Acessibilidade / Reportar erro

Tessituras com, contra e além do direito à cidade: por uma justiça dissensual nos enredamentos da despossessão

Weaving with, against and beyond the right to the city: dissensual justice through the entanglements of dispossession

Resumo

Considerando o desafio da mediação filosófica com a sociológica para as significações do devir da sociedade urbana, este ensaio busca torcer a noção de direito à cidade especulando sobre distintas operações sócio-históricas e somáticas da despossessão como constituintes do sensível da contemporaneidade. Conjurando distintas pressuposições teóricas sobre os movimentos da dialética justiça/injustiça se alcança a corporeidade como a possibilidade de um direito à cidade assentado em uma justiça dissensual.

Palavras-chave:
Justiça; Corporeidade; Despossessão

Abstract

Considering the challenge of mediating philosophical and sociological thoughts for signifying the becoming of urban society, this essay pursuits a twist in the notion of the right to the city by speculating on the different socio-historical and somatic operations of dispossession as constituents of the contemporary sensibilities. Conjuring distinct theoretical presuppositions of the dialectical movements of justice/injustice we reach embodiment as the possibility for a right to the city based on a dissensual justice.

Keywords:
Justice; Embodiment; Dispossession

1. Introdução

Cada ato de leitura e de escrita é uma encenação inventiva que envolve uma experiência de problematização; é no encontro dessa reflexão que este ensaio se inscreve. Encenarei encontros textuais improváveis, ao preço de passar por cima de impasses inconciliáveis entre diferentes corpus de pensamento. Ao entretecer argumentos através de proposições teóricas colidentes coloco este texto, e a mim certamente, em dificuldades sérias. Mas acredito não haver outra forma de entregar-me à urgência de refletir, ainda que parcialmente e sob as limitações de um ensaio, sobre a multiplicidade conflitante de sentidos ético-políticos que nos conformam na contemporaneidade; ao risco de invocar um pensamento dissensual no limiar do (im)possível da justiça1 1 Utilizo a noção de (im)possibilidade da justiça de Jean-Luc Nancy (2002), apropriando-me criativamente do debate do autor sobre a incomensurabilidade da justiça como necessidade de não realização de uma essência e da política como local de articulação de uma não-unidade. , apenas tateado e muito preliminar à altura de um desafio que é por natureza inconclusivo; e lançar-me especulativamente a defender nossa abertura ao evento imprevisível que somos enquanto sujeitos-corpos como forma de habitar o estranhamento do devir2 2 Ainda que o conceito de devir tenha ganhado corpo de referência na obra deleuziana, é um conceito hegeliano da dialética por excelência. De forma simplista, devir é o pensamento de um conteúdo indefinido, tomado momentos de presença (Ser) e ausência (Nada) na processualidade constante dos objetos/instâncias da experiência que sempre ultrapassam seus conceitos pelo movimento dialético. - torcendo a utopia, portanto - como o possível-impossível do direito à cidade.

E se me proponho a invocar os espectros da dialética - solo do pensamento lefebvriano -, mesmo que por vezes colidindo com ela, é condizente que eu leve a relação dialética entre significação e texto razoavelmente à sério3 3 Como nos lembra Vladmir Safatle (2006) não é por acaso que o método de pensamento dialético inaugura-se através de uma reflexão sobre a relação entre as palavras e as coisas, através do questionamento a respeito dos modos de funcionamento da linguagem em suas expectativas referenciais, que nos obriga sempre a rever conceitos ontológicos centrais, sempre frustrados pela sua não coincidência com seus objetos. . Por convocação criativa, considerarei o movimento de negatividade da dialética para pensar com a linguagem (na dimensão discursiva) a reduplicação e deslocamento de sentidos que nos possibilitam trabalhar nossas próprias contradições constitutivas - nossa “dialética do eu” (Safatle, 2019SAFATLE, Vladmir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica, 2019). Movimento dos sentidos nos discursos, então, que desconfia da possibilidade de coincidência entre qualquer enunciado e o ‘real’ - entre ‘conceitos’ e ‘objetos’ -, desassossegado pelos múltiplos processos de significação da realidade, irredutíveis ao plano do visível mas não menos enraizados nas dinâmicas das relações sociais. Aproximação ditanão-dita com a desconstrução derridiana, na percepção da assimilação do texto (do discurso) como algo sempre inacabado e de incessante criação de significados.

As motivações deste ensaio em posicionar uma perspectiva discursiva como ponto de partida de discussão sobre o direito à cidade, remete primeiramente ao debate, ao meu ver infrutífero, sobre a apropriação desta noção pela diversidade de coletivos, movimentos sociais ou por organizações institucionais como mais ou menos desviantes da concepção ‘originária’ lefebvriana. Ainda que nenhuma forma de apropriação esteja isenta de críticas e tampouco conforme visões inocentes e sem interesses localizados, seria uma redução academicista debater o ‘real’ significado do direito à cidade e de uma arrogância fazê-lo por objeção ao que eu (nós) poderia(mos) considerar como lacunas e/ou banalizações de seu uso pela pluralidade social que desta se apropriou. Se considerarmos a noção de ‘direito à cidade’ como um signo (ver Bakhtin, 2006BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006), seu significado não estará cristalizado no texto lefebvriano; ali encontraremos apenas um primeiro disparo de significações. Na dinâmica sócio-histórica de produção e circulação dos sentidos cada interlocutora e interlocutor, em seus contextos sociais e corporificados - produtora/es de conhecimento situado nos termos de Donna Haraway (1988HARAWAY, Donna. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. 14, n. 3, p. 575 - 599, 1988) -, provocará significações não coincidentes, no todo ou parcialmente, com as do autor. Logo, como interlocutora farei, necessariamente, uma interpelação parcial à obra lefebvriana assim como uma proposta também parcial de defesa, de dilatação e de ruptura do direito à cidade.

Paradoxalmente, a crítica de partida que faço ao direito à cidade lefebvriano provém do que eu interpreto como rastro paternalista em sua versão ‘originária’, se considerada apenas em sua concepção no livro homônimo - e em interpretações atuais como a de David Harvey, que ouso dizer ser mais influente no debate brasileiro do que o próprio Lefebvre. Ainda que assentada no solo de uma dialética marxista renovada pelo engajamento com a vida cotidiana, como veremos à frente, um paternalismo que se traduz no acionamento de um desejo implícito de síntese tanto filosófica quanto macro(ético)política, inscrita na “proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso (…) [pelas] perspectivas da revolução sob a hegemonia da classe operária” (Lefebvre, 2001LEFEBVRE, Henri. O Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001: 139). Paternalismo também em se colocar como teoria detentora de uma visão da totalidade não alienada que escapa às massas - como se algum sentido de totalidade pudesse, afinal, corresponder a realidade -, capaz de pressupor a verdadeira sensibilidade emancipatória e de definir a tradição teórico-discursiva e prático-política mais propícia para tal.

Não tenciono sugerir, com isso, que nosso papel na academia não seja refletir sobre as práxis nem ser um terreno fértil para diálogos teórico-práticos propositivos, dada a indissociabilidade entre produção do conhecimento e intervenção transformadora do mundo. Mas o que já de início estou defendendo é que a polifonia do direito à cidade é tão mais mobilizadora das forças sociais de contraposição à cafetinagem da vida pelo sistema falo-racista-heteronormativo-colonial-capitalístico (Rolnik, 2018ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018) quanto menos coincidente for, quanto mais micro(ético)político for, pluralizando agenciamentos distintos da dialética justiça/injustiça. As críticas que dirijo ao direito à cidade lefebvriano (ou harveyano?) é motivada precisamente por maneiras concretas e dissonantes de significação deste signo; usos direcionados à ação política em experimentações situadas no que denomino de movimentos de conflitualidade ontológica da constituição dos sujeitos - terreno repleto de lições a serem aprendidas nas lutas feministas, lgbtqi+ e negras anti-racistas. Movimentos não redutíveis, ainda que relacionados, aos conflitos que referenciam categorias tradicionais do urbano (habitação, saneamento, infraestruturas coletivas, espaço público, mobilidade etc.), mas que acredito enquadrarem o direito à cidade com imaginários emancipatórios mais amplos ao encontrarem as significações da luta social na corporeidade.

Ao demonstrarem a natureza situada e o caráter paradoxal da dialética justiça/injustiça, os movimentos de conflitualidade ontológica nos convidam à reflexão sobre os antagonismos constitutivos da contemporaneidade - em suas (des)continuidades com a modernidade colonial - para pensar a potência política da ambiguidade enunciativa do direito à cidade como um compromisso de contestação incessante sobre a justiça no passado-presente-futuro. Neste caminho, a ideia de justiça certamente não admitirá fechamento semântico e precisamente aí reside sua potência (im)possível e não totalizável em uma esfera normativa nem em uma grande teoria universal capaz de transcender a conflitualidade ético-política de nossa inter-relacionalidade constitutiva.

Seguirei, então, numa interpretação do direito à cidade como uma noção constituinte de um pensamento mediador entre a tarefa sociológica e o desafio filosófico enquanto processualidades constitutivas da realidade que se voltam à transformação revolucionária plural no devir da sociedade urbana. Transformação que não se limita às estruturas do constituído do sensível (a materialidade histórica) mas se direciona igualmente aos constituintes das condições ontológicas da experiência humana. Noção de direito à cidade que, se viva e em movimento, deve estar igualmente submetida a transformação se objetivar uma mediação (im)possível da justiça. Se regredido à apenas ‘um’ discurso conceitual ou à categoria de análise de pretensa efetividade, o direito à cidade perderia sua potência em permanecer inconcluso e não-idêntico, reduzido à uma abstração coincidente entre forma e conteúdo sob a lente de uma “terminologia filosófica viva desde o ponto de vista de um léxico morto” (Adorno, 1983ADORNO, Theodor. Terminología filosófica. Madrid: Taurus, 1983: 39).

E se o desafio se encontra na mediação filosófica com a sociológica não poderíamos desprezar disparos de significações do direito à cidade na própria obra lefebvriana que oportunizam interpretações de encerramento no pensamento social e jurídico. Proponho, assim, uma leitura parcial mas constelar da obra de Henri Lefebvre, por vezes contra ele a partir dele mesmo, tencionando a noção de direito à cidade à possível alienação do próprio ‘direito à cidade’. Com, contra e para além da matriz lefebvriana, parto da distinção levada a cabo pelo próprio autor entre categoria e conceito. Se para Lefebvre (1975LEFEBVRE, Henri. Lógica formal/lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975) a categoria emerge do próprio vivido, que é o que significa a cotidianidade, é o vivido que a meu ver está em jogo em sua proposição, em que os sujeitos parecem chegar à cena do urbano com subjetividades essencializadas e pré-determinadas: com corpos (biologizáveis) mas sem corporeidades, como se apenas alienados pelo movimento do capital. Se o conceito é concebido pelo entendimento tardio do real, proponho um engajamento com a noção de despossessão em processualidade retroativa dos distintos conteúdos em contradição que parece sintetizar nas gramáticas de desigualdade que acionamos da dialética justiça/injustiça, oferecendo à contradição, paradoxalmente, um caráter ontológico (em situação) radicalmente revisto.

Como terreno contestável do pensamento crítico, defendo que a noção de despossessão tem uma potência de especulação fabulativa (Haraway, 2016HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Chthlucene. Durham: Duke University Press, 2016) sobre o sensível que constitui a contemporaneidade, politicamente sugestiva para conjurarmos um futuro mais vivível, tecendo a hipótese de que se é a operação contínua da despossessão que configura a qualidade violenta da acumulação capitalista em estados induzidos de privação e expropriação, ao alçarmos à sua exposição extrema na corporeidade poderemos compreendê-la como a possibilidade radical de dissolvermos a falsa totalidade do capital e pensarmos um direito à cidade através de sensibilidades revolucionárias costuradas por ressonâncias políticas de uma justiça dissensual. E especulação fabulativa pois exercício de derivações múltiplas com difíceis passagens: do pensamento epistêmico e ontológico para gramáticas de justiça/injustiça; das teorias para práticas de transformação da realidade; e de ambas, teorias e práticas, para os efeitos políticos nos imaginários sociais (incluso sobre o passado) que mobilizam no presente e que (des)atam para o futuro (Gatens e Lloyd, 1999GATENS, Moira; LLOYD, Genevieve. Collective Imaginings: Spinoza, past and present. Nova Iorque: Routledge, 1999).

Em suas maneiras intratáveis de sinalizar tanto os caminhos da acumulação capitalista, os regimes de determinação do sensível quanto a constituição dos sujeitos, a noção de despossessão serve-nos como metáfora teórica (Butler e Athanasiou, 2013BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013) dada sua aporia semântica que diz respeito não apenas aos movimentos induzidos de privação mas sobretudo sobre nossa precariedade ontológica de exposição à alteridade que conjura nossa responsabilidade ética pelo devir. Buscarei tecer distintas valências que a despossessão pode vir a assumir enrendando-nos em suas operações socio-espaçotemporais que, defendo, movimentam a dialética justiça/injustiça. Argumentarei (in)conclusivamente, ao final, pela multiplicidade dos sentidos da despossessão como possibilidade de interpelação da travessia entre a ética e a política na figura de uma justiça dissensual como ‘lugar’ de significação do direito à cidade na contemporaneidade.

2. Permanecendo com o direito à cidade lefebvriano: da economia política à cotidianidade como significantes da despossessão

As articulações teóricas críticas entre a dialética justiça/injustiça e a noção de despossessão subtraem-se, certamente, do entendimento dos estados de privação das condições de existência pelos vínculos entre expropriação da terra, constituição da dualidade propriedade privada/pública moderna e alienação do trabalho. Consideradas experiências fundantes da condição da modernidade, as raízes dessas articulações encontram-se na proposição de acumulação primitiva do capitalismo em Karl Marx (1973)4 4 Karl Marx (1973: 459-516) empregou o termo “acúmulo primitivo” para remeter a gênese histórica do capitalismo (europeu) por meio da violência e pilhagem do cercamento das terras comuns. O termo foi posteriormente solidificado entre os estudiosos marxistas tratando-se do cercamento de terras como um processo de proletarização e acumulação originária, necessário para estabelecer uma acumulação econômica “normal” em um modo de produção capitalista. , reinterpretada por Rosa Luxemburgo (1970LUXEMBURG, Rosa. A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do Imperialismo. Especialmente a seção III. Rio de Janeiro: Zahar, 1970) como um processo central e contínuo para o funcionamento do capitalismo. A análise do movimento da acumulação originária do capital processualmente reiterada motivou distintas concepções da economia política da urbanização que em David Harvey (2010HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2010) é cunhada como acumulação por despossessão, encontrando a contradição dialética dos direitos entre possuidores e despossuídos nos atos iterados da violência espoliatória do capitalismo, reeditáveis pelas institucionalidades e imaginários sociais assumidos no interior do Estado moderno capitalista.

Embora a economia política seja indispensável para apreendermos a matriz despossessória operante na produção da contemporaneidade, não passa despercebida uma certa limitação conceptual distributiva da dialética justiça/injustiça, tecida como uma matéria de bens e recursos de conteúdo econômico a serem repartidos social e territorialmente pela destinação dos meios de sua produção5 5 Para uma elaboração aprofundada por distintas perspectivas ver Axel Honneth (2009), Nancy Fraser (2003) e Wendy Brown (2015). . Os efeitos desta gramática da despossessão para a operação política do signo de direito à cidade simplificam-se em alternativas focadas na apropriação e redistribuição das infraestruturas de produção e reprodução social da materialidade urbana. Não seria insatisfatório se não acionasse o fetichismo do instrumental jurídico-normativo como solução à desigualdade das cidades brasileiras, em fronteirizações entre legal/ilegal, formal/informal, público/privado (Maricato, 2013) estruturadas por um pensamento possessório e de propriedade (Butler e Athanasiou, 2013BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013).

Ainda que David Harvey se inspire em Henri Lefebvre para sua significação de direito à cidade, as oclusões do paradigma distributivo de justiça das quais o primeiro não me parece conseguir se desvincilhar poderiam ter sido constatadas ao constelar-se mais amplamente a obra lefebvriana. Com uma produção intelectual majoritariamente centrada na experiência da vida cotidiana é possível abduzir do pensamento do segundo a proposição de que a formação socioespacial é a ossatura do processo de urbanização capitalista, no que as determinações de distribuição não poderiam prescindir da análise dialética da subjetividade e do político.

No feitio dessa argumentação Henri Lefebvre avança a sua própria versão de dialética indicando distintas figuras triádicas como momentos tríplices que se implicam um ao outro, ora em conflito ora em associação, em complexas redes de interações produzidas no tempo. Desta feita, sua teoria da produção do espaço desponta como processo triplamente determinado6 6 Não concebidas como categorias de análise empírica, mas como conceitos fluidos, uma primeira tríade encontra-se na série: ‘prática espacial’ (prática social material) - ‘representações do espaço’ (produção do conhecimento, linguagem e pensamento) - ‘espaços de representação’ (produção de significados). Outra série é acomodada em: ‘espaço percebido’ (apreendido pelos amplos sentidos de tato, olfato, visão...) - ‘espaço concebido’ (concepção em pensamento que possibilita as percepções) - ‘espaço vivido’ (espaço da experiência da vida cotidiana). Ver Lefebvre, 1991. , enredado numa proposição de totalidade social como dinamicamente constituída e constituinte do espaço, da sociedade e do humano. Contextualizado pela capacidade das relações capitalistas de se hegemonizarem tanto pela repetição como pela reestruturação das interações destes momentos, o urbano é acionado como processualidade que inclui relações significantes sem ser redutível a elas, ao contrário de uma forma universal, tipo de assentamento ou unidade delimitada. Definitivamente, essa não é uma contribuição insignificante.

Em Lefebvre (1991LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford, Cambridge: Basil Blackwell, 1991 ) o urbano pressupõe significativamente a experiência do espaço vivido, em que as percepções a partir do e os pensamentos sobre o espaço são investidos na materialidade concreta. Justamente, a experiência vivida do espaço pode ser considerada o nó teórico lefebvriano de inflexão na economia política, revelando-se uma intenção filosófica de sustentar a crítica realizada por Karl Marx de forma transversal à cotidianidade, expandindo a análise dos momentos do capital aos momentos da experiência da vida: esfera das relações de produção intrinsecamente interligada as da reprodução social, estendida ao problema da realização da subjetividade (Lefebvre, 1971LEFEBVRE, Henri. Everyday Life in the Modern World. Nova Iorque, Evanston, São Francisco, Londres: Harper & Row, 1971).

A investigação de Lefebvre do marxismo como uma crítica radical da vida cotidiana está certamente ancorada no exame das transformações do constituído do sensível do capitalismo no desenvolvimento do que denomina sociedade burocrática do consumo planejado da segunda metade do século XX (Lefebvre, 1971LEFEBVRE, Henri. Everyday Life in the Modern World. Nova Iorque, Evanston, São Francisco, Londres: Harper & Row, 1971). O argumento lefebvriano quanto ao dualismo abstrato que conjuga, fragmentando, a esfera da produção e a da reprodução social, mediado por representações simbólicas e codificadas7 7 Poderíamos dizer que são os momentos de ‘representação do espaço’ e/ou de ‘espaço concebido’ que possibilitam que essas as esferas de produção e reprodução se mantenham interdependentes ao mesmo tempo em que a transparência dessa coesão seja ocultada por mediação das representações simbólicas e codificadas. , pode ser lido associado à dinâmica paradoxal de reprivatização da vida8 8 Dinâmica em que a privatização da vida pública e política dá-se consoante a um retraimento à existência familiar nuclear e a redução da experiência de vida à individualidade, ao mesmo tempo em que ocorre uma publicização da vida privada consoante à colonização desta esfera pela mercantilização, saturada pelas mistificações da opinião pública oficial; “uma troca constante que mistura público e privado sem os unir e os separa sem discriminar entre elas” (Lefebvre, 2014: 549) que reconfigurou o cotidiano como privação e como domínio das aparências (Lefebvre, 2014LEFEBVRE, Henri. The Critique of Everyday Life: The One-Volume Edition (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2014)9 9 Na mesma obra supracitada: “o público, subordinado ao poder político e ao Estado, pode encontrar o indivíduo ‘privado’ em casa e tirá-lo de sua concha como um caracol comestível. Não é isso que [fazem] certos objetos, incluindo o aparelho de televisão e o computador?” (Lefebvre, 2014: 495-96) . De uma perspectiva sóciohistórica é essa transformação que concerne o significado da vida cotidiana como “o nível em que o neocapitalismo conseguiu se estabelecer (...) [ou seja] na substância social mantida pelas instâncias políticas” (Lefebvre, 1976LEFEBVRE, Henri. The Survival of Capitalism: reproduction of the relation of production. Nova Iorque: St. Martins Press, 1976: 58, tradução minha)10 10 Em outra oportunidade: “[as condições sociais] são reproduzidos no mercado no sentido mais amplo, na vida cotidiana, nas famílias, nas cidades; eles também são reproduzidos onde o excedente social global é realizado, distribuído e consumido, no funcionamento global da sociedade, na arte, cultura, ciência e também em outros lugares - até no exército” (Lefebvre, 1976: 115) , e não apenas na esfera da produção.

Nos entremeios de ampla sustentação crítica lefebvriana podemos intuir uma gramática da despossessão como expressão de uma vida reificada por sujeição às relações capitalistas, cujo fundamento social de homogenização e integração - todavia fragmentadora -, mostra-se viabilizado pelo cerceamento induzido no plano de realização da vida humana. Despossessão da vida humana por subjugação, então, às técnicas, práticas e lógicas disciplinadoras e de gestão da liberdade exercida por distintas instâncias de poder orientadas aos desígnios da acumulação de capital (Estado, lei, urbanismo, tecnologia, informação etc.). Ou seja, cotidianidade reificada no interior de uma sociedade em que as atividades são orientadas para a valorização do valor, pela generalização do valor de troca sob o valor de uso tanto na vida pública como privada, ontologicamente subjetivada no sujeito circunscrito pela individualidade extrema, reduzindo a importância do coletivo (Lefebvre, 2014LEFEBVRE, Henri. The Critique of Everyday Life: The One-Volume Edition (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2014); ou, numa gramática mais atual, do comum.

Não menos importante para o entendimento lefebvriano do urbano - e onde acredito residir sua maior potência teórica - é a materialidade do corpo humano como “totalidade prático-sensorial”, pois é por meio do uso do corpo que o espaço é percebido, concebido e produzido (Lefebvre, 1991LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford, Cambridge: Basil Blackwell, 1991 : 62). Antes mesmo de produzir espacialidades ou de (re)produzir a si mesmo,

[c]ada corpo vivo é espaço e tem seu espaço (…) com as energias à sua disposição, o corpo vivo, cria ou produz o seu próprio espaço (idem, p. 170) [e mais] [a] inteireza do espaço (social) procede do corpo (...) Dentro do próprio corpo, considerado espacialmente, os sucessivos níveis constituídos pelos sentidos (…) prefiguram as camadas do espaço social e suas interconexões. (ibidem, p. 405, tradução minha)

O problema da apropriação alienante tanto do corpo como do espaço vivido consubstanciam-se ao fetichismo inerente à constituição do ‘espaço abstrato’11 11 ‘Espaço abstrato é momento de outra série triádica que como produto da violência e da guerra é político e como constituído pelo Estado é institucional, em que cabe destacar o papel da lei, da técnica (ciência) e do urbanismo na sua conformação do capitalismo, que não sendo em si homogêneo - aliás inacabado e arena de ação e de significação -, se faz tendo a homogeneidade como meta através das operações de mimesis (Lefebvre, 1991LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford, Cambridge: Basil Blackwell, 1991 ). É no espaço abstrato que o próprio corpo é transformado em abstrato, fragmentado na medida da fragmentação homogenizante das dimensões da vida social confinadas em lugares especializados (trabalho, lazer, vida familiar etc.). Na perspectiva do espaço abstrato fragmentador do corpo a única forma de unidade social possível é a passividade, a não participação e a submissão (Lefebvre, 2016), pois alienado da sua capacidade de criação (poiesis) e da consciência de sua subjugação, logo, do sentido da obra do urbano, “[o] indivíduo moderno é ‘privado’ não apenas da realidade social e da verdade, mas do poder sobre si mesmo12 12 Afirmações quanto ao ‘poder sobre si mesmo’ levanta, contudo, certas questões problemáticas, que sustentarei mais a frente por meio de outras gramáticas da despossessão. ” (Lefebvre, 2014: 186, tradução minha).

Para ampliarmos significações do direito à cidade por meio desta valoração lefebvriana da despossessão centrada no leitmotiv da alienação da cotidianidade pelo capital - no espaço vivido da contradição entre o ‘uso’ e a ‘troca’, dominação da poiesis pela mimesis -, devemos compreendê-la à luz da negatividade do movimento dialético. Com Lefebvre (2016LEFEBVRE, Henri. Metaphilosophy (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2016) só se alcança a negação radical do capitalismo através da crítica radical da vida cotidiana: ao reconhecer a cotidianidade ameaçada pela homogenização fragmentadora das relações do capital é impossível não rejeitá-las e não querer mudá-las. É também neste movimento da negatividade que se as condições pelas quais as determinações do capital forçam uma totalização alienante quase completa sobre o que é real - constituindo-o enquanto real - produzem-se sempre resíduos insubmissíveis ao controle total da experiência vivida que vão de encontro aos impulsos miméticos, tornandose bases para uma disposição antissistema fundamental (Lefebvre, 1991LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford, Cambridge: Basil Blackwell, 1991 ; 2016)

Então, nas contradições inerentes à estrutura e estruturação do espaço abstrato - lacunas do ‘real’ produtoras de resíduos -, se vislumbrariam as virtualidades de uma sociedade justa e livre de dominação, constituídas no espaço diferencial do domínio criativo e generativo da vida cotidiana. É justamente através do corpo dotado de capacidade de poiesis, produtor das diferenças concretas que realizam as existências diferenciais não hegemônicas constituintes dos espaços diferenciais, que se encontra a possibilidade de emancipação do espaço abstrato. Pois bem, “qualquer projeto revolucionário (...) [deve] transformar a reapropriação do corpo, em associação com a reapropriação do espaço, em uma parte não negociável de sua agenda” (Lefebvre, 1991LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford, Cambridge: Basil Blackwell, 1991 : 166, tradução minha).

Através da poiesis que parte do residual pelo corpo, no espaço diferencial, que poderíamos nos deparar com o urbano aberto a possibilidades radicais de transformação - o possível-impossível da utopia, a "rebelião da poiesis contra a mimesis" (Lefebvre, 2016LEFEBVRE, Henri. Metaphilosophy (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2016: 166) -, permitindo-nos compreender o sentido de direito à cidade como uma noção que constela teoria estética, social e política. É também através da poiesis que podemos significar a revolução urbana necessária para a efetivação do direito à cidade como revolução cultural permanente por uma nova sociedade (Lefebvre, 1971LEFEBVRE, Henri. Everyday Life in the Modern World. Nova Iorque, Evanston, São Francisco, Londres: Harper & Row, 1971; 2008LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008). 6que, a meu ver, expressa a necessidade de responder politicamente à transformação radical das condições da experiência humana e ontologicamente à politização radical dos processos de subjetivação:

[h]oje, os direitos não podem mais ser apresentados como lista de princípios legais ou morais, mas como uma série de máximas práticas com capacidade de alterar a vida cotidiana. (...) E a implicação é que esse direito e projeto não são proclamados e exigido apenas pelo discurso: eles devem ser conquistados; eles são vencidos pela luta política (Lefebvre, 2014LEFEBVRE, Henri. The Critique of Everyday Life: The One-Volume Edition (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2014: 528, tradução e ênfase minha)

Ainda que até aqui eu esteja com Lefebvre, a minha questão com ele neste ponto é como a vida cotidiana pode redefinir-se para que, de fato, seja plausível pensar uma transição política da falsa totalidade do capital para o possível-impossível do direito à cidade.

Eu seria injusta com o autor se para levar adiante a crítica que teço, desdenhasse de sua rejeição à uma convergência dos sistemas de significados (seja filosófico, estatal, ideológico, moral), congruente à negação radical da totalidade do capitalismo pela totalidade das contestações a partir da cotidianidade (Lefebvre, 2016LEFEBVRE, Henri. Metaphilosophy (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2016: 164). Ainda assim, no limite do seu pensamento, alcança-se um argumento que se fecha na macro(ético)política, tendo como proposição final o domínio do valor de troca (portanto, do econômico) para a “realização da vida urbana como reino do uso” (Lefebvre, 2001LEFEBVRE, Henri. O Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001: 139). Se lido apenas através do livro homônimo, a noção de direito à cidade também restringe-se à representação categorial de classe sociológica apontando para um sujeito-corpo da revolução urbana hegemonizado pela classe operária, a ser maturada politicamente por um pensamento capaz de “unir [as lacunas do real], organizar suas revoluções e totalizá-las” (Lefebvre, 2016LEFEBVRE, Henri. Metaphilosophy (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2016: 301) - flerte perigosamente paternalista com dizer que por agentes (intelectuais) capazes de conduzi-la à (e por) esse pensamento.

Se a prevalência ao nível da produção de subjetividade e das formas de consciência reduz-se, em última instância, à alienação pela generalização do valor de troca, o refinamento metafilosófico lefebvriano condena-se à limitação do campo do político às determinações econômicas da história, privilegiando-as como a contradição pela qual um projeto abrangente de transformação social pode ser forjado. Certamente insuficiente quando se põe a necessária transfiguração do constituinte do sensível para a emergência de novas sensibilidades revolucionárias da sociedade urbana. Abordagem esta que ainda pressupõe um consenso substantivo sobre o valor de uso no espaço social se eliminadas as determinações reificadoras do capitalismo às custas de um debate ético-político sobre o uso, conjecturando um certo juízo de justiça pela via distributiva no devir da sociedade urbana - talvez aí esteja a influência lefebvriana em Harvey. E se houver na incessante produção dos resíduos, pois dialética, dissonâncias éticas, demandas antagônicas e conflitos irresolúveis sobre o uso do corpo e do espaço, mesmo que superadas as contradições de classe13 13 Pode ser que Lefebvre veja esses conflitos não apenas como solucionáveis por uma revolução hegemonizada pela classe trabalhadora, mas tão limitadas que não mereçam atenção. A meu ver, segue-se uma ilusão interpretativa, prevalecente até hoje nos marxismos hegemônicos na produção acadêmica crítica e progressista, que a emergência de uma ampla diversidade de movimentos que acionam distintas subjetividades (raça, gênero, sexualidade etc.) ocultariam a profunda contradição de classe entendida como o único conflito real constitutivo do capitalismo. Ilusão certamente sexista, cis-heteronormativa e própria da branquitude. ?

Onde Lefebvre articula o direito de se reapropriar do espaço que foi esvaziado da significação diferencial do uso pelo valor de troca, Doreen Massey (2009MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2009) narra um espaço super determinado de valores de uso pelas múltiplas trajetórias espaço-temporais que se co-constituem coetânea e simultaneamente em geometrias de poder: tanto no sentido material quanto social, toda apropriação é e será, em certo nível, excludente. Para a autora, o problema não está na apropriação conflitiva em si, intrínseca à nossa existência relacional, mas no fato de que as trajetórias são desiguais em poder para ditar e nomear os termos desta exclusão.

Se a incomensurabilidade de trajetórias ético-políticas torna implausível uma concordância sobre o uso justo e legítimo do espaço, precarizando a possibilidade de totalizar juízos de justiça, a espacialidade relacional de Doreen Masssey recoloca a questão de que para abrir o devir à justiça, o espaço deve ser experimentado politicamente como aberto aos confrontos éticos. São nas negociações intermináveis sobre o que constitui significantemente os lugares, “[n]o desafio de nossa inter-relacionalidade constitutiva e, assim, na nossa implicação coletiva nos resultados dessa inter-relacionalidade” (idem, p. 274), que poderemos experienciar formas mais justas de estar-junto no/pelo espaço, sempre parciais e instáveis. O direito à cidade pode ganhar outros contornos significativos se enveredando pela questão de como tornar a experiência do espaço vivido mais aberta às reivindicações ético-políticas plurais e conflitantes.

Para tatear esses contornos, a ampla argumentação de Lefebvre certamente fornece suporte de que é através da reestruturação ontológica do sensível que uma nova sociedade urbana se tornará possível, sendo o corpo o primeiro e mais imanente espaço de transformação. O que nos leva a escavar para além da obra lefebvriana a perspectiva da revolução permanente do direito à cidade como uma questão de sensibilidades revolucionárias e suas condições constitutivas tecidas em outras dobras da despossessão.

3. Afastando-se de Lefebvre (ou) como resgatar o direito à cidade do ‘direito à cidade’ por uma gramática da despossessão no corpo

Ao indicar que a “gênese de uma ordem distante pode ser explicada apenas com base na ordem que está mais próxima de nós - a saber, a ordem do corpo”, Lefebvre (1971LEFEBVRE, Henri. Everyday Life in the Modern World. Nova Iorque, Evanston, São Francisco, Londres: Harper & Row, 1971: 405) abriu um campo de inspiração para várias abordagens mais ecléticas da economia política, certamente para distintas perspectivas feministas nos estudos urbanos. Contudo, presumido a partir de uma biografia específica (e norte-centrada) do capitalismo este corpo é descorporalizado de importantes processos de diferenciação social, reduzindo violentas dinâmicas de colonialismo, sexismo, racismo, etnocentrismo, cis-heteronormatividade etc., como determinações secundárias de opressão ou como efeitos dos conflitos de classe14 14 É possível destacar na obra lefebvriana passagens de crítica ao falocentrismo da lógica formal abstrata, sobre o peso maior recaído nas mulheres pela alienação da vida cotidiana (Lefebvre, 2016), assim como (breves) notas sobre questões raciais e étnicas (Lefebvre, 2014). Mas apontar a complexidade não nos exime de analisá-la à luz de fundamentos teóricos que a (in)visibilizam. . Meada interseccional das relações de poder nos regimes do sensível (Crenshaw, 1994CRENSHAW, K W. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Em: FINEMAN, M.A; MYKITIU K.R. (org/s) The Public Nature of Private Violence. Nova York: Routledge, pp. 93-118, 1994), nó apenas (quase) visível pela análise sociológica mas indesatável no nível das práticas sociais (Kergoat, 2010KERGOAT, Daniele. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estudos - Cebrap, nº 86, pp. 93-103, 2010), não obstante, processos com genealogias próprias - em relações de relações contextuais e contingencialmente localizadas - que fundamentam diferencialmente a condição espaço-temporal de tornar-se despossuído (Butler, 2004BUTLER, Judith. Precarious life: the powers of mourning and violence. Londres: Verso, 2004). Tomar o corpo como pressuposto genérico - que sabemos há muito com as perspectivas feministas é o corpo ocidental, masculino, branco e cis-heterossexual tornado norma somática invisível do poder político e valor moral (Ziarek, 2001ZIAREK, Ewa Plonowska. Rethinking Dispossession: On Being in One’s Skin. Parallax, vol. 7, no. 2, p. 3 - 19, 2001) - acaba por expressar um caráter universal abstrato similar ao que criticamos no sujeito do direito do Estado moderno capitalista15 15 Uma das visões críticas marxistas que se destacam na análise do sujeito abstrato do direito é a obra de Evguiéni Pachukanis (2017) .

Para além da retórica, a proposta lefebvriana é levada às últimas consequências em matéria do trabalho da negatividade seja no corpo, no vivido, na dialética objetivasubjetiva das lacunas do real? Se assumirmos a perspectiva da revolução permanente do direito à cidade como uma questão de sensibilidades revolucionárias, esta questão nos incita a uma reflexão ontológica sobre os imaginários sociais como o que objetiva efetivamente certos modos de existência nos distintos regimes do sensível (Gatens e Lloyd, 1999GATENS, Moira; LLOYD, Genevieve. Collective Imaginings: Spinoza, past and present. Nova Iorque: Routledge, 1999; Rolnik, 2018ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018), tornando o terreno deste ensaio seguramente mais movediço; e, para alguns, mais ‘pós-moderno’.

Ainda que se torne problemático sugerir uma descontextualização do direito à cidade do corpus de pensamento de Lefebvre, tanto mais seria defendê-lo limitando-me a enxertar categoriais de análise (raça, gênero, sexualidade…) como se fossem peças faltantes de um quebra-cabeça, como se uma crítica interna pudesse corrigir ‘falhas’ estruturalmente atreladas ao arcabouço teórico que as produziu como ausências. Certamente, trata-se de um debate maior concernente à mediação do pensamento por meio das determinações de conteúdo e sua implicação na materialidade socioespacial , o que mereceria um tratamento mais aprofundado do que estou oferecendo.

Contudo, engajar-nos com a complexidade processual e consubstancial das determinações exige-nos reconstituir o pensamento da totalidade social a partir da instabilidade analítica de toda e qualquer categoria (ver Harding, 1993HARDING, Sandra. A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Feminista. Revista de Estudos Feministas, 1 (1), Rio de Janeiro CIEC/ECO/UFRJ, pp. 7-31, 1993), enfatizando a relacionalidade anacrônica da produção social e espaço-temporal. Distinto de dizer que não devamos operar a partir de categorias emergentes do vivido com o auxílio precário de mediações representativas pois, seguramente, as ficções sociais implícitas nas categorizações (de gênero, raça, sexualidade, étnica etc.) possuem eficácia normativa na regulação sócio-histórica das condições de existência (Gatens e Lloyd, 1999GATENS, Moira; LLOYD, Genevieve. Collective Imaginings: Spinoza, past and present. Nova Iorque: Routledge, 1999). Conquanto irredutível a uma lógica identitária nossa vida ainda depende destas imaginações para realizar-se, como veremos mais à frente. Mas trata-se de insistir que é por meio da crítica das representações que somos capazes de reconfigurar nosso campo de experiência, conjurando mais uma vez o trabalho do negativo da dialética pela inadequação reiterada entre os conceitos e os objetos da realidade16 16 Apropriando-me das palavras de Vladmir Safatle (2006: 17), “na tradição dialética, o conceito [ou as categorias] não é um operador constatativo por não se adequar ao que estava sempre lá pronto para ser desvelado [mas] um operador performativo no sentido daquilo que instaura um processo, no interior do campo da experiência da consciência, capaz de produzir modificações estruturais na apreensão do mundo”. .

Isto posto, outras gramáticas da despossessão ajudam a desviar-nos do que acredito serem fundações limitantes do disparador inicial do direito à cidade, por meio da compreensão do regime de determinações do sensível em sua dimensão fundamentalmente somática: corporeidades racializadas, generificadas e sexualizadas, em mo(vi)mentos não essencializáveis mas que se efetivam como corpos-na-história, melhor compreendidos como determinações situacionais de uma ontologia sem ser (ver Safatle, 2019SAFATLE, Vladmir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica, 2019).

Para tanto, a noção de totalidade é acionada como processualidade aberta também de forma retroativa, em que podemos assumir a ‘realidade’ como uma constante construção performativa (discursiva) sobre o passado e seus sentidos de reiteração no presente através da experiência da consciência que temos hoje17 17 Possibilidade do Espírito de “desfazer o acontecido” reabsorvendo o fato ocorrido em uma nova significação, como lembra Vladmir Safatle (2006; 2019) sobre a interpretação adorniana do movimento da negatividade em Hegel. . Sob a perspectiva benjaminiana (1985BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. Em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas, v. I). São Paulo: Brasiliense, pp. 222-232, 1985) trata-se de escovar a história à contrapelo, numa arqueologia dos traumas e ruínas silenciadas que, se mantidas invisíveis, se reproduzem no movimento de devir18 18 Gostaria de abrir um parêntese em nossa semântica “progressista” sugerindo que usarmos termos como ‘escravidão’ para referirmo-nos à precarização do trabalho contemporâneo é uma forma de invisibilizar as experiências traumáticas da violência do sequestro Atlântico negro, reiterando o trauma da escravidão real. . Uma experimentação aberta de direito à cidade pede este movimento retroativo para situarmos a alienação do econômico na contemporaneidade em geometrias de poder vinculadas à historicidade das diferenciações violentamente valorativas de raça, gênero, sexualidade etc. Ou seja, situarmos a base constitutiva do capitalismo como produzida e continuamente reproduzida na experiência vivida no/pelo corpo: acumulação por distribuição diferencial somática da despossessão.

Decerto, uma diversidade epistêmica considerável complexifica nosso entendimento das contradições tecidas nas tramas da vida social que fundamentaram a modernidade, assim como suas reinvenções contemporâneas: da estruturação segregacionista da produção socioespacial por uma lógica racial promovida pela abstraçãoconcreta do imaginário social hegemonizado pela branquitude colonizadora, à exposição desses processos como sendo desde o início gendrados e sexualizados pela divisão sexista do trabalho em esfera produtiva e reprodutiva (Fraser, 1990FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy. Social Text, 25/26, pp. 56-80, 1990; Wynter, 2003WYNTER, Sylvia. Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, After Man, Its Overrepresentation - An Argument. The New Centennial Review 3 (3), pp. 257-337, 2003; Oyewumi, 2003OYEWUMI, Oyèrónke. The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003; Browne, 2015BROWNE, Simone. Dark Matters: On the Surveillance of Blackness. Duke University Press, 2015; Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Ed. Elefante, 2017). Contradições que acionam representações regimentadoras da acumulação por despossessão e como esta será distintamente vivenciada; ‘direito’ à cidade diferencialmente e somaticamente distribuído. Mas é no exame da distribuição desigual da vulnerabilidade como condicionante de uma ontologia em situação que produz, regula e constrange a existência (Butler, 2004BUTLER, Judith. Precarious life: the powers of mourning and violence. Londres: Verso, 2004; Maldonado-Torres, 2016MALDONADO-TORRES, Nelson. Outline of Ten Theses on Coloniality and Decoloniality. Foundation Frantz Fanon, 2016), que a lógica da despossessão manifesta-se

interminavelmente mapeada em nossos corpos, em corpos espacialmente situados, através de matrizes normativas mas também através de práticas situadas de racialidade, gênero, sexualidade, intimidade, capacidade física, economia e cidadania... [produzindo] subjetividades despossuídas, tornando-as subumanas... [em que] a única condição espacial que podem ocupar... [é a] ocupação perene de não-ser e não ter... Condição politicamente induzida em que certas pessoas e grupos de pessoas se tornam diferencialmente expostos à injúria, violência, pobreza, endividamento e morte. (Butler e Athanasiou, 2013BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013: 18-19, tradução minha)

Paradoxalmente, para apreendermos as entranhas da distribuição diferencial somática da despossessão é preciso engrossar nosso caldo gramatical e considerarmos a condição despossessória como a própria instância de possibilidade de existência do sujeito e do corpo. É neste sentido que Judith Butler (2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015; 2017BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017) - numa torção filosóficapsicanalítica inspirada principalmente em Foucault, Freud e Lacan -, compreende a despossessão como o processo inaugural da subjetivação que, em simultaneidade paradoxal com o poder, constitui os processos ambivalentes e tênues da sujeição. O ‘si-mesmo’ (ou, o ‘eu’) é posto como uma relação social e pública, em que ‘ser’ se refere ao evento das múltiplas exposições às forças que organizam as matrizes sociais, políticas, econômicas e culturais pelas quais qualquer pessoa é submetida e inaugurada por termos que nunca escolheu (autonomamente) para si, e que nos constituem contra nossa vontade , ou melhor, antes mesmo de formarmos nossa vontade. Regulação (subordinação) e constituição (existência) não são, então, dimensões alheias e sugerem que os meios pelos quais as distinções raciais, de gênero e sexualidade são reguladas e disciplinadas também são as condições de possibilidade para o seu surgimento, ou seja, para serem experienciadas (reiteradas ou não) na cotidianidade (Butler, 2017BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017).

O que é importante retermos desta cena de subjetivação é que as formas possíveis de existência humana e a ‘lei’ estão inextricavelmente e historicamente entrelaçadas, fundantes da nossa inter-relacionalidade e da nossa implicação corpórea aos seus efeitos. Trata-se da economia libidinal e pulsional da vida social - a vida psíquica do poder - em que para emergirmos como seres reflexivos já estamos submetidos às normas de imaginários ético-políticos que nos antecedem (Gatens e Lloyd, 1999GATENS, Moira; LLOYD, Genevieve. Collective Imaginings: Spinoza, past and present. Nova Iorque: Routledge, 1999; Butler, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015). Neste sentido, somos fundamentalmente dependentes, objetiva e subjetivamente, dos poderes que sustentam ou nos privam de nossos direitos e do regime legal que os conferem.

Portanto, só podemos ser despossuídos porque já somos despossuídos pelos discursos e imaginários sócio-históricos que nos constituem. De antemão há certa violência que instaura nossa existência ao sermos interpelada/os e nomeada/os por discursos os quais não podemos controlar os termos, ao menos não na forma que nos inauguram enquanto sujeitos. É esta nossa alienação primária que nos faz viver todas e todos uma certa privação preemptiva sustentada em nossa situacionalidade no e pelo discurso, estruturador das formas de sociabilidade e da nossa condição constitutiva de precariedade (Butler, 2017BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017).

Contudo, quando Judith Butler (2004BUTLER, Judith. Precarious life: the powers of mourning and violence. Londres: Verso, 2004; 2009BUTLER, Judith. Frames of War: when is life grievable? New York: Verso, 2009; 2017BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017) afirma que toda vida é precária não está afirmando que todas as vidas estejam suscetíveis à mesma vulnerabilidade. Sob esta perspectiva, a precariedade refere-se igualmente aos processos pelos quais alguns corpos são tornados abjetos e/ou descartáveis por meio de enquadramentos de poder do regime de determinações do sensível. Enquadramentos prático-discursivos seletivos de violência que regulam o horizonte de inteligibilidade do vivido, implicando desde forclusões traumáticas na demarcação de afetos possíveis (ex. não-heterossexuais), nos modos de criminalização e estigmatização de certas vidas (ex. não-brancas), assim como apagamentos radicais de existências em que a própria esfera pública é constituída com base nessa exclusão (ex. indígena, corpos trans), criando múltiplas zonas de invisibilidade. Em nossa cotidianidade esse enquadramento ainda diz respeito à quais vidas serão preservadas e protegidas pela lei e pela polícia (Estado) e quais poderão ser matadas impunemente (se não especialmente pela lei e pela polícia), e enfim, de quais sujeitos no presente possuem condições de se apropriarem de seus corpos e, por extensão, do espaço, se voltarmos aos termos de Lefebvre.

O que será experienciada como uma vida vivível na cotidianidade, ou não, relaciona-se intrinsecamente com a diferenciação ontológica de ‘humanidade’ dos sujeitoscorpos pelos enquadramentos de poder e suas variadas técnicas institucionais e sociais de racismo, sexismo, etnocentrismo etc., principalmente pelo domínio da representação da alteridade (Butler, 2009BUTLER, Judith. Frames of War: when is life grievable? New York: Verso, 2009; Wynter, 2003WYNTER, Sylvia. Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, After Man, Its Overrepresentation - An Argument. The New Centennial Review 3 (3), pp. 257-337, 2003), portanto, ultrapassando a superposição do valor de troca na sociedade; materialização corpórea da dicotomia hierárquica ontológica da modernidade colonial, de acordo com Maria Lugones (2014LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem. 22 (3), pp. 935-952, 2014), que ainda configura a experiência da nossa consciência. Até poderíamos acionar a conceptualização de população excedente, exército industrial de reserva ou lumpemproletariado da formulação marxista para pensarmos a necropolítica (Mbembe, 2018MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo, sp: n-1 edições, 2018) - definitivamente mediada pelo Estado e pela lei -, como uma política de descartabilidade em favor da acumulação. Contudo, é preciso demarcar que ainda que estas determinações amparem substancialmente a acumulação por despossessão, suas distintas genealogias não são externas à nossa própria constituição intersubjetiva, nem isoláveis das relações de relações situacionais e geosituadas que engendram, excedendo os conflitos de classe na sociedade.

A relevância dessa gramática da despossessão é que para muito mais pessoas do que menos na contemporaneidade a questão não é apenas uma desalienação da vida reificada pelas relações capitalistas, mas alcançar uma vida não exposta à matabilidade cristalizada institucional e socialmente: da impunidade do feminicídio e assassinato da população lgbtq+, assentados na cultura machista e heterossexualista reiterada pela moral conservadora e política da ‘família tradicional brasileira’; nas formas de imigração e expulsão forçada dos povos e nações indígenas; na política estatal de morte e criminalização da juventude periférica e no encarceramento desumano em massa principalmente da população negra. Achile Mbembe (2017MBEMBE, Achile. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017: 65) é preciso na sua análise da matabilidade negra - mas que podemos expandir para todos os corpos produzidos como abjetos e descartáveis -, sem a qual não compreendemos a despossessão à brasileira sob as ruínas da colonização e escravização: “este tipo de morte nada tem de trágico e, por isso, o poder necropolítico pode multiplicá-lo infinitamente (...) segundo uma implacável lógica de separação, de estrangulamento e de vivissecção”.

Se esta formulação gramatical da despossessão parece se distanciar da materialidade urbana ao ser acionada pela saturação de poder na constituição dos sujeitos, em realidade só é visível por seus modos ontopológicos, no sentido derridiano, em que a valoração social ontológica de ‘ser’ vincula-se a um determinado topos, localidade ou território (Butler e Athanasiou, 2013BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013), notável na conformação atual dos territórios de exceção pelo quadro neoliberal de políticas urbanas à brasileira (Haesbaert, 2007HAESBAERT, Rogério. Sociedades biopolíticas de in-segurança e des-controle dos territórios. Niterói: VII Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia, 2007)19 19 O termo ‘território de exceção’ particulariza-se como recuperação do conceito de território enquanto elemento da política, partindo da transformação do papel do Estado nos processos de des-re-territorialização que dão expressão à diferentes territorialidades, cujas ‘Unidades de Polícia Pacificadora’ (UPP’s) no Rio de Janeiro é um exemplo concreto. . Nesta abdução da sensibilidade pela materialidade do espaço, significaria dizer que o poder de jurisdição territorial do espaço abstrato configura-se consubstancialmente ao poder de jurisdição bio-necro-político da vida. Ou seja, produção socioespacial condicionando e condicionada por parâmetros sociais pelos quais os sujeitos tornam-se (in)inteligíveis na esfera pública (Massey, 2009MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2009; Fraser, 1990FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy. Social Text, 25/26, pp. 56-80, 1990) e que respaldam a localização e distribuição de políticas públicas de salvaguarda ou precarização da vida, inter e intra-urbanas. Quando falamos de espaços formas (legais) e informais (ilegais) estamos falando de experiências de vida tomadas como legais e ilegais, numa distinção corpórea de direitos por marcadores de diferenças significadas no/pelo espaço em suas trajetórias geo-históricas; no que alguns sujeitos-corpos tornam-se instâncias de subjugação e vigilância mais do que outros, especialmente no espaço público. Para mais, este movimento de jurisdição de corpos através da jurisdição do espaço (e vice-e-versa), produz o campo de eventuais sujeitos políticos em suas possibilidades de enunciação de demandas na complexa institucionalidade do Estado.

Se a existência humana, pois, inaugura-se e é sustentada pelos enquadramentos de poder do regime do sensível - o que definitivamente inclui os aparelhos jurisdicionais do Estado -, somente quando esses são expostos a ponto de se romperem é que outras sensibilidades revolucionárias podem emergir no movimento de transformação permanente da sociedade. E se trata de rompermos com os termos prático-discursivos que definem de forma diferencial e somática o ‘humano’ no regime atual, certamente torna o devir do direito à cidade um processo profundamente ético-político capaz de reinscrever relações corpóreas e intersubjetivas de poder - uma certa encruzilhada produtiva de matrizes ‘pósestruturalistas’ com a economia política (ver Brown, 2015BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone books, 2015). E ruptura com os enquadramentos de poder que será, no sentido mais profundo, uma revolução de dissolução de nós mesmas/os em nossas identificações inter-relacionais que, sem dúvida, entrelaçadas ao movimento do capital na cotidianidade pressionam a subjetividade à conservação das formas racistas, sexistas e fóbicas de vida, como as conhecemos (Rolnik, 2018ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018). Para adentrarmos na potência dessa dissolução como abertura da responsabilidade ética para ressonâncias políticas entre lutas sociais distintas, para dentro e para além do direito à cidade, convido a leitora/leitor à um último esforço de descida ao corpo.

4. Para além de Lefebvre: o limiar da corporeidade como responsabilidade ética ao estranhamento do devir

Viemos até aqui tecendo contornos para um pensamento de direito à cidade que, mais do que sentidos de reapropriação do corpo e do espaço contra a alienação da vida pelo capital, como quer Lefebvre, virão a conjurar uma negociação sempre instável de nossa interrelacionalidade, como vemos em Doreen Massey. Então, o que poderia significar tomar o corpo como primeiro e mais imanente espaço de transformação para sensibilidades revolucionárias quando, nas dobras da distribuição diferencial somática da despossessão, determinações de conteúdo já são o que nos instauram como sujeitos sociais e políticos por meio de nossa precariedade constitutiva, para além da nossa vontade, agência e autonomia de consciência?

Ao afirmar a corporeidade através das relações intrinsecamente socais da consciência sua constituição certamente não dispensa sua materialidade. A argumentação de Frantz Fanon (1979FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008) e de Maria Lugones (2014LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem. 22 (3), pp. 935-952, 2014) são paradigmáticas para o debate da economia libidinal racializada dos corpos; em que na segunda vê-se articulada à economia de generificação dos corpos. Invisibilizadas as fantasias racistas da estruturação social consolidada pela imposição do imaginário da branquitude, a corporeidade negra já é sempre mediada pelo racismo, com um efeito desarticulador nesta subjetividade - uma fratura colonial, em Lugones, em que se abjeta o próprio corpo pela construção da negritude como fonte ameaçadora, em Fanon -, reproduzida em discursos contemporâneos que perpetuam as relações políticas de dominação racial. Quanto à produção normativa da sexualidade e do gênero, podemos somar a leitura de Judith Butler (1993BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex’. New York: Routledge, 1993), em que corporeidades masculinas e femininas não são disposições ‘naturais’ ou ‘biológicas’ mas ficções históricas efetivadas pela operação das forças da matriz binária heteronormativa, em que identificações com a corporeidade feminilizada e/ou não-cis-heterossexual são internalizadas como inferiores à masculina e cis-heterosssexual. Regime de diferença sexual por uma epistemologia política do corpo e gestão coletiva da energia reprodutiva, na voz de Paul Preciado (2019PRECIADO, Paul. Palestra na Journées 49 de l'ECF (Ecole de la Cause Freudienne) "Femmes en psychanalyse", realizada em 17.nov. 2019. (42m26s) Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vqNJbZR_QZ4&t=378s&fbclid=IwAR19qdtqtM4R2am dVK9vQkEd6SDvLmpT-i8dM10ed3YVMBZGdWB7PCqIT08> Acesso em: 10. dez. 2019
https://www.youtube.com/watch?v=vqNJbZR_...
). Essa efetivação, mais do que imposta pelos discursos que nos nomeiam de forma binária, é cultivada na perda preemptiva das variadas formas de afeto não-heterossexual (inclusive de afetos não sexuais) conformando consciências machistas e lgbtqfóbicas.

O que nos interessa deste debate é que essas formas de consciência não apenas se exteriorizam em afetos fóbicos e racistas, mas que nossas identificações raciais, de gênero e sexualidade já são manifestações de alienações primárias constitutivas pela identificação com ficções efetivas dos imaginários sociais. Se é nesta trama social complexa da despossessão no extremo da corporeidade que faz com que os sujeitos cheguem à cena do urbano em formas de vulnerabilidade diferenciada em termos de constituição também psíquica para adentrarem numa luta social, alcançar a autoestima do solipsismo narcisista falo-branco-colonial seria um caminho longo para a maioria de nós; ouso dizer, um caminho não desejável. De forma muito simplificada, seria dizer que subjetividades negras têm um esforço psíquico adicional de confrontar o próprio corpo abjetado para se ‘reapropriarem’ de seu corpo alienado pelas relações do capital20 20 Algo que os sujeitos-corpos brancos não precisam fazer, ao contrário, devemos escavar a fantasia racista que nos conforma e no que reproduzimos o racismo a nível inter-pessoal, pois se trata da nossa subjetividade produzida narcisticamente através da negritude abjetada. , assim como as corporeidades feminilizadas e não-binárias em relação à masculinidade e cis-heteronormatividade; sem adentrar nas fraturas das interseccionalidades destas determinações sociais. Mas se desejamos um outro caminho, devemos inevitavelmente contrapor-nos à compreensão da sensibilidade revolucionária centrada no paradigma do ego de autodomínio da consciência.

Pois, ainda assim, assumir uma ontologia (situacional) sem ser para refletirmos sobre a reestruturação ontológica do sensível no devir da sociedade urbana do direito à cidade, não deve nos restringir a pensar o corpo como mera superfície passiva de inscrição linguística das determinações. Nessa direção, Ewa Ziarek (2001ZIAREK, Ewa Plonowska. Rethinking Dispossession: On Being in One’s Skin. Parallax, vol. 7, no. 2, p. 3 - 19, 2001) aciona a noção de corporeidade como o locus extremo da despossessão a partir de Emannuel Levinas e Franz Fanon - um ‘estar na própria pele’ -, enfatizando a ambiguidade anacrônica do sujeito e da linguagem na corporificação do ‘si-mesmo’, inconciliável com o conceito biológico de corpo - como, de certa forma, ainda vemos em Lefebvre. Ao contrário, corporeidade entendida como o evento inaugural da cultura pois “o cultural é essencialmente o pensamento corporificado que se expressa" (Levinas, 199421 21 LEVINAS, Emmanuel. Outside the Subject, Stanford: Stanford UP, 1994, p.110 apudZiarek, 2001ZIAREK, Ewa Plonowska. Rethinking Dispossession: On Being in One’s Skin. Parallax, vol. 7, no. 2, p. 3 - 19, 2001: 5). Consequência radical da ambivalência da constituição linguística do corpo (sujeito inscrito pelo discurso) e da corporalização da linguagem (sujeito que reinscreve continuamente o discurso): paradoxo da reversibilidade entre constituído e constituinte que define a cena da subjetivação como sempre incompleta; e cena onde se encontra a possibilidade de retrabalhar as relações de poder. Dito de outra forma, cena da possibilidade da não-identidade do sujeito no trabalho do negativo na dialética do eu (Safatle, 2019).

Partir do pressuposto da nossa situacionalidade constitutiva no e pelo discurso não é o mesmo, então, que dizer que os processos de subjetivação pelas determinações controlem perfeita e unilateralmente a atualização dos sujeitos nos enquadramentos do poder. Esses poderes são ambivalentes e provisórios na cena da nossa inter-relacionalidade, pois quando falamos em corporalização da linguagem falamos que “o sujeito só permanece sujeito mediante a reiteração ou rearticulação de si mesmo como sujeito” (Butler, 2017BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017: 107), através de atos de repetição dos imaginários sociais que nos constituíram nos antecedendo, ou, por certa performatividade corpórea-discursiva mimética. Mas haveria nesta repetição de conformidade social (mimesis) uma errância virtual dos possíveis na necessária atualização constante como sujeitos dada que nossa despossessão, também constante, constitui simultaneamente a condição para a desconstituição dos sujeitos; o que torna qualquer imaginário social aberto à reelaboração por mais fixo e rígido que pareça no espaço-tempo. É nesta possibilidade de “erro” na repetição performativa - movimento dialético da negatividade no ‘eu’ -, que gostaria de abrir a questão sobre qual é o material a partir do qual a poiesis pode realmente trabalhar num direito à cidade aberto ao estranhamento do devir.

Teremos, então, que levar a produção dos resíduos lefebvrianos à outras consequências. A economia de afecção entre corpos que configura a própria consciência como a ‘ideia’ do corpo na filosofia spinoziana (Gatens e Lloyd, 1999GATENS, Moira; LLOYD, Genevieve. Collective Imaginings: Spinoza, past and present. Nova Iorque: Routledge, 1999), pode ser pensada em sua produção de traços inassimiláveis ao nível da consciência - opacidade lacaniana que nos constitui (Safatle, 2005SAFATLE, Vladimir. Uma clínica do sensível: a respeito da relação entre destituição subjetiva e primado do objeto. Interações, vol.10, n.19, pp. 123-150, 2005). Nossa afecção por outros corpos (humanos e não-humanos) produz resíduos que nos confrontam com a ‘ideia’ do nosso corpo, gerando uma desidentificação constante com o ‘si-mesmo’. Assim, a corporeidade como nossa disposição primordial de subjetivação revela o ‘ser’ como uma entidade inter-relacional, sempre já mediado contudo constantemente se des(re)fazendo de forma não-idêntica. São estes resíduos produzidos pelas afecções que nos despossuem de nós mesmos que oportunizariam a poiesis tanto na inversão dos significados dos termos sociais atuais como na inauguração de novas possibilidades significativas, para além da mimesis.

A problemática da poiesis torna-se, então, qual a derivação para a revolução urbana do direito à cidade quando partimos do pressuposto de que não há nem uma essência própria do humano nem consciência autônoma, mas uma processualidade despossessória que nos fala sobre como os corpos se materializam e se desmaterializam como corpos-na-história. É no insight psicanalítico de Frantz Fanon que contesta a libertação da alienação como o ideal da luta revolucionária que podemos insistir que o movimento da negatividade não é a transcendência da consciência (por si), porque encontra sua condição de possibilidade na corporeidade (em si): “Ó meu corpo, faça de mim sempre um homem que questiona!” (Fanon, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008: 232).

A ruptura com as determinações sociais na prática social torna-se, assim, um movimento de negação à uma zona de não-ser, zona em que as categorias sociais de sentido ainda não foram invocadas (Fanon, 1979FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979). Mas é nesta (im)possibilidade, ao sermos inaugurados e sustentados como sujeitos pelos termos de identificação que nos precedem que encontraríamos a experiência liminar que abre o espaço próprio da ética: estarei disposta a dissolver-me do que até então fundamenta a minha existência e a reestruturarme sem garantia de estabilidade predicativa,? Estarei pronta para romper com identificações imaginárias que me sustentam enquanto vida inteligível?

A imagem que gostaria de torcer dessa experiência ética de ruptura é o horizonte larvar do brejo de Guimarães Rosa pelo qual Vladmir Safatle (2019SAFATLE, Vladmir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica, 2019) envereda. Este brejo, assombrado pelo fantasma da decomposição que se distancia de uma segurança ontológica no movimento da consciência, aparece como o espaço no qual toda estrutura pode se desfazer, toda forma pode ser corroída em seu movimento de negação. Espaço de latência larval de “um comum sem gramática própria” (Safatle, 2019SAFATLE, Vladmir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica, 2019: 286). Através desta imagem, uma sensibilidade revolucionária só pode ser transmitida pelo desconforto da morte de mim mesma anunciada pela vinda do outro que assombra o nascimento do sujeito nãoidêntico, “pois estamos aqui mais próximos de uma ética do reconhecimento da dignidade do que nos faz nos desfazermos da imagem de nós mesmos” (Safatle, 2019SAFATLE, Vladmir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica, 2019: 168).

Não se trata, então, da imagem da festa lefebvriana mas de habitar o estranhamento da nossa condição desestabilizadora de corpos de poiesis. Afinal, nenhum/a de nós sabe quem seremos uma vez que os enquadramentos do sensível contra os quais lutamos sejam dissolvidos, pois é na luta por sua dissolução que estamos nos des-reconstituindo enquanto sujeitos - o que transforma a experiência da luta em si o espaço de nossa prefiguração. Em referência ao espaço das lutas sociais (ou, espaços diferenciais, retomando Lefebvre) como construção de sentidos prefigurativos de transformação das sensibilidades, o estado extremo de despossessão na corporeidade torna-se base para a responsabilidade ética, ao demarcar os limites da nossa autorrealização em virtude da nossa inter-relacionalidade constitutiva. O conceito de poiesis depende de como entendemos o ‘eu’ que a cria e na condição despossessória este ‘eu’ só poderá se referir à uma disposição responsiva em tornar-se um com o outro, um outro que eu não escolho estar-junto e um estar-junto que é um estar ’fora de si’ pertencendo aos outros (Butler e Athanasiou, 2013BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013).

O que impõe a tarefa de transformação das determinações injustas enredadas nas teias da acumulação por despossessão do presente para as sensibilidades revolucionárias não pode ser apenas o desejo de liberdade e desalienação das relações do capital mas, mais essencialmente, a responsabilidade ética de responder à precariedade da vida. É na fissura entre ser despossuído pela precariedade de outra vida e a resposta a ela que a travessia da ética à política se torna possível: “a responsabilização pelo sofrimento torna o revolucionário vulnerável à vertigem da responsabilidade, enquanto a obrigação pelo outro motiva o sujeito ético à ação revolucionária” (Ziarek, 2001ZIAREK, Ewa Plonowska. Rethinking Dispossession: On Being in One’s Skin. Parallax, vol. 7, no. 2, p. 3 - 19, 2001: 16).

Trata-se, no fim das contas, de um esforço coletivo de entendimento e transformação da circulação das afecções de nossos imaginários sociais, dissolvendo a nós mesmas/os, como ponto central da responsabilidade ética do direito à cidade. Neste sentido que as nossas distintas, mas constitutivas, experiências de despossessão poderão tornar-se condição para ressonâncias políticas sem a hegemonia de qualquer sujeito-corpo político. Ressonâncias entre corporeidades figuradas pelo desejo (im)possível de sujeito não-idêntico que possibilite a emergência do novo, do impensável, do que ainda está fora da existência discursiva da sociedade urbana.

5. Um primeiro-último-primeiro’ esforço para uma justiça dissensual como lugar de significação do direito à cidade

A tessitura de sensibilidades revolucionárias para alcançar um sentido de direito à cidade no limiar da corporeidade como responsabilidade ética ao estranhamento do devir produzido pela experiência de alteridade, certamente pode colocar minha defesa inicial da potência dos movimentos de conflitualidade ontológica da constituição dos sujeitos - feminista, lgbtq+ e negro -, em apuros. Os quais num primeiro olhar (para certos teóricos e acadêmicos certamente) estão organizados por demandas de ‘políticas identitárias’, o que jogaria por terra meu argumento a favor de corporeidades em ressonância política figuradas pelo desejo de sujeito não-idêntico. Sem falar na possibilidade de despolitização do debate sobre a despossessão e a precariedade como constitutivas de todas as formas de existência, capaz de legitimar a abdicação da responsabilidade jurídico-política pelas formas de privação contemporânea.

Contudo, sob as perspectivas com as quais vim dialogando, a centralidade dos conflitos ontológicos da experiência vivida permite-nos interpretar que estes ‘novos movimentos sociais’ tratam da exposição dos enquadramentos de poder, constituintes do regime do sensível. Encarnados no juízo de justiça por reconhecimento22 22 A justiça do reconhecimento encontra destaque na obra de Axel Honneth (2003) em que a justiça é tecida pela apreensão de padrões de representação que incidem em hierarquizações sociais e que exigiriam uma transformação cultural, moral e simbólica da sociedade. No entanto, quando traduzidas aos estudos do cotidiano, a literatura aponta para um divórcio à crítica da expropriação capitalista ou, por um enfoque em aspectos culturais de “um mundo amigo da diferença”, sendo a ‘diferença’ imprecisada enquanto categoria analítica (ver Brah, 2004). Sobre a falsa antítese entre distribuição e reconhecimento ver Nancy Faser (2003). performando demandas predicativas específicas, justo dizer, mas não redutíveis a este. Ainda que as demandas de reconhecimento sejam parcialmente absorvidas no horizonte assimilador da normatividade e de tolerância calculável de inteligibilidade da democracia liberal, no momento em que corporificam o que até então não era permitido ser dito ou vivido, os movimentos de ‘minorias’ tornam-se potências de desestabilização da ordem e da hierarquia política do presente ao abrirem os sentidos silenciados do passado23 23 Não deveria parecer à toa que sejam justamente os ‘direitos minoritários’ os primeiros a sofrerem retaliações e retrocedidos em consonância com o redimensionamento jurídico-político de precarização da vida, não apenas no contexto conservador neoliberal atual brasileiro. .

Mais do que um reconhecimento de ‘diferenças’ predicativas, trata-se do reconhecimento das diferenças de poder entre sujeitos-corpos sempre já socializados, pois constitutivamente relacionais. Estou a defender que a enunciação de qualquer demanda que rompa com o horizonte da normatividade nos movem em direção crítica ao evidenciarem a processualidade excludente das geometrias de poder que nos conformam. Há uma diferença abismal entre uma ‘política de identidade’ (ou diferença) que demanda um reconhecimento normativo legitimando o poder da lei de nomear e inaugurar os sujeitos, e uma identidade em política (Mignolo, 2008MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF - Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 287-324, 2008) que demanda o reconhecimento dos processos de distribuição diferencial da precariedade, da opressão e da subalternização que hierarquizam a humanidade, visando superá-los.

De forma pragmática, a performatividade dos direitos supostamente ‘identitários’ torna-se um momento ético-político duplo: primeiro, o uso de categorias de ‘identidade’ serve para (re)inscrever os corpos-na-história através da enunciação de opressões silenciadas, violências e negações de existência continuadas que, insisto, implica o movimento retrospectivo das determinações do sensível que conforma a nós e a materialidade de nosso presente histórico. É neste movimento, inclusive, que se possibilita que a categoria ‘identidade’ se visibilize em seu caráter de determinação situacional ao contrário de uma categoria ontológica fixa. Segundo, a performance dos direitos mobilizada por identificações possibilita a produção de uma estética de existência compartilhada entre sujeitos-corpos de modo que se tornam um efeito político desse mesmo exercício a partir da construção coletiva de sentido do lugar social de precariedade diferencial que ocupam, possibilitando negá-lo e superá-lo.

Nosso desafio, certamente, encontra-se na tensão entre reivindicar uma vida vivível enfrentando as teias da acumulação por despossessão sem que as categorizações que nos permitem apreender a distribuição diferencial da vulnerabilidade por determinações ontológicas situacionais sejam o objetivo final da política. Ou seja, performar as categorias de ‘identidade’ como significantes políticos contingentes, mantendo-as abertas a novas rearticulações e demonstrando as suas falhas representacionais e impossibilidades de totalização, tornando visível precisamente os processos de diferenciação que produzem as experiências de injustiça - seja em nossa produção teórica como na práxis. A questão é que qualquer demanda de contestação de situações de injustiça precisará ser enunciada utilizando os termos dos quais dispomos, até que estes sejam superados. Neste terreno paradoxal encontramos o movimento próprio da dialética justiça/injustiça; afinal, no momento em que algo é afirmado como normativamente justo cria-se uma fronteira para o que será considerado injusto.

A justiça não deve ser compreendida, então, como um conceito substantivo, mas o conceito para uma expectativa absolutamente imprevisível e incomensurável. É a sua nãoidentidade que é seu próprio movimento. E, no entanto, a necessidade de não se limitar ao predicado no enfrentamento das relações injustas de poder, exige precisamente comensurar o incomensurável (Nancy, 2002NANCY, Jean-Luc. Is everything political? (A brief remark). CR: The New Centennial Review, 2(3), 15-22, 2002). Seguindo Derrida (2010DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2010), o cálculo do incalculável é o que não abandona a (in)justiça à própria sorte, desautorizando nossa abstenção das lutas jurídico-políticas, ainda que sejam exercícios performativamente precários. A chance política de qualquer transformação social encontra sua possibilidade na desconstrutibilidade dos direitos e das leis fundada na inapropriabilidade da justiça. É a nãoidentidade da justiça que possibilita o movimento inconcluso do desejo do sujeito nãoidêntico, ambas (im)possíveis e necessárias para sensibilidades revolucionárias.

Encontramo-nos, assim, provocados a fundamentar demandas de justiça por apelo ao cálculo e ao enquadramento inteligível da lei (e do direito)i24 24 Particularmente verdadeiro nos casos em que não existem leis ou em que leis instituídas legitimam formas de violência. Casos extremos como a legalidade do estupro conjugal, a pena de morte para a homoafetividade, e por que não, os chamados “auto de resistência”? ao mesmo tempo em que devemos sustentar uma relação crítica com a mesma expondo nos seus próprios termos o que essa excluiu como constitutivo de sua coerência interna, para que a impossibilidade da justiça acione o desejo da não-identificação do sujeito. Decerto, depende da nossa capacidade de instrumentalizar a lei sem sermos reduzidas/os e totalizadas/os pelo seu poder regulador, cuja métrica, mais do que o direito a ter direitos arendtiano deveria ser: quem pode (hoje) significar as leis, os direitos e o Direito? Ou seja, sustentarmo-nos na tensão conflitiva de um direito a significar os direitos, em vista da nossa condição despossessória intrinsecamente constitutiva com a ‘lei’; trata-se de abrirmos a ‘lei’ às corporeidades isoladas da significação do sensível, que vivem cotidianamente a justiça “reapropriada pelo mais perverso dos cálculos” (Derrida, 2010DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2010: 55).

Quando os movimentos ditos ‘identitários’ se apropriam discursivamente do leitmotiv de direito à cidade, há aí um deslocamento patente do que se entende por política de identidade (ou diferença) para identidade em política através da conflitualidade ontológica de estar-junto no/pelo espaço. Por que, então, não pensarmos a enunciação do direito à cidade como lugar de produção e deslocamento múltiplo de sentidos de transformação dos limites das formas sociais, como força de ressonância política da multiplicidade de conteúdos da despossessão somática diferencial das experiências vividas?

As tramas da acumulação por distribuição diferencial somática da despossessão nos levou a “estarmos na própria pele” como a maneira mais extrema de despossessão, centralizada no paradoxo de que estamos radicalmente expostos à exterioridade e substancialmente abertos à transformação: nem epifenômenos de determinações exteriores e nem subjetividades transcendentais. É este paradoxo que leva Ewa Ziarek (2002ZIAREK, Ewa Płonowska. An Ethics of Dissensus: Postmodernity, Feminism, and the Politics of Radical Democracy. Stanford: Stanford University Press, 2002) a propor politicamente uma ética feminista do dissenso referente ao dilema aparentemente irreconciliável entre a estética da liberdade e a obrigação de responder eticamente ao (amplo) outro. É partindo desse neologismo de dissenso que localizo outro disparo de significação do direito à cidade.

Ao preocupar-me implicitamente neste ensaio com a travessia da ética à política, ou seja, da ética como uma esfera que condiciona a política, me aproprio do paradoxo do dissenso para uma ideia de justiça dissensual no direito à cidade. Meu argumento final nos limites dessas páginas é que é o movimento da negatividade na dialética justiça/injustiça que configura essa travessia, parcialmente visualizável apenas em nossas agências corporificadas e espacializadas.

Como movimento de uma processualidade aberta ao devir essa travessia será irredutível à uma síntese utópica, pois assumir a operação da negatividade dialética é admitir a instabilidade destituinte tanto quanto instituinte a cada sentido de justiça enunciado. Recusar uma política utópica (reino comum do ‘uso’ sem conflitos) ou de hegemonia subjetiva-objetiva (da classe operária) no confronto à falsa totalidade do capital nos coloca frente ao desafio das nossas práticas de resistência em enunciar sentidos dissonantes de direito à cidade ao mesmo tempo em que deslegitimando o enquadramento de qualquer um deles. E no movimento de (des)legitimação dos enquadramentos de justiça buscar a ressonância política da dissensualidade dos sentidos como forma de expandir nossas alianças político-afetivas para além das reivindicações de similitude representacional.

A ético-política do direito à cidade no sentido de uma justiça dissensual será, então, o processo agonístico da ressonância política de uma não-unidade, pois seguindo com Derrida (2010DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2010) é nesta experiência do indecidível da justiça, cuja premissa é jamais a redução normativa, que traz consigo, necessariamente, a exigência da tomada de uma decisão. Apenas onde há indecidibilidade há de fato necessidade de decisão, e, portanto, responsabilidade ética. Não será um imperativo da razão que estabelecerá formas mais justas de estar-junto, mas uma necessidade sentida de responsabilidade de responder ao sofrimento do ‘outro’, fazendo da justiça uma experiência de ampliação ‘fora de si’ do sujeito.

A significação da justiça dissensual como o possível-impossível do direito à cidade prefere a produtividade do dissenso à utopia, um deslocamento da imagem de festa lefebvriana para o estranhamento do devir como o brejo que é (e será) estar-junto com quem não escolhemos, nem poderemos escolher. Mais do que menos repleto de antagonismo e hostilidade, mas que nos constitui numa abertura radical à alteridade para o acolhimento da vinda do outro. Na experiência extrema da despossessão de ‘estar na própria pele’ como a possibilidade de romper com a própria pele através do desejo do sujeito não-idêntico como sensibilidade revolucionária do devir da sociedade urbana.

É a justiça como paixão pelo impossível, por algo jamais alcançável e que estará sempre por vir, que a promulga como um compromisso de contestação incessante. Ainda que ilusória, buscaremos o direito à cidade através de uma justiça dissensual de forma incremental nas margens, nos limites, buscando brechas e fraturas para outras possibilidades de vida, em nome da justiça onde ela ainda não está, “aí onde ela nunca será, não mais do que a lei, redutível ao direito” (Derrida, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994: 11). O direito à cidade será, então, uma especulação fabulativa, não menos materialista e situada de ficarmos com o problema, como diria Donna Haraway (2016HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Chthlucene. Durham: Duke University Press, 2016).

Referências bibliográficas

  • ADORNO, Theodor. Terminología filosófica. Madrid: Taurus, 1983
  • BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006
  • BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. Em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas, v. I). São Paulo: Brasiliense, pp. 222-232, 1985
  • BRAH, Avtar. Diferencia, diversidad y diferenciación Em: Otras inapropiables. Feminismos desde las fronteras. Madrid: Traficantes de sueños, pp. 107-136, 2004
  • BUTLER, Judith; ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013
  • BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex’. New York: Routledge, 1993
  • BUTLER, Judith. Precarious life: the powers of mourning and violence. Londres: Verso, 2004
  • BUTLER, Judith. Frames of War: when is life grievable? New York: Verso, 2009
  • BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015
  • BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017
  • BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone books, 2015
  • BROWNE, Simone. Dark Matters: On the Surveillance of Blackness. Duke University Press, 2015
  • CRENSHAW, K W. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Em: FINEMAN, M.A; MYKITIU K.R. (org/s) The Public Nature of Private Violence. Nova York: Routledge, pp. 93-118, 1994
  • DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994
  • DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2010
  • FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008
  • FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Ed. Elefante, 2017
  • FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy. Social Text, 25/26, pp. 56-80, 1990
  • FRASER, Nancy. Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation. Em: FRASER, N. e HONNETH, A. Redistribution or recognition: a politicalphilosophical exchange. Londres: Verso, pp. 7-109, 2003
  • GATENS, Moira; LLOYD, Genevieve. Collective Imaginings: Spinoza, past and present. Nova Iorque: Routledge, 1999
  • HAESBAERT, Rogério. Sociedades biopolíticas de in-segurança e des-controle dos territórios. Niterói: VII Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia, 2007
  • HARAWAY, Donna. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. 14, n. 3, p. 575 - 599, 1988
  • HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the Chthlucene. Durham: Duke University Press, 2016
  • HARDING, Sandra. A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Feminista. Revista de Estudos Feministas, 1 (1), Rio de Janeiro CIEC/ECO/UFRJ, pp. 7-31, 1993
  • HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2010
  • HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. SP: Ed. 34, 2003
  • KERGOAT, Daniele. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estudos - Cebrap, nº 86, pp. 93-103, 2010
  • LEFEBVRE, Henri. Everyday Life in the Modern World. Nova Iorque, Evanston, São Francisco, Londres: Harper & Row, 1971
  • LEFEBVRE, Henri. Lógica formal/lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975
  • LEFEBVRE, Henri. The Survival of Capitalism: reproduction of the relation of production. Nova Iorque: St. Martins Press, 1976
  • LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford, Cambridge: Basil Blackwell, 1991
  • LEFEBVRE, Henri. Introduction to Modernity: Twelve Preludes, September 1959- May 1961. Londres, Nova Iorque: Verso, 1995
  • LEFEBVRE, Henri. O Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001
  • LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008
  • LEFEBVRE, Henri. The Critique of Everyday Life: The One-Volume Edition (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2014
  • LEFEBVRE, Henri. Metaphilosophy (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2016
  • LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem. 22 (3), pp. 935-952, 2014
  • LUXEMBURG, Rosa. A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do Imperialismo. Especialmente a seção III. Rio de Janeiro: Zahar, 1970
  • MALDONADO-TORRES, Nelson. Outline of Ten Theses on Coloniality and Decoloniality. Foundation Frantz Fanon, 2016
  • MARX, Karl. Grundrisse. Penguin, pp. 459-516, 1973
  • MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2009
  • MBEMBE, Achile. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017
  • MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo, sp: n-1 edições, 2018
  • MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF - Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 287-324, 2008
  • NANCY, Jean-Luc. Is everything political? (A brief remark). CR: The New Centennial Review, 2(3), 15-22, 2002
  • OYEWUMI, Oyèrónke. The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003
  • PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017
  • PRECIADO, Paul. Palestra na Journées 49 de l'ECF (Ecole de la Cause Freudienne) "Femmes en psychanalyse", realizada em 17.nov. 2019. (42m26s) Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vqNJbZR_QZ4&t=378s&fbclid=IwAR19qdtqtM4R2am dVK9vQkEd6SDvLmpT-i8dM10ed3YVMBZGdWB7PCqIT08> Acesso em: 10. dez. 2019
    » https://www.youtube.com/watch?v=vqNJbZR_QZ4&t=378s&fbclid=IwAR19qdtqtM4R2am dVK9vQkEd6SDvLmpT-i8dM10ed3YVMBZGdWB7PCqIT08
  • ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018
  • SAFATLE, Vladimir. Uma clínica do sensível: a respeito da relação entre destituição subjetiva e primado do objeto. Interações, vol.10, n.19, pp. 123-150, 2005
  • SAFATLE, Vladmir. Curso Integral - Retornar à filosofia: Leituras da Dialética Negativa de Adorno, 2006
  • SAFATLE, Vladmir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica, 2019
  • WYNTER, Sylvia. Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, After Man, Its Overrepresentation - An Argument. The New Centennial Review 3 (3), pp. 257-337, 2003
  • ZIAREK, Ewa Plonowska. Rethinking Dispossession: On Being in One’s Skin. Parallax, vol. 7, no. 2, p. 3 - 19, 2001
  • ZIAREK, Ewa Płonowska. An Ethics of Dissensus: Postmodernity, Feminism, and the Politics of Radical Democracy. Stanford: Stanford University Press, 2002
  • 1
    Utilizo a noção de (im)possibilidade da justiça de Jean-Luc Nancy (2002NANCY, Jean-Luc. Is everything political? (A brief remark). CR: The New Centennial Review, 2(3), 15-22, 2002), apropriando-me criativamente do debate do autor sobre a incomensurabilidade da justiça como necessidade de não realização de uma essência e da política como local de articulação de uma não-unidade.
  • 2
    Ainda que o conceito de devir tenha ganhado corpo de referência na obra deleuziana, é um conceito hegeliano da dialética por excelência. De forma simplista, devir é o pensamento de um conteúdo indefinido, tomado momentos de presença (Ser) e ausência (Nada) na processualidade constante dos objetos/instâncias da experiência que sempre ultrapassam seus conceitos pelo movimento dialético.
  • 3
    Como nos lembra Vladmir Safatle (2006SAFATLE, Vladmir. Curso Integral - Retornar à filosofia: Leituras da Dialética Negativa de Adorno, 2006) não é por acaso que o método de pensamento dialético inaugura-se através de uma reflexão sobre a relação entre as palavras e as coisas, através do questionamento a respeito dos modos de funcionamento da linguagem em suas expectativas referenciais, que nos obriga sempre a rever conceitos ontológicos centrais, sempre frustrados pela sua não coincidência com seus objetos.
  • 4
    Karl Marx (1973MARX, Karl. Grundrisse. Penguin, pp. 459-516, 1973: 459-516) empregou o termo “acúmulo primitivo” para remeter a gênese histórica do capitalismo (europeu) por meio da violência e pilhagem do cercamento das terras comuns. O termo foi posteriormente solidificado entre os estudiosos marxistas tratando-se do cercamento de terras como um processo de proletarização e acumulação originária, necessário para estabelecer uma acumulação econômica “normal” em um modo de produção capitalista.
  • 5
    Para uma elaboração aprofundada por distintas perspectivas ver Axel Honneth (2009), Nancy Fraser (2003FRASER, Nancy. Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation. Em: FRASER, N. e HONNETH, A. Redistribution or recognition: a politicalphilosophical exchange. Londres: Verso, pp. 7-109, 2003) e Wendy Brown (2015BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone books, 2015).
  • 6
    Não concebidas como categorias de análise empírica, mas como conceitos fluidos, uma primeira tríade encontra-se na série: ‘prática espacial’ (prática social material) - ‘representações do espaço’ (produção do conhecimento, linguagem e pensamento) - ‘espaços de representação’ (produção de significados). Outra série é acomodada em: ‘espaço percebido’ (apreendido pelos amplos sentidos de tato, olfato, visão...) - ‘espaço concebido’ (concepção em pensamento que possibilita as percepções) - ‘espaço vivido’ (espaço da experiência da vida cotidiana). Ver Lefebvre, 1991LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford, Cambridge: Basil Blackwell, 1991 .
  • 7
    Poderíamos dizer que são os momentos de ‘representação do espaço’ e/ou de ‘espaço concebido’ que possibilitam que essas as esferas de produção e reprodução se mantenham interdependentes ao mesmo tempo em que a transparência dessa coesão seja ocultada por mediação das representações simbólicas e codificadas.
  • 8
    Dinâmica em que a privatização da vida pública e política dá-se consoante a um retraimento à existência familiar nuclear e a redução da experiência de vida à individualidade, ao mesmo tempo em que ocorre uma publicização da vida privada consoante à colonização desta esfera pela mercantilização, saturada pelas mistificações da opinião pública oficial; “uma troca constante que mistura público e privado sem os unir e os separa sem discriminar entre elas” (Lefebvre, 2014LEFEBVRE, Henri. The Critique of Everyday Life: The One-Volume Edition (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2014: 549)
  • 9
    Na mesma obra supracitada: “o público, subordinado ao poder político e ao Estado, pode encontrar o indivíduo ‘privado’ em casa e tirá-lo de sua concha como um caracol comestível. Não é isso que [fazem] certos objetos, incluindo o aparelho de televisão e o computador?” (Lefebvre, 2014LEFEBVRE, Henri. The Critique of Everyday Life: The One-Volume Edition (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2014: 495-96)
  • 10
    Em outra oportunidade: “[as condições sociais] são reproduzidos no mercado no sentido mais amplo, na vida cotidiana, nas famílias, nas cidades; eles também são reproduzidos onde o excedente social global é realizado, distribuído e consumido, no funcionamento global da sociedade, na arte, cultura, ciência e também em outros lugares - até no exército” (Lefebvre, 1976LEFEBVRE, Henri. The Survival of Capitalism: reproduction of the relation of production. Nova Iorque: St. Martins Press, 1976: 115)
  • 11
    ‘Espaço abstrato é momento de outra série triádica que como produto da violência e da guerra é político e como constituído pelo Estado é institucional, em que cabe destacar o papel da lei, da técnica (ciência) e do urbanismo na sua conformação
  • 12
    Afirmações quanto ao ‘poder sobre si mesmo’ levanta, contudo, certas questões problemáticas, que sustentarei mais a frente por meio de outras gramáticas da despossessão.
  • 13
    Pode ser que Lefebvre veja esses conflitos não apenas como solucionáveis por uma revolução hegemonizada pela classe trabalhadora, mas tão limitadas que não mereçam atenção. A meu ver, segue-se uma ilusão interpretativa, prevalecente até hoje nos marxismos hegemônicos na produção acadêmica crítica e progressista, que a emergência de uma ampla diversidade de movimentos que acionam distintas subjetividades (raça, gênero, sexualidade etc.) ocultariam a profunda contradição de classe entendida como o único conflito real constitutivo do capitalismo. Ilusão certamente sexista, cis-heteronormativa e própria da branquitude.
  • 14
    É possível destacar na obra lefebvriana passagens de crítica ao falocentrismo da lógica formal abstrata, sobre o peso maior recaído nas mulheres pela alienação da vida cotidiana (Lefebvre, 2016LEFEBVRE, Henri. Metaphilosophy (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2016), assim como (breves) notas sobre questões raciais e étnicas (Lefebvre, 2014LEFEBVRE, Henri. The Critique of Everyday Life: The One-Volume Edition (e-pub). Londres, Nova Iorque: Verso, 2014). Mas apontar a complexidade não nos exime de analisá-la à luz de fundamentos teóricos que a (in)visibilizam.
  • 15
    Uma das visões críticas marxistas que se destacam na análise do sujeito abstrato do direito é a obra de Evguiéni Pachukanis (2017)
  • 16
    Apropriando-me das palavras de Vladmir Safatle (2006SAFATLE, Vladmir. Curso Integral - Retornar à filosofia: Leituras da Dialética Negativa de Adorno, 2006: 17), “na tradição dialética, o conceito [ou as categorias] não é um operador constatativo por não se adequar ao que estava sempre lá pronto para ser desvelado [mas] um operador performativo no sentido daquilo que instaura um processo, no interior do campo da experiência da consciência, capaz de produzir modificações estruturais na apreensão do mundo”.
  • 17
    Possibilidade do Espírito de “desfazer o acontecido” reabsorvendo o fato ocorrido em uma nova significação, como lembra Vladmir Safatle (2006SAFATLE, Vladmir. Curso Integral - Retornar à filosofia: Leituras da Dialética Negativa de Adorno, 2006; 2019SAFATLE, Vladmir. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica, 2019) sobre a interpretação adorniana do movimento da negatividade em Hegel.
  • 18
    Gostaria de abrir um parêntese em nossa semântica “progressista” sugerindo que usarmos termos como ‘escravidão’ para referirmo-nos à precarização do trabalho contemporâneo é uma forma de invisibilizar as experiências traumáticas da violência do sequestro Atlântico negro, reiterando o trauma da escravidão real.
  • 19
    O termo ‘território de exceção’ particulariza-se como recuperação do conceito de território enquanto elemento da política, partindo da transformação do papel do Estado nos processos de des-re-territorialização que dão expressão à diferentes territorialidades, cujas ‘Unidades de Polícia Pacificadora’ (UPP’s) no Rio de Janeiro é um exemplo concreto.
  • 20
    Algo que os sujeitos-corpos brancos não precisam fazer, ao contrário, devemos escavar a fantasia racista que nos conforma e no que reproduzimos o racismo a nível inter-pessoal, pois se trata da nossa subjetividade produzida narcisticamente através da negritude abjetada.
  • 21
    LEVINAS, Emmanuel. Outside the Subject, Stanford: Stanford UP, 1994, p.110
  • 22
    A justiça do reconhecimento encontra destaque na obra de Axel Honneth (2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. SP: Ed. 34, 2003) em que a justiça é tecida pela apreensão de padrões de representação que incidem em hierarquizações sociais e que exigiriam uma transformação cultural, moral e simbólica da sociedade. No entanto, quando traduzidas aos estudos do cotidiano, a literatura aponta para um divórcio à crítica da expropriação capitalista ou, por um enfoque em aspectos culturais de “um mundo amigo da diferença”, sendo a ‘diferença’ imprecisada enquanto categoria analítica (ver Brah, 2004BRAH, Avtar. Diferencia, diversidad y diferenciación Em: Otras inapropiables. Feminismos desde las fronteras. Madrid: Traficantes de sueños, pp. 107-136, 2004). Sobre a falsa antítese entre distribuição e reconhecimento ver Nancy Faser (2003FRASER, Nancy. Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation. Em: FRASER, N. e HONNETH, A. Redistribution or recognition: a politicalphilosophical exchange. Londres: Verso, pp. 7-109, 2003).
  • 23
    Não deveria parecer à toa que sejam justamente os ‘direitos minoritários’ os primeiros a sofrerem retaliações e retrocedidos em consonância com o redimensionamento jurídico-político de precarização da vida, não apenas no contexto conservador neoliberal atual brasileiro.
  • 24
    Particularmente verdadeiro nos casos em que não existem leis ou em que leis instituídas legitimam formas de violência. Casos extremos como a legalidade do estupro conjugal, a pena de morte para a homoafetividade, e por que não, os chamados “auto de resistência”?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2020
  • Aceito
    07 Fev 2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com