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Zonas de Autarquia na Argumentação Jurídica do STF

Autarchy zones in Brazilian legal decisions

Resumo

Esta é uma investigação sobre as “mutações constitucionais” na argumentação jurídica desenvolvida no Supremo Tribunal Federal (STF), problematizando a transformação de sentido de algumas normas jurídicas como o princípio republicano no julgamento da QO-AP 937. A pesquisa discute a adoção metodológica das “figuras de perversão”, problematizando as vantagens e limites da tese das “zonas de autarquia ou arbitrariedade” na argumentação de José Rodrigo Rodriguez sobre o pensamento de Franz Neumann.

Palavras-chave:
Sociologia da decisão jurídica; Zonas de autarquia; Mutações constitucionais

Abstract

This is an investigation about the “constitutional changes” in the legal argumentation developed by the Brazilian Federal Supreme Court (STF), problematizing the transformation of the meaning of some legal rules such as the Republican Principle in the judgment of QO-AP 937. The research discusses the methodological adoption of "perversion figures", especially the thesis of "zones of autarchy or arbitrariness" in José Rodrigo Rodriguez's argument about Franz Neumann’s thinking.

Keywords:
Sociology of legal decision; Autarchy zones; Constitutional changes

Introdução

O presente texto é uma proposta de reflexão sobre as discussões em torno das possibilidades metodológicas de uma sociologia da decisão jurídica a partir da prática argumentativa brasileira. Como hipótese de discussão, é apresentada a necessidade de maior investigação argumentativa da mutação constitucional frente à possibilidade de utilização de argumentos vazios que criam uma aparência de racionalidade técnica na justificação de interesses políticos de conveniência.

Em primeiro lugar, será apresentada uma discussão preliminar sobre os desafios do tema da racionalidade decisória do direito, com um recorte para o debate Luhmann-Habermas-Popper. Neste caso, o objetivo é apresentar alguns limites desse tipo de investigação e registrar possibilidades de crítica da argumentação jurídica sem prejuízo de outras metodologias. Desse modo, é delineado o contorno da análise pretendida e seus limites nesse tipo de investigação.

Em seguida, será problematizada a proposta de adoção da figura das “zonas de autarquia” ou “zonas de arbitrariedade”, tal como apresentada por José Rodrigo Rodriguez, como forma de possibilitar uma crítica imanente da argumentação jurídica brasileira para denunciar pressões políticas que se revestiram de argumentação jurídica. Assim, a pesquisa pretende contribuir para as discussões sobre a possibilidade de uma dogmática jurídica crítica para os problemas brasileiros.

Por fim, a ferramenta metodológica das zonas de autarquia é aplicada ao problema específico do presente artigo: a argumentação no julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal 937. Nesta decisão, a mutação constitucional do princípio republicano foi utilizada pelo STF para ampliar a responsabilização de agentes políticos. Neste tópico, será examinada preferencialmente a argumentação disponível nesta decisão específica, mas também é problematizada a frequência desse tipo de argumento em outros processos identificados na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal.

Ao final, apresentamos nossas considerações finais sem qualquer pretensão de encerrar a discussão, mas, pelo contrário, com o objetivo de colaborar criticamente com os necessários debates em torno dos novos desafios do controle interpretativo do direito na teoria brasileira a partir de uma perspectiva empírica.

1. Desafios metodológicos para o enfrentamento da racionalidade jurídica em processos de tomada de decisão

Neste tópico, a pretensão da pesquisa é situar algumas das principais dificuldades epistemológicas para a racionalidade jurídica e suas possibilidades de aplicação em uma pesquisa científica. No entanto, é preciso certa cautela com o emprego da expressão “racionalismo” e com as eventuais críticas. É que muitas são as construções teóricas que tentaram ou tentam tratar/analisar a prática jurídica com critérios transparentes e racionais. No entanto, muitas formas “racionalistas” demonstraram práticas dogmatizantes e pouco realistas em face da realidade humana e social, conforme crítica oferecida por Michael Oaekshott (JACOBS; TREGENZA, 2014JACOBS, Struan; TREGENZA, Ian. Rationalism and tradition: The Popper-Oakeshott conversation. European Journal of Political Theory, v. 13, 2014, p. 4-5., p. 4-5).

Desse modo, não se pretende a retomada de um racionalismo moderno ou a adoção de um modelo completamente fechado e rígido de análises. De toda forma, o sistema jurídico é um sistema de tomada de decisões práticas com potencial impacto social. Nesse sentido, uma das principais formas contemporâneas de apresentar a discussão sobre racionalidade jurídica foi apresentada em forma de uma “razão crítica” (ALBERT, 2013ALBERT, Hans. O Direito à luz do Racionalismo Crítico. Trad. Günther Maluschke. Brasília: Universa; Editora da UnB, 2013., p. 89-90).

Em face do surgimento e proliferação de más teorias, equívocos e injustiças, a razão crítica aparece como elemento analítico que tenta possibilitar responsabilidade ou controle. No entanto, existem formas muito diferentes de compreender o racional ou irracional. À luz de um Racionalismo Crítico, tal como defendido por Karl Popper, não se pretende simplesmente construir discursivamente uma verdade de acordo com garantias procedimentais. Na verdade, as certezas sobre acertos jamais poderiam ser comprovadas de modo definitivo. Mas devemos continuar vigilantes para evitar aquilo que demonstra ser equivocado atualmente: um dever de rechaçar flagrantes injustiças.

Porém, há um alerta válido de Niklas Luhmann (1998LUHMANN, Niklas. Die Gesellschaft der Gesellschaft. suhrkamp taschenbuch Wissenschaft, 1998., p. 171-172) que merece atenção: na Europa, a racionalidade adotou uma forma específica que não admitia outras possibilidades de pensamento (Denkmöglichkeiten). Assim, uma racionalidade normativa encontra-se baseada em um entendimento normativo da natureza humana que persegue um telos (propósito) que pode ser alcançado (perfeição) ou pode fracassar (corrupção). Como uma forma de dois lados, é apresentado um valor positivo e um valor negativo (“steresis, privatio”) que indica um tipo de carência (Fehlen) ou fracasso (Scheitern).

No âmbito da filosofia do direito, a técnica de distinção dos tipos de racionalidade também foi utilizada em determinados contextos: apoiando-se na antiga diferença poiesis/praxis, é possível recorrer a uma racionalidade conforme os fins ou conforme os valores. Em sentido próximo, Habermas passou a utilizar “racionalidade do agir estratégico” e “racionalidade do agir comunicativo” (uma racionalidade monológica e outra dialógica), condicionando a teoria da sociedade a uma teoria da racionalidade (LUHMANN, 2006______. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Editorial Herder, 2006, p. 132-133).

Diante das incertezas sobre os critérios de racionalidade, soluções “pluralistas” são amplamente anunciadas. Isso porque o estabelecimento de critérios depende do observador que descreverá se uma determinada atitude é racional ou irracional.

Luhmann observa que já não é possível conceber a racionalidade como uma orientação das formas de vida a partir de um comando central nem como uma aproximação de uma ideia, cumprimento ou desvio. Isso também afeta o conceito de uma realidade imperfeita (corrupta), dissolvendo a distinção perfeição/corrupção (LUHMANN, 2006______. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Editorial Herder, 2006, p. 135).

Produzir um paralelismo ontológico do ser e do pensar, da natureza das coisas e do agir humano seria pouco aproveitável quando apenas pressupõe um nexo e, normativamente, se exige uma aproximação baseada nas características daquele que observa. Assim, uma racionalidade orientada para fins (Zweckrationalität) significaria pensar a racionalidade como meio para determinados propósitos. Quais fins? Seria possível também observar a racionalidade como elemento de legitimação ou fundamentação do agir, considerando sua dependência de operações que ela mesma não pode fundamentar (LUHMANN, 2006______. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Editorial Herder, 2006, p. 138).

Em outras palavras, na teoria dos sistemas, ao renunciar às hierarquizações e a um comando central do sistema jurídico, não faz sentido produzir uma pretensão de racionalidade unitária. Mas ainda resta a possibilidade de uma reflexão sobre a unidade da diferença sistema/entorno a partir de cada sistema parcial para si próprio (LUHMANN, 2006______. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Editorial Herder, 2006, p. 141). Não poderia haver uma racionalidade unívoca a respeito de todos os elementos da sociedade. Nesse sentido, a racionalidade da sociedade seria utopia. No caso da racionalidade sistêmica, é dispensável uma ideia de “razão”.

A respeito da “razão crítica”, Luhmann (2006______. La sociedad de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Editorial Herder, 2006, p. 142) também observa que o pretensioso adjetivo oculta uma deficiência que não se pode ignorar, não sendo possível chegar a um planejamento racional das mudanças. Não seria possível compreender a razão enquanto conjunto de critérios ou juízo de determinação, que permitiria verificar claramente se alguém deve ou não aceitar algo. A racionalidade teria sido uma “válvula de escape” para as esperanças humanas de uma harmonia com a realidade, mas suas condições permanecem presentes na comunicação ordinária, quando os sujeitos apelam para seu esclarecimento diante da necessidade de controle.

O alerta luhmanniano é extremamente valioso para que evitemos o risco de determinar a rejeição de determinado juízo em nome do “racional”. No entanto, no âmbito do Racionalismo Crítico de Karl Popper, as exclusões de determinadas hipóteses são realizadas a posteriori por meio de ampla argumentação. Essa rejeição das “más” alternativas precisa não apenas passar por um amplo escrutínio, mas também considerar seu aspecto conjectural e dinâmico. Afinal, novas evidências podem surgir e nossos juízos podem ser alterados no futuro (BIRK, 2017BIRK, Axel. Der kritische Rationalismus und die Rechtswissenschaft: Bernd Rüthers und Karl-Heinz Fezer: ein Ausgangspunkt, unterschiedliche Folgerungen. Rechsttheorie, Berlim, n. 48, 2017, p. 43-75., p. 44).

Dentre os diversos debates sobre razão e racionalidade, a discussão entre Niklas Luhmann e Jurgen Habermas apresenta contribuições que podem ser aqui refletidas. Ambos pretendiam escapar dos problemas de uma “filosofia da consciência”. Para Habermas (1997, p. 61), Luhmann caiu em grave nível de artificialismo ao adotar uma recíproca exclusão entre homem e sociedade, eliminando possibilidades normativas. A análise social cairia numa mera análise de regulações e “irritações” entre os sistemas de modo recursivo e operacionalmente fechado.

Luhmann, por sua vez, lançou uma crítica ao humanismo (alcançando Habermas) que enxerga o homem como elemento último ou essencial da sociedade, sustentando requisitos normativos da ordem social para serem realizados. Consequentemente, a sociedade passaria a ser o espaço para a concretização dos desejos humanos como se fossem elementos externos. Para superar o “individualismo metodológico” e as análises ingênuas da sociedade, Luhmann discute o processo comunicativo para uma descrição mais adequada da sociedade complexa. Critica-se a intersubjetividade habermasiana e abre-se espaço para a comunicação social.

Por sua vez, o Racionalismo Crítico escaparia dessas duas críticas, mas ainda estaria preso ao paradigma da filosofia da consciência. Apesar de ainda existir resquícios de um individualismo metodológico baseados na possibilidade de apreensão monológica do conhecimento, há uma mitigação de seus efeitos na medida em que proporciona uma crítica que envolve indivíduo, sistema objetivo de conhecimento público e outros agentes que formulam teorias adversárias (uma razão intersubjetiva que se preocupa em identificar e refutar erros e injustiças). A partir de um procedimento formal que possa incluir o pensamento divergente em uma arena de discussões, o racionalismo crítico relaciona-se com o reconhecimento social da legitimidade de um conjunto determinado de possibilidades discutidas de modo transparente (POPPER, 1989______. Em busca de um mundo melhor. 2. ed. Trad. Teresa Curvelo. Lisboa: Fragmentos, 1989., p. 88).

Embora distintas, o debate entre as perspectivas de Luhmann, Habermas e mesmo Popper pode contribuir para o reconhecimento das limitações metodológicas de cada abordagem.

Nesta pesquisa, no entanto, será utilizada parte do modelo de pesquisa sugerido por José Rodrigo Rodriguez. Este, bastante influenciado por Franz Neumann da Primeira Geração da Escola de Frankfurt, propõe uma construção conceitual de “perversão do direito” com o objetivo de propor um modelo de pesquisa empírica para além dos textos normativos. Nesse sentido, “a ideia de perversão do direito só funcionará adequadamente se for utilizada em análises detalhadas de um determinado processo decisório e de seus efeitos” (RODRIGUEZ, 2019______. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Editora LiberArs, 2019., p. 213). O funcionamento metodologicamente adequado da hipótese, porém, não é muito claro sobre seu ponto exato. Assim, necessário seu teste concreto para a observação de suas possíveis contribuições e de seus limites.

A premissa utilizada para análise de uma racionalidade do direito poderia ser descrita nos seguintes termos: “todo poder, estatal ou não, que pretenda legitimar suas ações com fundamento na ideia de estado de direito, precisa justificar racionalmente suas decisões mostrando que elas atendem igualmente aos desejos e necessidades de todos” (RODRIGUEZ, 2016______. As figuras da perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica empírica. Revista Prolegómenos, derechos y valores, v. 19, n. 37, p. 99-124, 2016., p. 100). Portanto, é uma questão de desconfiança democrática das ações políticas por meio de uma crítica imanente centrada nos propósitos e necessidades reconhecidas em uma determinada sociedade.

Dentre as figuras de perversão do direito, José Rodrigo Rodriguez (2019______. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Editora LiberArs, 2019., p. 231) apresenta a “zona de autarquia” como a situação em que um determinado poder declara algo como jurídico sem possibilidade de controle do ato pela sociedade ou por qualquer outro poder, criando a possibilidade de utilizar vazios de fundamentação sem controle de sua fundamentação.

Distante das abordagens de Luhmann ou de Popper, José Rodrigo Rodriguez (2019______. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Editora LiberArs, 2019., p. 262) apresenta sua metodologia a partir daquilo que ele compreende como pensamento crítico com base em um olhar da Escola de Frankfurt. Feitas as devidas ressalvas, a metodologia busca denunciar o “caráter arbitrário de diversas instituições que alegam falar em nome do direito”, revelando as artimanhas do poder e explicitando o uso interessado de supostas verdades para efetivar interesses políticos. A partir dessa perspectiva, são recusadas conclusões definitivas sobre os problemas jurídicos de uma determinada sociedade.

Mesmo quando se fala em “dogmática jurídica crítica” ou “teoria crítica do direito”, é preciso reconhecer que tais expressões genéricas não podem ser usadas sem a devida delimitação do sentido: crítica em relação a quê? No sentido da Escola de Frankfurt - e qual geração ou autor específico? No sentido do Racionalismo Crítico de Popper - mas ainda assim em qual dos sentidos dentre os diversos desenvolvimentos propostos por juristas contemporâneos? De todo modo, apesar da abrangência, é possível construir análises internas ou externas do direito com o objetivo de apontar criticamente suas deficiências ou possibilidades alternativas.

Em face do exposto, fica claro que existem diferentes possibilidades de discussão sobre a racionalidade da argumentação jurídica. Caso algum pesquisador ou pesquisadora deseje “unir” autores tão distintos, será preciso, pelo menos, adotar transparência e cautela no processo de “costura teórica”. Esse tipo de procedimento não é simples, pois diversos fatores de aproximação e distanciamento teórico podem estar relacionados. Apesar da limitação desse tipo de abordagem empírica das argumentações desenvolvidas na decisão jurídica, a discussão é bastante significativa para a visualização de problemas jurídicos que nem sempre estão explícitos na fundamentação jurídica. Nesse ponto de vista, torna-se justificável a premissa de uma necessária crítica permanente no acompanhamento das decisões tomadas pelos tribunais.

Realizadas as devidas considerações sobre as possibilidades e os limites da crítica da argumentação decisória do direito, é necessário aprofundar a análise sobre as possíveis vantagens metodológicas do emprego da figura crítica das “zonas de autarquia”, nos termos de José Rodrigo Rodriguez.

2. Zonas de autarquias na argumentação jurídica: ferramentas metodológicas e possibilidades de crítica da racionalidade jurídica

Presente em diferentes publicações científicas, a ferramenta metodológica das zonas de autarquia revela uma preocupação real com o acompanhamento dos processos de tomada de decisão e temas como déficit democrático e problemas de justificação racional das decisões. Dentre os exemplos encontrados em periódicos científicos, encontramos a aplicação dessa metodologia no estudo de decisões tomadas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sobre a reivindicação de estagiários contra a suspensão do pagamento da bolsa durante o recesso forense (SIQUEIRA; RODRIGUEZ, 2018SIQUEIRA, Carlos Eduardo Pereira; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Poder (do) Judiciário e “zonas de autarquia”: a força do direito no mandado de segurança coletivo dos estagiários do TJRS sobre o “recesso forense”. Revista Jurídica Cesumar, p. 429-457, v. 18, n. 2, 2018., p. 434-439). Também é notável a menção da zona de autarquia na criação de obstáculos para a participação pública de expressões religiosas de matriz africana (BUENO; RODRIGUEZ, 2020BUENO, Winnie de Campos; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Legalidade discriminatória e direito à alimentação sagrada. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, 2020, p. 1597-1623., p. 1616-1617). Apesar de tais aplicações, o desenvolvimento desta ferramenta metodológica ainda encontra-se em fase inicial. Logo, é oportuna a reflexão sobre sua aplicação e seus possíveis impactos no campo científico do direito.

A partir das reflexões de Franz Neumann sobre Estado democrático e autoritário (1964), José Rodrigo Rodriguez sustenta que a principal característica da separação de poderes seria a possibilidade de controle das decisões de um poder por outro poder distinto. Acrescenta, porém, que o poder público não poderia atuar de forma arbitrária para justificar uma determinada visão do direito. Diante desse problema, explica que a utilização do conceito de “zona de autarquia” serve “para identificar fenômenos de perversão do Direito que consistem na formação de espaços decisórios arbitrários no interior de um órgão ou a criação de todo um regime jurídico autônomo, que toma decisões de forma estritamente unilateral” (RODRIGUEZ, 2019______. Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: Editora LiberArs, 2019., p. 245-246).

Em outras palavras, o problema visualizado pelo autor é a construção de uma aparência de legalidade para decisões que são arbitrariamente construídas a partir de um desejo pessoal do intérprete. Desse problema decorre a necessidade de um acompanhamento crítico dos processos decisórios do sistema jurídico.

A premissa básica do modelo de pesquisa empregado por José Rodrigo Rodriguez é a ideia de que “os poderosos tentam perverter o direito”, utilizando o direito para conferir uma “aparência jurídica” a espaços de puro arbítrio. Essa preocupação, bastante legítima segundo os pressupostos de uma democracia aberta, está baseada também nos riscos de atos políticos sem o devido controle da sociedade civil, em função apenas dos interesses dos agentes políticos. Para analisar esse problema o autor utiliza três figuras distintas: fuga do direito, falsa legalidade e zona de autarquia (RODRIGUEZ, 2016______. As figuras da perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica empírica. Revista Prolegómenos, derechos y valores, v. 19, n. 37, p. 99-124, 2016., p. 103).

No caso da “fuga do direito”, o autor identifica o objetivo político de desarmar a ligação entre demandas sociais e instituições formais. Em outras palavras, a observação analítica busca “denunciar processos de reprivatização do direito e de neutralização do poder da sociedade em favor dos interesses de entes altamente poderosos que atuam na esfera internacional” (RODRIGUEZ, 2016______. As figuras da perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica empírica. Revista Prolegómenos, derechos y valores, v. 19, n. 37, p. 99-124, 2016., p. 103-104). Esse instrumento de análise de pesquisas empíricas possui aplicabilidade para diversas discussões como a deferência das instituições jurídicas às decisões de atores privados e aos elementos extrajurídicos de ordem econômica e política.

Por outro lado, também é apresentada uma segunda figura de análise: falsa legalidade. Nesse caso, a produção de normas aparentemente universais que são efetivamente postas a serviço de interesses parciais para atingir apenas a determinados grupos sociais e não outros. Dentre os exemplos, o autor aponta a perseguição a funcionários públicos por meio de inquéritos administrativos. Inclusive, Klaus Günther utilizou o conceito neumanniano de falsa legalidade para analisar a legislação antiterror na Europa. Portanto, uma das tarefas da pesquisa empírica é identificar casos de falsa legalidade para manter a legitimidade das promessas da democracia encarnadas na racionalidade do estado de direito (RODRIGUEZ, 2016______. As figuras da perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica empírica. Revista Prolegómenos, derechos y valores, v. 19, n. 37, p. 99-124, 2016., p. 104-105).

Por fim, chegando ao ponto central para este artigo, é desenvolvida a figura analítica das “zonas de autarquia” ou “zonas de arbitrariedade”: espaço institucional em que as decisões são tomadas sem um padrão identificável de racionalidade. Em outros termos, são tomadas de decisão presentes em um espaço vazio de justificação adequada. Nessa situação, os argumentos possuem a aparência de direito, mas não permitem o controle da argumentação pela sociedade na prática, pois não possibilitam a reconstrução organizada do raciocínio que serve de fundamento para a decisão ou para as decisões tomadas (RODRIGUEZ, 2016______. As figuras da perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica empírica. Revista Prolegómenos, derechos y valores, v. 19, n. 37, p. 99-124, 2016., p. 106-107).

A ideia de “discurso racional” é elemento presente no pensamento de diferentes autores críticos. Para José Rodriguez (2013RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013., p. 172-173), é possível falar em discurso racional quando diferentes atores levantam pretensões de validade com a capacidade de defendê-las sem cair em contradições nem em uma tentativa de desqualificar ou impedir o outro que demanda por nossas razões. Embora recorrente e com capacidade para obtenção de resultados, a formulação do autor não é capaz de desvencilhar-se do “paradigma da razão suficiente”, podendo ser desafiado a partir de um “racionalismo crítico” tal como proposto por Hans Albert (1976______. Tratado da razão crítica. Trad. Idalina da Silva, Erika Gudde e Maria Monteiro. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1976., p. 47), por exemplo.

Em publicação mais recente, Patrícia Costa e José Rodriguez (2020COSTA, Patrícia S. P.; RODRIGUEZ, José Rodrigo. O papel das forças extraparlamentares no processo de criação do direito: o juiz, o ativismo e a democracia. Cadernos de Dereito Actual, v. 13, 2020, p. 349-371., p. 366) sustentam que o ativismo judicial compreendido enquanto atuação personalista pode ser equivalente à zona de autarquia, uma vez que seria uma atuação a ser combatida por meio do estabelecimento ou padronização de critérios ou modelos de racionalidade judicial para orientar a atividade judicial. Assim, também com o devido aperfeiçoamento de instrumentos de democratização para que a sociedade possa exercer o controle e participar da atividade interpretativa.

Uma das formas mais comuns de zona autárquica pode ser verificada no uso indevido de “argumentos de autoridade” que poderia criar obstáculos em uma discussão racional, gerando momentos de arbitrariedade. Embora não haja uma relação automática, é apontado que o desenvolvimento de elementos de democratização pode gerar uma menor probabilidade da ocorrência de zonas de autarquia (COSTA; RODRIGUEZ, 2020COSTA, Patrícia S. P.; RODRIGUEZ, José Rodrigo. O papel das forças extraparlamentares no processo de criação do direito: o juiz, o ativismo e a democracia. Cadernos de Dereito Actual, v. 13, 2020, p. 349-371., p. 369).

No entanto, a relação entre novos institutos processuais de “democratização” e a diminuição de zonas de arbitrariedade não parece possuir nenhuma fundamentação científica. Primeiro, em razão das limitações de toda e qualquer análise de caso concreto que não permitiria confirmar uma hipótese geral desse tipo. Segundo, nenhuma das pesquisas realizadas até o momento parece ter chegado a esse tipo de conclusão. Terceiro, o sentido da autarquia parece estar muito mais próximo do sentido de “sociedades fechadas” de Karl Popper do que uma mera abertura formal da “esfera pública”.

Esse é um ponto que merece melhores análises: o sentido do democrático. Assim como o adjetivo “crítico”, carrega muitos sentidos e pode ser manipulado por diferentes atores para (também) atingir objetivos estratégicos em diferentes searas. Em nome da democracia e dos direitos humanos, paradoxalmente, muitas decisões arbitrárias tentariam buscar legitimidade. Daí, talvez, a proposta de uma crítica imanente como crítica a partir dos discursos postos pela sociedade: exigência das promessas e dos compromissos estabelecidos.

Embora a tradição da Escola de Frankfurt esteja em caminho diferente do Racionalismo Crítico, a formulação das sociedades abertas de Karl Popper (1998POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tomo 1. 3. ed. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998., p. 15) pode ser útil para um breve raciocínio: ao aplicar sua metodologia científica à filosofia política, conseguiu explorar possibilidades de uma sociedade que torne livres as faculdades críticas humanas a partir de atitudes práticas dos indivíduos. A partir de suas premissas metodológicas, é possível sugerir que a democratização do direito não pode ser entendida apenas como ampliação estrutural do número de atores ou de sua pluralização/diversificação. Afinal, “dar a palavra para alguém” é diferente de ouvir e dialogar com o outro. A escuta efetiva passa por um problema de adequado escrutínio metodológico da interpretação do direito que ainda está influenciada pelo paradigma da fundamentação suficiente - em contraposição ao defendido por Hans Albert.

Desse modo, a responsabilidade democrática como pressuposto para uma teoria da interpretação jurídica enfrenta outros problemas relacionados com os objetivos de uma sociedade aberta, tais como: a) efetiva consideração das teorias e hipóteses alternativas; b) efetiva discussão entre as diferentes opiniões apresentadas publicamente, inclusive com a revalorização da interpretação extrajudicial; c) busca conjunta dos problemas empíricos que podem receber soluções diferentes no futuro a partir de um olhar para os resultados; d) compreensão do caráter conjectural do conhecimento humano e necessidade de otimização das mudanças de entendimento jurídico em face das transformações sociais (KRELL; ALVES, 2018KRELL, Andreas Joachim; ALVES, Pedro de Oliveira. Responsabilidade democrática como pressuposto de uma teoria da interpretação: discussão em torno da ADI 4983/CE, Revista Estudos Institucionais, v. 4, n. 2, 2018, p. 684-688., p. 692-696).

Diante de todas essas questões, a adoção da ferramenta metodológica das zonas de autarquia pode sim contribuir como hipótese de descoberta para discussões relevantes na ciência jurídica na medida em que pode oferecer alguma pista de problema prático a ser acompanhado pela sociedade e, talvez, corrigido no futuro. Não se trata, a princípio, de uma figura construída para o contexto de fundamentação de decisões ou sobre como elas devem ser tomadas. Embora exista uma relação com um olhar normativo para a democracia plural e multinormativo, a figura das zonas de autarquia oferece uma possibilidade de análise de argumentações postas que potencialmente podem ser exigidas com base nas promessas institucionais do órgão decisório, seja ele estatal ou não. Assim, cada argumentação apresentada é potencialmente seu próprio objeto de crítica em um dado sistema normativo.

Poder-se-ia suscitar ainda que a figura das zonas de autarquia não oferece suficientemente todas as possibilidades de crítica em um nível hermenêutico para além daquilo que está visível nos textos. E que talvez não seja capaz de revelar todas as formas de arbitrariedade. De fato, a crítica faz sentido porque decisões justificadas de forma lógica, bem estruturada e “racionalmente reconstruível” não são necessariamente democráticas e podem encobrir intenções autoritárias. Porém, nunca foi propósito das zonas de autarquia servir como única figura metodológica possível para a denúncia e o controle das perversões do direito.

Como dito anteriormente, essa é apenas uma das figuras desenvolvidas por José Rodrigo (em conjunto com a falsa legalidade e a fuga do direito). Além disso, o autor oferece alguns caminhos possíveis para reflexões e análises empíricas de decisões reais tomadas no direito brasileiro sem a pretensão de exaurir outras possibilidades. Por fim, trabalhar com o “não dito” é não apenas um desafio da pesquisa científica, mas também sua pretensão científica pode ser um ponto controverso entre diferentes teorias. Embora específica, a crítica imanente do processo argumentativo abre mais uma possibilidade de análises institucionais dos órgãos decisórios e seu respectivo processo argumentativo.

Compreendido o âmbito de aplicação das zonas de autarquia enquanto instrumentos metodológicos de avaliação do processo argumentativo, a aplicação ao caso concreto torna-se necessária para a verificação dos resultados que podem ser obtidos. Feito isso, será possível tecer considerações em torno das vantagens de sua aplicação a problemas brasileiros concretos e a respeito de possíveis contribuições.

Dentre as possíveis ferramentas de análise para evitar o abuso de poder político, foi discutida a aplicação das zonas de autarquia na argumentação jurídica como forma de avaliação da racionalidade decisória nos processos jurídicos. Agora, para discutir as caracterizações concretas de mutações constitucionais na prática do STF, será analisado o comportamento argumentativo dos ministros, com ênfase na Questão de Ordem da Ação Penal 937/RJ.

3. Aplicação ao caso concreto: a argumentação jurídica da mutação constitucional na questão de ordem da Ação Penal 937/RJ

Neste artigo específico, os desafios são justamente as possibilidades de avaliação da fundamentação apresentada pelo STF em torno da mutação do princípio republicano com o objetivo de ampliar a responsabilização de agentes políticos. Para ir além do texto constitucional, e muitas vezes desconsiderando seu teor literal, os ministros passaram a utilizar uma suposta mutação fática ou de percepções sobre o direito. Tais argumentações são reconstruíveis racionalmente pela crítica ou são formas manipuláveis para a justificação de tomada de decisão?

Em breve consulta ao portal de jurisprudência do STF, é possível encontrar pelo menos quatro processos distintos com a presença da argumentação de mudança na percepção do princípio jurídico republicano para promover maior responsabilização de agentes políticos. Nesta pesquisa, a principal ênfase será em torno da Questão de Ordem na Ação Penal 937/RJ, sem prejuízo de outras decisões relacionadas com semelhante uso do argumento.

A seleção desse caso específico se deve principalmente ao fato de ter existido uma divergência significativa: o alerta apresentado no voto do Min. Ricardo Lewandowski sobre o “delicado momento de redefinição de rumos por que passa o Brasil”. Em seu voto, o referido juiz deixa claro que esse tipo de mutação constitucional aplicada em uma questão de ordem nas ações penais pode acarretar um amplo movimento de instrumentalização de garantias que podem colocar em risco a execução dos mandatos pelos representantes eleitos. Percebe-se, logo, que, em determinados contextos, a configuração de mutação constitucional também precisaria atender ao momento processual de discussão e também os possíveis efeitos de uma alteração jurisprudencial.

O destaque da análise realizada é justamente a utilização de uma suposta mutação constitucional que teria ampliado a responsabilização de agentes públicos com base em novo entendimento sobre o conteúdo do princípio republicano, além da alteração da jurisprudência eleitoral em face do princípio republicano (caso do “prefeito itinerante”). Aqui, também seriam bem-vindas as análises externas à dogmática jurídica para a compreensão do momento político e dos fatores sociais envolvidos no momento de cada alteração jurisprudencial brusca.

A questão realmente chama atenção porque a configuração de modificações fáticas ou de percepção jurídica nem sempre aparecem de forma clara. Elementos argumentativos como “mutação constitucional” ou “percepção social” do princípio republicano dificilmente conseguem ser reconstruídos racionalmente sem suscitar disputas políticas e ideológicas baseadas nos resultados e nas consequências da decisão concreta. Ao utilizar esse tipo de argumentação em ações penais, corre-se o risco de que decisões sejam tomadas de modo arbitrário e não autorizado pelo ordenamento jurídico.

Para não fugir do escopo deste artigo, será discutida tão somente a reconstrução racional da caracterização das mutações constitucionais e a possibilidade de zonas de autarquia na argumentação do Supremo Tribunal Federal.

Nesse sentido, a legitimidade dos juízes constitucionais passa a ser questionada na medida em que há certo distanciamento da literalidade dos textos constitucionais e distanciamento dos próprios precedentes do STF. Com a modificação dos seus entendimentos baseados em uma nova “percepção social do direito” nem sempre clara no texto constitucional, a figura das “zonas de autarquia” aparece como possível instrumento para permitir esse tipo de abertura de discussão em torno de problemas reais.

Sobre a mutação constitucional em si, é simbólico o voto do Min. Gilmar Mendes no julgamento da Questão de Ordem suscitada na ADI 2675/PE: questões já decididas pelo STF podem ser reconsideradas pelos ministros a qualquer tempo:

Nossos conhecimentos sobre o processo de mutação constitucional exigem, igualmente, que se admita nova aferição da constitucionalidade da lei no caso de mudança da concepção constitucional. Em síntese, declarada a constitucionalidade de uma lei, ter-se-á de concluir pela inadmissibilidade de que o Tribunal se ocupe, uma vez mais, da aferição de sua legitimidade, salvo no caso de significativa mudança nas circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes. [...] De um ponto de vista estritamente material também é de se excluir uma autovinculação do Supremo Tribunal Federal aos fundamentos determinantes de uma decisão anterior, pois isso poderia significar uma renúncia ao próprio desenvolvimento da Constituição, afazer imanente aos órgãos de jurisdição constitucional. [...] que o Tribunal não se limite a mudar uma orientação eventualmente fixada, mas que o faça com base em crítica fundada do entendimento anterior que explicite e justifique a mudança. (ADI 2675, p. 43-45, grifos nossos)

Confirmada a possibilidade de o próprio STF rever seus entendimentos diante de uma “nova percepção do direito”, o tema foi apresentado de forma semelhante nas decisões que trataram de uma atualização do princípio republicano. Duas dimensões do “princípio republicano” foram expressamente desenvolvidas: a responsabilização dos agentes públicos e o impedimento de “perpetuação de uma mesma pessoa ou grupo político no poder”.

Em nome do princípio republicano, e considerando também a continuidade da função administrativa, houve debate significativo em torno de uma nova interpretação do art. 14, §5º no julgamento do RE 637485/RJ. Em seu voto-relatório, o Min. Gilmar Mendes (RE 637485, p. 24-41) demonstrou significativa preocupação com o tema da mudança jurisprudencial e segurança jurídica, esclarecendo o dever do Tribunal de ponderar as consequências e realizar o devido ajuste dos resultados. Em suas palavras, “talvez um dos temas mais ricos da teoria do direito e da moderna teoria constitucional seja aquele relativo à evolução jurisprudencial e, especialmente, à possível mutação constitucional”. Após ampla análise do pensamento de Peter Häberle sobre as mudanças interpretativas e do resgate de casos famosos nos Estados Unidos e na Alemanha em torno de alterações radicais na interpretação jurídica, conclui:

Todas essas considerações estão a evidenciar que as mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica. Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, deve adotar tais cautelas por ocasião das chamadas “viragens jurisprudenciais” na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. (RE 637485, p. 36, grifos nossos)

A mutação do princípio republicano também aparece em quatro julgamentos de 2017 e 2018 (ADI 5540, ADI 4764, ADI 4362 e AP-QO 937/RJ), quando os Ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux sustentaram uma interpretação evolutiva para discutir questões como a desnecessidade de aval da Assembleia Legislativa para afastar governadores e a questão da interpretação da restrição de foro por prerrogativa de função. Também mencionaram expressamente o tema das mutações constitucionais os Ministros Edson Fachin (ADI 4764 e AP-QO 937/RJ), Rosa Weber (ADI 4764 e AP-QO 937/RJ), Carmem Lúcia (ADI 4362 e AP-QO 937/RJ), Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski (AP-QO 937/RJ).

Dentre esses julgados, o momento que mais chama a atenção é a Questão de Ordem na Ação Penal 937, objeto principal deste artigo. A razão é que a argumentação baseada em mutação constitucional aparece em nove votos distintos e não houve unanimidade sobre a caracterização de uma mutação constitucional sobre a matéria. Discutia-se a interpretação restritiva do art. 102, I, b, da Constituição Federal, modificando o entendimento que existia até então sobre “foro privilegiado”. Durante a discussão da Questão de Ordem para permitir a manifestação do Plenário, o Min. Relator Luís Roberto Barroso explicou:

[...] eu identificaria como uma mutação constitucional em sentido técnico, que é quando uma corte constitucional muda um entendimento consolidado, não porque o anterior fosse propriamente errado, mas porque a realidade fática mudou, ou porque a percepção social do Direito mudou, ou porque as consequências práticas de uma orientação jurisprudencial revelaram-se negativas. (AP-QO 937, p. 12, grifos nossos)

No entanto, na mesma Ação Penal, é possível encontrar argumentações diferentes como a oferecida pelo Min. Alexandre de Moraes (AP-QO 937, p. 71): mutação como alteração significativa na maneira de aplicação histórica do foro privilegiado com graves reflexos na instrumentalização do regime de garantias, imunidades e prerrogativas dos agentes públicos.

Com ampla menção aos manuais de Gilmar Mendes e Ingo Sarlet, o Min. Luiz Fux sustenta a possibilidade de desconsiderar a literalidade do texto constitucional nos seguintes termos:

Trata-se, ademais, de instituto que já possui importante histórico de aplicação por este Supremo Tribunal Federal, dentre cujos precedentes se destaca, inclusive pela relevância social da mudança de paradigma, a ADI 4277, a partir da qual se compreendeu que a proteção consagrada ao instituto da união estável poderia ser estendida ao âmbito das uniões homoafetivas. Trata-se de alteração de sentido interpretativo que não apenas foi adotada sem qualquer alteração expressa do texto constitucional, como também, em verdade, o foi em relativa desconsideração à literalidade do enunciado formal, considerando que, a princípio, o §3º do art. 226 estabelecia (e ainda estabelece) que a proteção estatal só seria conferida às relações havidas entre homem e mulher. (AP-QO 937, p. 202-205, grifos nossos)

Neste caso, fica clara a percepção do Min. Luiz Fux de que a mutação constitucional poderia acarretar, em determinados casos, uma superação das opções do constituinte expressas na literalidade dos enunciados normativos. Esse ponto é bastante problemático na medida em que não fica claro até que ponto poderia haver uma “desconsideração” do texto constitucional. Ademais, a alegada “percepção social do direito”, como argumentada pelo Min. Barroso, poderia ser utilizada como mecanismo de relativização da função contramajoritária dos tribunais constitucionais em determinados casos.

Interessante notar a crítica apresentada pelo Min. Ricardo Lewandowski sobre o tratamento da discussão sobre mutação constitucional em Questão de Ordem:

Não se afigura lícito empregar uma questão de ordem - cujo escopo, por definição, possui uma abrangência limitadíssima - para viabilizar discussões acerca do meritum causae ou de matérias doutrinárias complexas como, no caso em apreço, concernentes ao controvertido fenômeno da mutação constitucional. [...] O fundamento de que teria ocorrido uma suposta mutação constitucional provocada por alegada “disfuncionalidade do sistema decorrente do sobe e desce processual”, identificada em pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, concessa venia, não se afigura nem razoável e nem mesmo desejável nesse delicado momento de redefinição de rumos por que passa o Brasil. (AP-QO 937, p. 321, grifos nossos)

Com posição semelhante, o Min. Gilmar Mendes atacou a argumentação que tentava caracterizar mutação constitucional no caso:

Uma nova e restritiva interpretação não se justificaria como uma nova interpretação. Apenas como uma mutação constitucional, amparada em “uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma”, ou ainda na “força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade”, seria possível reconhecer uma mudança da regra. [...] Com a devida vênia, no caso, não temos uma mutação constitucional, mas uma nova e inconstitucional interpretação da Constituição. Dessa forma, tenho que a interpretação proposta conflita com a norma constitucional e deve ser rechaçada. (AP-QO 937, p. 377, grifos nossos).

Resta claro que o eventual desprestígio do texto constitucional em nome de uma nova compreensão do direito é encarado de forma bastante controversa entre os ministros. De um lado, a instrumentalização de garantias e prerrogativas desejadas pelo constituinte para promover um suposto “espírito público” com maior responsabilização de agentes públicos. Por outro lado, a garantia dos cidadãos de verem seus representantes eleitos imunes a uma potencial perseguição política em determinados casos (relacionando-se ao tema da “criminalização da política”).

Quais mudanças fáticas ou alterações na compreensão do princípio republicano ocorreram para promover a caracterização de mutação constitucional para a interpretação da responsabilidade de agentes políticos ou até mesmo para impedir a eleição de agentes públicos que governaram cidades distintas?

Apontar para a existência de pesquisas empíricas que revelam uma “disfuncionalidade” do sistema brasileiro pode ser uma saída razoável se admitida qualquer decisão fundamentada. Afinal, houve o esforço para a avaliação dos efeitos sociais da intepretação jurídica. No entanto, ao menos numa ótica de uma razão crítica, não basta a mera menção de uma suposta autoridade científica. Um dado estatístico não torna uma questão jurídica indiscutível. Pode revelar-se como elemento significativo que deve ser considerado, mas outras questões de justiça e legalidade devem ser avaliadas no processo decisório.

Aqui, surge uma questão interessante: como reconstruir algo que não chegou a ser construído? Na análise dos diferentes votos, há fortes elementos que reforçam o pathos do discurso na medida em que parecem dialogar com um público fictício ou real que exige maior responsabilização de agentes públicos. De fato, muitos episódios da política brasileira contemporânea poderiam sugerir uma desilusão do povo brasileiro com os políticos: escândalos de corrupção e improbidade administrativa, processos de impeachment contra dois Presidentes da República e Governadores, manifestações populares sem precedentes, dentre tantas outras. Porém, ao mesmo tempo, os direitos políticos são direitos fundamentais que, enquanto tal, não podem ser restringidos de qualquer modo.

Podem ser utilizados princípios jurídicos amplos como a moralidade e o princípio republicano para a adoção de uma interpretação ampla das restrições de direitos políticos e garantias constitucionais expressas? Adotar um princípio jurídico como elemento de fechamento operacional da tomada de decisão é, de fato, adequado no ordenamento brasileiro? Para Marcelo Neves (2013NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules. Princípio e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p. 128-135), por exemplo, alerta para o perigo do abuso de princípios constitucionais quando estes são manipulados retoricamente para encobrir bloqueios da “autoconsistência constitucional da respectiva ordem jurídica”. Nessa ótica, os princípios constitucionais seriam como mecanismos reflexivos que se encontram “vinculados ao momento de abertura cognitiva do direito” em relação aos valores-referência selecionados pela ordem constitucional, porém sem superioridade em relação às regras constitucionais (NEVES, 2013NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules. Princípio e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p. 191).

Diante de tais controvérsias, problemática a justificação de mutações constitucionais que promovem restrições não previstas a direitos políticos a partir de uma mera mudança na concepção de princípios constitucionais em determinados momentos políticos - o que poderia sugerir também um juízo de conveniência e oportunidade pela Jurisdição Constitucional.

Sem dúvidas, há uma ampla possibilidade de análise da preocupação dos juízes diante da necessária atualização da compreensão jurídica dos fundamentos constitucionais baseada em suas próprias argumentações e promessas. Desde já, sugere-se que não poderia ser esgotada a análise do direito apenas em mera análise de fundamentação das decisões judiciais. No entanto, a análise de racionalidade das construções jurídicas utilizadas em sua fundamentação pode ser bastante útil para a reflexão sobre problemas institucionais e aspectos empíricos que podem bloquear ou mitigar o espírito democrático e republicano em uma determinada sociedade.

Por fim, no próximo tópico, é realizada uma avaliação da concretização dos objetivos da pesquisa à luz da premissa sobre a necessidade de reflexão crítica contínua da dogmática jurídica e dos processos de tomada de decisão no sistema jurídico.

4. Um modelo crítico para o exame das mutações constitucionais: a necessidade de reflexão contínua sobre a dogmática jurídica

Nos tópicos anteriores, foi possível analisar o caso específico das mutações constitucionais enquanto argumento decisório para modificar o conteúdo do princípio republicano e a possibilidade metodológica de examinar a questão com base nas zonas de autarquia. Agora, tomando as conclusões preliminares a respeito da significativa contribuição de uma sociologia da decisão jurídica, são apresentadas reflexões em torno de outra dogmática jurídica possível.

O que tem sido chamado de dogmática nada mais é do que uma tradição jurídica específica que pode ganhar características distintas em cada sociedade. No lugar de estudo ou análise de “dogmas”, falamos em compreensão dos argumentos iniciais disponíveis no sistema jurídico. Significa dizer que nenhum jurista interpretará o direito de forma aleatória porque, antes dele, outras pessoas já discutiram questões pertinentes no passado (ainda que não necessariamente sobre o mesmo tema).

Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2015FERRAZ JÚNIOR, Tércio S. Função social da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015., p. 96) é um dos autores que apresenta a dogmática jurídica como instrumento necessário para estabilização das incertezas, orientando a aplicação do direito a partir de determinados critérios. No entanto, cada sociedade enxerga com suas próprias lentes o papel das instituições e as funções dos sistemas de justiça.

Nesse sentido, é discutível se a palavra alemã Rechstdogmatik poderia ser traduzida fora da Alemanha sem considerar o contexto histórico da expressão para os alemães, por exemplo. Sem unanimidade sobre o conteúdo da expressão jurídica, poderia a dogmática jurídica ser caracterizada como sistematização de conhecimento jurídico que visa orientar o momento de aplicação do direito. Porém, parte da literatura nega a dogmática em outras culturas ou aponta uma dogmática com elementos muito distintos nos demais países (YUANSHI BU, 2016YUANSHI BU. Rechtsdogmatik: vom Transfer des deutschen Rechts zum Transfer des deutschen Konzepts der Rechtswissenschaft. JuristenZeitung, v. 71, n. 8, p. 383-390, 2016., p. 383-385). Em outras palavras, a idealização de uma dogmática jurídica universal também tem muitos problemas e precisa ser considerada em seu contexto histórico e cultural.

Nas palavras de Yuanshi Bu (2016YUANSHI BU. Rechtsdogmatik: vom Transfer des deutschen Rechts zum Transfer des deutschen Konzepts der Rechtswissenschaft. JuristenZeitung, v. 71, n. 8, p. 383-390, 2016., p. 386), a dogmática jurídica é propagada como uma forma de abordar a prática jurídica na medida em que possibilitaria que a ciência jurídica conseguisse ir além da “torre de marfim” acadêmica (akademischen “Elfenbeinturm”). De fato, há um sentido muito específico para a dogmática alemã que atua como importante elo entre prática decisória, respeito à autoridade legislativa e sistematização científica. É resultado de um cenário de muitas disputas metodológicas e peculiaridades históricas.

Inexiste, porém, uma receita pronta e universal para as tarefas dogmáticas no conhecimento jurídico. Como admite Yuanshi Bu (2016YUANSHI BU. Rechtsdogmatik: vom Transfer des deutschen Rechts zum Transfer des deutschen Konzepts der Rechtswissenschaft. JuristenZeitung, v. 71, n. 8, p. 383-390, 2016., p. 383-390), o debate sobre recepção da dogmática jurídica não precisa ser uma análise realizada apenas pelos “países receptores”, mas também abre uma perspectiva de reflexão para a ciência jurídica alemã sobre os limites e desafios de sua dogmática em face da realidade. Em outras palavras, oferece a possibilidade de um diálogo horizontal e de uma autocrítica a partir de elementos vivenciados em outras situações.

No Brasil, a principal repercussão literária desse debate no direito constitucional costuma girar em torno da dogmática alemã dos direitos fundamentais, proporcionalidade e ponderação. Em artigo recente, Ralf Poscher (2020POSCHER, Ralf. Resuscitation of a Phantom? On Robert Alexy’s Latest Attempt to Save His Concept of Principle. Ratio Juris, v. 33, n. 22020, p. 137-138., p. 137-138) aponta que aplicar a teoria dos princípios (desenvolvida por Robert Alexy) no Brasil pode ser bastante perigoso: manipulam princípios constitucionais para decidir com base em “seus próprios caprichos pessoais”. Para chegar a essa conclusão, Poscher cita a investigação de Fausto Morais (2018MORAIS, Fausto Santos de. Ponderação e arbitrariedade: a inadequada recepção de Alexy pelo STF. Salvador: Juspodium, 2018.). Embora a formulação original da teoria não pretenda colaborar com decisionismos, Poscher argumenta que a teoria dos princípios favorece a arbitrariedade dos julgadores. No entanto, o autor não explora os fatores concretos envolvidos na recepção brasileira do tema.

Muitas vezes, termos, conceitos e institutos dogmáticos podem ser transportados sem a devida compreensão de seus objetivos. Também negativa é a situação em que elementos são trazidos para a argumentação jurídica brasileira como se fossem unânimes na literatura e na prática jurisdicional de seus países de origem. Essa má compreensão das ferramentas dogmáticas estrangeiras pode também revelar-se como possível germe para zonas de autarquia. A razão é simples: um mesmo fenômeno não compreendido igualmente por dois sujeitos abre espaço para leituras apressadas e equivocadas.

Neste momento, não há nenhum problema na utilização de teorias e argumentos produzidos em outras culturas, desde que feitas as devidas ressalvas. Embora o contexto social não seja elemento determinante para o bloqueio do debate crítico sobre as vantagens ou desvantagens de um método (POPPER, 1999______. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Trad. Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 1999.), é preciso haver uma mediação crítica do intérprete. Mais importante seria a verificação das seguintes questões: a) a qualidade dos argumentos postos; b) as vantagens de sua aplicabilidade frente às teorias alternativas; c) a mediação crítica dos argumentos a partir dos dados concretos de realidade social local (KRELL, 2002).

No caso específico da mutação constitucional, o problema ganha contornos especiais em razão da pouca sistematização na prática decisória do Tribunal Constitucional Federal alemão. Embora tenha sido originariamente formulada no contexto alemão do século XIX e início do século XX, a teoria da mutação constitucional foi objeto de inúmeras divergências teóricas e sua recepção na prática brasileira é também bastante problemática. Embora aplique o argumento da mutação constitucional, a discussão explícita e detalhada encontra-se na arena de disputas entre diferentes escolas metodológicas. Neste artigo, as diferentes teorias das mutações constitucionais não poderão ser desenvolvidas, mas ressaltamos que seus múltiplos usos e ausência de sistematização podem abrir espaço para a blindagem de interesses pessoais do intérprete.

No Supremo Tribunal Federal, a sistematização da argumentação da mutação constitucional também não aparece de modo unívoco, sendo instrumento manipulável a depender da situação. Diante das supostas mudanças de percepção social do direito, parte considerável dos ministros passou a ouvir o clamor social. O problema é que essa nova onda punitivista encontra-se baseada em possibilidades de arbitrariedade na interpretação das normas constitucionais. Daí a necessidade de um amplo programa de investigação sociológica que possa acompanhar os processos decisórios do sistema jurídico, com ênfase nos tribunais superiores.

Na análise da mutação constitucional do princípio republicano, não discutimos se a aplicação deveria ter sido em um ou outro sentido, mas tão somente a forma como a interpretação foi apresentada. Sem a devida transparência e o desenvolvimento metodológico das etapas de compreensão do problema concreto, as chances de efetivação de uma racionalidade crítica aceitável diminuem. Então, qual pode ser o papel da dogmática jurídica crítica no Brasil?

Por um lado, algo já está sendo feito: ênfase em pesquisas empíricas preocupadas com problemas concretos e processos decisórios reais. Nesse sentido, a proposta de compreensão das “figuras de perversão do direito” aparece como hipótese inicialmente interessante na medida em que inaugura novas possibilidades de discussão crítica a partir da prática real. Assim, também as zonas de autarquia não pretendem ser algo completamente inovador nem a solução de todos os problemas jurídicos e sociais, mas podem ser úteis para recordar o papel das análises discursivas na revitalização do espaço democrático.

Em outro aspecto, os trabalhos tradicionalmente considerados dogmáticos também não devem ser abandonados. Conforme Dimitri Dimoulis (2015DIMOULIS, Dimitri. Direito Penal Constitucional: garantismo na perspectiva do pragmatismo jurídico-político. Belo Horizonte: Arraes, 2015., p. 2-4), os estudos brasileiros precisam ser contextualizados e relacionados com pesquisas empíricas que completam e questionam a dogmática jurídica, “aplicando as análises teóricas em uma situação social marcada por peculiaridades e agudos conflitos sociais”. Sem o desenvolvimento de ferramentas dogmáticas, a má qualidade das fundamentações judiciais poderá ser transformada em um problema social cada vez mais difícil de contornar.

Ao aplicar o instrumento da zona de autarquia, é possível concluir que a análise pode abrir uma série de questões: a) quais fundamentos foram tomados na argumentação (problema da identificação dos argumentos de decisão); b) como a fundamentação dialoga com as diferentes perspectivas de todos os envolvidos (problema do alegado déficit democrático da argumentação); c) se todos os argumentos decisórios podem ser reconstruídos racionalmente a partir dos mesmos elementos fáticos (problema da universalidade/igualdade).

No caso da mutação constitucional do princípio republicano, a questão fica nebulosa porque não há unanimidade ou entendimento estável entre os julgadores (e mesmo na dogmática jurídica brasileira) sobre o âmbito de significado e aplicação da ocorrência de mutação constitucional e mesmo sobre o âmbito de proteção do princípio republicano no ordenamento jurídico brasileiro. Diante da ausência desses elementos, a aplicação do direito torna-se confusa, imprevisível e maleável. É justamente em face dessa realidade que as ferramentas metodológicas críticas podem atuar.

Porém, apesar das vantagens do uso de uma ferramenta metodológica como essa, há também dificuldades. Neste artigo, mais do que uma aplicação metodológica, a proposta é de problematização e reflexão sobre os caminhos da investigação jurídica.

A dificuldade das figuras de perversão é ampliada diante de casos que permitem duas ou mais opções aparentemente razoáveis para decisão (o problema da discricionariedade). Apontar para a solução “mais democrática” pode configurar, no caso concreto, apenas uma opção ideológica. Não parece haver o oferecimento de um caminho metodológico para uma “escolha racional” dentro do programa metodológico das figuras de perversão, sendo necessário agregar outro parâmetro fornecido pela dogmática jurídica e por outras áreas de conhecimento. Caso contrário, cairá no problema do paradigma da razão suficiente que poderá permitir desigualdades na prestação jurisdicional, além de uma possível blindagem autoritária (“escutei todos, decido sem contradições e de forma razoável, logo estou certo em definitivo”). Assim, é preciso continuar refletindo sobre uma possível continuidade ou transformação do elemento autoritário no processo decisório do direito.

A partir dessa perspectiva, resta evidente a necessidade de constante reflexão sobre as funções da dogmática jurídica e seu papel na construção de um direito democrático.

Considerações finais

Ao final, nossa pesquisa resultou em pertinentes contribuições para as discussões sobre possibilidades metodológicas de uma sociologia jurídica crítica, especialmente a partir do diálogo com o modelo de pesquisa empírico defendido por José Rodrigo Rodriguez.

Diante da análise de decisões do Supremo Tribunal Federal à luz da figura analítica das “zonas de autarquia”, foi possível perceber e discutir alguns elementos em torno do dever específico de fundamentação em situações de alegada mutação constitucional. Em face dos riscos de arbitrariedade e de ausência de controle inibitório ou reformativo das decisões do STF, o tema aparece como problema central na discussão de pesquisas empíricas sobre fundamentação e legitimidade das decisões judiciais.

Consequentemente, o intuito do artigo foi concretizado, uma vez que foi possível desenvolver a discussão epistemológica a respeito do papel que pode ser desempenhado por uma sociologia jurídica preocupada com a qualidade da aplicação do direito a partir de uma abordagem crítica - influenciada pelos escritos de Franz Neumann e José Rodrigo Rodriguez.

No entanto, o artigo também possibilita a visualização de outros problemas ainda não respondidos como as limitações e os desafios do uso do programa metodológico de José Rodriguez. Além das vantagens de sua aplicação, o artigo desenvolve reflexões que podem contribuir para o aprimoramento de modelos críticos de pesquisa jurídica ao reconhecer a multiplicidade dos desafios que se apresentam na realidade brasileira.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2020
  • Aceito
    06 Jun 2021
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