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Entre (in)visibilidades e reconhecimentos: um caso emblemático sobre conflito entre indígenas em processo criminal no Pará

Between (in)visibilities and recognition: an emblematic case about conflict among indigenous people at criminal court of Para

Resumo

A discussão acerca dos direitos indígenas e dos sistemas jurídicos dos povos indígenas ganhou novos contornos a partir da admissão da diversidade inaugurada, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988. Vislumbrando a cooperação entre sistema estatal e jurisdições indígenas, neste estudo serão analisados os autos do processo criminal cujas partes são Ministério Público do Estado do Pará x P. K. (etnia Kayapó), em trâmite na Comarca de Altamira - Pará, de modo a compreender em que medida vem sendo garantidos os direitos à autoidentificação, à autonomia na resolução de conflitos e quais os desdobramentos da situação apresentada. O caso estudado pode ser considerado emblemático pois caminha na contramão da prática jurídica quando se trata de partes indígenas em processos criminais. O estudo toma por base a Constituição Federal de 1988, a Resolução nº 287 do CNJ sobre pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade em processos criminais e a Convenção nº 169 da OIT, instrumentos que apontam saídas para o embate entre o direito nacional e os sistemas jurídicos indígenas, inclusive no campo criminal.

Palavras-chave:
Direitos indígenas; Sistemas jurídicos diferenciados; Pluralismo jurídico; Criminalização de indígenas

Abstract

The discussion about indigenous rights and the legal systems of indigenous peoples gained new contours from the admission of diversity inaugurated in Brazil by the 1988 Federal Constitution. Envisioning the cooperation between the state system and indigenous jurisdictions, this study will analyze a criminal court case (documentary research) whose parts are Ministério Público do Estado do Pará x P.K. (Kayapó ethnic group), pending in Altamira - Pará, in order to understand to what extent it has been guaranteed the rights to self-identification, autonomy in conflict resolution and what are the developments of the situation presented. The case studied can be considered emblematic, as it goes against the grain of legal practice when it comes to indigenous parties in criminal proceedings. The proposed study will develop based on the Federal Constitution of 1988, Resolution nº 287 of the CNJ on indigenous people accused, defendant, convicted or deprived of liberty in criminal court cases and Convention nº 169 of the ILO, instruments that point out solutions for the clash between national law and indigenous legal systems, including in the criminal field.

Keywords:
Indigenous rights; Differentiated legal systems; Legal pluralism; Criminalization of indigenous peoples

Introdução

Este trabalho tem como principal objetivo desvelar como vem sendo manejados os processos judiciais criminais com partes indígenas que tramitam no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, considerando, especialmente, os direitos de autodeterminação garantidos aos povos originários. Para tanto, será analisado um processo judicial que consideramos emblemático, vez que se destaca por conta de seu significado para aferição dos contrastes entre a norma e a realidade (SANTANA, 2010SANTANA, Raimundo Rodrigues. “Justiça Ambiental na Amazônia: Análise de casos emblemáticos”. Curitiba, Juruá, 2010.).

Falar sobre o encarceramento de indígenas é constatar, conforme mostraremos, que os números disponibilizados pelos órgãos oficiais são estimativos e estão longe de dar conta da situação real destes sujeitos. É que os processos que têm acarretado a situação de privação de liberdade de indígenas refletem, de forma mais acentuada, a invisibilização desses povos e seus direitos, especialmente devido à ausência de dados acerca da identificação étnica no sistema prisional, número exato de pessoas indígenas em situação de privação de liberdade ou quais crimes que lhes são imputados.

Para Teófilo (2013) a abordagem policial e os processos judiciais que têm levado e mantido indígenas no cárcere, sem qualquer possibilidade de prática de seus direitos diferenciados, acusa essa invisibilização estatística e jurídica, que, no contexto brasileiro, tem tendências de “empardecimento” como forma de alcançar a integração e assimilação dos indígenas, paradigmas que já deveriam ter sido superados acaso cumprida a legislação1 1 Na perspectiva da assimilação e da integração o indígena perderia sua identidade conforme fosse sendo integrado a uma “comunhão nacional”, pretensamente homogênea. Assim, antes de 1988, a orientação do Estado para os povos indígenas era pautada em “integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”, conforme dispõe o do artigo 1º do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73). .

Indo além desta imprecisão estatística e da invisibilização dos indígenas, o caso que iremos analisar parece caminhar na contramão da prática jurídica nacional quando o assunto são indígenas partes em processos criminais. Trata-se de processo judicial oriundo da Comarca de Altamira, no estado do Pará, ainda em trâmite. As partes envolvidas no delito são indígenas das etnias Kayapó (autor) e Munduruku (vítima).2 2 Apesar do processo ser público, na consulta disponível no sítio virtual do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, não foi possível ter acesso aos documentos processuais. Recebemos a orientação de ser viável acessar o processo com advogado habilitado no sistema Processo Judicial eletrônico (PJe). Desta forma, a Defensoria Pública de Altamira disponibilizou os autos via correio eletrônico. Neste caso, conforme apontaremos, constata-se a busca pela concretização da legislação garantista dos direitos indígenas.

Importa destacar que neste processo judicial ainda não foi proferida decisão de mérito irrecorrível, ou seja, transitada em julgado. Isso implica que o rumo a ser tomado poderá ser distinto no futuro. Entretanto, essa circunstância não afeta a análise que aqui propomos, já que o que interessa neste trabalho é refletir sobre as manifestações dos atores processuais e suas consequências práticas até então (SANTANA, 2010SANTANA, Raimundo Rodrigues. “Justiça Ambiental na Amazônia: Análise de casos emblemáticos”. Curitiba, Juruá, 2010.).

O estudo, portanto, está inserido no rol das pesquisas documentais, uma vez que analisaremos o processo judicial mencionado. A pesquisa com processos judiciais impõe, entretanto, algumas cautelas metodológicas. Conforme assevera Alves da Silva (2017ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. “Pesquisas em processos judiciais.” In MACHADO, Maíra Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017.), uma das dificuldades diz respeito ao acesso, que não decorre apenas da falta de documentos, mas também do seu excesso.

Outro entrave é a linguagem trazida em um processo judicial, que parece ser restrita àqueles que têm formação na área. No caso objeto desta pesquisa, o acusado é indígena que, além de não dominar a língua portuguesa, tem pouca (ou nenhuma) expertise no linguajar jurídico. Se para a maioria dos não indígenas que compreende bem a língua oficial não parece ser factível entender o que é dito/escrito em um processo judicial, como deve ser para um indígena? Será que esta variante é levada em consideração na condução do litígio?

Feitas essas ponderações, passamos a estruturação do artigo, que se desenvolverá em três seções, além desta introdução e da conclusão. Na primeira falaremos sobre as tensões entre reconhecimentos e negativas dos direitos indígenas no Brasil, nos debruçando, de modo singular, quanto à prática de seus sistemas de justiça.

Em seguida, nos deteremos no estudo dos autos processuais da ação penal promovida pelo Ministério Público do Estado do Pará x P. K. (etnia Kayapó), em que o réu é acusado pelo cometimento de homicídio qualificado (artigo 121, §2º, II do Código Penal Brasileiro), praticado contra outro indígena V. W. M (etnia Muduruku). Não nos debruçaremos em todas as minúcias do processo judicial. A descrição dos fatos e atos será feita a fim de possibilitar melhor visualização do caso, do contexto e de sua importância.

A pesquisa se desenvolve, assim, buscando compreender a atuação dos órgãos de justiça após a publicação da Resolução nº 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Cumpre salientar que a análise proposta não tem como fim estudar a atuação individual das partes do litígio, mas sim da forma como vem se desenrolando o processo judicial criminal como um todo complexo que, neste caso, envolve partes indígenas.

Por fim, buscaremos mostrar algumas inquietações sobre o caso em questão, destacando a importância de estabelecer critérios de coordenação entre o sistema jurídico estatal e os sistemas jurídicos dos povos indígenas, na linha do que apresenta Oliveira (2019OLIVEIRA, Assis da Costa. “O júri indígena de Roraima e a atuação do sistema jurídico indígena”. In OLIVEIRA, Assis da Costa e CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer (Ogs). Lei do Índio ou Lei do Branco - Quem Decide? Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, p. 237-277, 2019.).

(In)visibilidades de direitos indígenas em matéria criminal: entrando em um campo minado

No Brasil, falar de povos indígenas é recordar um histórico de avanços e retrocessos do ponto de vista jurídico, político, econômico, cultural e social. Entretanto, a ruptura, ao menos do ponto de vista formal, da antiga relação entre Estado e povos originários está representada na promulgação, em 1988, da Constituição Federal (CF/1988).

O novo marco legal trouxe o reconhecimento expresso de garantia aos povos indígenas a “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. Para Araújo (2006ARAÚJO, Ana Valéria et alii, “Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença”. Brasília, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.), a Carta Constitucional veio com uma série de inovações no tratamento entre o Estado e os povos indígenas e, desde então, houve significativo avanço na proteção e no reconhecimento dos direitos destes povos no país, já que os constituintes consagraram, pela primeira vez em nossa história, um capítulo de proteção dos direitos indígenas.

A CF/1988, portanto, abre caminhos para uma série de possibilidades no que tange ao reconhecimento de direitos - no plural - e, inclusive, do pluralismo jurídico. Apesar de não estar explicitamente presente no texto constitucional, há o esforço hermenêutico para entender que o termo “organização social”, presente no caput do artigo 231, contemplaria indiretamente o reconhecimento da jurisdição indígena por ser ela parte da organização social de cada povo indígena.

É que essas organizações são entendidas como “formas de poder interno, de representação e de direito, inclusive o poder do povo em conferir solução aos conflitos internos segundo seus usos, costumes e tradições” (ALMEIDA E SALLET, 2021ALMEIDA, Bruno Rotta; SALLET, Bruna Hoisler. “Justiça criminal e direitos indígenas: potencialidades da Resolução 287/2019 do CNJ para a redução da vulnerabilização indígena no sistema penal brasileiro”. Revista Direito, Estado e Sociedade, 2021., p. 7). Sob esta perspectiva, é selada a ruptura com a pretensa existência de uma única forma de pensar o direito, que dominava a ordem jurídica pré-1988.

A partir desta leitura é possível refletir se o instrumento formal da Constituição é capaz de ser emancipador de grupos vulneráveis, entabulando outras concepções de direito. E nos parece que sim, acaso lido dentro de uma perspectiva decolonial. É que o Direito Constitucional não possui uma essência, a sua importância depende da forma como é manejado. Neste sentido, apesar da CF/88 não contemplar o plurinacionalismo3 3 O plurinacionalismo está imbricado em uma nova concepção de constitucionalismo, conhecida como “Novo Constitucionalismo Latino-americano”, que segundo Freitas (2022, p. 50) “representa uma revolução no direito, uma transformação profunda com o sistema mundo colonial e com o direito moderno e uma ameaça à lógica uniformizadora necessária ao capitalismo e à sociedade de ultra consumo”. , por exemplo, sua leitura, interpretação e prática pode (e deve) ter base decolonial, ou seja, ser manejada desde a perspectiva plural.

Segundo Wolkmer (2019WOLKMER, Antonio Carlos. “Pluralismo jurídico: um referencial epistêmico e metodológico na insurgência das teorias críticas no direito”. Rev. Direito e Práxis, v. 10, p. 2711-2735, 2019., p. 2715) “o pluralismo jurídico surge como orientação crítica às falácias do monopólio estatal de absolutizar a produção e aplicação do normativo”, já que o direito estatal, como está posto, conforme ensina Souza Filho (2006SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. “O Renascer dos Povos para o Direito”. Curitiba, Juruá, 2006.), não tolera a convivência, em um mesmo território, de direitos diferenciados. Assim, ainda que tenha havido avanço no plano normativo, quanto ao direito de os povos originários manterem seus próprios sistemas de justiça, aparentemente ainda não houve quebra de antigos padrões coloniais.

No campo penal, a invisibilização das pessoas (e dos direitos) indígenas se torna ainda mais acentuada e complexa, já que coexistem no território nacional diversas etnias com diferentes línguas, crenças, tradições e, portanto, organizações próprias, e um só Código Penal, que não observa a diferença, já que a questão indígena é inexistente.

Segundo Assunção e Jung (2019ASSUNÇÃO, Waldilena; JUNG, Valdir Florisbal. “A Resolução 287 do CNJ e os Direitos da Pessoa Indígena no Sistema Prisional Brasileiro”. Revista de Criminologias e Políticas Criminais, 2019.), a omissão não aconteceu por esquecimento, mas foi fruto da opção da Comissão de Elaboração do Código Penal da época da elaboração do Código Penalista (1940), que não tinha representatividade indigenista. Assim, segundo os autores, “não se fez expressa referência ao indígena como sujeito, e sim como objeto a ser tutelado” (ASSUNÇÃO E JUNG, 2019ASSUNÇÃO, Waldilena; JUNG, Valdir Florisbal. “A Resolução 287 do CNJ e os Direitos da Pessoa Indígena no Sistema Prisional Brasileiro”. Revista de Criminologias e Políticas Criminais, 2019., p. 25).

Neste sentido, Castilho, Silva e Moreira (2020CASTILHO, E. W. V.; SILVA, Tedney Moreira; MOREIRA, Elaine. “Os direitos dos acusados indígenas no processo penal sob o paradigma da interculturalidade”. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. v. 7 n 2, p. 141-160, 2020., p. 147) afirmam que:

[o] direito penal contém a matéria de proibição e as diretrizes que a delimitam na conduta, tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade dos agentes, enquanto o direito processual penal instrumentaliza a realização do poder punitivo - jus puniendi - e mecanismos de técnica e pessoal dos acusados, para fins de determinação da pena, se o caso. Logo, formulam e aplicam conceitos, sem espaço para diversidade étnica.

Assim, na linha de raciocínio dos autores, a lei em vigor não contempla a diversidade étnica, em um primeiro ponto por ser negado o reconhecimento explícito no texto constitucional dos sistemas jurídicos ou das jurisdições indígenas. E, em segundo, porque reproduz visão singular e hegemônica da coletividade, o que permite o exercício inconteste do poder de punir (CASTILHO, SILVA E MOREIRA, 2020CASTILHO, E. W. V.; SILVA, Tedney Moreira; MOREIRA, Elaine. “Os direitos dos acusados indígenas no processo penal sob o paradigma da interculturalidade”. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. v. 7 n 2, p. 141-160, 2020.).

Sobre este último aspecto, aliás, importante trabalho desenvolve o Grupo de Pesquisas em Direitos Étnicos da Universidade de Brasília - UnB, coordenado pela Professora Dra. Ela Wiecko Volkmer de Castilho4 4 Currículo Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/7669520117195056. Acesso em 18 de março de 2023. , que tem análises importantes acerca da celeuma aqui proposta. Em artigo publicado no ano de 2020, fruto dos debates do referido grupo de pesquisa, foi colocado que:

falar em indígenas já pressupõe apagamentos e aproximações imprecisas: o termo não abrange a totalidade dos povos e suas idiossincráticas existências culturais, sociais, econômicas e políticas. Os indígenas são vistos como um todo coeso, o que já é, em si, um erro conceitual que exerce, contudo, uma finalidade política específica para o definidor dessas identidades (CASTILHO, SILVA E MOREIRA, 2020CASTILHO, E. W. V.; SILVA, Tedney Moreira; MOREIRA, Elaine. “Os direitos dos acusados indígenas no processo penal sob o paradigma da interculturalidade”. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. v. 7 n 2, p. 141-160, 2020., p. 148).

Quanto às decisões judiciais, afirma Pinho (2018PINHO, Ana Cláudia Bastos de. “Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal”. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2018.) que é comum constatar sentenças e acórdãos que se limitam a fazer menções do Código Penal e Código de Processo Penal sem citar a Constituição Federal, como se não existisse Estado Constitucional, que garante a diferença.

No âmbito dos direitos indígenas, Yrigoyen Fajardo (2009) chega a conclusão similar, ao apontar, em uma análise das mudanças constitucionais ocorridas em vários países latino-americanos para inclusão de direitos constitucionais indígenas, que a prática dos agentes estatais é de um amplo desconhecimento do conteúdo destes direitos, quase sempre tendo por consequência o uso de diplomas infraconstitucionais cujos conteúdos, em muitos casos, tornou-se inconstitucional, como é o caso da maior parte do conteúdo presente no Estado do Índio (Lei nº 6.001/1973), no Brasil.

Além disso, são patentes e frequentes as crises e as constantes violações de direitos que emanam do sistema prisional. Aliás, no livro clássico sobre prisões, Foucault (2008FOUCAULT, Michel. “Vigiar e Punir: história da violência nas prisões”. Petrópolis, Vozes, 2008., p. 195) afirma que:

[a] forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência.

Esse sistema que visa unificar corpos e transformá-los em máquinas, é o que ignora a diversidade e a pluralidade jurídica e étnica que existe no território nacional, especialmente quando falamos de Brasil e, neste caso específico, do estado do Pará. A unificação de corpos é uma outra forma de produzir a homogeneização forçada dos sujeitos, com a invisibilização de suas identidades étnicas, assentada em um processo de desumanização calcado na indiferença.

Entretanto, marcos jurídicos como a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de garantias de direitos diferenciados, dos quais destacamos a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)5 5 A Convenção nº 169 da OIT é considerada o primeiro instrumento internacional a tratar dignamente dos direitos coletivos dos povos indígenas. Foi recepcionada pelo Decreto Legislativo n° 143, de 20 de janeiro de 2002. Inicialmente, foi promulgada pelo Decreto Presidencial n° 5.051, de 19 de abril de 2004, e em 2019 foi compilado com todas as normativas internacionais da OIT no Decreto n° 10.088, de 5 de novembro de 2019, o qual “consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificados pela República Federativa do Brasil”. , apontam caminhos sobre o reconhecimento e a prática da diversidade, inclusive no campo penal.

Sobre o aspecto criminal, a Convenção nº 169 da OIT é explícita em seu artigo 9º:

[n]a medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os Direitos Humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros (BRASIL, 2004).

Este diploma ainda prevê que: “Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento” (artigo 10. 2).

Assim, diante do conjunto de compromissos normativos assumidos pelo Estado Brasileiro de fazer valer os direitos dos povos indígenas, em conjunto com a mobilização indígena e a necessidade de suprir algumas lacunas regulamentares, foi aprovada, em junho de 2019, pelo CNJ, a Resolução nº 287, que disciplina os procedimentos a serem adotados pelas autoridades judiciais no tratamento de pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade em processos criminais.

O instrumento prevê, com inspiração na Convenção nº 169 da OIT e a CF/1988, tratamento jurídico diferenciado a indígenas que são partes em litígios penais e parece funcionar como um mecanismo redutor da vulnerabilização indígena na justiça penal nacional.

O documento tem como pontos principais (1) a incorporação do critério da autodeclaração; (2) auxílio de intérprete; (3) a adequação de medidas cautelares e penas restritivas de direitos a costumes e tradições; (4) a determinação de realização de perícia antropológica que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade da pessoa acusada; e, (5) a possibilidade de o magistrado homologar os mecanismos tradicionais de responsabilização criminal.

A Resolução, portanto, confere aos indígenas a garantia de resolver seus conflitos. É que quando existe a possibilidade de o Poder Judicante homologar mecanismos tradicionais de responsabilização criminal, abre-se o precedente de que - desde que compatível com o direito nacional e com os direitos humanos universalmente reconhecidos - o litígio criminal seja solucionado pelos próprios envolvidos, marco importante para um Estado que se pretende plural.

O novo documento se apresenta como um importante simbolismo em favor da crítica decolonial ao sistema penal estabelecido. Trata-se, então, de um “contradiscurso” (CASTILHO E SILVA, 2022), já que foi elaborado pelo CNJ, órgão constitucional responsável pelo controle, aprimoramento e transparência administrativa e processual do Poder Judiciário.

Entretanto, se houve algum avanço no plano prático acerca do reconhecimento dos direitos indígenas no aspecto criminal como prevê as legislações referidas, esta perspectiva é difícil de se visualizar. Em outras palavras, com pontuais exceções, o discurso e a prática jurídico-penal atuais sobre o tratamento de indígenas criminalizados/as não sofreram mudanças.

Ainda existe, portanto, enorme distanciamento entre o ordenamento jurídico e a realidade dos processos judiciais que envolvem indígenas, o que se dá, em um primeiro momento, pelo não reconhecimento do indígena como tal pelo Sistema Judicial e, em seguida, ainda que reconhecida a identidade indígena, pela negação do tratamento jurídico-penal adequado a estes sujeitos. Esse distanciamento provoca incerteza em relação aos dados oficiais.

De acordo com Castilho e Silva (2022) as razões para estas incertezas são três: 1) não há uma padronização quanto ao método de coleta de dados nas unidades da Federação; 2) não está claro quais os critérios para responder às questões de raça e etnia, ou seja, se é feita por autodeclaração ou se a classificação é realizada por terceiros, segundo critérios subjetivos; 3) não há informações sobre quais crimes são imputados aos indígenas ou se estão aguardando julgamento ou cumprindo pena em unidades prisionais especiais.

Sobre isso, segundo os Dados Estatísticos do Sistema Penitenciário (SISDEPEN), da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN)6 6 No dia 24 de janeiro de 2023 a nova estrutura da SENAPPEN entrou em vigor. A Secretaria foi criada a partir da transformação do antigo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Com o novo formato, foi introduzida Diretoria com atenção para questões de Cidadania e Alternativas Penais. , no período de janeiro a junho de 2022 a população carcerária indígena no Brasil era de 1.529 pessoas. No estado do Pará este número era de 09 indígenas privados de liberdade, sendo 02 mulheres e 07 homens7 7 Cf. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNjRmNDUxNWItZGExYy00NmRiLTgxYWMtOTEzYTQ3NGEwMjVhIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em 06 de fevereiro de 2023. .

Almeida e Sallet (2021ALMEIDA, Bruno Rotta; SALLET, Bruna Hoisler. “Justiça criminal e direitos indígenas: potencialidades da Resolução 287/2019 do CNJ para a redução da vulnerabilização indígena no sistema penal brasileiro”. Revista Direito, Estado e Sociedade, 2021.) constatam que uma vez introduzidos na “categoria hegemônica de presos, os indígenas não serão mais considerados como tal, de forma que sua execução penal não será etnicamente individualizada e suas garantias legais específicas serão afastadas” (2021, p. 03). Portanto, os dados sistematizados e disponibilizados pelo SISDEPEN, pelas incertezas apontadas, não refletem a realidade quanto ao número de indígenas em situação de privação de liberdade no Brasil.

Ademais, a punição dos indígenas por meio do encarceramento mostra, conforme preleciona Castilho e Silva (2022) os desafios de se alcançar uma verdadeira relação interétnica igualitária na sociedade brasileira. Para os autores, a execução das penas para pessoas indígenas ignora suas particularidades étnicas “sob o argumento míope de assimilação baseada no fato de tais indivíduos falarem a língua nacional ou viverem em áreas urbanas, tal silêncio faz parte de uma lógica de etnocídio cujo objetivo é apagar qualquer diversidade étnica” (CASTILHO E SILVA, 2022, p. 04. Tradução livre).

Constata-se, portanto, que

os índices de presos indígenas são bem maiores, pois existe um desrespeito à autodeterminação no sistema jurídico e carcerário brasileiro, que se inicia na fase de inquérito e segue até a fase executória da pena, dentro de um sistema de informação que ainda não está preparado para lidar com as diferenças (ASSUNÇÃO E JUNG, 2019ASSUNÇÃO, Waldilena; JUNG, Valdir Florisbal. “A Resolução 287 do CNJ e os Direitos da Pessoa Indígena no Sistema Prisional Brasileiro”. Revista de Criminologias e Políticas Criminais, 2019., p. 22).

Sobre este aspecto, para Teófilo (2013), os indígenas suportam tratamento desigual no âmbito do sistema penal, seguindo a linha de outros segmentos racialmente marginalizados:

pesquisas têm destacado ações de “des-etnização” (CTI-UCDB, op. cit, 2008: 55) ou “descaracterização étnica” (ABA-PGR, op. cit., 2008: 04) dos indígenas nos processos legais − o que acarreta sua invisibilidade estatística e jurídica na qualidade de sujeitos de direito − e o despreparo e descaso do órgão indigenista e demais instâncias policiais, judiciais e penais acerca dos direitos dos indígenas presos e da situação prisional dos índios em seus respectivos estados − acarretando seu abandono no cárcere. O que essa descaracterização étnica faz, na verdade, é não reconhecer o status legal diferenciado dos indígenas enquanto tais desde a abertura do inquérito até seu aprisionamento (TEÓFILO, 2013, p. 141 e 142).

Assim, a complexidade dos casos, os dramas sociais que envolvem um processo criminal somada à punição dos indígenas com encarceramento escancara os desafios de se alcançar uma verdadeira relação interétnica paritária na sociedade brasileira.

Desta forma, como preleciona Castilho e Silva (2022, p. 06. Tradução livre):

dois anos após a edição da Resolução nº 287 de 2019, suas diretrizes aparentemente não estão sendo seguidas pelo Poder Judiciário. O número de prisões provisórias tem aumentado gradativamente em desacordo com as diretrizes que preconizam sua substituição por medidas alternativas, bem como o número de prisões definitivas, ignorando a recomendação do regime especial de semiliberdade. O encarceramento de indígenas sem respeito a seus direitos e garantias legais reforça a mesma funcionalidade penal de sufocar as diferenças étnicas e, consequentemente, mostra um desprezo por sua condição de vulnerabilidade social.

O estudo do processo judicial proposto, entretanto, parece caminhar na contramão da prática judicial nacional e sobre ele nos deteremos a seguir.

O caso emblemático: construindo a jurisdição indígena?

Antes de adentrar na análise do processo judicial, é importante situar nosso leitor no local em que o fato originário da ação penal ocorreu. O estado do Pará, segundo dados fornecidos pela Federação dos Povos Indígenas do Pará (FEPIPA)8 8 Cf. http://ufopa.edu.br/enei2016/nossos-povos. Acesso em 11 de março de 2023. açambarca uma das maiores diversidades étnicas do país, onde coabitam mais de 55 etnias e aproximadamente 60 mil indígenas, falantes de idiomas dos troncos linguísticos: Karib, Macro jê, Pano, Nheengatu, Tupi, Juruna, Munduruku, entre outras. Segundo os dados fornecidos, os povos indígenas que habitam no estado ocupam mais de 25% do território paraense e estão distribuídos em torno de 77 terras indígenas, em 52 municípios.

Altamira, cidade do fato que deu origem ao processo criminal em análise, está situada neste estado e conta com uma população estimada, em 2021, de 117.320 pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)9 9 Cf. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/altamira/panorama. Acesso em 11 de março de 2023. .

A cidade foi palco de acontecimentos históricos importantes, como o que envolveu o “caso dos meninos emasculados”, uma tragédia social que ocorreu ao longo dos anos 1990, em que crianças eram capturadas, sequestradas, violentadas e, muitas delas, sofreram o cruel ato de extirpação de seus órgãos genitais, sangrando até a morte.

Em virtude destes acontecimentos, a população de Altamira se mobilizou e se organizou politicamente em prol, inicialmente, da causa das crianças e adolescentes. Neste sentido, em 2010, a proposta da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte chega no local já como sendo uma possível tragédia social. Ainda quando do seu período pré-construção se colocava em questão a luta contra esse tipo de modelo de desenvolvimento e a desconsideração da participação social nos espaços de decisão do empreendimento (OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, Assis da Costa. “Consequências do neodesenvolvimentismo brasileiro para as políticas públicas de crianças e adolescentes: reflexões sobre a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.” In OLIVEIRA, Assis da Costa. Belo Monte: violências e direitos humanos. Belém: Editora Supercores, 2017.).

É que, segundo Oliveira (2017OLIVEIRA, Assis da Costa. “Consequências do neodesenvolvimentismo brasileiro para as políticas públicas de crianças e adolescentes: reflexões sobre a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.” In OLIVEIRA, Assis da Costa. Belo Monte: violências e direitos humanos. Belém: Editora Supercores, 2017., p. 26), “[o]s impactos socioambientais gerados pelas grandes obras na Amazônia devem ser compreendidos enquanto parte do encontro conflitivo e antagônico de formas de organização da vida social.”

Neste cenário, o uso abusivo de bebidas alcoólicas e outras drogas causou e têm causado inúmeros conflitos entre a população indígena local, um dos resultados da interferência de um modelo de organização diverso dos culturalmente estabelecidos, com um avanço acentuado do consumo de produtos alimentícios industrializados, incluindo bebidas alcóolicas, devido os incentivos financeiros provenientes do Plano Emergencial implementado em 2010, uma política instituída pela Norte Energia S.A. para atender uma lista de pedidos mensais de cada aldeia existente na região, respeitando um teto por aldeia de 30 mil reais (ACEVEDO E OLIVEIRA, 2016ACEVEDO, Rosa Elisabeth; OLIVEIRA, Assis da Costa. “Violence and public health deterioration in the Altamira region: the construction of the Belo Monte hydroelectric plant”. Regions & Cohesion, v. 6, p. 116-134, 2016. Doi: 10.3167/reco.2016.060106.
https://doi.org/10.3167/reco.2016.060106...
).

O ano de 2012, data do acontecimento do fato aqui estudado, está inserido no período em que foram emitidas as Licenças Prévia e de Instalação da UHE Belo Monte, fatos que sinalizaram, além do novo ciclo de desenvolvimentismo, um novo tipo de interação social na região do Xingu.

O acontecimento que deu origem ao processo judicial ocorreu na chamada “Casa do Índio”10 10 A “Casa do Índio” é uma estrutura utilizada há muitos anos pelos povos indígenas da região do Médio Xingu como uma casa de passagem, portanto, de estadia temporária, para os indígenas que realizam o fluxo aldeia-cidade. Em virtude dos impactos suportados pelos povos indígenas por conta da construção da UHE Belo Monte, a “Casa do Índio” foi reformada como parte de uma das compensações obrigatórias para as comunidades afetadas pela construção da usina. Costuma funcionar como um local de passagem, em que indígenas ficam hospedados quando estão passando por algum tratamento de saúde ou quando precisam estar na cidade para resolução de alguma pendência de ordem pessoal ou comunitária, vez que algumas terras indígenas são muito distantes (cerca de 10 dias de barco) do cais de Altamira. Ademais, é um espaço compreendido como extensão do território indígena naquela localidade. , na cidade de Altamira, quando alguns indígenas estavam reunidos ingerindo bebida alcoólica e, após desentendimento entre indígenas da etnia Kayapó e Munduruku, houve troca de agressões que culminou com a morte da vítima.

Preso em flagrante delito pelo cometimento de homicídio qualificado (artigo 121, §2º, II do Código Penal Brasileiro), praticado contra indígena V. W. M (etnia Muduruku), o réu, P.K. (etnia Kayapó), após cometer o ato delituoso, se refugiou na sede da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), em Altamira, onde foi encontrado e conduzido à delegacia, sem resistência, no dia 27 de maio de 2012.

Em decisão proferida no dia seguinte do fato, o magistrado concluiu que não havia motivos para relaxar a prisão “pois se solto, colocará em risco a vida de pessoas de bem, uma vez que demonstrada a personalidade agressiva do mesmo” (sic). Na ocasião, a prisão em flagrante foi convertida em prisão preventiva. Em resposta a pedido de revogação da prisão preventiva, o juízo entendeu por manter o indígena encarcerado, já em 19 de junho do ano do fato. No dia 06 de julho, entretanto, houve revogação da cautelar máxima, sob o fundamento de que não haveria evidências de que, se solto, praticaria delitos ou de que estivesse ameaçando testemunhas.

O Ministério Público ofereceu denúncia no dia 11 de setembro de 2012 e a primeira audiência de instrução ocorreu em 08 de abril de 2014. Na oportunidade, foi determinado, a pedido da Defensoria Pública, que fosse oficiada a FUNAI para realização de “estudo antropológico no acusado, de sorte a esclarecer o grau de sua integração com a sociedade de cultura não indígena envolvente, com o fim de viabilizar o grau de imputabilidade e eventual culpabilidade do acusado” (sic), o que foi deferido.

Aqui vale uma reflexão. Ao comentar essa visão, Moura Guarani (2006MOURA GUARANI, Vilmar Martins. “Desafios e perspectivas para a construção e o exercício da cidadania indígena” In ARAÚJO, Ana Valéria et alii. Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença. Brasília, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.) diz que, negar a identidade indígena por um suposto “grau de integração” seria o mesmo que questionar a nacionalidade de um brasileiro que fosse morar no exterior. Nestes casos, perde-se a identidade de brasileiro fora do país? Por que com os indígenas o mesmo tratamento parece inimaginável?

Os usos da retórica da assimilação ou integração nacional deixam nítida a escolha de alguns profissionais do campo jurídico em estabelecer uma relação ainda inconsistente entre identidade étnica e condição de sujeitos de direitos étnicos, em que a perda da “pureza” da primeira - isto é, a plena convivência do indígena com a sociedade nacional - gera uma correlata perda da garantia da segunda, algo que só pode ocorrer quando as diferenças culturais são tratadas pela ótica do check-list, isto é, quando um agente não-indígena determina o que pode ou não pode estar presente na conduta e socialização do sujeito para que seja definido como indígena.

Dito isso, é preciso reforçar a inadequação da formulação de quesitos judiciais pautados nesta retórica assimilacionista, pois conflita diretamente com o disposto no artigo 231 da CF/1988, cujo texto constitucional assegura uma cidadania indígena pautada na inafastável condição de ser indígena independente da maneira como expressa no presente seu pertencimento étnico.

Feita esta importante ressalva, em seguimento a análise do caso, no dia 29 de setembro de 2014, em nova audiência de instrução, o acusado foi ouvido e disse que confirmava parcialmente os termos da denúncia. Na oportunidade alegou que a vítima era homossexual e que estava “perturbando o depoente”. No dia do delito, a vítima supostamente teria tentado ter “um caso” com o réu e que estava alcoolizada e portando uma faca, instrumento utilizado para praticar o delito. O réu disse, ainda, que não tinha a intenção de matar a vítima e que “ficou muito triste do ato que cometeu” (sic).

A decisão de pronúncia foi proferida no dia 22 de março de 2017. E, apesar da interposição de recurso, o entendimento foi mantido, em 10 de agosto de 2018. O Tribunal do Júri foi designado para o dia 19 de agosto de 2020 e, posteriormente adiado para o dia 22 de fevereiro de 2022, ou seja, quase 10 anos após o fato-crime.

Em 2022, a Defensoria Pública impetrou Habeas Corpus com pedido de tutela liminar11 11 Esta petição nos foi enviada pela Defensoria Pública de Altamira. para que o Tribunal do Júri fosse suspenso em razão da ausência do laudo antropológico. Para balizar o pedido, a DPE utilizou como fundamentos a Resolução nº 287/2019 e a Convenção nº 169 da OIT. No mesmo documento, a Defensoria pediu que:

a fim de concretizar o princípio constitucional da igualdade e isonomia (art. 5º da CF), otimizando o princípio da soberania dos veredictos diante de um caso concreto específico, requer que os jurados convocados para a presente sessão do júri sejam indígenas, assim como são o réu e a vítima. (grifos nossos).

Foi a primeira vez que a Resolução e o documento internacional foram mencionados no caso. O fato de a Defensoria Pública solicitar a presença de jurados unicamente indígenas pode ter sido influenciado pela iniciativa que ficou conhecida como “Júri Indígena de Roraima”, ocorrido em maio de 2015, em que o Tribunal de Justiça do referido estado definiu a realização de uma sessão do Tribunal do Júri dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e com a presença de jurados exclusivamente indígenas e de diferentes etnias que habitam este território.

Em todo caso, a perícia determinada em 2014 não ocorreu. O magistrado, em fevereiro de 2022, fundamentado no artigo 6º da Resolução nº 287/2019, determinou a suspensão da sessão de julgamento até que fosse realizada a perícia pela FUNAI, em 60 (sessenta) dias.

Em resposta, o órgão indigenista, amparado no artigo 15 da nova Resolução, informou que compete aos Tribunais a manutenção de cadastro de intérpretes especializados e antropólogos para produção de laudos periciais. A Defensoria Pública, por sua vez, requereu que fosse oficiada a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) para busca de profissionais com expertise para realização do estudo, tendo em vista que o réu é da etnia Kayapó, o que foi acatado pelo juízo.

A resposta da ABA esclareceu que não tem incumbência de realizar estudos antropológicos, entretanto, identificou dois profissionais com qualificação para realização do laudo. Em seguida as partes foram intimadas para apresentação de quesitos, que são perguntas ou esclarecimentos que os autor e réu formulam para que o profissional com expertise na etnia responda.

Parece ser evidente a mudança da postura judicial na condução do processo. Porém, há um jogo de hermenêuticas jurídicas divergentes sobre o agente responsável por realizar o estudo antropológico, o que acaba por ressaltar a fragilidade da institucionalização do profissional da Antropologia no Sistema de Justiça, resultando, na maioria das vezes, na contratação temporária desses profissionais, quando são profissionais liberais, ou na concessão de carga-horária em seus planos de trabalho, quando são vinculados a universidades públicas.

A partir da menção da Resolução nº 287/2019 do CNJ, portanto, foi-se delineando uma nova sensibilidade para o deslinde do caso. Mesmo que o pedido de realização de estudo antropológico tenha sido deferido em 2014, antes da publicação da Resolução, foi com base neste regramento que o magistrado suspendeu a sessão do Tribunal do Júri.

Neste sentido, consta no artigo 6º da Resolução do CNJ que

Art. 6º Ao receber denúncia ou queixa em desfavor de pessoa indígena, a autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica, que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade da pessoa acusada, e deverá conter, no mínimo:

I - a qualificação, a etnia e a língua falada pela pessoa acusada;

II - as circunstâncias pessoais, culturais, sociais e econômicas da pessoa acusada;

III - os usos, os costumes e as tradições da comunidade indígena a qual se vincula;

IV - o entendimento da comunidade indígena em relação à conduta típica imputada, bem como os mecanismos próprios de julgamento e punição adotados para seus membros; e

V - outras informações que julgar pertinentes para a elucidação dos fatos.

Parágrafo único.

O laudo pericial será elaborado por antropólogo, cientista social ou outro profissional designado pelo juízo com conhecimento específico na temática.

Desta forma o documento prevê a possibilidade de ser realizado o estudo antropológico tão logo seja recebida a denúncia ou queixa, o que é uma inovação, pois há o reconhecimento dos limites de cada área do conhecimento. Os operadores do direito que atuam nas demandas possuem uma limitação própria de suas atribuições. É que para elucidar os casos em processos judiciais que envolvem pessoas indígenas se faz necessário o auxílio de outros saberes, daí porque a importância de a resolução prever a possibilidade de realização da perícia antropológica.

No laudo deve constar a qualificação, a etnia, a língua falada, as circunstâncias do fato, se houve a responsabilização no foro interno da comunidade. Ademais, deve o antropólogo esclarecer se o fato, tido como delituoso, o é na cosmovisão da etnia a que faz parte o indígena acusado, por exemplo.

Assim, conforme dispõe o Manual do CNJ sobre a Resolução nº 287/201912 12 Cf. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/Manual-Resolu%C3%A7%C3%A3o-287-2019-CNJ.pdf. Acesso em 10 de março de 2023. , este documento é ferramenta fundamental para o tratamento judicial das pessoas indígenas pois permite entender a pessoa julgada a partir do contexto da comunidade em que está inserida.

Segundo consta no Manual,

compreender esse contexto exige um saber específico e que não pode ser apreendido automaticamente dentro dos atos processuais ordinários, pois também as narrativas, a sistematização do conhecimento, os critérios de verdade e a organização das narrativas são elementos condicionados pelos contextos culturais. O mecanismo adequado para levar à autoridade judicial as informações pertinentes para que decida sobre a homologação de práticas indígenas de resolução de conflitos ou a aplicação de outras medidas para responsabilização é o laudo pericial antropológico (CNJ, 2019, p. 27).

Neste sentido, deve este documento esclarecer sobre a correspondência entre a conduta praticada e os costumes, crenças e tradições da comunidade indígena. É que, na medida em que CF/88 respeita os costumes indígenas (artigo 231), não pode a autoridade judicial considerar criminosa conduta que está em conformidade com os valores da comunidade estudada, desde que não viole os direitos humanos reconhecidos.

Assim, os últimos documentos juntados aos autos do processo, até o momento desta análise, são os quesitos formulados pela Defensoria Pública e Ministério Público ao perito judicial. Pela importância da literalidade, transcrevemos abaixo.

Quesitos da Defensoria Pública:

1) Esclarecer se o examinando, em razão da condição de indígena, à época não integrado, era, ao tempo da conduta que lhe é atribuída, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

2) Esclarecer se o examinando, em razão da condição de indígena, à época não integrado, era, ao tempo da conduta que lhe é atribuída, relativamente (parcialmente) incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

3) O indígena, quando não é totalmente integrado à sociedade, é capaz de conhecer totalmente as regras sociais e leis em vigor na sociedade?

4) É possível identificar, entrevistando-se pessoalmente o réu, se ele chegou a ser punido pela sua própria aldeia e se existe legislação específica sobre essa matéria.

5) Quais as principais características dos índios Kaiapos?

6) O índio Kaiapo aceita com naturalidade condutas homossexuais, por parte de terceiros, atentatórias à sua própria dignidade? E se a ofensa for a sua esposa, como costuma ser o comportamento desse indígena?

7) Quais atividades são praticadas pelo réu hoje em sua aldeia?

8) Na sua opinião, os indígenas deveriam ser julgados, como no caso réu, no Tribunal do Júri, por jurados também indígenas?

9) Tem mais algum esclarecimento que possa ser externado para favorecer o julgamento do caso?

Quesitos do Ministério Público:

1) Esclarecer se o examinando, em razão da condição de indígena, era, ao tempo da conduta que lhe é atribuída, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento;

2) Esclarecer se o examinando, em razão da condição de indígena, era, ao tempo da conduta que lhe é atribuída, relativamente (parcialmente) incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Os quesitos ainda estão pendentes de resposta, o que deixa em aberto novos desdobramentos do caso. Entretanto, a análise dessas perguntas já demonstra como ainda é confusa a relação entre povos indígenas e o Estado, ora marcada pelo etnocentrismo, ora pelo respeito à diversidade.

Questões como se o indígena era “inteiramente incapaz” ou “parcialmente incapaz” de entender o caráter ilícito do fato fazem coro com o entendimento majoritário da doutrina penalista: de que o indígena é sujeito com desenvolvimento mental incompleto. Isto significa que, quando “não integrado”13 13 As aspas se justificam pelo teor etnocêntrico da expressão. o que falta, para ser imputável, é a compreensão dos valores da sociedade nacional. Na ausência dessa compreensão, são classificados como semi-imputáveis ou inimputáveis, a depender do grau de “aculturação”.

Em outras palavras, para ser “capaz” é preciso ser “integrado”. Sob essa perspectiva, parece ser evidente a relação de hierarquia que ainda ecoa na relação entre o direito nacional e os direitos indígenas, além de pressupor um “poder de conhecimento” sobre a capacidade cognitiva de sujeitos étnicos que caberia mais à Psicologia, do que à Antropologia, ainda que, em suma, isto se resuma ao anseio por respostas de “sim” ou “não”, uma outra forma de padronização da diversidade.

Por outro lado, a Defensoria Pública se preocupou em que fosse esclarecida, por meio do laudo antropológico, a forma de vida dos Kayapó, inclusive para saber se o indígena já suportou algum tipo de punição pelos seus pares. Esta questão é importante de ser abordada, especialmente para que os órgãos de justiça tomem conhecimento da existência ou não de sanção que, em caso positivo, pode ser homologada, conforme prevê o artigo 7º, Parágrafo Único da Resolução nº 287/2019.

Ainda que não haja balizamento normativo no Brasil para indicar como essa homologação da sanção étnica deve ocorrer, e a partir de quais critérios de coordenação entre os diferentes sistemas jurídicos (estatal e indígena), já existem precedentes jurisprudenciais anteriores que oportunizam um caminho a ser seguido pela prática judicial. Sobre eles, falaremos em seguida.

Caminhos entreabertos do reconhecimento da jurisdição indígena no Brasil

O caso considerado “divisor de águas” no Brasil é conhecido como “Caso Basílio”, oriundo da Justiça Federal de Roraima e a data do fato remonta ao ano de 1986, mas a decisão emblemática foi proferida apenas em 2000. A situação refere-se a homicídio cometido por um indígena contra outro indígena, ambos da etnia Macuxi. O fato ocorreu dentro da Comunidade do Maturuca, no então Território Federal de Roraima.

Narram os autos do processo que, após a realização da perícia antropológica, o indígena autor do delito havia sido punido por sua comunidade com o desterro, pena mais grave no sistema jurídico Macuxi.

De acordo com Beltrão, Begot e Libardi (2012), à época, o Ministério Público Federal requereu a pronúncia de Basílio (autor). Em maio de 2000, quase quinze anos após o fato-crime, o réu foi levado a Júri Popular, em que os jurados estavam convencidos de que ele havia sido o autor do crime e que a materialidade restou comprovada, entretanto, “também de forma consensual, consideraram que o fato de Basílio ter sido julgado e condenado segundo os costumes da comunidade indígena a que pertencia, era suficiente para isentá-lo de pena de julgamento realizado pela Justiça brasileira.” (2012, p. 130 e 131).

Neste caso, o juízo absolveu o réu sob o fundamento de “causa supralegal de exclusão da culpabilidade”, primando pelo princípio do ne bis in idem, que adverte que ninguém pode ser punido mais de uma vez pela prática do mesmo crime. Este caso é considerado emblemático, porque, mesmo tendo passado cerca de 22 anos desde seu encerramento, pôde ser palpável a compatibilização que foi construída entre o direito estatal e a jurisdição indígena.

Situação semelhante ocorreu em 2012 com o “Caso Denilson”, que pode ser considerando como um segundo precedente judicial, oriundo da Justiça Estadual de Roraima. D. T. D., membro do povo Macuxi, foi acusado de cometer homicídio contra seu irmão dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em junho de 2009. À época, foi julgado pelas lideranças Tuxauas e por membros do Conselho da comunidade do Manoá.

Dentre as sanções impostas a Denilson, estavam a construção de uma casa para a esposa da vítima e a proibição de ausentar-se da comunidade do Manoá sem autorização dos Tuxauas. Consta naqueles autos, ainda, que já em 2013, em nova reunião com diversas lideranças indígenas e servidores da FUNAI, foram impostas, dentre outras, as seguintes penalidades ao réu: sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na região do Wai Wai por mais 05 (cinco) anos, com possibilidade de redução, a depender de seu comportamento; cumprir o regimento interno do povo Wai Wai; participar de trabalho comunitário e de reuniões da comunidade.

Na sentença do caso, o magistrado com fundamento na CF/1988, Convenção nº 169 da OIT e Estatuto do Índio, estabeleceu dois critérios para coordenação entre o sistema jurídico estatal e os sistemas jurídicos indígenas: a) nos casos em que autor e vítima são indígenas, o fato ocorre em Terra Indígena e não há julgamento do fato pela comunidade, o Estado deterá o direito de punir e atuará de forma subsidiária, sendo aplicáveis as regras penais e processuais penais; b) nos casos em que autor e vítima são indígenas, o fato ocorre em Terra Indígena e há julgamento pela comunidade, o Estado não terá o direito de punir.

Assim, a sentença de absolvição sumária foi proferida, sem análise do mérito, em virtude de, no “Caso Denilson”, o réu já ter sido punido por seus pares, não subsistindo, na visão do magistrado, o poder de punir do Estado.

Da análise desses dois casos, percebe-se que há um esforço de compatibilização entre o direito estatal e a jurisdição indígena, esforço este que vem se delineando no caso objeto deste estudo.

Quanto ao questionamento formulado de realização de Tribunal do Júri com partes indígenas, no Brasil foi realizada uma tentativa de diálogo entre o direito estatal com “legitimidade” indígena no julgamento que ficou conhecido por ter sido o primeiro Júri Indígena do país.

O processo judicial foi motivado pela tentativa de homicídio praticada entre indígenas da mesma etnia. O feito tramitou na Comarca de Pacaraima, estado de Roraima e, diferente do “Caso Basílio” e do “Caso Denilson”, neste imbróglio os indígenas não haviam sido punidos por seus pares, o que, na visão dos órgãos de justiça, exigia uma resposta do direito estatal.

Aqui vale uma digressão: não é nosso objetivo esmiuçar o caso14 14 Para mais informações sobre o caso, indicamos a análise realizada por Assis da Costa Oliveira em artigo intitulado “O Juri Indígena de Roraima e a Atuação do Sistema Jurídico Indígena”, disponível em: https://apiboficial.org/files/2022/03/Lei-do-%C3%8Dndio-ou-Lei-do-Branco_DTP.pdf. Acesso em 18 de março de 2023. , mas apresentar perspectivas interessantes que ajudem a refletir sobre o processo judicial que estamos estudando.

Naquele litígio, portanto, a principal motivação para nomeação de um Júri Indígena estava assentada no fato de que a tese da defesa 1) fundamentava-se na tradição indígena15 15 A tentativa de homicídio havia sido motivada pelo fato de a vítima ser um “cainamé”, que, na linguagem indígena, significaria um “matador de gente”. , 2) as partes envolvidas no processo eram indígenas e 3) o fato ocorreu em uma Terra Indígena. Foi, assim, no conjunto desses três fatores que a sentença de pronúncia foi prolatada, na tentativa de compatibilizar o direito estatal e o protagonismo dos indígenas.

Segundo Oliveira (2019OLIVEIRA, Assis da Costa. “O júri indígena de Roraima e a atuação do sistema jurídico indígena”. In OLIVEIRA, Assis da Costa e CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer (Ogs). Lei do Índio ou Lei do Branco - Quem Decide? Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, p. 237-277, 2019., p. 251), a construção das condições de “legitimidade do ato”

fundamenta-se nos componentes da tradição indígena (em referência ao canaimé), do local de ocorrência (terra indígena) e dos sujeitos envolvidos (todos indígenas), para reclamar não a abertura à jurisdição indígena, mas sim à adequação da jurisdição estatal para atuar desde uma perspectiva diferenciada.

O que se desenvolveu, entretanto, após a ocorrência da sessão de julgamento “veio de rebote”. Apesar da tentativa de democratizar a atuação estatal dando voz aos indígenas e do júri ter ocorrido fora da hostilidade peculiar de Fóruns Criminais, foi “no âmbito das amarras coloniais” que se radica a sessão judicial pretensamente legítima, pois foi “com a orientação das regras, das provas, dos sujeitos e dos procedimentos do direito estatal que se desenvolveu o Júri Indígena” (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Assis da Costa. “O júri indígena de Roraima e a atuação do sistema jurídico indígena”. In OLIVEIRA, Assis da Costa e CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer (Ogs). Lei do Índio ou Lei do Branco - Quem Decide? Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, p. 237-277, 2019., p. 255).

Esta constatação também foi notada pelos indígenas envolvidos no processo, que, após o encerramento do julgamento, reunidas as lideranças, foram apontadas diversas críticas negativas do procedimento. Desta forma, o encerramento da lide processual abriu caminhos para mobilização dos indígenas e formulação daquilo que eles consideraram como justo e como justiça, portanto, da realização de julgamentos internos - primeiro nas comunidades de cada parte, e, depois, na Maloca da Homologação - para chegar a uma definição de sanção contra os acusados e de reparação individual e coletiva dos danos causados.

Desse modo, verificamos a existência de condições jurisprudenciais e normativas para a modificação das práticas judiciais no tratamento de pessoas indígenas na seara penal, o que parece ter sido o caminho adotado na ação penal em análise neste estudo.

No entanto, as mudanças preconizadas estão imersas em um cenário de disputa sobre formas de tratamento dos povos indígenas, que têm por fundamento modelos antagônicos de projetos de sociedade, gerando modos distintos de reconhecimento da diversidade étnica dos sujeitos e povos indígenas. A primeira delas almeja fazer da diversidade algo periférico e transitório, com o objetivo de transformar a igualdade ao padrão aceitável dos valores culturais da sociedade nacional. A segunda compreende o caráter permanente e central da diversidade étnica na formação do que hoje conhecemos por “povo brasileiro”, e de que os valores associados às culturas etnicamente diferenciadas devem ser valorizados, com repercussões diretas em vários âmbitos do Estado, incluindo a Justiça Criminal.

Considerações finais

O reconhecimento, na prática, dos sistemas jurídicos dos povos indígenas não foi inaugurado com a Resolução nº 287/2019 do CNJ. Como destacamos, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi estabelecida uma nova forma de tratamento jurídico dos direitos indígenas. Entretanto, este ainda é um “campo minado” em disputa.

Neste sentido, mais do que discutir o reconhecimento formal, o desafio parece estar na coexistência e coordenação entre os sistemas jurídicos nacional e indígenas (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Assis da Costa. “O júri indígena de Roraima e a atuação do sistema jurídico indígena”. In OLIVEIRA, Assis da Costa e CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer (Ogs). Lei do Índio ou Lei do Branco - Quem Decide? Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, p. 237-277, 2019.). As experiências do Estado brasileiro no reconhecimento dos sistemas jurídicos indígenas ocorreram, sobretudo, no âmbito jurisprudencial, e com foco ao estado de Roraima, não possuindo uma extensão de aplicação e reprodução para outras searas judiciais.

Segundo que assevera Alves da Silva (2017ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. “Pesquisas em processos judiciais.” In MACHADO, Maíra Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017.) a formalização dos conflitos sociais através de um processo judicial pressupõe uma articulação de regras e o manejo de instrumentos processuais que, supostamente, resultariam na “descoberta” de uma “verdade” que impõe uma solução “justa” ao conflito. Entretanto, quando se trata de processo judicial criminal com partes etnicamente diferenciadas faz-se necessária a compreensão de que pode haver mais de uma verdade e que a justiça suporta variações, a depender de quem opera.

Dessa forma, avaliamos que a ação penal que é o foco principal da análise deste artigo carrega este potencial ambivalente de tratamento dos sujeitos e povos indígenas, e seus próximos passos podem caminhar com base: (1) na reflexão quanto ao teor de alguns dos quesitos para que a configuração do estudo antropológico seja voltado para compreender melhor as práticas culturais do povo Kayapó, incluindo de resolução de conflitos; (2) na possibilidade de assegurar a realização do estudo e do laudo antropológico em tempo adequado, com condições laborais dignas para o profissional a ser contratado, e que este tenha uma pactuação prévia de aceite com as lideranças Kayapó; e, (3) na expectativa de oportunizar uma interlocução direta com lideranças e outras representações Kayapó, de modo a poderem participar da tomada de decisão.

Como assinalado, o processo ainda está em trâmite e apesar de termos ciência de que os casos judiciais em andamento não trazem todas as informações interessantes para uma pesquisa, especialmente quanto aos resultados, insistimos no estudo deste, pois os caminhos trilhados no curso do processo são atuais, relevantes e aparentemente contraditórios. Assim, escrevemos na medida em que a ação penal também caminha, o que nos possibilita formular reflexões na expectativa do porvir. É que, se há esforço dos órgãos de justiça de enxergar o caso a partir de outra perspectiva, no que concordamos, esta análise pode contribuir na construção de jurisprudências que respeitem a jurisdição indígena.

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  • PARÁ (Estado). Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Processo nº 0002343-70.2012.8.14.0005. Disponível em: <www.tjpa.jus.br>. Acesso em 19 de março de 2023.
    » www.tjpa.jus.br
  • PINHO, Ana Cláudia Bastos de. “Para além do garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal”. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2018.
  • RORAIMA (Estado). Seção Judiciária Federal de Roraima. Processo nº 0001334-95.1992.4.01.4200. Disponível em: <www.trf1.jus.br>. Acesso em 19 de março de 2023.
    » www.trf1.jus.br
  • ________________. Tribunal de Justiça de Roraima. Processo nº 000166-27.2013.8.23.0045. Disponível em: <www.tjrr.jus.br>. Acesso em 19 de março de 2023.
    » www.tjrr.jus.br
  • ________________. Tribunal de Justiça de Roraima. Processo nº 0090.10.000302-0. Disponível em: <www.tjrr.jus.br>. Acesso em 19 de março de 2023.
    » www.tjrr.jus.br
  • SANTANA, Raimundo Rodrigues. “Justiça Ambiental na Amazônia: Análise de casos emblemáticos”. Curitiba, Juruá, 2010.
  • SILVA, Cristhian Teófilo da. “O índio, o pardo e o invisível: primeiras impressões sobre a criminalização e o aprisionamento de indígenas no Brasil”. Niterói, Antropolítica (UFF), v. 34, p. 137-158, 2013.
  • SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. “O Renascer dos Povos para o Direito”. Curitiba, Juruá, 2006.
  • WOLKMER, Antonio Carlos. “Pluralismo jurídico: um referencial epistêmico e metodológico na insurgência das teorias críticas no direito”. Rev. Direito e Práxis, v. 10, p. 2711-2735, 2019.
  • YRIGOYEN FAJARDO, Raquel. “Aos 20 anos da Convenção 169 da OIT: balanço e desafios da implementação dos direitos dos Povos Indígenas na América Latina.” In VERDUM, Ricardo (org.). Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: INESC, p. 9-62, 2009.
  • 1
    Na perspectiva da assimilação e da integração o indígena perderia sua identidade conforme fosse sendo integrado a uma “comunhão nacional”, pretensamente homogênea. Assim, antes de 1988, a orientação do Estado para os povos indígenas era pautada em “integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”, conforme dispõe o do artigo 1º do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73).
  • 2
    Apesar do processo ser público, na consulta disponível no sítio virtual do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, não foi possível ter acesso aos documentos processuais. Recebemos a orientação de ser viável acessar o processo com advogado habilitado no sistema Processo Judicial eletrônico (PJe). Desta forma, a Defensoria Pública de Altamira disponibilizou os autos via correio eletrônico.
  • 3
    O plurinacionalismo está imbricado em uma nova concepção de constitucionalismo, conhecida como “Novo Constitucionalismo Latino-americano”, que segundo Freitas (2022FREITAS, Raquel Coelho (org.). “Decolonização de conceitos sociojurídicos”. Mucuripe, Fortaleza, 2022., p. 50) “representa uma revolução no direito, uma transformação profunda com o sistema mundo colonial e com o direito moderno e uma ameaça à lógica uniformizadora necessária ao capitalismo e à sociedade de ultra consumo”.
  • 4
    Currículo Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/7669520117195056. Acesso em 18 de março de 2023.
  • 5
    A Convenção nº 169 da OIT é considerada o primeiro instrumento internacional a tratar dignamente dos direitos coletivos dos povos indígenas. Foi recepcionada pelo Decreto Legislativo n° 143, de 20 de janeiro de 2002. Inicialmente, foi promulgada pelo Decreto Presidencial n° 5.051, de 19 de abril de 2004, e em 2019 foi compilado com todas as normativas internacionais da OIT no Decreto n° 10.088, de 5 de novembro de 2019, o qual “consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificados pela República Federativa do Brasil”.
  • 6
    No dia 24 de janeiro de 2023 a nova estrutura da SENAPPEN entrou em vigor. A Secretaria foi criada a partir da transformação do antigo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Com o novo formato, foi introduzida Diretoria com atenção para questões de Cidadania e Alternativas Penais.
  • 7
    Cf. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNjRmNDUxNWItZGExYy00NmRiLTgxYWMtOTEzYTQ3NGEwMjVhIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em 06 de fevereiro de 2023.
  • 8
    Cf. http://ufopa.edu.br/enei2016/nossos-povos. Acesso em 11 de março de 2023.
  • 9
    Cf. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/altamira/panorama. Acesso em 11 de março de 2023.
  • 10
    A “Casa do Índio” é uma estrutura utilizada há muitos anos pelos povos indígenas da região do Médio Xingu como uma casa de passagem, portanto, de estadia temporária, para os indígenas que realizam o fluxo aldeia-cidade. Em virtude dos impactos suportados pelos povos indígenas por conta da construção da UHE Belo Monte, a “Casa do Índio” foi reformada como parte de uma das compensações obrigatórias para as comunidades afetadas pela construção da usina. Costuma funcionar como um local de passagem, em que indígenas ficam hospedados quando estão passando por algum tratamento de saúde ou quando precisam estar na cidade para resolução de alguma pendência de ordem pessoal ou comunitária, vez que algumas terras indígenas são muito distantes (cerca de 10 dias de barco) do cais de Altamira. Ademais, é um espaço compreendido como extensão do território indígena naquela localidade.
  • 11
    Esta petição nos foi enviada pela Defensoria Pública de Altamira.
  • 12
    Cf. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/Manual-Resolu%C3%A7%C3%A3o-287-2019-CNJ.pdf. Acesso em 10 de março de 2023.
  • 13
    As aspas se justificam pelo teor etnocêntrico da expressão.
  • 14
    Para mais informações sobre o caso, indicamos a análise realizada por Assis da Costa Oliveira em artigo intitulado “O Juri Indígena de Roraima e a Atuação do Sistema Jurídico Indígena”, disponível em: https://apiboficial.org/files/2022/03/Lei-do-%C3%8Dndio-ou-Lei-do-Branco_DTP.pdf. Acesso em 18 de março de 2023.
  • 15
    A tentativa de homicídio havia sido motivada pelo fato de a vítima ser um “cainamé”, que, na linguagem indígena, significaria um “matador de gente”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    18 Abr 2023
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