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A subsunção dos direitos humanos à nova razão do mundo

LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016

Christian Laval, professor de sociologia na Universidade Paris Nanterre, e Pierre Dardot, filósofo e professor na mesma instituição, formulam em A nova razão do mundo uma proposta de releitura do fenômeno neoliberal, a fim de reagir à sensação de que o pensamento crítico falhou na tarefa de compreender o seu inimigo. Ou seja, “a esquerda ainda não entendeu o que é o neoliberalismo, e está pagando um preço altíssimo por isso” (LAVAL, 2016LAVAL, Christian. Neoliberalismo e pós-democracia // Christian Laval e Christian Dunker. Canal da Boitempo no Youtube, São Paulo, 15 abr. 2016. Disponível em: <goo.gl/cEhQWk>. Acesso em: 04 nov. 2018.).

Para tanto, fazem recurso de uma leitura renovada dos postulados teóricos de Marx (desde 2004 realizam seminários com o objetivo de “reinterrogar o quadro teórico e a base histórica da crítica social e política que foi o pensamento de Marx” [ANDRADE; OTA, 2015ANDRADE, Daniel Pereira; OTA, Nilton Ken. Uma alternativa ao neoliberalismo: entrevista com Pierre Dardot e Christian Laval. Tempo Social: Revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 275-315, jun. 2015. Disponível em: <goo.gl/VTtnDS>. Acesso em 04 nov. 2018., p. 275-276]) e das considerações de Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. acerca da governamentalidade neoliberal, nas quais o filósofo francês desloca o centro do estudo do neoliberalismo para além da análise de políticas e medidas econômicas, de modo a enfocar seu papel na construção de uma política de sociedade sustentada pela teoria da concorrência pura e na generalização da forma empresa e do homo oeconomicus a todas as esferas da existência humana1 1 Entre os diversos autores que se inspiraram nessas considerações, a ênfase no tema do homo oeconomicus foi adotada por Brown (2015, p. 33-35), que, ao defender que a revolução neoliberal implica o desmantelamento do demos, constata o desaparecimento da cidadania e do homo politicus. Assim, o homem econômico pode reinar sozinho no neoliberalismo. .

Esse resgate foucaultiano, já realizado por outras autoras, como Brown (2006BROWN, Wendy. American nightmare: neoliberalism, neoconservatism and de-democratization. Political Theory, [s. l.], v. 34, n. 6, p. 690-714, dez. 2006. e 2015______. Undoing the Demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015.) e Dean (2009)DEAN, Jodi. Democracy and other neoliberal fantasies: communicative capitalism and left politics. Londres: Duke University Press, 2009., permite pensar de forma inovadora a questão das particularidades e peculiaridades do neoliberalismo, de modo a evitar a redução desse fenômeno a uma versão recrudescida do capitalismo clássico2 2 No caso, os autores explicitamente entram em confronto com as teses de Harvey (2005) e de Duménil e Lévy (2004), incluindo-as dentro dessas explicações que reduzem a racionalidade neoliberal a política econômicas e ideologias que significam mais capitalismo, de modo a reduzir a história à repetição sucessiva de velhos roteiros (p. 21-24). , que naturaliza o mercado, resgata o laissez-faire e se reduz a um intervencionismo negativo (p. 14-15). Portanto, os autores propõem-se a pensar seu objeto a partir da construção descontínua, processual e dinâmica da sociedade neoliberal, que engloba aspectos econômicos, sociais e subjetivos (p. 16), a partir de uma narrativa que entende que “a história é muito mais complexa, menos linear e, ao mesmo tempo, menos maniqueísta” do que a maioria dos relatos (p. 246).

Metodologicamente, essas considerações culminaram na necessidade de realizar uma pujante empreitada de história das ideias (neo)liberais, valendo-se de uma extensa revisão bibliográfica e análise documental, que inclui desde obras clássicas do receituário liberal (como as de Locke e Bentham, por exemplo) a programas políticos da esquerda neoliberal (como os da terceira via britânica).

Assim, na primeira parte (“A refundação intelectual”), a trajetória do livro começa com a constatação da crise do liberalismo, decorrente da ascensão do movimento operário e da questão social, e com os primeiros germéns da racionalidade neoliberal, que os autores encontrarão no neoevolucionismo spenceriano, marcado pela ultravalorização da competição (entendida como seleção e não mais como especialização) entre indivíduos como chave ao progresso da humanidade (p. 52-53). Depois, tal como Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008., elege-se o Colóquio Walter Lippmann, realizado em 1938, como o evento fundador da proposta neoliberal de sociedade3 3 Em geral, a bibliografia costuma indicar a gênese do neoliberalismo como conjunto mais articulado de ideias a partir do congresso de fundação da Sociedade de Mont-Pèlerin (1947). Apesar de terem alguns participantes em comum (Hayek e Von Mises), o Colóquio Walter Lippmann incluía também a vertente ordoliberal alemã (Eucken, Röpke e Böhm) e autores que pregavam um intervencionismo estatal para construir a sociedade neoliberal (Lippmann e Rougier). . A partir daí, listam-se as contribuições de várias tradições para assentar as bases dessa forma de pensar: a noção de que o mercado é algo que deve ser construído, inclusive com intervenção estatal (Lippmann [p. 71-100]), a necessidade de formular um quadro jurídico e normativo que permita o florescimento de um espaço para a concorrência, implicando a modelagem da própria sociedade (ordoliberais alemães [p. 101-132]), a transformação do ser humano de acordo com a imagem da empresa, como um capital humano que deve sempre buscar a autovalorização (Von Mises [p. 133-156]) e a proposta de submeter o Estado às normas de direito privado, de modo a colocar o liberalismo e os direitos civis do mercado acima de qualquer democracia (Hayek [p. 157-185]). Apesar de suas particularidades, todos esses pensadores trazem em comum o ímpeto de generalização dos princípios da concorrência e do livre mercado para todos os âmbitos da existência humana.

Na segunda parte (“A nova racionalidade”), por sua vez, os autores procuram analisar como se deu a aplicação concreta de todos esses princípios e reflexões teóricas nas sociedades do chamado Primeiro Mundo. Passam, primeiro, pelo estudo dos governos Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido, que surgem como resposta à crise do Welfare State e introduzem uma nova política monetarista e de sociedade, que culmina na construção da comunidade financeira internacional. A partir dessas políticas, desmonta-se o poder sindical, aumenta-se a taxa de juros, desregulam-se mercados, privatizam-se os fundos públicos e, a partir de uma retórica de eficácia oriunda do setor privado, erige-se “a concorrência em regra suprema e universal do governo” (p. 196-197). Depois, pelo estudo do blairismo e da terceira via inglesa, pode-se perceber que essa retórica finca profundas marcas na Grã-Bretanha, cuja esquerda socialdemocrata continua a reproduzir os discursos neoliberais de racionalização e de eficiência do mercado, a partir de uma noção ortodoxa de gestão, o que nos indica que o neoliberalismo é mais que uma lógica partidária, mas sim uma técnica de governo que se vende como neutra, mantendo sua relevância tanto em períodos militantes (como os de Thatcher e Reagan) quanto supostamente gestionários (Blair e toda a esquerda neoliberal) (p. 232-242). Depois, são esmiuçadas as origens do neoliberalismo na Europa Continental, que se deu a partir da influência de outras vertentes teóricas (no caso, o ordoliberalismo alemão, em detrimento da escola austro-estadunidense). Esse raciocínio permite demonstrar que a Europa não foi um antro protegido das políticas neoliberais, mas sim importante elemento na formulação dessa racionalidade (p. 245-270).

Ainda na segunda parte, passamos a dois capítulos que indicam os efeitos mais gerais da sociedade neoliberal nas pessoas e nos governos. Para estes, há a aplicação extensiva da lógica concorrencial e da empresa ao Estado, que passa a ser cobrado por sua eficiência puramente quantitativa no atendimento ao cidadão, reduzido a consumidor, tal como demonstram os dicursos de accountability, de governança ou dos cálculos de custo-benefício em políticas públicas à moda da escola Law & Economics (p. 271-320); para aqueles, a definição de sujeito é radicalmente alterada, de modo a apagar o elemento do cidadão político, um dos impulsos fundamentais das democracias liberais, deixando apenas o homem econômico do capitalismo e sua racionalidade instrumental, de modo a fazer com que o ser humano cada vez mais tenha que se adequar à figura da empresa (p. 326). Formula-se um novo sujeito unitário: o sujeito empresarial, ou neoliberal (p. 327), que, emulando a forma de uma empresa em concorrência no mercado de capitais, busca sempre se valorizar, acrescentar ao seu valor, incrementar seu capital, seja ele econômico ou social (p. 355-356).

Em suma, os autores chegam à conclusão de que a nova razão do mundo é global em dois sentidos: por um lado, expande-se para todo o globo terrestre e, por outro, “longe de limitar-se à esfera econômica, tende à totalização, isto é, a ‘fazer o mundo’ por seu poder de integração de todas as dimensões da existência humana” (p. 16). Logo, o neoliberalismo é uma racionalidade marcada pela generalização da concorrência (como norma de conduta) e da empresa (como modelo de subjetivação) a todas as esferas da vida (p. 17). Tal processo ocorre a partir de uma proposição intelectual que entende, primeiramente, que o mercado é uma realidade construída e, portanto, dependente de uma intervenção construtivista. Em segundo lugar, intepreta a essência do mercado como a concorrência e não mais a troca. Como terceiro ponto, submete o Estado à ordem concorrencial, visto como empresa e inserido dentro do direito privado. Por fim, essa universalização da competição aterrissa nos indivíduos, que, responsáveis pelo governo-de-si, tornam-se sujeitos-empresa e “cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar” (p. 377-378).

Conclusivamente, Laval e Dardot discorrem sobre o principal efeito dessa nova racionalidade na contemporaneidade: a des-democratização, a corrosão dos fundamentos da democracia liberal e o surgimento de sociedades ademocráticas4 4 Os autores, no caso, empregaram o conceito de des-democratização, formulado por Brown (2006). Recentemente, no entanto, eles têm preferido se referir aos sistemas políticos atuais como pós-democráticos (LAVAL, 2016). (p. 379-381). Tal processo ocorre por causa da demolição da noção de cidadania e pela adoção de critérios de avaliação estritamente gerenciais, que descrevem a administração pública como um processo meramente técnico e a ascensão social como um mérito puramente individual, nascido do esforço de um “ator autoempreendedor que faz os mais variados contratos privados com outros atores autoempreendedores” (p. 378-381).

Feita a exposição do conteúdo do trabalho e do horizonte teórico dos autores, partimos agora para uma análise crítica da obra e, posteriormente, para uma discussão acerca das possbilidades de uso de seus postulados no estudo dos direitos humanos em sua relação com o neoliberalismo.

Quanto ao primeiro ponto, devemos asseverar que, malgrado a existência de uma profunda coerência interna no decorrer de todo o texto, as opções metodológicas (análise documental e revisão bibliográfica dos atores neoliberais) e os recortes adotados pelos autores (foco apenas nos EUA e na Europa) levam a uma descrição da racionalidade neoliberal que, em muitos momentos, parece deixar de lado a natureza de classe e a violência inerentes ao projeto dessa racionalidade5 5 Especificamente, os autores chegam a reconhecer a imbricação do neoliberalismo em muitos momentos com a violência, mas defendem que nem sempre os caminhos tomados são ligados a uma “terapia de choque” (em referência ao trabalho clássico de KLEIN, 2008) (p. 20). Se, de fato, nem toda implantação neoliberal exige golpes de Estado, não nos parece, no entanto, que prescindam de elementos desorganizadores, crises e de momentos de espoliação da maioria da população. . Em especial, deixa-se de lado os efeitos devastadores de suas medidas nos países periféricos. Quase nada é mencionado acerca das profundas espoliações causadas pelo neoliberalismo nas nações dependentes, apesar dos autores entrarem em diálogo direto com teóricos que defendem expressamente o caráter violento e expropriador desses processos, como Harvey6 6 Harvey vincula a virada neoliberal a um projeto de “restauração ou reconstrução do poder das elites econômicas” (HARVEY, 2005, p. 19) e defende que um dos seus principais mecanismos de instalação consiste na acumulação por espoliação: uma forma contemporânea e relevante atualmente do que Marx chamou de acumulação primitiva do capital, mas que, em Harvey, não é vista como algo externo ao capitalismo como sistema fechado e que adota formas de coerção e de consenso (HARVEY, 2003, p. 143-145). Para uma apresentação e avaliação crítica dos conceitos de Harvey, Cf. FONTES, 2017. e Duménil e Lévy7 7 Duménil e Lévy (2004, p. 1-2, 210-211) conceituam o neoliberalismo como um conjunto de transformações no capitalismo que causou uma restauração das características violentas da acumulação capitalista e dos lucros e poder de classe de um setor capitalista específico: a burguesia financeira. Assim, “o neoliberalismo é fruto de uma volta por cima bem-sucedida de um segmento das classes dominantes”, formando uma nova hegemonia das finanças. Para um comentário recente sobre esse processo de restauração de forças da classe capitalista e seus efeitos no direito, Cf. GONÇALVES, 2014, p. 311-312. . Ao mesmo tempo, cumpre indicar que a leitura do neoliberalismo como um projeto de classe violento exige também o apontamento de seus erros, inconsistências e contradições8 8 Essa mesma crítica é empregada por Dean (2016) ao comentar o livro de Brown (2015) e julgamos que também se aplica à obra de Laval e Dardot. , algo que é deixado de lado pelos autores, cuja crítica fundamenta-se muito mais em princípios éticos do que nos efeitos reais deixados pela racionalidade neoliberal. Ou seja, é necessário lembrar que a tecnocracia neoliberal, nos ditos países de terceiro mundo, causa mais do que o arrefecimento do imaginário democrático: causa o aumento da desigualdade a níveis bárbaros, a perpetuação do desemprego e da miséria, o desmantelamento de serviços públicos essenciais à sobrevivência de milhões e a transferência de mais-valor da periferia para o centro. Em suma, aprofunda a condição de dependência e a superexploração da força de trabalho (CARCANHOLO, 2008CARCANHOLO, Marcelo Dias. Dialética do desenvolvimento periférico: dependência, superexploração da força de trabalho e política econômica. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 247-272, maio/ago. 2008., p. 262-263).

Por certo, não se tratam de falhas ou incongruências internas, mas principalmente de insuficiências de uma obra específica para dar conta de questões externas ao texto. Portanto, acreditamos que, para entender, por exemplo, o contexto brasileiro atual, precisamos fazer uso de outros elementos teóricos em conjunto com as contribuições de Laval e Dardot. Explicitamente, julgamos ainda muito relevantes as teorias que explicitam o caráter de classe e expropriatório do neoliberalismo e também as linhas teóricas que procuram pensar a situação dos países dependentes. Nesse caso, parece-nos que um dos diálogos principais a ser realizado deve ser com a teoria marxista da dependência9 9 Para uma exposição da Teoria marxista da dependência e suas contribuições para o estudo do direito, Cf. PAZELLO, 2016. , que expõe cristalinamente como a troca desigual entre centro e periferia culmina na superexploração da classe trabalhadora e das maiorias periféricas, cujo mais-valor é transferido aos grandes centros do capitalismo mundial (MARINI, 2008MARINI, Ruy Mauro. “Dialéctica de la dependencia”. Em: ______; MARTINS, Carlos Eduardo (comp.). América Latina, dependencia y globalización. Bogotá: CLACSO y Siglo del Hombre Editores, 2008, p. 107-150., p. 121-124 e CARCANHOLO, 2008CARCANHOLO, Marcelo Dias. Dialética do desenvolvimento periférico: dependência, superexploração da força de trabalho e política econômica. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 247-272, maio/ago. 2008., p. 254-255). Inclusive, o próprio resgate teórico de noções como as de espoliação (HARVEY, 2003HARVEY, David. The new imperialism. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 2003.) e de expropriação (FONTES, 2017FONTES, Virgínia. David Harvey: Dispossession or Expropriation? Does capital have an “outside”? Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 2199-2211, 2017. Disponível em: <goo.gl/cbEr7k>. Acesso em 04 nov. 2018.) parecem muito relevantes para pensar como os ajustes neoliberais implicam a espoliação de direitos sociais e trabalhistas (BRAGA, 2017BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 247-248). Tratam-se de elementos que, no fim das contas, são secundarizados na análise do livro.

No entanto, as contribuições dos autores franceses também são aplicáveis a outros aspectos da discussão dos efeitos no neoliberalismo atualmente. Se, por um lado, são incapazes de focalizar a condição da dependência; por outro, explicitam com muita propriedade o caráter pervasivo e criador da racionalidade neoliberal. Em outras palavras, não estamos diante de um processo meramente destruidor de direitos e de espaços estatais; ele também é produtor de “certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades” (p. 16). Portanto, trata-se mais de um processo de reestruturação do Estado e dos direitos à dinâmica da concorrência e da eficiência do que sua mera supressão.

Essa leitura, ao nosso ver, parece ser muito fecunda para pensar as reformas e reestruturações neoliberais para além da mera constatação da violação de direitos humanos. Ora, enquanto racionalidade, o neoliberalismo, mais que destruição, causa uma reformulação dos elementos básicos dos direitos sociais, políticos e civis. Justamente por causa disso que a maior parte dos discursos de imposição de medidas de austeridade pode, por exemplo, fazer uso da retórica dos direitos humanos. Assim, o neoliberalismo globalizado pode efetuar uma dupla redução: tudo que existe torna-se valor de troca e toda atividade humana é transmutada na mera aplicação de uma racionalidade particularista-capitalista (HERRERA FLORES, 2005HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales: crítica al humanismo abstracto. Ed. Catarata: Madrid, 2005., p. 123). Gostaríamos de destacar, justamente, a correlação entre as reflexões de Laval e Dardot e Herrera Flores: ambas expressam a constante expansão da lógica neoliberal para todas as outras esferas sociais. Esse cenário não poderia ser diferente com os direitos humanos.

Para ilustrar esse processo, podemos citar um discurso de Michel Temer diante de um público majoritariamente empresarial, no qual os direitos são evocados para defender a aprovação da PEC do Teto de Gastos, uma radical medida de austeridade que congela o orçamento público por 20 anos:

Porque esta Proposta de Emenda Constitucional responde à lógica básica que venho reiterando: sem o controle dos gastos, não há a confiança que se traduza em investimentos e consumo. Sem o controle dos gastos, seriam insustentáveis as políticas de habitação, saúde e educação. Essa proposta não visa a diminuir o volume de recursos para essas políticas, ao contrário, visa a garantir esses recursos. Essa proposta é essencial, meus amigos, para proteger os direitos dos grupos mais vulneráveis de nossa sociedade. À primeira vista pode parecer que é uma coisa só, digamos assim, uma PEC elitizada, e não é. Se você controlar os gastos públicos, você acaba tendo repercussões muito favoráveis em todos os senhores (sic) (TEMER, 2016TEMER, Michel. Discurso do Presidente da República, Michel Temer, durante a abertura do 8º EXAME Fórum 2016 - São Paulo/SP. Site do Planalto, Brasília, 30 set. 2016. Disponível em: <goo.gl/hsPWk3>. Acesso em: 04 out. 2018., destaques nossos).

Nessa afirmação, os direitos sociais e culturais são reivindicados e não são abandonados na argumentação, mas ficam completamente subsumidos aos direitos civis dos grandes investidores, em busca das melhores condições para multiplicar os seus ganhos. Aqui, formula-se uma linha de raciocínio fundada na tecnocracia da economia ortodoxa: as reformas estruturais neoliberais apresentam-se como pré-condição para aumentar a confiança da economia e melhorar o ambiente de negócios, os quais, por sua vez, trarão investimentos e a volta do crescimento aos países em recessão. Esse crescimento, no fim das contas, promete a diminuição do desemprego e o aumento da arrecadação de impostos, o que, enfim, criaria a possibilidade de alguns direitos sociais para a maior parte da população. Ou seja, tudo deve ser feito para se adaptar à competitividade e confiança dos mercados: trata-se de uma “corrida suicida para ver quem será o campeão da austeridade”, que vê a gestão da economia e da sociedade como empresas que tentam vender suas ações, instaurando a competição mundial entre nações (p. 29). Eis aí a lógica subjacente de uma concepção neoliberal dos direitos, que acabam, enfim, subsumidos à nova razão do mundo.

Esses elementos, por fim, dão apenas um exemplo entre vários possíveis da atualidade e relevância da presente obra para pensar a relação entre direitos humanos e neoliberalismo na realidade brasileira10 10 Para uma outra bibliografia em que as reflexões de Laval e Dardot auxiliaram a pensar a dinâmica dos direitos humanos na sociedade neoliberal, Cf. DELUCHEY, 2016, p. 210-211 e ss. . No fim das contas, a racionalidade neoliberal não necessariamente abre mão do uso da retórica dos direitos humanos: realiza-se a cooptação dessa linguagem para se adequar às noções neoliberais de sociedade nacional regida pela concorrência generalizada entre indivíduos-empresa e de comunidade internacional organizada a partir da competição entre Estados-empresa.

  • 1
    Entre os diversos autores que se inspiraram nessas considerações, a ênfase no tema do homo oeconomicus foi adotada por Brown (2015, p. 33-35), que, ao defender que a revolução neoliberal implica o desmantelamento do demos, constata o desaparecimento da cidadania e do homo politicus. Assim, o homem econômico pode reinar sozinho no neoliberalismo.
  • 2
    No caso, os autores explicitamente entram em confronto com as teses de Harvey (2005)______. A brief history of neoliberalism. Oxford: Oxford University Press, 2005. e de Duménil e Lévy (2004)DUMÉNIL, Gerard; LÉVY, Dominique. Capital resurgent: roots of the neoliberal revolution. Cambridge – MA; Londres: Harvard University Press, 2004., incluindo-as dentro dessas explicações que reduzem a racionalidade neoliberal a política econômicas e ideologias que significam mais capitalismo, de modo a reduzir a história à repetição sucessiva de velhos roteiros (p. 21-24).
  • 3
    Em geral, a bibliografia costuma indicar a gênese do neoliberalismo como conjunto mais articulado de ideias a partir do congresso de fundação da Sociedade de Mont-Pèlerin (1947). Apesar de terem alguns participantes em comum (Hayek e Von Mises), o Colóquio Walter Lippmann incluía também a vertente ordoliberal alemã (Eucken, Röpke e Böhm) e autores que pregavam um intervencionismo estatal para construir a sociedade neoliberal (Lippmann e Rougier).
  • 4
    Os autores, no caso, empregaram o conceito de des-democratização, formulado por Brown (2006)BROWN, Wendy. American nightmare: neoliberalism, neoconservatism and de-democratization. Political Theory, [s. l.], v. 34, n. 6, p. 690-714, dez. 2006.. Recentemente, no entanto, eles têm preferido se referir aos sistemas políticos atuais como pós-democráticos (LAVAL, 2016LAVAL, Christian. Neoliberalismo e pós-democracia // Christian Laval e Christian Dunker. Canal da Boitempo no Youtube, São Paulo, 15 abr. 2016. Disponível em: <goo.gl/cEhQWk>. Acesso em: 04 nov. 2018.).
  • 5
    Especificamente, os autores chegam a reconhecer a imbricação do neoliberalismo em muitos momentos com a violência, mas defendem que nem sempre os caminhos tomados são ligados a uma “terapia de choque” (em referência ao trabalho clássico de KLEIN, 2008KLEIN, Naomi. The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. Nova York: Metropolitan Books, 2008.) (p. 20). Se, de fato, nem toda implantação neoliberal exige golpes de Estado, não nos parece, no entanto, que prescindam de elementos desorganizadores, crises e de momentos de espoliação da maioria da população.
  • 6
    Harvey vincula a virada neoliberal a um projeto de “restauração ou reconstrução do poder das elites econômicas” (HARVEY, 2005______. A brief history of neoliberalism. Oxford: Oxford University Press, 2005., p. 19) e defende que um dos seus principais mecanismos de instalação consiste na acumulação por espoliação: uma forma contemporânea e relevante atualmente do que Marx chamou de acumulação primitiva do capital, mas que, em Harvey, não é vista como algo externo ao capitalismo como sistema fechado e que adota formas de coerção e de consenso (HARVEY, 2003HARVEY, David. The new imperialism. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 2003., p. 143-145). Para uma apresentação e avaliação crítica dos conceitos de Harvey, Cf. FONTES, 2017FONTES, Virgínia. David Harvey: Dispossession or Expropriation? Does capital have an “outside”? Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 2199-2211, 2017. Disponível em: <goo.gl/cbEr7k>. Acesso em 04 nov. 2018..
  • 7
    Duménil e Lévy (2004DUMÉNIL, Gerard; LÉVY, Dominique. Capital resurgent: roots of the neoliberal revolution. Cambridge – MA; Londres: Harvard University Press, 2004., p. 1-2, 210-211) conceituam o neoliberalismo como um conjunto de transformações no capitalismo que causou uma restauração das características violentas da acumulação capitalista e dos lucros e poder de classe de um setor capitalista específico: a burguesia financeira. Assim, “o neoliberalismo é fruto de uma volta por cima bem-sucedida de um segmento das classes dominantes”, formando uma nova hegemonia das finanças. Para um comentário recente sobre esse processo de restauração de forças da classe capitalista e seus efeitos no direito, Cf. GONÇALVES, 2014GONÇALVES, Guilherme Leite. Marx está de volta!: um chamado pela virada materialista no campo do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 301-341, 2014. Disponível em: <goo.gl/Q9KKxH>. Acesso em 04 nov. 2018., p. 311-312.
  • 8
    Essa mesma crítica é empregada por Dean (2016)______. [Resenha de] Wendy Brown. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. The Critical Inquiry Review, Chicago, v. 42, n. 4, p. 979-982, jun. 2016. ao comentar o livro de Brown (2015) e julgamos que também se aplica à obra de Laval e Dardot.
  • 9
    Para uma exposição da Teoria marxista da dependência e suas contribuições para o estudo do direito, Cf. PAZELLO, 2016PAZELLO, Ricardo Prestes. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 540-574, 2016. Disponível em: <goo.gl/UxF2uL>. Acesso em 04 nov. 2018..
  • 10
    Para uma outra bibliografia em que as reflexões de Laval e Dardot auxiliaram a pensar a dinâmica dos direitos humanos na sociedade neoliberal, Cf. DELUCHEY, 2016DELUCHEY, Jean François Y. Os Direitos Humanos entre Polícia e Política. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 196-228, 2017. Disponível em: <goo.gl/oanNki>. Acesso em 04 nov. 2018., p. 210-211 e ss.
  • LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

Referências Bibliográficas:

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  • BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.
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  • CARCANHOLO, Marcelo Dias. Dialética do desenvolvimento periférico: dependência, superexploração da força de trabalho e política econômica. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 247-272, maio/ago. 2008.
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  • ______. [Resenha de] Wendy Brown. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. The Critical Inquiry Review, Chicago, v. 42, n. 4, p. 979-982, jun. 2016.
  • DELUCHEY, Jean François Y. Os Direitos Humanos entre Polícia e Política. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 196-228, 2017. Disponível em: <goo.gl/oanNki>. Acesso em 04 nov. 2018.
  • DUMÉNIL, Gerard; LÉVY, Dominique. Capital resurgent: roots of the neoliberal revolution. Cambridge – MA; Londres: Harvard University Press, 2004.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2019
  • Aceito
    13 Jan 2019
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