más perfecta, establecer Justicia, afirmar la tranquilidad interior, proveer la Defensa común, promover el bienestar general y asegurar para nosotros mismos y para nuestros descendientes”. ” (Estados Unidos da América. National Archives, 1789 Estados Unidos de Norteamérica. National Archives. (1789). The Constitution of the United States 1787. A Transcription. Retrieved 27 de 09 de 2018 from National Archives: https://www.archives.gov/founding-docs/constitution-transcript.
https://www.archives.gov/founding-docs/...
). O “nós” (We) se refere a pessoas que compartilham certos valores, em um determinado território, e inicialmente não incluía os negros. A Nona Seção da Constituição admitiu seu comércio e que fossem, por sua consequência, propriedade, o que foi confirmado pelo Suprema Corte dos Estados Unidos em 1857 no Caso Dred Scott. versus John F. A. Sandford, que não baseia sua decisão na situação individual de Scott, mas no fato de que ele não entra na classe geral do povo ( people), isto é, não era cidadão:

As palavras gerais acima citadas [que todos os homens foram criados iguais] parecem abranger toda a família humana [...] Mas é claro demais para a disputa que a raça africana escravizada não se destinava a ser incluída [...] No entanto, os homens que enquadraram esta declaração foram grandes homens [...] eles sabiam que, em qualquer parte do mundo civilizado, não deveria abraçar a raça negra [...] Fala em termos gerais do povo dos Estados Unidos e dos cidadãos dos diversos Estados [...] Não define que descrição de pessoas se pretende incluir nestes termos, ou quem deve ser considerado como cidadão e como pessoa [...]. Mas há duas cláusulas na Constituição que apontam direta e especificamente para o raça negra como uma classe separada de pessoas, e mostra claramente que eles não eram considerados como uma porção do povo ou cidadãos do governo então formado (Estados Unidos da América. Corte Suprema, 1856 Estados Unidos de Norteamérica. Corte Suprema. (06 de 03 de 1856). Dred Scott, Plaintiff v. John F. A. Sandford. (C. L. Institute, Producer) Retrieved 13 de 10 de 2018 from Cornell Law School. Legal Information Institute: https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/60/393#writing-USSC_CR_0060_0393_ZO.
https://www.law.cornell.edu/supremecour...
).

Como qualquer sistema de distribuição, a cidadania é, ao mesmo tempo, um sistema de exclusão; se os direitos dos cidadãos fossem universais, não seria necessário estabelecer os critérios para concedê-los e, a rigor, não haveria cidadãos, apenas indivíduos dotados de direitos inalienáveis. A cidadania serviu e pode servir para proteger um grupo e, também, para justificar a limitação na decisão sobre o destino coletivo e até a opressão do outro.

Voltemos à Enciclopédia para explicar isso mais claramente. No parágrafo que citamos acima omitimos uma repreensão de Diderot a Hobbes, mas é hora de revelá-la. O primeiro critica o segundo por confundir o cidadão com o súdito:

Hobbes não faz nenhuma diferença entre o sujeito e o cidadão [...] O nome do cidadão não é adequado para quem vive subjugado, nem para quem vive isolado; daí resulta que aqueles que vivem absolutamente no estado de natureza, como os soberanos, e aqueles que renunciaram perfeitamente a esse estado, como os escravos, não podem ser considerados cidadãos (Didérot, Entrada “Citoyen”, 1753 Didérot, D. (1753). Entrada “Citoyen”. In D. Didérot, É. B. Condillac, & J. l. d'Alembert, Encyclopédie, ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (Vol. 3). París, Francia: Antoine-Claude Briasson; Michel-Antoine David; Laurent Durand. , p. 3488).

Com efeito, um cidadão decide sobre os destinos da cidade e de si mesmo, de modo que a noção é contraditória com a submissão a um poder absoluto; dificilmente aceitaríamos que no Leviatã descrito por Hobbes seria possível se tornar cidadão ( Hobbes, 1980 Hobbes, T. (1980 [1651]). Leviathan (Vol. 1). (I. b. Macpherson, Ed.) Londres, Reino Unido: The Pelican Classics. [1651]). Agora, que um cidadão não possa ser subjugado não impede que possa subjugar os não-cidadãos, como ocorre com o cidadão francês a respeito dos escravos durante a vigência do Code Noir ou com a Constituição dos Estados Unidos antes das emendas a que foi submetida para acabar com a escravidão. O universalismo da filosofia do Iluminismo não inclui o negro na totalidade genérica dos cidadãos e coloca-o com alguma dificuldade entre os seres humanos ( Sala-Molins, 2008 Sala-Molins, L. (2008). Les misères des lumières. (Homnisphères, Ed.) París, Francia. , p. 97). Ao longo de sua história, o conceito de cidadania excluiu importantes grupos humanos sem que isso tenha distorcido o conceito; pelo contrário, o caráter inclusivo/excludente é parte essencial da noção de cidadania.

No entanto, nem todos os filósofos que lidaram com a questão aceitaram as consequências restritivas do conceito e os efeitos políticos da cidadania. A cidadania, como entendida por Aristóteles e depois por Diderot, implica tacitamente que é ao mesmo tempo uma comunidade com valores compartilhados. Contudo, como na antiguidade clássica, Diógenes de Sínope se declarou cidadão do mundo (Diógenes Laercio Laercio, D. (1999). Vida de los más ilustres filósofos griegos (Vol. vol. II). (J. Ortiz y Sainz, Trans.) Barcelona, España: Folio. §31), uma ideia que anula e supera a ligação territorial entre a distribuição de direitos e o ser cidadão de uma cidade com a qual também compartilha valores. Com essa declaração, Diógenes propõe que os direitos dos cidadãos não são derivados do vínculo com uma polis específica, nem dos costumes ali praticados, porque haveria uma polis mais ampla, que é o planeta Terra, sem prejuízo de que aqui podem coexistir diversidade de polis e diversidade de comunidades culturais e valorativas. A fonte de direitos, consequentemente, viria de um território mais amplo, tão amplo quanto aquele em que os humanos podem habitar. Ter experimentado primeiro viver colonizado e posteriormente ter sido um residente estrangeiros em Atenas -e, portanto, ter sido privado de direitos cidadãos atenienses – contribuiu para que ele criasse a ideia de uma fonte de direitos que supera os limites de uma polis, por mais relevante que esta seja. A cidadania do mundo reivindicada por Diógenes garante certos direitos onde quer que se vá, em qualquer polis, o que é uma maneira de antecipar a ideia de direitos humanos inalienáveis.

Os animais e a cidadania

Se aceitamos que a cidadania tem sido uma forma de incluir e de excluir a atribuição de direitos que, paulatinamente, têm incorporado uma variedade maior de seres humanos em cada polis, inclusive integrando esta a diferentes comunidades culturais, a questão sobre a incorporação de alguns animais aos direitos do cidadão deixa de ser um elemento disruptivo da cidadania e do direito, porque ambos têm praticado ampliações e restrições, sem por isso serem destruídos ou, muitas vezes, fortalecidos, como aconteceu com a incorporação dos negros ao sistema cidadão dos direitos nos países escravistas. Não há uma fronteira dada ou fixa para a inclusão ou a exclusão do conceito de cidadania; o deslocamento contínuo de seu alcance é parte da essência da cidadania e do direito, assegurando a continuidade de ambos, à medida que as culturas e as sociedades mudam. No entanto, à medida que expande a variedade de seres humanos que inclui, torna-se também mais abstrata ou fraca a ligação com os costumes e a comunidade cidadã. A relação entre amplitude humana e elo territorial tende a ser uma proporção inversa: quanto mais amplo e variado o grupo de humanos que ele inclui, menos ele tem um vínculo com os costumes de um lugar determinado. O caso de Diógenes de Sínope é um exemplo: ele se proclama cidadão do mundo ao mesmo tempo em que discorda, em palavra e obra, em relação à comunidade dos atenienses.

A inclusão ou exclusão dos direitos dos cidadãos se baseia em um tecido de conceitos cujos elementos são a razão e a capacidade jurídica, mas sua articulação é complexa. A origem do direito não é apenas que este é dotado de razão. O fato de uma pessoa ter um sério desequilíbrio emocional não implica que esteja privada do tipo de razão que lhe permite o raciocínio abstrato, mas o desequilíbrio desorienta essa razão e a impede de reconhecer seu próprio bem. Esse indivíduo “desequilibrado” ainda é sujeito de direito, mas através de um tutor, porque perde a essência da cidadania, que consiste em julgar os meios para se preservar. Recordemos como essa ideia se configura em um autor que teve uma forte influência na configuração dos princípios políticos e jurídicos modernos. No capítulo II da obra Du contrat social, Rousseau trata da família, para chegar à conclusão de que uma criança: “tão logo esteja na idade da razão, somente ele sendo um juiz dos meios próprios para se preservar torna-se assim seu próprio mestre”. ( Rousseau, 1970 Rousseau, J.-J. (1970 [1762]). Du contrat social. In J. J. Rousseau, & B. &. Gagnebin (Ed.), J. J. Rousseau. Oeuvres complètes. Du contrat social. Écrits politiques (Collection Bibliothèque de la Pléiade ed., Vol. III). Paris: Gallimard. [1762], p. 352). Em outras palavras, o que torna a criança livre e dotada de direitos é dispor de uma capacidade que lhe dá a natureza, não por obter conhecimentos teóricos, não por ter uma grande capacidade de abstração conceitual (por exemplo, para fazer raciocínios jurídicos), mas para alcançar uma sabedoria prática que lhe permite sobreviver. Ao usar a noção de ser um juiz dos meios para sobreviver, não se requer que esta vontade e racionalidade tenham uma “quantidade”, “proporção” ou “qualidade”, como o que é necessário aos seres humanos para exercer, por exemplo, certas profissões. Sobreviver não é uma profissão, mas o fruto do crescimento de qualquer criança em qualquer sociedade que cumpra com o propósito de proteger - moral e fisicamente - seus membros, o que, ao longo da história paleontológica humana, resultou em uma gama muito ampla de formas de vida. Na realidade, há poucos seres humanos que realizam raciocínios de grande abstração em relação aos seus direitos, de modo que, em muitos casos, o seu exercício envolve a colaboração ou mesmo a representação de um advogado. Para quase todos os seres humanos, um sistema de tutoria por advogados - em maior ou menor grau - é o companheiro indispensável da cidadania e de julgar os meios para se preservar. O exercício dos direitos dos animais também: nesse caso, todas as espécies são iguais juridicamente.

Os animais, por períodos mais longos que os humanos, sobreviveram porque foram “juízes” dos meios para sua conservação. Não se tem notícia de que os animais, para isso, tenham requerido um conhecimento teórico. Ser um juiz dos meios para se conservar está no campo da sabedoria prática, conceito que podemos entender com base em dois outros conceitos aristotélicos: a prudência (phronesis ) e a capacidade de prever. “Parece apropriado ao homem prudente - escreve Aristóteles - ser capaz de pensar bem sobre o que é bom e conveniente para si mesmo, não num sentido parcial, por exemplo, para a saúde, para a força, mas para viver bem em geral” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, 2014 Aristóteles. (2014). Ética a Nicómaco . Madrid, España: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. 1140a – 1140b); e, em outro texto, ele diz que “aquele que é capaz de prever com a mente é naturalmente chefe e senhor por natureza [prooran arjon físei], e aquele que pode executar estas provisões com seu corpo é súdito e escravo por natureza; é por isso que senhor e escravo têm os mesmos interesses” (Aristóteles, Política, 2005 Aristóteles. (2005). Política. (J. M. Araújo, Trans.) Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. , 1252 a). A capacidade de ser juiz dos meios para se conservar é aplicável a um grande grupo de animais, que tomam decisões sobre o comportamento do grupo ou individual, o que lhes permite sobreviver, às vezes com previsão e subdivisão do trabalho em subgrupos ou indivíduos especializados. Que isso ocorra em pelo menos alguns grupos de primatas já é de aceitação generalizada e crescente no mundo acadêmico. Em primeiro lugar, Barbara Smuts descreve um caso de decisão de previsão sobre os meios de subsistência de babuínos nos seguintes termos:

Os babuínos haviam aperfeiçoado a arte de equilibrar a fome com a necessidade de abrigo. Exatamente quando parecia inevitável para mim que todos ficássemos encharcados, a tropa se levantava como uma e corria para os penhascos, alcançando proteção exatamente quando grandes gotas começavam a cair. Por muitos meses, quis correr bem antes deles. Então algo mudou, e eu sabia, sem pensar, quando era hora de me mexer. Eu não podia atribuir essa consciência a nada que eu visse, ou ouvisse ou cheirasse; Eu só sabia ( Smuts 2001 Smuts, B. (2001). Encounters With Animal Minds. Journal of Consciousness Studies, 8 (5-7), 293-309. , p. 299).

Em segundo lugar, Eliane Rapchan fornece depoimentos e evidências de que alguns primatas têm uma cultura que lhes permite, precisamente, organizar sua vida individual e coletiva para sobreviver ( Rapchan, 2014 Rapchan, E. S. (2014). Primatologia, culturas não humanas e novas alteridades. Scientae Studia, 12 (2), 309-329. ). Em terceiro, de um ponto de vista talvez mais típico da fenomenologia filosófica e da filosofia da mente, embora não esteja isento de reflexões etológicas, Florence Burgat defende que o mundo - fenomenologicamente compreendido - dos seres sencientes é organizado à própria maneira, assim como o conhecimento que eles têm sobre si mesmos e seu ambiente, de modo que não seria uma “subespécie” do conhecimento humano, mas algo próprio e específico deles ( Burgat, 2006 Burgat, F. (2006). Liberté et inquiétude de la vie animale . París, Francia: Éditions Kimé. , pp. 207-215). Finalmente, em quarto e último lugar, Donaldson e Kymlick afirmam:

Os animais selvagens são competentes tanto como indivíduos quanto como comunidades. Como indivíduos, por exemplo, eles sabem que alimentos comer, onde encontrá-los e como armazená-los para uso no inverno. Eles sabem como encontrar ou construir abrigo. [...] Eles sabem como reduzir o risco de predação [...] e se proteger contra o desperdício de energia [...] E os animais selvagens são competentes como comunidades também, pelo menos entre as espécies sociais. Eles sabem como trabalhar juntos para caçar, ou para fugir de predadores, ou para cuidar de membros fracos e feridos do grupo ( Donaldson & Kymlicka, 2011 Donaldson, S., & Kymlicka, W. (2011). Zoopolis. A Political Theory of Animal Rights. Nueva York, Estados Unidos de Norteamérica: Oxford University Press. , p. 175).

Com esses exemplos - selecionados entre muitos - verifica-se que, científica e filosoficamente, existe um consenso crescente sobre a capacidade de julgamento prático dos animais. Portanto, a dificuldade não consiste - neste artigo - em ter que prová-lo, senão em que o ônus da prova - como dizem os juristas - corresponderia, antes, àqueles que argumentam o contrário, que os animais não têm julgamento sobre seu próprio bem. Alguém poderia afirmar, atualmente, que lhes falta juízo prático a espécies que, podendo se mover com os próprios pés, calculando seus próprios movimentos e os coordenando com congêneres ou contra inimigos, sobreviveram por milhões de anos?

Além disso, essa capacidade de julgamento prático está ligada ao conceito de pessoa e este com a ideia de interesse próprio. Thomas Hobbes - a quem criticamos por confundir o súdito com o cidadão - realiza, no entanto, uma interessante análise do conceito de pessoa. Ele entende que “Uma pessoa é aquela cujas palavras ou ações são consideradas como suas próprias, ou como representando as palavras ou ações de outro homem” 3 3 “Una persona es aquel cuyas palabras o acciones son consideradas como suyas, o que representan las palabras o acciones de otro hombre”. ( Hobbes, 1980 Hobbes, T. (1980 [1651]). Leviathan (Vol. 1). (I. b. Macpherson, Ed.) Londres, Reino Unido: The Pelican Classics. [1651] 217). O essencial da pessoa é ser a origem da ação ou o poder de representar a de outra. Segundo Hobbes (que se formou tanto em línguas clássicas quanto em filosofia), quando se trata de ações, o conceito de pessoa corresponde ao latim dominus e ao grego kyrios, ou seja, são aqueles que agem (218). Da mesma forma, pessoas sem razão podem ser “Personate ”, isto é, personificadas por um curador, mas isso só ocorre no caso de viverem em sociedade civil (220). Em suma, é possível verificar a correspondência entre o comportamento de algumas espécies animais com os requisitos exigidos tanto por Hobbes como por Rousseau para lhes atribuir ações e ser, portanto, juízes dos meios para sobreviver, tornando-se, assim, senhores (maîtres ) deles mesmos. Não é necessário, para isso, que sejam juízes infalíveis ou que façam raciocínios abstratos sobre seu próprio bem e seus direitos, como também isso não é exigido dos seres humanos toda vez que procuram um advogado. Aceitar a capacidade de julgamento prático dos animais vai muito além do reconhecimento de sua sensibilidade - como alguns filósofos utilitaristas fizeram -, pois significa aceitar uma capacidade de autogoverno, seja individual ou coletiva. Ser receptor de sensibilidade é um fundamento suficiente para que a dor não seja infligida aos seres assim dotados, mas ser juiz de si mesmo leva a outra coisa: decidir sobre o destino comum. A comunidade autogovernada não necessita de um governo externo, não requer que lhe sejam dados fins, uma vez que já tem os seus próprios, e acessa a condição de que compartilha “os direitos dessa sociedade e quem gosta de suas franquias 4 4 “Los derechos de esta sociedad y que se beneficia de sus franquicias”. ”, com que Diderot, como vimos, atribui a cidadania dos humanos (que ele identifica com os homens, brancos, adultos e não trabalhadores de serviço nem manuais). Podem, então, algumas espécies animais desfrutar do que naturalmente se deduz do reconhecimento de seu juízo prático sobre seu próprio bem, isto é, estamos em condições de aceitar que se beneficiem legitimamente e com justiça da cidadania?

A propriedade da terra

É necessário examinar a proposta de que os animais sejam co-cidadãos em nossa comunidade política, como afirmam Donaldson e Kymlicka. O conceito de “in our political community” poderia supor que uma comunidade humana concede direitos dentro dela a outra comunidade, neste caso de animais, o que é válido para animais domésticos e para animais escravizados, ou para aqueles que, ao serem colocados em liberdade, em meio aos humanos ou a outros predadores, sem ter aprendido a sobreviver nessas condições, pereceriam facilmente. Estes animais são “migrants”, “denizens” ou “full citizens” ( Donaldson & Kymlicka 2011 Donaldson, S., & Kymlicka, W. (2011). Zoopolis. A Political Theory of Animal Rights. Nueva York, Estados Unidos de Norteamérica: Oxford University Press. , página 14). Mas os autores também distinguem “Alguns animais devem ser vistos como formando comunidades soberanas separadas em seus próprios territórios” ( Donaldson & Kymlicka 2011 Donaldson, S., & Kymlicka, W. (2011). Zoopolis. A Political Theory of Animal Rights. Nueva York, Estados Unidos de Norteamérica: Oxford University Press. , p.14), sobre o que nos voltaremos agora 5 5 Não é possível se ocupar dos demais grupos de animais em um só artigo. .

Reconhecer que alguns animais vivem soberanamente é reconhecer que eles são juízes dos meios para se conservar e senhores de si mesmos, noção que é a principal base do ser sujeito de direitos no sistema jurídico ocidental. A consequência disso - para alguns grupos de animais - é que não corresponderia simplesmente a lhes estender direitos, porque eles não estão dentro de uma polis humana, mas formam a sua própria polis. Os animais selvagens não são uma comunidade dentro da comunidade humana, mas uma comunidade de seres vivos entre outras comunidades de seres vivos. Eles não são apenas indivíduos; são entidades coletivas com personalidade própria e que, graças ao conjunto de normas com as quais se organizam, conseguem sobreviver coletivamente. O conceito, então, dos direitos do cidadão, aplicado aos animais que vivem soberanamente, não pode consistir na reprodução dos sistemas de distribuição do direito como acontece nas comunidades humanas. Contudo, animais que vivem soberanamente nunca pertenceram à polis humana. Então os direitos dos cidadãos deveriam ser-lhes negados?

Mais uma vez devemos falar sobre o conceito de cidadania. Evitar o tratamento cruel de animais é uma afirmação correta, mas insuficiente. Se os animais selvagens são, como pensam Rapchan, Smuts, Burgat, Donaldson e Kymlicka, competentes também como comunidades, é preciso entender que o principal desafio em relação a esses animais é, atualmente, deter a destruição global do ambiente onde esses animais podem ser soberanos. Esse ato não é um assunto individual. A destruição generalizada do planeta pelos seres humanos não é fruto apenas dos atos destrutivos dos indivíduos humanos, mas em grande parte da instituição cultural e jurídico-política da propriedade sobre os demais seres vivos. Na base desses comportamentos destrutivos das entidades coletivas animais, destacam-se duas afirmações filosóficas de ampla repercussão. A primeira é o domínio e a propriedade dos seres vivos, como John Locke entende, no Second Treatise on Civil Government, afirmando que:

Deus, que deu o mundo aos homens em comum, também lhes deu razão para usá-lo para o melhor proveito da vida, e conveniência ( Locke, 1978 Locke, J. (1978 [1622]). Two Treatises of Government (Vol. 1). Londres, Reino Unidos: Everman's Library. [1622], V, § 26);

A segunda é a declaração posterior de Kant, em 1797, exposta em Die Metaphysik der Sitten, segundo a qual:

Todos os homens estão originalmente em posse comum do solo de toda a terra ( communio fundi originaria), (cada um) com a vontade de usá-lo, o que lhe corresponde por natureza (lex iusti); essa vontade, devido ao confronto inevitável pela natureza da arbitrariedade de um com o outro, anularia todo o uso da terra, se não contivesse ao mesmo tempo a lei para isto, de acordo com a qual uma possessão particular no solo comum pode ser determinada a cada um (lex iuridica) ( Kant, 1956 Kant, I. (1956 [1797]). Die Metaphysik der Sitten. In, . I. Kant, & W. Weischedel (Ed.), Kant. Werke in zwölf Bänden, Band VIII. Schiften zur Ethik und Religionsphilosophie. Zweyte Theil (Vol. VIII, pp. 309-614). Frankfurt am Main, Alemania. [1797]), B92 p. 378).

A terceira é o elo que Hegel estabelece entre a liberdade humana e a propriedade:

A pessoa tem, para seu propósito essencial, o direito de colocar sua vontade em cada coisa, o que, consequentemente, é minha; não tendo aquela, em si mesma, um fim semelhante, retém sua determinação e estimula minha vontade; o direito absoluto de apropriação do homem sobre todas as coisas 6 6 Na tradução feita pelo autor ao español: “La persona tiene, para su fin esencial, el derecho de poner su voluntad en cada cosa, la que, en consecuencia, es mía; no teniendo aquélla en sí misma un fin semejante, retiene su determinación y anima mi voluntad; el absoluto derecho de apropiación del hombre sobre todas las cosas”. Neste caso, cito outra tradução ao portugués, já publicada: “A pessoa tem o direito de colocar sua vontade em cada Coisa, que se torna por isso a minha e recebe minha vontade por seu fim substancial, que ela em si mesma não tem, por sua determinação e por sua alma. - direito de apropriação absoluto do homem sobre todas as Coisas.” (HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofía do direito, ou Direito natural e ciencia do estado em compêndio; trad. Paulo Meneses … [et al.]. – São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.) ( Hegel, 1986 Hegel, G. W. (1986 [1820]). Werke. In G. W. Hegel, & E. M. Michel (Ed.), Grundlinien der Philosophie des Rechts (Vol. 7, p. 530). Fráncfort, Alemania: Suhrkamp. [1820] §44, p. 107).

Tem o homem o direito de situar a sua vontade em qualquer coisa; esta torna-se, então, e adquire-a como fim substancial (que em si mesma não possui), como destino e como alma, a minha vontade. É o direito de apropriação que o homem tem sobre todas as coisas.

As três declarações inspiram textos legais que, posteriormente, organizaram coletivamente o tratamento de seres humanos para com os animais ao compreender que a Terra é transformável em um objeto de propriedade e que isso, especialmente no caso de Hegel, é essencial para a execução da vontade e liberdade humanas. Contudo, um dos frutos derivados da norma da propriedade sobre a terra entendida como a união inseparável de materiais inertes com outros vivos - tem sido uma destruição tão ampla do planeta que chegou ao ponto de colocar em risco a própria humanidade, ademais de fazer isso com muitos animais. A legitimação de tal destruição nunca pode ser a base de uma norma humana, cujo sentido é facilitar e não acabar com a vida. Quem age assim não é um juiz dos meios da própria preservação e se desqualifica como sujeito de direito. A destruição das comunidades animais ou o impedimento para que elas exerçam a posição de juízes dos meios para se conservarem é um ato contrário à justiça, por mais “útil” que possa ser para os humanos temporariamente. A generalização da morte como a principal relação com os animais é inseparável da exposição do ser humano ao suicídio ambiental. Florence Burgat argumenta que: “Há toda razão para se falar sobre a tanatocracia, e este reinado de (dar a) morte aos animais é tão bem organizado, tão bem integrado à nossa economia e aos nossos hábitos de consumo, que passa despercebido” (Burgat, Donner des droits aux animaux, une exigence de la raison, 2018 Burgat, F. (2018). Donner des droits aux animaux, une exigence de la raison. París, Francia: Comunicación personal. ).

Nem Locke nem Kant nem Hegel suspeitaram disso. Tampouco suspeitaram de que os animais selvagens formam entendimentos coletivos com capacidade de julgamento e decisão coletivas. Portanto, uma relação adequada com animais selvagens significa aceitar que eles formam suas próprias comunidades autorreguladas, cujo primeiro direito é subsistir conforme decidam, o que não se manifesta nas teorias, mas nos comportamentos. Essa subsistência tem uma base dupla: por um lado, que o planeta não é propriedade; por outro, que todos os seres vivos participam da geração do destino do planeta Terra, embora com responsabilidades diferentes de acordo com a espécie. Portanto, animais selvagens não fazem parte da polis humana, mesmo se considerarmos que a polis pode, sem perder sua unidade, integrar uma variedade de comunidades com direitos diferenciados, como vimos que Kymlicka propõe em Multicultural citizenship .

Assegurar os direitos dos animais que vivem soberanamente, em conformidade com as características de cada espécie biológica, requer uma cidadania e uma polis supranacionais, que tenham precedência sobre a propriedade humana do solo planetário. Os sistemas jurídicos baseados nos direitos de propriedade sobre os animais, como entendidos por Locke, Kant e Hegel, exigem revisão a fundo. Não é preciso redigir uma “constituição” que funde do nada todo o sistema jurídico, não faz falta um novo código civil nem um novo código penal, mas faz falta introduzir nesses instrumentos o equivalente político daquelas emendas que deram liberdade aos escravos em numerosos países da América. Não se trata de uma novidade que ameace a destruição do direito, mas de dar continuidade à evolução das normas que nos regem. Considere, por exemplo, como evoluiu, no seu tempo, as atribuições da pátria potestade romana, que chegou a aceitar a venda e a morte de seus próprios filhos. A revisão e reinterpretação de conceitos jurídicos não destrói as instituições filosóficas e políticas; muito pelo contrário, nisso se baseia a vida e o fortalecimento que essas instituições têm, pois isso as aproxima da cidadania e dos conflitos morais ou materiais que hoje requerem solução. Em questões religiosas, a situação não é totalmente diferente:

Foi dito que, a partir do relato da Gênesis que convida a “dominar” a terra (cf. Gn 1,28), a exploração selvagem da natureza seria favorecida [...] Esta não é uma interpretação correta da Bíblia [...] hoje devemos rejeitar fortemente que, do fato de serem criados à imagem de Deus e do mandamento de dominar a terra, um domínio absoluto sobre as outras criaturas é deduzido. É importante ler os textos bíblicos em seu contexto [...] e lembrar que eles nos convidam a “lavrar e cuidar” do jardim do mundo (ver Gn 2,15). Enquanto “lavrar” significa cultivar, arar ou trabalhar, “cuidar” significa proteger, guardar, preservar, guardar, guardar ( Vaticano, 2015 Vaticano. (2015). Carta encíclica Laudato si’ del santo padre Francisco sobre el cuidado de la casa común. Vaticano, Vaticano: Tipografía Vaticana. ).

O globo terrestre não é o mesmo que uma aglomeração, como disse Jean-Luc Nancy ( Nancy, 2002 Nancy, J.-L. (2002). La création du monde ou la mondialisation. París, Francia: Galilée. ), nem a soma mais ou menos coerente de propriedades, onde o vivo e o morto se confundem, sob o pretexto hegeliano de que a vontade se manifesta na propriedade. O reconhecimento contemporâneo da capacidade animal de decidir sobre a sua vida tem como consequência natural que se deve avançar para a criação de uma normativa que regule nacional e internacionalmente os atos, tanto das nações como dos indivíduos, para com os animais, e restrinja ou anule seu caráter de propriedade. A figura do protetor dos animais deve ser incorporada tanto ao sistema político nacional como ao internacional; se os seres humanos necessitam de advogados para defender os seus direitos por serem indivíduos comuns incapazes intelectualmente de fazê-los valer, a incapacidade animal intelectual – mas não a prática – de compreender o direito perde toda a sua excepcionalidade e se transforma em uma situação compartilhada entre humanos e animais. Por não compreender essa situação, Locke, Kant e Hegel erram nesse assunto.

A declaração atualizada de “Nós, o povo” (“We, the people”), deve incluir seres humanos e animais, que povoam com igual direito a Terra. Nenhuma abstração filosófico-jurídica é necessária para entender que os animais querem se preservar e participar - à sua maneira - da decisão sobre seu destino comum, o que é essencial no conceito de cidadania. A isto se acrescenta que o interesse dos seres humanos na vida dos animais não é apenas moral, mas também vital; o risco de morte a que os animais têm sido submetidos é também um risco para a vida humana; a proteção dos animais serve como uma medida da prudência ou imprudência com que os próprios seres humanos se protegem para o futuro imediato e distante. A ilusão da Modernidade era que o ser humano podia alcançar sua felicidade moral e material dominando outros seres vivos. Hoje sabemos que isso é falso; nosso destino está ligado ao dos animais. Juridicamente, isso deve ser estabelecido.

  • 1
    Todas as citações do texto se encontravam traduzidas para o espanhol pelo autor no artigo originário. Foi feita a tradução direta para o português desses trechos, a partir dessas traduções do autor. (N.T.)
  • 2
    “Nosotros, el Pueblo de los Estados Unidos, a fin de formar una Unión más perfecta, establecer Justicia, afirmar la tranquilidad interior, proveer la Defensa común, promover el bienestar general y asegurar para nosotros mismos y para nuestros descendientes”.
  • 3
    “Una persona es aquel cuyas palabras o acciones son consideradas como suyas, o que representan las palabras o acciones de otro hombre”.
  • 4
    “Los derechos de esta sociedad y que se beneficia de sus franquicias”.
  • 5
    Não é possível se ocupar dos demais grupos de animais em um só artigo.
  • 6
    Na tradução feita pelo autor ao español: “La persona tiene, para su fin esencial, el derecho de poner su voluntad en cada cosa, la que, en consecuencia, es mía; no teniendo aquélla en sí misma un fin semejante, retiene su determinación y anima mi voluntad; el absoluto derecho de apropiación del hombre sobre todas las cosas”. Neste caso, cito outra tradução ao portugués, já publicada: “A pessoa tem o direito de colocar sua vontade em cada Coisa, que se torna por isso a minha e recebe minha vontade por seu fim substancial, que ela em si mesma não tem, por sua determinação e por sua alma. - direito de apropriação absoluto do homem sobre todas as Coisas.” (HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofía do direito, ou Direito natural e ciencia do estado em compêndio; trad. Paulo Meneses … [et al.]. – São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018
  • Data do Fascículo
    Out 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2018
  • Aceito
    30 Out 2018
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