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Fortalecimento das políticas públicas sanitárias e a judicialização da saúde: a experiência do município de Simão Pereira (MG)

Strengthening public health policies and health judicialization: the experience of the municipality of Simão Pereira (MG)

Resumo

Este artigo pretendeu demonstrar que o direito fundamental a saúde tem maior efetividade quando executado mediante o planejamento de políticas públicas sem, ou com a mínima, intervenção judiciária. O direito à saúde tem sido alvo de inúmeras demandas judiciais e buscou-se, por meio da realização de uma pesquisa no Município de Simão Pereira (MG), analisar os resultados obtidos após o aumento dos investimentos orçamentários em saúde pública. A pesquisa considerou o mandato de diferentes governantes, passando pelos resultados dos anos 2013 a 2016 e 2017 a 2020. A hipótese de que maiores investimentos em saúde podem diminuir a busca por este direito por meio da via judiciária foi colocada à prova com o método empírico de pesquisa. As estratégias adotadas no Município consistiram na atuação extrajudicial que resultou na redução de litígios em juízo, na medida em que houve a ampliação do acesso à saúde pela via administrativa. A Teoria dos Fundamentais de Robert Alexy (2017) referenciou a presente pesquisa, conduzida por meio de uma metodologia bibliográfica. Procedeu-se, outrossim, ao estudo de caso sobre a experiência do Município de Simão Pereira (MG) no que diz respeito à execução do orçamento de saúde, quando se confirmou, empiricamente, que a aproximação dos valores entre o orçamento público planejado e o executado, reduziu a demanda pelo direito em juízo, operando a diminuição dos gastos para cumprimento de mandados judiciais, sem o efetivo planejamento. Os dados coletados demonstraram que quanto mais se aproxima o orçamento planejado e o executado, menores são os números de demandas judiciais com pedido relacionada à saúde pública.

Palavras-chave:
Direito à saúde; Judicialização; Políticas públicas

Abstract

This article intends to demonstrate that the fundamental right to health is more effective when executed and better effected through the planning of public policies without, or with minimal, judicial intervention. The right to health has been the subject of numerous lawsuits and, through the realization of In order to confront this hypothesis, a survey was carried out in the Municipality of Simão Pereira (MG), to analyze that analyzed the results obtained after the increase in investments public health budgets. The research considered the mandate of different rulers, going through the results of the years 2016 to 2019 and 2017 to 2020. The hypothesis that greater investments in health can reduce the search for this right through the judiciary was put to the test through the empirical method of search. The strategies adopted in the Municipality consisted of extrajudicial action that resulted in the reduction of litigation in court, insofar as there was an expansion of access to health through the administrative route. Robert Alexy's Theory of Fundamentals (2017) referenced this research, conducted through a bibliographic methodology, to support the theoretical reference, literary and normative review. A case study was also carried out on the experience of the Municipality of Simão Pereira (MG) with regard to the execution of the health budget, when it was empirically confirmed that the approximation of the values ​​between the planned public budget and the executed, reduced the demand for the right in court, operating the reduction of expenses to comply with court orders, without effective planning. The data collected showed that the closer the planned and executed budgets are, the lower the number of lawsuits with requests related to public health.

Keywords:
Right to health; Judicialization; Public policy

1. Introdução

O núcleo essencial dos direitos fundamentais é veiculado por norma-regra, compelindo o Estado a sua promoção e proteção integral, salvo nos casos das exceções constitucionais. Nesta direção, as políticas públicas devem ser organizadas de maneira a salvaguardá-lo. Embora inúmeros esforços da jurisprudência e da doutrina para garantir, disciplinar e efetivar os direitos fundamentais, a efetivação deles ocorre, sobretudo, na seara administrativo-política, capaz de prestigiar valores, transformando a justiça distributiva em justiça social (RAWLS, 2000).

O fundamento deste artigo é a Teoria dos Direitos fundamentais de Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.), que propõe uma interpretação das normas constitucionais sob a perspectiva de regras e princípios. A proposta apresentada é que, com maiores investimentos em políticas públicas, pode ser possível evitar o processo de judicialização. Diante desta premissa, entende-se que caso não sejam fortalecidas as políticas públicas, a atuação do judiciário é crucial para que os direitos fundamentais sejam efetivados.

O objetivo deste trabalho é demonstrar que, com a adoção de políticas públicas eficazes, é possível garantir aos cidadãos o acesso à saúde, sendo que a omissão do poder público acaba por oportunizar a ação judicial. O método utilizado para alcançar esta investigação é a revisão de literatura sobre o tema e por fim, a apresentação dos resultados de uma pesquisa realizada no Município de Simão Pereira (MG) nos anos de 2013 a 2016 e 2017 a 2020, onde houveram maiores investimentos em saúde pública por parte do governo dos anos 2013 a 2016, resultando em maior planejamento e gestão de políticas públicas e, maiores investimentos, resultando na diminuição das demandas judiciais.

2. A constituição (BRASIL, 1988), o direito ao acesso à saúde de qualidade e o sistema único de saúde (SUS)

Com o advento da Constituição (BRASIL, 1988), as políticas públicas tornaram-se assuntos constitucionais, sendo garantidos aos cidadãos direitos subjetivos cuja efetivação, antes, dependia de decisões políticas. Sobretudo nas últimas décadas, foram travados intensos debates, especialmente sobre o direito a saúde e a efetivação de políticas públicas capazes de mitigar as desigualdades e injustiças sociais.

O artigo 196 da Constituição (BRASIL, 1988) estabelece a saúde como um “direito de todos e dever do Estado”, e o erigiu ao status de “direito de cidadania” sob as perspectivas de universalidade, equidade e integralidade.

A medida mais significativa em prol da universalização do direito a saúde foi a instituição constitucional do SUS (Sistema Único de Saúde) e a disciplina de seus princípios na Lei nº 8.080 (BRASIL, 1990). Após três décadas de existência, o SUS beneficia cerca de 180 milhões de brasileiros e realiza cerca de 2,8 bilhões de atendimentos por ano (FIOCRUZ, 2021).

A gratuidade do SUS não se vincula à condição social do usuário do sistema público de saúde, se contribuinte ou não, se vinculado a um sistema de saúde privada ou não1 1 O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, por unanimidade, no Recurso Extraordinário nº 597.064 (BRASIL, 2011) a obrigatoriedade de planos de saúde de ressarcir o Sistema Único de Saúde quando a rede pública tratar pessoas que tenham plano privado. . O usuário tem direito de usufruir do sistema pelo simples fato de ser um cidadão residente no território nacional ou estrangeiro de passagem pelo território brasileiro.

A doutrina apresenta forte discussão acerca da restrição das políticas públicas aos hipossuficientes. Oliveira (2013) defende a aplicação do direito à saúde de forma ampla devido ao seu caráter universal e fundamental. Para estes autores, se o direito a saúde é um direito humano positivado, reduzir sua aplicação diante da comprovação de pobreza seria equivalente a redefinir o conceito de humanidade. Outros autores, como Sarlet e Figueiredo (2013), defendem que o direito à saúde visa a promoção da igualdade entre cidadãos que estão em situação social distinta. Assim, pode-se diferenciar a titularidade universal do direito à saúde, da universalidade do acesso ao SUS, que justifica a existência de discriminações, almejando a redução de desigualdades sociais (DUARTE, 2020).

Diante da insuficiência de parâmetros legislativos para se definir o conceito de hipossuficiência, Duarte (2020) propõe um conceito de hipossuficiência para as demandas de saúde a partir da ausência de condições financeiras para arcar com o procedimento, medicamento ou utensílios hospitalares necessários e pleiteados em juízo, sem comprometer seu próprio sustento e de seus dependentes. Este conceito propõe a análise do caso concreto em que o demandante propõe em juízo (DUARTE, 2020).

A jurisprudência caminha no sentido de exigência da hipossuficiência do demandante para conceder a assistência de saúde pleiteada pela via judicial. Este requisito se apresenta como elemento de preservação do princípio da isonomia, já que não caberia ao SUS fornecer, na via judicial, a assistência a uma pessoa com razoável poder aquisitivo em detrimento e em prejuízo das pessoas carentes (que muitas vezes não possuem condições de acessar o Judiciário).

Para tanto, a saúde depende de políticas públicas, que perpassam o planejamento, a execução e a avaliação. O Estado deve adotar políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e agravos com uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços, a qual deverá abranger a promoção, prevenção e recuperação da saúde, de competência de todos os entes federativos, tudo isso conforme definido na Constituição (BRASIL, 1988).

Os direitos sociais necessitam de uma atuação positiva por parte do Estado. Neste sentido, o direito fundamental à saúde tem, na Constituição (BRASIL, 1988), uma regulamentação que lhe permite atribuir posições jurídicas inerentes a direitos a prestação em sentido estrito - no caso, o direito ao tratamento em hospitais, e a medicamentos - como a prestação em sentido amplo. É necessário se definir onde os recursos públicos serão alocados e de que maneira serão utilizados.

Os direitos a prestação em sentido amplo, incluem, na Teoria de Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.), os direitos a organização e procedimento, direito a proteção e direito de defesa. Todos estes direitos têm manifestação no direito à saúde, como exemplificam estas situações, respectivamente, o direito a organização e instituição do Sistema Único de Saúde pela Lei nº 8.080 (BRASIL, 1990), a instalação de filtros em indústria contra a poluição atmosférica e, por fim, a vedação a que se fume em ambientes públicos fechados (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.).

Holmes e Sunstein (1999HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Nova York: W.W.Norton & Company, 1999. p. 35-51, p. 35-51) expõem que todo direito fundamental apresenta uma dimensão negativa, que exige a abstenção do Estado, e uma dimensão positiva, que demanda sua atuação. A diferença entre os direitos a prestações negativas e os direitos a prestações positivas não reside na exclusividade da prestação demandada ao Estado, mas naquilo que é imediata e diretamente demandado do Estado: sua abstenção ou atuação. Como direitos a prestações negativas, os direitos fundamentais individuais exigem, em um primeiro momento, a abstenção do Estado (exemplo: direitos à vida, liberdade, integridade física, propriedade). De modo diverso, os direitos fundamentais sociais, como direitos a prestações positivas do Estado, demandam, diretamente, uma ação dele para sua implementação, podendo ser em forma de produtos, serviços ou dinheiro fornecidos pelo Estado aos indivíduos (por exemplo: medicamentos, atendimento ambulatorial, auxílio emergencial). Pontes de Miranda (1974, p. 661, 665) leciona que até mesmo os direitos de liberdade apresentariam um conteúdo positivo na medida em que demandam uma tutela jurisdicional que lhes proporcione efetividade, seja para possibilitar seu exercício, seja para coibir ameaças, restrições e limitações a estes direitos por parte dos poderes públicos e outros particulares (direito à proteção, típico direito prestacional). Assim, num mesmo direito fundamental unitariamente designado, podem-se encontrar combinados poderes de exigir um comportamento negativo (das potências públicas) com poderes de exigir ou de pretender prestações positivas, jurídicas ou materiais, ou com poderes de produzir efeitos jurídicos na esfera de outrem, poderes que têm, muitas vezes, recortes diferentes e aos quais correspondem, conforme os casos, deveres de abstenção ou de não-intromissão, deveres de prestação ou de ação.

A satisfação judicial do direito a saúde demanda diligências específicas para ser providenciada e, fatalmente, implica maiores ônus financeiros para o Estado do que a promoção do direito pelas políticas públicas universais, que permitem aquisições de insumos em escala e organização prévia dos serviços. As compras em escala permitem um baixo custo para a Administração Pública, o que satisfaz a demanda de um maior número de pessoas com o mesmo aporte de recursos. Da mesma forma, a organização prévia de um serviço também permite maior economicidade que a viabilização em regime de urgência, pois proporciona a compra através de licitação pública, gerando uma aquisição com preços mais competitivos por parte da Administração.

Segundo Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.), para efetivar os direitos sociais, o Estado só tem condição de proporcionar aquilo que arrecada por meio de tributos, de forma que a limitação de tributar que lhe é imposta acaba por gerar restrições às respectivas políticas públicas.

Assim, a sociedade custeia a ação estatal e tem menos recursos para si própria, de modo que as políticas públicas não produzem apenas benefícios, elas também restringem liberdades e direitos, na medida em que consomem recursos que poderiam ser alocados para outras finalidades (DE BARCELLOS, 2018DE BARCELLOS, Ana Paula. Políticas públicas e o dever de monitoramento: “levando os direitos a sério”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 251-265, 2018.).

No caso do SUS, o cidadão contribui obrigatoriamente por meio de tributos que serão parcialmente destinados ao sistema de saúde. A contribuição é compulsória, não identificável e universal. O governo (seja na esfera federal, estadual ou municipal) é, neste caso, gestor do recurso público, além de ser formulador de políticas, regulador e fiscalizador do sistema de saúde.

A competência quanto à responsabilidade do poder Público é comum à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que deverão “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”, conforme o inciso II do artigo 23 da Constituição (BRASIL, 1988). Desta forma, todos os entes da Federação, cada qual no seu âmbito administrativo, têm o dever de zelar pela adequada assistência à saúde aos cidadãos brasileiros.

A Constituição (BRASIL, 1988) é o principal instrumento de defesa social e suas normas precisam ser concretizadas por meio de um projeto político fundamental para haver aproximação entre o texto constitucional e a realidade social (CANOTILHO, 2002).

O princípio constitucional da inafastabilidade da tutela judicial (inciso XXXV do art. 5º) garante aos cidadãos a possibilidade de recorrer ao poder judiciário diante de casos em que perceba seus direitos carentes de efetivação. Desta forma, cada vez mais, a Justiça tem sido provocada e atuante, compelindo o Estado a adimplir suas obrigações constitucionais e infraconstitucionais. A aproximação entre o direito e a saúde tem sido cada vez maior.

Assim, conforme a visão de Barcellos (2018):

(...) é possível afirmar que o compromisso constitucional com os direitos fundamentais não é um compromisso propriamente com a existência de normas sobre o assunto, de políticas públicas de direitos fundamentais ou mesmo de decisões judiciais que determinem sua execução. Todos esses mecanismos serão meios para atingir um fim: a garantia efetiva, no dia a dia das pessoas, dos direitos fundamentais (DE BARCELLOS, 2018DE BARCELLOS, Ana Paula. Políticas públicas e o dever de monitoramento: “levando os direitos a sério”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 251-265, 2018., p. 261).

Portanto, o judiciário e o legislativo podem gerar estímulos para a construção das políticas públicas de proteção e promoção dos direitos fundamentais, que devem ser materializadas pela ação do poder executivo de forma a alcançar o cidadão.

3. A eficácia do direito social à saúde e a teoria dos direitos fundamentais

A proteção aos direitos fundamentais é levada a sério quando a independência e harmonia entre os Poderes forem capazes de viabilizar, para as minorias excluídas do acesso aos direitos fundamentais mais básicos, a conquista da sua própria condição humana.

Percebe-se uma dicotomia na garantia dos direitos fundamentais; de um lado, tem-se o Estado com dificuldades estratégicas para desenvolver projetos de longo prazo, com a falta do compromisso dos gestores em relação a alguns assuntos de extrema relevância e importância para o povo. Lado inverso, tem-se a atuação do judiciário garantindo direito e impondo deveres ao Estado que, muitas vezes, não considera a escassez de recursos e nem a dificuldade de compra de alguns insumos e produtos.

Alexy (2002) conceitua o direito a saúde como uma prestação em sentido estrito, que o indivíduo possuirá frente ao Estado, mas que, se encontrar condições de satisfazê-lo de maneira particular, poderá concretizá-lo. Alexy (2002) expõe que “se o direito carece de pautas suficientes, então a decisão acerca do conteúdo dos direitos fundamentais sociais é um assunto da política”.

Direitos fundamentais são direitos públicos subjetivos, oponíveis ao Estado, expostos por Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.) como direitos humanos positivados no ordenamento jurídico nacional (ALEXY, 2014), tendo assim, pretensão de universalidade e dimensão internacional, considerando a essencialidade de seu conteúdo (TOLEDO, 2019TOLEDO, Claudia; ANGELUCCI, Paola; GOMES, Natascha. Direitos Fundamentais Sociais e Mínimo Existencial na Realidade Latino-Americana-Brasil, Argentina, Colômbia e México (Fundamental Social Rights and Existential Minimum in Latin America Reality-Brazil, Argentina, Colombia and Mexico). TOLEDO et al. Direitos Fundamentais Sociais e Mínimo Existencial na Realidade Latino-Americana-Brasil, Argentina, Colômbia e México, 2019. Disponível em SSRN:https://ssrn.com/abstract=3754087
https://ssrn.com/abstract=3754087...
).

A demanda judicial pode garantir o direito a saúde para aquele indivíduo diante de um caso concreto, mas não necessariamente efetiva o direito a saúde, muito menos impõe qualquer atuação preventiva por parte do Estado para materializar este direito (ASENSI, 2016ASENSI, F.; PINHEIRO, R. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E DIÁLOGO INSTITUCIONAL: A EXPERIÊNCIA DE LAGES (SC). Revista de Direito Sanitário, v. 17, n. 2, p. 48-65, 25 out. 2016.). Milhares de pessoas passarão uma vida inteira sem serem beneficiadas por uma decisão judicial individualizada sobre o direito sanitário.

A edição de uma lei criando uma política pública de promoção de determinado direito é, sem dúvida, um ponto de partida, mas não se seguirá à transformação da realidade à expedição da norma. Nem as decisões judiciais mais complexas, que pretendem interferir nas políticas públicas de forma coletiva, terão o condão de transformar aquilo que é real (DE BARCELLOS, 2018DE BARCELLOS, Ana Paula. Políticas públicas e o dever de monitoramento: “levando os direitos a sério”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 251-265, 2018.). Será a política pública prevista na norma ou na decisão judicial que fará a execução prevista se tornar realidade.

Todavia, mesmo que a política pública seja efetivamente executada, tal como concebida, não se garante que ela produzirá os efeitos desejados sempre. Apenas o monitoramento dos resultados permitirá conhecer as implicações, tendo em conta as adversidades entre os vários grupos sociais e as regiões, já que a mesma política pode produzir efeitos diferentes dependendo dos elementos com os quais venha a interagir na realidade.

A saúde comporta critérios sociais, políticos, jurídicos e psicológicos. A compreensão do que seria o direito a saúde poderia conceder ao gestor público a possibilidade da execução de medidas e a definição de estratégias voltadas a efetivação deste direito, pois ele não se reduz à mera ausência de doença, mas envolve aspectos que se encontram relacionados ao bem-estar físico, mental e social. Por isso, é necessário considerar o indivíduo enquanto ser humano inserido em um contexto social específico e com subjetividades singulares, e não isoladamente. É imprescindível analisar a necessidade individual, pois, muitas vezes, o acesso a saúde não trata apenas de possuir ou não uma doença, mas por vezes pode significar a vontade de ser aceito em uma sociedade, sentimento que pode ser desdobramento de problemas psicológicos ou sociais.

A ideia de saúde como ausência de doença deve ser combatida dentro do aspecto judicial deste direito em sua esfera de garantia constitucional. Deve-se apelar para uma visão multiprofissional, com diálogo dentro dos diversos problemas de saúde em sentido amplo, para que se possa, de fato, garantir a conquista exarada pela Constituição (BRASIL, 1988).

Ao dissertar sobre a Teoria dos direitos fundamentais, Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.) afirma que regras e princípios são normas, sendo que ambos traduzem o dever-ser. Assim, regras e princípios podem ser formulados por meio de expressões do dever, da permissão e da proibição (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017., p. 87). Princípios são mandamentos de otimização; por outro lado, “as regras contêm determinações no campo do que é factual e juridicamente possível” (ALEXY, 2017, p. 91).

Como característica dos princípios, destaca-se a sua generalidade, sendo este atributo apenas relativamente correto na medida em que existem regras com um grau de generalidade também. Os princípios são a ferramenta para se alcançar a justiça nas situações complexas; logo, ao balanceá-los, busca-se fazer justiça no caso concreto.

Quando ocorre uma colisão entre princípios, sob certas circunstâncias, um deles precede o outro (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017., p. 105). Em síntese, os conflitos de regras são realizados na dimensão da validade; a colisão de princípios ocorre, também, na do peso (ALEXY, 2017).

Assim, os princípios são mandados de otimização que podem ser satisfeitos em graus variados, e seu grau de satisfação depende das possibilidades fáticas e jurídicas (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.). Busca-se uma solução por meio da qual o princípio precedente seja realizado no maior grau possível, em um patamar no qual afete/restrinja em um menor grau possível o princípio precedido. Trata-se de otimizar e de buscar um equilíbrio.

Ao contrário, as regras devem ser cumpridas na base do tudo ou nada: se uma regra for válida, deve-se fazer exatamente o que ela determina, nem mais, nem menos. Sendo assim, as regras possuem determinações dentro do fático e juridicamente possível. Dentro deste parâmetro, não há margem para a valoração do intérprete. A norma deve ser aplicada mediante subsunção (enquadra-se o fato à norma e há uma conclusão objetiva).

A “lei da colisão” mostra as condições que justificam a prevalência de um princípio sobre outro, revelando que “[...] o peso dos princípios não é determinado em si mesmo ou de forma absoluta e que só é possível falar em pesos relativos” (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017., p. 168). Neste ponto, a ponderação se apresenta como um modelo para se solucionar racionalmente a colisão entre princípios.

O objetivo do sopesamento é definir qual dos interesses que estão abstratamente no mesmo nível deverá prevalecer com maior peso no caso concreto. Do sopesamento de princípios colidentes diante de um caso concreto extrai-se uma regra, a qual cominará diante de determinadas condições a consequência jurídica do princípio colidente.

No âmbito dos direitos fundamentais, quando estes estiverem na forma de princípios, não serão absolutos, e restrições a eles somente poderão ocorrer mediante a ponderação com princípios contrários com a aplicação da máxima da proporcionalidade e suas três submáximas: adequação, necessidade ou vedação do excesso e proporcionalidade em sentido estrito.

Considera-se que todo direito a uma ação estatal positiva, ou direito que exige uma obrigação estatal, é um direito a prestação em sentido amplo. Sarlet (2018, p.193) menciona que, na doutrina alemã, as expressões “direito de participação” ou “direitos de quota-parte” são utilizadas como sinônimas do “direito a prestações”. Nos direitos a prestações em sentido amplo não estão inclusos apenas os direitos a prestações fáticas (ou materiais), mas também a prestações normativas.

As prestações fáticas, na concepção de Alexy (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017., p. 442), são como o direito a algo que o titular do direito poderia obter de outras pessoas privadas se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse, no mercado, uma oferta também suficiente. Assim, o Estado tem que dispor de prestações jurídicas e materiais. Estes direitos são realizáveis não contra o Estado, mas por meio do Estado, mais precisamente um Estado empenhado na realização dos direitos de uma sociedade.

Assim, não adiantaria existir o direito a saúde constitucionalmente positivado, por exemplo, se não há hospitais ou medicamentos para que este direito seja efetivado. Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.) menciona, ainda, que os direitos fundamentais têm um valor ainda maior para aqueles que estão em situação de necessidade (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017., p. 504-506).

O estudo da teoria dos direitos fundamentais, baseado na diferenciação entre regras e princípios, permitiu o desenvolvimento de uma dogmática dos direitos sociais, incluindo a proporcionalidade como aspecto indissociável desse direito. Ela aparece como uma ferramenta que determina o conteúdo do direito social, que depende do sopesamento entre interesses distintos e da disponibilidade de recursos.

As normas de direitos fundamentais chamados sociais podem ser conceituadas como normas que garantem direitos subjetivos ou que apenas obriguem o Estado de forma objetiva. Podem ser normas vinculantes ou não-vinculantes, também chamadas de programáticas. E, por fim, podem fundamentar direitos e deveres definitivos ou prima facie, isto é, regras ou princípios.

Diante desta diferenciação, Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017., p. 501) propõe uma tabela com gradação de vinculação dos direitos sociais, sendo que a proteção mais intensa é garantida pelas normas vinculantes que outorgam direitos subjetivos definitivos a prestações e a proteção mais fraca pelas normas não-vinculantes que fundamentam um dever estatal objetivo prima facie à realização de prestações.

Um direito subjetivo definitivo vinculante seria como o direito a um mínimo existencial, caracterizado por ser o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais indispensáveis para uma garantia elementar de dignidade (TOLEDO, 2019TOLEDO, Claudia; ANGELUCCI, Paola; GOMES, Natascha. Direitos Fundamentais Sociais e Mínimo Existencial na Realidade Latino-Americana-Brasil, Argentina, Colômbia e México (Fundamental Social Rights and Existential Minimum in Latin America Reality-Brazil, Argentina, Colombia and Mexico). TOLEDO et al. Direitos Fundamentais Sociais e Mínimo Existencial na Realidade Latino-Americana-Brasil, Argentina, Colômbia e México, 2019. Disponível em SSRN:https://ssrn.com/abstract=3754087
https://ssrn.com/abstract=3754087...
). Trata-se do limite às restrições feitas ao direito fundamental no caso concreto, que, quando em colisão, não pode ser afetado, por se tratar de um conteúdo básico, sob pena de aniquilar o próprio direito (TOLEDO, 2019).

A dignidade humana seria, então, a referência para a garantia do mínimo existencial, sendo um parâmetro para a identificação de qual direito deve compor o conteúdo deste mínimo, tudo isso considerando a realidade do país em um dado momento histórico (TOLEDO, 2019TOLEDO, Claudia; ANGELUCCI, Paola; GOMES, Natascha. Direitos Fundamentais Sociais e Mínimo Existencial na Realidade Latino-Americana-Brasil, Argentina, Colômbia e México (Fundamental Social Rights and Existential Minimum in Latin America Reality-Brazil, Argentina, Colombia and Mexico). TOLEDO et al. Direitos Fundamentais Sociais e Mínimo Existencial na Realidade Latino-Americana-Brasil, Argentina, Colômbia e México, 2019. Disponível em SSRN:https://ssrn.com/abstract=3754087
https://ssrn.com/abstract=3754087...
).

A diversidade apresentada por Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.) demonstra a importância dos direitos fundamentais sociais não serem resumidos a uma questão de tudo ou nada. As restrições seriam permitidas quando proporcionais e justificadas, podendo ser de ordem orçamentária ou exigências de outros direitos fundamentais, sociais ou democráticos.

A teoria dos princípios enfatiza que a ponderação não é um procedimento que, em cada caso, conduza necessariamente a um único resultado. Esta tese sustenta que, com ajuda da ponderação, em alguns casos, pode estabelecer-se um resultado de maneira racional, justificando a ponderação enquanto método. Como regra ao sopesamento, Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.) propõe que relações de importância devem ser seguidas, entre elas, a de que, quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior será a importância da satisfação do outro (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017., p. 167).

Com a lei de colisão, fica claro que os princípios não estão sujeitos a relações absolutas de precedência, sendo essencial a análise das condições de cada caso concreto, as quais podem levar a diferentes resultados ao se solucionar a colisão entre os princípios (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.).

O procedimento da ponderação apresentado na teoria dos direitos fundamentais não estabelece um resultado, mas somente indica a direção do argumento. Neste momento, torna-se evidente a necessidade com que a teoria dos princípios precisa ser complementada pela teoria da argumentação jurídica, que apontará razões e estabelecerá as regras do discurso, que justificará as escolhas tomadas em sede de sopesamento (ALEXY, 2020ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. 5ª ed., São Paulo: Landy Editora, 2020.).

Piovesan (2018) endossa a responsabilidade internacional do Estado em garantir o direito à saúde com a observância de parâmetros protetivos mínimos e com a implementação de medidas relevantes, que compreendem a adoção de políticas públicas direcionadas, maximização do acesso à saúde, garantindo universalidade no atendimento eficiente, medidas de saúde que alcancem estabelecimentos de custódia, adoção de programas governamentais de conscientização dos cidadãos para respeito dos direitos sociais, prestígio ao devido processo legal e eficiência do judiciário e, por fim, a disseminação da definição contemporânea do direito à saúde, entendido como o desfrute pelo ser humano do mais elevado nível de saúde física e mental.

A efetivação do direito à saúde, enquanto direito subjetivo, depende do grau de desenvolvimento do Estado. Quanto mais rica é a área onde as pessoas residem, melhor é a sua saúde; o nível de saúde das pessoas e o gradiente social em saúde dizem muito a respeito de uma determinada sociedade (VIEIRA, 2020). Quanto mais rico um país é, mais saudável é a sua população, sendo a renda um indicador na determinação da saúde da população, mas não o único (VIEIRA, 2020).

Outro fator que interfere no nível de saúde de um país são os índices de investimento em educação da nação. Embora sejam direitos fundamentais diferentes, se correlacionam, sendo que, quanto maior o grau de instrução de um povo, maior é sua busca por uma vida de qualidade, preservando padrões de busca pela saúde física e mental (VIEIRA, 2020).

O planejamento como instrumento de previsão de ações e racionalização de recursos e de mobilização de sujeitos está previsto no ordenamento jurídico do SUS. Preconiza-se uma lógica ascendente e participativa, do Município a União, e a aprovação dos planos e programas nas instâncias de controle social nas três esferas de gestão (VASCONCELOS; PASCHE, 2012).

Barcellos (2018) leciona que a produção de normas, a produção doutrinária e a prolação de sentenças colaboram para a proteção do direito à saúde, mas não são suficientes para garanti-los. Isso porque, no que concerne à judicialização, uma grande parcela da população passará uma vida inteira sem jamais se beneficiar de uma sentença judicial. A edição de uma lei, é sem dúvida um ponto de partida, mas também não se mostra suficiente para a fruição do direito à saúde e nem mesmo uma decisão judicial de caráter coletivo.

Assim, a implementação de políticas públicas de saúde ainda é o caminho que pode alargar o alcance das normas de garantia de direitos sociais (DE BARCELLOS, 2018DE BARCELLOS, Ana Paula. Políticas públicas e o dever de monitoramento: “levando os direitos a sério”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 251-265, 2018.).

O Estado formula suas políticas públicas a partir do enfoque nas necessidades dos usuários por ciclos vitais (faixas-etárias), etnias, gênero, orientação sexual, situação social, incluindo ainda, as políticas transversais, importantes para toda a população. Assim, elas surgem para fortalecer o regime democrático e, desse modo, garantir o bem-estar de toda a sociedade ao atender aos interesses coletivos.

Ao conceber uma política pública, os agentes públicos de qualquer esfera do governo ou do legislativo devem estabelecer metas, visando alcançar a solução do problema a ser enfrentado com a adoção daquela medida. Em termos constitucionais, a redução das desigualdades sociais deve ser uma meta da administração pública, proporcionando o atendimento das medidas mais básicas de todos antes de avançar para novos níveis de proteção. Há uma presunção relativa, referente ao direito à saúde de que quanto mais exames, consultas, procedimentos e medicamentos forem ofertados, mais haverá proteção e recuperação da saúde das pessoas; todavia, não é possível ter certeza de que há uma conexão necessária entre esses dois fenômenos sempre e para toda a população (BARCELLOS, 2018).

Se uma política pública não dispõe de metas claras, não há como saber se ela alcança os resultados pretendidos. Assim, pode-se afirmar que o compromisso constitucional com os direitos fundamentais não é um compromisso de existência de normas sobre o assunto, de políticas públicas de direitos fundamentais ou mesmo de decisões judiciais que determinem sua execução. Todos esses mecanismos devem ser meios para atingir um fim: a garantia efetiva, no dia a dia das pessoas, dos direitos fundamentais (BARCELLOS, 2018). Para levar os direitos a sério, é preciso acompanhar o cumprimento de seu propósito na realidade, no dia a dia das pessoas que pretende beneficiar.

4. A judicialização da saúde e o núcleo essencial desse direito

Uma questão importante que deverá ser sempre considerada quando do julgamento de uma demanda judicial conferindo o acesso à saúde aos demandantes seria a essencialidade da demanda. A teoria dos direitos fundamentais de Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.) é um importante guia na prática argumentativa e de tomada de decisões neste aspecto.

A definição do conceito de essencialidade passa pela garantia não apenas da vida, mas de uma existência com condições mínimas de dignidade (DUARTE, 2020), podendo ser garantido no plano argumentativo pela escala tríade de Alexy (apud TOLEDO, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.), que permite avaliar níveis de satisfação do direito.

Conforme ensinamento de Duarte (2020), no nível de satisfação máximo, devido a seu alto grau de essencialidade, contemplam-se as ações que indiquem a tutela da vida. Todavia, de igual forma seriam contempladas no núcleo essencial do direito à saúde as demandas que impliquem noção de dignidade, aptas a conduzir o ser humano a uma existência digna, com condições mínimas de saúde. As demandas de segunda necessidade seriam aquelas que afetam a dignidade da pessoa humana apenas de maneira leve ou moderada (DUARTE, 2020).

Sendo a norma um mandado de otimização de acordo com a Teoria de Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.), ela não vinculará em absoluto o julgador quando de sua decisão, mas apenas naquilo que afeta o núcleo essencial desse direito.

Quanto a justiciabilidade de um direito, sua existência não dependerá exclusivamente deste fator; contudo, se um direito existe, ele será justiciável (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017., p. 514). A inércia do legislador fazendo-o omisso não pode tornar o Tribunal Constitucional impotente.

Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.) considera, ainda, que o direito subjetivo a uma prestação social básica, indispensável para uma vida com dignidade, deve prevalecer no caso concreto, quando do conflito entre o princípio da reserva do possível e do princípio democrático, igualmente não absolutos.

Tratar sobre o núcleo essencial de um direito fundamental significa estabelecer a parcela de eficácia mínima que ele possui e, diante desta identificação, proteger este conteúdo de eventuais restrições. Assim, o núcleo essencial de um direito fundamental seria o “limite dos limites”, já que delineia a parte do direito que não pode ser violada.

Com efeito, a judicialização da saúde produz sérias consequências em âmbito jurídico, político e social, haja vista que os recursos inicialmente destinados ao financiamento de programas e serviços públicos de saúde são realocados para atender a demandas particulares e isoladas. Todavia, diante de alguns negacionismos de investimentos em saúde, a atuação judicial se torna imprescindível.

As decisões judiciais emanadas devem, portanto, ser proferidas de forma racional e em estrita observância às leis e políticas públicas de saúde vigentes e não de forma individualizada a todos aqueles que buscam o Poder Judiciário para satisfazer seus interesses pessoais (SILVA, 2008).

Nos termos do inciso III do art. 3º da Constituição (BRASIL, 1988), a definição de prioridades deve ser orientada pela redução das desigualdades sociais. Ou seja, é preciso assegurar o atendimento das necessidades mais básicas para todos antes de avançar para níveis mais amplos de proteção, sob pena de ampliar a desigualdade.

Este conceito corrobora a polêmica entre a dicotomia do individual e do coletivo provocada pela judicialização da saúde. Assim, a atividade do judiciário pode ser considerada positiva, uma vez que pode reduzir as violações de direitos cometidas pelo próprio Estado contra seus cidadãos. Seria então, um avanço efetivo da cidadania. Por outro lado, seria um contrassenso entre elaboradores e executores da política no Brasil, que, por muitas vezes, passam a atender um número cada vez maior de ordens judiciais, garantindo as mais diversas prestações do Estado de maneira individualizada e não coletiva, como proposto na Constituição (BRASIL, 1988).

5. O papel das políticas públicas no contexto dos direitos fundamentais

É preciso repensar a posição do Estado, das instituições, do Direito e da sociedade. Diante deste cenário, a política pública seria uma direção do Estado, estabelecendo um objetivo a ser perseguido para realização de determinado direito. Todavia, a ausência destas políticas importaria omissão capaz de gerar controle judicial, que é um direito constitucional do cidadão.

Propõe-se, assim, a divisão das políticas públicas em duas categorias, que seriam as constitucionais (aquelas que derivam da própria Constituição e, por esta razão são tidas como fundamentais) e as infraconstitucionais, que concretizam os direitos fundamentais com programas propostos pelo governo sujeitas ao controle judicial.

Os juristas podem, certamente, contribuir para a realização da razão e da justiça, mas não podem fazer isso sozinhos. Isto pressupõe uma ordem racional e justa (ALEXY, 2005, p. 281).

O direito à saúde se confunde com a proteção da vida na grande maioria dos casos em que é invocado2 2 Ao longo do período compreendido entre 2015 e 2020, de acordo com os dados do Justiça em Números de 2020 (CNJ, 2020), mais de 500 mil novos processos relacionados a Tratamento Médico-hospitalar, classificação que abarca tanto pedidos de consultas quanto de cirurgias, ingressaram no Judiciário. O ano de 2016 foi o que contou com o maior registro de processos com essa temática (mais de 100 mil processos novos). e, assim, o Estado acaba compelido a efetivá-lo. Logo, há uma omissão inconstitucional caso a Administração Pública não pratique as medidas necessárias para efetivar este direito diante de um caso que envolva demandas de saúde de primeira necessidade. Nos casos de omissão inconstitucional, há legalidade para a atuação positiva do poder judiciário.

Ao avançar em iniciativas para melhoria da qualidade dos serviços básicos e especializados de saúde, o Poder Judiciário contribuirá para prevenção de novas demandas judiciais por acesso à saúde, atuando, em última análise, para a preservação dos direitos fundamentais à vida e à saúde (CNJ, 2020).

Nos casos em que as demandas de saúde não implicarem a preservação da vida ou a dignidade em grau intenso, há uma demanda de saúde de segunda necessidade e, então, para prover este direito, é preciso considerar as demais necessidades dos indivíduos, bem como as possibilidades de gastos do poder público, levando ao estabelecimento de prioridades com um processo de ponderação.

Abstratamente considerado, o direito a saúde é um mandado de otimização e o direito definitivo necessita de ser afirmado no caso concreto. Ocorre que o núcleo essencial do direito a saúde é afeto à vida ou a uma existência minimamente digna. Por isso, deverá ser garantido como um direito definitivo (norma regra), conforme concebida por Alexy (2003).

A vida humana é a condição de fruição de todos os demais direitos. O núcleo essencial consiste no “limite dos limites” à restrição dos direitos fundamentais (ALEXY, 2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.). O critério da essencialidade encontra-se, então, nas demandas de saúde no critério da preservação da vida com condições mínimas de dignidade (DUARTE, 2020), compondo, assim, o núcleo essencial desse direito.

Não se olvida que a escassez de recursos, muitas vezes, impõe ao poder público a impossibilidade de realizar as prestações estatais de saúde. Todavia, as prestações de saúde que podem ceder diante da escassez de recursos são as demandas de saúde de segunda necessidade, ou seja, aquelas que não possuem relação com o direito à vida e a uma existência com dignidade (DUARTE, 2020).

Como proposto por Alexy (2017ALEXY. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.), se há a pretensão de tratar A de maneira distinta do tratamento conferido a B, há necessidade de fundamentar esta decisão. Dessa forma, as políticas devem, em um primeiro momento, desejar realizar os direitos fundamentais, conferindo aos cidadãos a efetividade da proposta constitucional. Em um segundo momento, estas mesmas políticas devem contribuir para a promoção da igualdade social entre os membros desta mesma comunidade, efetivando os direitos da justiça e igualdade, além do direito à saúde, alvo primário da política pública.

6. Estudo de caso: município de Simão Pereira (MG)

O Estado é o detentor da possibilidade fática e jurídica de atuar, proporcionando a concretização dos direitos fundamentais. Se não o faz, deixa uma lacuna, uma omissão, que pode causar dano a uma pessoa, que passa a ter o direito de argui-lo pelas vias judiciais.

O principal objetivo deste estudo de caso é contribuir para a compreensão da necessidade de fortalecimento das políticas públicas, uma vez que, ao serem implementadas, mediante planejamento, possuem a potencialidade de melhor alocação dos recursos públicos e assim, o alcance de um número maior de indivíduos3 3 Estratégia semelhante foi utilizada na pesquisa em que houve análise, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça, nos anos de 2013 e 2014, no município de Lages (SC), se situa no estado brasileiro de Santa Catarina. Os municípios desta região enfrentam desafios de estruturação do sistema de saúde, especialmente porque estão distantes da capital. A experiência deste Município versou sobre a criação e atuação do Núcleo de Conciliação de Medicamentos ou, no fato de que, com a interação do Consórcio Intermunicipal com os atores políticos e jurídicos, instituiu-se uma forma de diálogo institucional. Assim, gestores políticos e jurídicos empreenderam diversas ações com o objetivo de definir critérios uniformes a serem aplicados na concessão de medicamentos e melhorar o gerenciamento do fornecimento dos medicamentos pela via judicial. Isso possibilitou um melhor atendimento aos usuários do SUS e ganhos operacionais aos municípios, por meio de diversas medidas implementadas de forma integrada. O resultado foi a construção extrajudicial - a partir do Consorcio e do Núcleo - de diversas políticas públicas com a integração entre o Executivo e o Judiciário. Esses arranjos permitiram uma atuação predominantemente extrajudicial. O resultado alcançado foi a redução da litigiosidade e a ampliação de arranjos institucionais. (ASENSI, 2016). . Busca, ainda, a melhor compreensão do fenômeno da judicialização da saúde por meio do detalhamento e classificação de dados acessíveis sobre esta experiência no Município de Simão Pereira, no estado de Minas Gerais, entre os anos de 2013 a 2016 e 2017 a 2020, períodos em que houve diferentes atuações políticas com aplicação de políticas públicas distintas.

Esta pesquisa se desenvolveu em duas etapas: (a) coleta e análise de dados relativos aos processos judiciais existentes (arquivados e ativos) que têm no polo passivo o Município de Simão Pereira (Minas Gerais) e cuja causa de pedir contenha pleito que guarde relação com a saúde física e mental do autor nos anos de 2013 a 2020; (b) pesquisa empírica a partir do estudo do caso do Município de Simão Pereira (Minas Gerais) acerca dos gastos com saúde pública no lapso temporal escolhido (previsto e executado), bem como os gastos com judicialização da saúde neste mesmo período.

Antes de apresentar os resultados alcançados, é necessário relatar, como dificuldade emersa no curso da pesquisa, que o sistema da Prefeitura não possuía dados dos anos 2013 e 2014 arquivados. Dessa maneira, tornou-se impossível a realização da pesquisa com os gastos públicos neste lapso temporal, uma vez que não havia compras, despesas, nem empenhos arquivados. Esta limitação implicou nova delimitação temporal à pesquisa: para permitir a similitude política dos períodos de gestão estudados, optou-se por utilizar os dados referentes aos últimos dois anos de cada gestão, tanto no que diz respeito aos processos judiciais referentes a prestações de saúde encontrados, quanto no que concerne aos gastos financeiros efetuados administrativamente na seara da saúde.

Este novo recorte temporal com relação à análise de gastos em saúde pública não comprometeu a pesquisa, uma vez que os dados dos dois anos finais de cada mandato foi garantiu a equivalência das circunstâncias. Embora a amostra da pesquisa seja relativamente pequena, por se tratar de um Município com poucos habitantes, considera-se que estes dados e informações sejam reveladores de uma problemática que não seria facilmente estudada mediante outras estratégias metodológicas (MACHADO, 2017). E este é o mérito da metodologia de estudo de caso. A escolha do Município de Simão Pereira ocorreu devido a autorização obtida da respectiva chefia do Executivo para a pesquisa no sistema interno da Prefeitura. Em virtude de se contar com a contribuição de servidores públicos locais, houve a possibilidade de acesso a dados internos, constantes do sistema próprio de contabilidade e, por isso, houve a viabilização do alcance de riqueza de detalhes e uma certeza em relação aos dados. A dificuldade de acesso a documentos, ainda que públicos, é uma questão que deve ser enfrentada na elaboração da pesquisa e, considerou-se que o acesso à informação, neste caso, seria mais intenso, o que concederia confiabilidade à pesquisa.

Considerando os resultados coletados, conclui-se que, nas demandas judiciais contra a Prefeitura Municipal de Simão Pereira, sendo que no polo passivo considerou-se estas demandas sendo aquelas em que figuraram o “Município de Simão Pereira”, a “Prefeitura Municipal de Simão Pereira” e o “Secretário de Saúde de Simão Pereira”, no lapso temporal de 2013 a 2016 houveram 04 demandas judiciais, sendo que no ano de 2016 nenhuma vez o judiciário interveio para garantir o acesso à saúde dos cidadãos simonenses.

Das 04 demandas judiciais, 02 tinham como objeto aquisição de medicamentos, o que corresponde a 50% dos pedidos formulados em juízo. Uma demanda requeria vaga em hospital (o que corresponde a 25% dos pedidos) e 01 processo teve o objeto da ação desconhecido, uma vez que o processo já estava arquivado por ter sido extinto por ausência de pressupostos processuais ainda no ano de 2014, uma vez que logo que ingressou com a ação o (a) autor(a) veio a óbito.

Mediante análise dos dados coletados referente ao lapso temporal de 2017 a 2020, inferiu-se a existência de 27 demandas judiciais contra o Município de Simão Pereira, sendo que foram observados os mesmos critérios de pesquisa dos anos anteriores.

Destes 27 pedidos formulados em juízo, 23 processos solicitavam o fornecimento de medicamentos, o que corresponde a aproximadamente 85,18% dos pedidos. Suplementação alimentar e fraldas foram objeto de apenas 01 ação (3,70% dos pedidos), bem como pedido de cirurgia também apresentou apenas uma causa de pedir deste universo de processos pesquisados (3,70% dos pedidos). A segunda maior causa de pedir foi o fornecimento de óculos com lente de grau, que resultou em 7,40% dos pedidos (referente a 02 demandas).

Assim, pode-se inferir que no primeiro lapso temporal pesquisado, foi constatado um número extremamente pequeno de demandas judiciais, se comparado ao segundo lapso temporal (o número de demandas judiciais no governo que ocorreu entre 2013 a 2016 foi quase 7 vezes menor que o número de judicialização da saúde entre os anos 2017 a 2020).

Do universo total de processos pesquisados inferiu-se que, no Município de Simão Pereira, a maior causa de pedir que faz o cidadão recorrer à justiça é o acesso a medicamentos, o que permite afirmar que as políticas públicas destinadas a melhor distribuição de medicamentos fazem com que a população não necessite recorrer à justiça para garantir esse direito.

Observa-se, ainda, que 93,54% do total geral dos pleitos judiciais ocorreu por meio da Defensoria Pública e/ou atermação no Juizado Especial, sendo apenas 02 demandas patrocinadas por advogado particular. 96,77% dos processos tiveram a justiça gratuita deferida no processo, sendo que em 100% das demandas objeto desta amostra foi requerida ao Juiz da causa. Este dado demonstra que estas demandas são predominantemente afetas às classes mais pobres da sociedade.

Dentro dos quesitos pesquisados, 100% dos pedidos em juízo apresentaram como meio de prova laudo ou atestado médico, sendo que em apenas 01 processo, além do laudo médico foi requerida a realização de perícia. O dado apresentado demonstra o quanto é importante o laudo médico neste tipo de demanda e o que ele representa, sendo sozinho, capaz de conduzir a decisão judicial e o convencimento do juiz. A inclusão de documento médico explicitando o quadro de gravidade do paciente não é uma exigência legal no processo; porém, considerando que os magistrados não têm formação em saúde, mostra-se de suma importância toda e qualquer informação que colabore com a formação do convencimento do julgador. Além disso, trata-se de alternativa que permite respaldar as decisões do Poder Judiciário em casos de medida liminar.

No ano de 2015, em relação aos gastos em saúde pública, houve uma representação de 0,31% em relação ao valor efetivamente executado de gastos com saúde pública pelo Município de Simão Pereira. Para o cumprimento das ordens judiciais, foram realizadas compras com licitação e outras, com dispensa de licitação por valor, sendo que esta última representou 71,43% das formas de aquisição do produto e/ou serviço demandado em juízo, significando 97,75% do valor gasto pelo Município com a “judicialização da saúde”.

No ano de 2016, os gastos para cumprimento de mandado judicial com saúde pública significaram uma parcela de 0,46% do orçamento executado para saúde. Todavia, 100% das compras para cumprimento destes mandados ocorreram por meio de dispensa de licitação, ou seja, não constavam nos processos licitatórios vigentes os objetos das demandas de saúde. Considerando o tempo para satisfação destes mandados, que devem ser cumpridos de maneira imediata e o baixo custo das demandas, provavelmente optou-se pela dispensa de licitação.


Gráfico de despesas com saúde pública Ano 2015


Gráfico de despesas com saúde pública Ano 2016

No ano de 2019, os gastos municipais com a judicialização da saúde operaram em 1,25%, sendo 41,18% destas compras feitas com dispensa de licitação. Essa metodologia significou um gasto de 64,05% dispensando-se o processo licitatório apenas para cumprimento dos mandados judiciais de saúde.


Gráfico de despesas com saúde pública Ano 2019

No ano de 2020, os gastos com a “judicialização da saúde” no Município de Simão Pereira significaram 0,76% dos gastos executados em saúde pública. Destes gastos, 16,67% ocorreram na modalidade de dispensa de licitação por valor, tendo impactado o Município com apenas 6,67% nesta modalidade, as compras para cumprimento dos mandados judiciais.


Gráfico de despesas com saúde pública Ano 2020

Com os dados apresentados e sistematizados, observa-se que, nos anos de 2015 e 2016 (período compreendido dentro do mandato 2013-20164 4 Conforme já relatado, a pesquisa com orçamento público nos anos de 2013 e 2014 não foi realizada devido a ausência destes dados nos arquivos da Prefeitura Municipal de Simão Pereira. ), os gastos com a “judicialização da saúde” retiraram do planejamento com a saúde municipal uma parcela baixa do percentual geral planejado, sendo R$ 8.867,80 (oito mil oitocentos e sessenta e sete reais e oitenta centavos) e R$ 14.630,52 (quatorze mil seiscentos e trinta reais e cinquenta e dois centavos), nos anos de 2015 e 2016, respectivamente.


Gráfico representativo do total de despesas em saúde executadas dentro do planejamento municipal no ano de 2015


Gráfico representativo do total de despesas em saúde executadas dentro do planejamento municipal no ano de 2016


Gráfico representativo do total de despesas em saúde executadas dentro do planejamento municipal no ano de 2019


Gráfico representativo do total de despesas em saúde executadas dentro do planejamento municipal no ano de 2020

No ano de 2019 e 20205 5 Este recorte temporal não considerou os anos 2017 e 2018 deste mandato para conceder similitude à amostra de pesquisa tendo em vista a limitação fática imposta, a saber, a ausência de dados arquivados para os dois primeiros anos do primeiro mandato pesquisado. Para complementar a pesquisa, apenas relata-se que, no ano de 2017, apenas 0,05% dos gastos do Município em saúde pública ocorreram para cumprimento dos mandados judiciais. Essa porcentagem representou R$ 1.713,50 (um mil, setecentos e treze reais e cinquenta centavos). Foram supridos, com dispensa de licitação por valor 60% destes gastos, o que representou 61,04% dos gastos com “judicialização da saúde” nesta modalidade de compra. O ano de 2018 perseguiu um caminho semelhante, sendo que, dos gastos executados com saúde pública, 0,30% correspondem aos gastos com a judicialização. Deste percentual de gastos, 41,67% foram executadas as compras por meio de dispensa de licitação, o que correspondeu a 33,05% dos gastos nesta modalidade. , os gastos saltaram, mostrando como, a longo prazo a ausência de políticas públicas eficazes impactam o orçamento municipal, sendo que foram retirados das verbas planejadas para a saúde nestes anos o montante de R$ 49.489,57 (quarenta e nove mil quatrocentos e oitenta e nove reais e cinquenta e sete centavos) e R$ 29.985,38 (vinte e nove mil novecentos e oitenta e cinco reais e trinta e oito centavos), respectivamente.

Para fins de expansão do conhecimento dos dados, no ano de 2017, o valor de gastos com a judicialização baixou ainda mais, acredita-se que como fruto das políticas públicas e registro de preços (procedimento auxiliar de compra por licitação), sobretudo de medicamentos, executados ainda no ano de 2016. Desta forma, neste exercício financeiro, foi gasto, para cumprimento de mandado judicial, o valor de R$ 1.713,50 (um mil setecentos e treze reais e cinquenta centavos). Como a Administração Pública realizou ata de registro de preços com validade de 12 meses, esta baixa sucessiva pode ser atribuída à política pública operada em 2016, embora já se trate de um primeiro ano de mandato de novo Prefeito. Em 2018, já se vislumbrou um resultado de gastos com mandado judicial no valor de R$ 11.898,73 (onze mil oitocentos e noventa e oito reais e setenta e três centavos). Tal valor se mostra expressivo em um pequeno município e crescente, sendo significado da ausência de políticas públicas de acesso à saúde pela segunda gestão analisada.

Tais dados se cruzam com o número de processos que apresentaram considerável aumento nos anos de 2017 a 2019, o que foi concomitante a uma retração de execução orçamentária da saúde nos mesmos anos.

Assim, tem-se confirmada a hipótese de que políticas públicas eficientes podem ser um fator determinante para a diminuição drástica da “judicialização da saúde”, permitindo ao Município executar um planejamento orçamentário e financeiro condizente com a realidade do Município e necessidade da população local, promovendo o acesso à saúde de forma mais ampla e igualitária. Assim, o aumento do percentual efetivamente executado dentro do planejamento orçamentário anual com saúde pública ocorre concomitantemente com a diminuição do número de processos visando a execução de uma garantia de saúde, e isso reflete positivamente, causando diminuição nos gastos com a judicialização da saúde. Para fins desta pesquisa, afere-se a eficiência da política pública de saúde pelo percentual da execução do respectivo orçamento.

Infere-se que, quanto mais o Município aproximou a execução real do valor orçamentário anteriormente planejado, executando políticas públicas pensadas dentro do contexto, das necessidades e da realidade municipal, maior a queda no número de demandas judicial de saúde pública. Para reforçar as inferências, no ano de 2019, que entre os anos comparados, houve um maior distanciamento entre o valor planejado e executado dentro do orçamento, e também um salto no número de processos judiciais dentro do lapso temporal pesquisado, impondo ao Município maior gasto com a execução de mandamentos judiciais para efetivar o direito a saúde.

7. Conclusão

A realização dos direitos sociais e econômicos, por depender da implementação de políticas públicas, é tarefa que depende primordialmente do governo. Ao judiciário cabe garantir estes direitos diante da omissão estatal, uma vez que são positivados constitucionalmente.

Contudo, é possível estabelecer estratégias que vão além da decisão de uma ação judicial, com a finalidade de se garantir o direito a saúde. Pode-se pensar em uma aproximação entre o judiciário e os gestores públicos para a efetivação de medidas preventivas que venham a garantir o acesso a saúde. A alocação de recursos na área da saúde que concedam aos cidadãos a qualidade de vida mínima que necessitam para existir com dignidade é tarefa do Estado e pode ocorrer desde que há haja vontade política e planejamento, conforme demonstrado no estudo de caso apresentado, quando se confirmou que, diante de uma maior execução orçamentária, o número de ações judiciais que demandavam o direito reduziu.

A investigação proposta neste trabalho objetivou demonstrar que uma maior atuação do poder executivo na execução do orçamento de saúde evita a demanda do direito em juízo e alcança resultados universais mais eficientes, alinhando-se a referência teórica dessa pesquisa no sentido de que os direitos fundamentais devam ser efetivados mediante atenção aos princípios da justiça e da igualdade.

Os resultados demonstrados foram de que, nos anos de 2015 e 2016, o percentual executado de investimento em saúde pública se aproximou muito mais do valor planejado do que nos anos de 2019 e 2020, momentos distintos de atuação política no município, com gestores e propostas de governos diferentes. Concomitantemente, nos anos de 2015 e 2016, as demandas judiciais buscando a efetivação do direito a saúde foram bem menores que nos anos 2019 e 2020.

Dentro deste contexto, no estudo de caso apresentado, a partir dos dados coletados no Município de Simão Pereira/MG, pode-se aferir como os esforços governamentais podem ser decisivos para reduzir a judicialização da saúde em virtude da efetivação do direito mediante a execução das políticas públicas planejadas.

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  • 1
    O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, por unanimidade, no Recurso Extraordinário nº 597.064 (BRASIL, 2011) a obrigatoriedade de planos de saúde de ressarcir o Sistema Único de Saúde quando a rede pública tratar pessoas que tenham plano privado.
  • 2
    Ao longo do período compreendido entre 2015 e 2020, de acordo com os dados do Justiça em Números de 2020 (CNJ, 2020), mais de 500 mil novos processos relacionados a Tratamento Médico-hospitalar, classificação que abarca tanto pedidos de consultas quanto de cirurgias, ingressaram no Judiciário. O ano de 2016 foi o que contou com o maior registro de processos com essa temática (mais de 100 mil processos novos).
  • 3
    Estratégia semelhante foi utilizada na pesquisa em que houve análise, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça, nos anos de 2013 e 2014, no município de Lages (SC), se situa no estado brasileiro de Santa Catarina. Os municípios desta região enfrentam desafios de estruturação do sistema de saúde, especialmente porque estão distantes da capital. A experiência deste Município versou sobre a criação e atuação do Núcleo de Conciliação de Medicamentos ou, no fato de que, com a interação do Consórcio Intermunicipal com os atores políticos e jurídicos, instituiu-se uma forma de diálogo institucional. Assim, gestores políticos e jurídicos empreenderam diversas ações com o objetivo de definir critérios uniformes a serem aplicados na concessão de medicamentos e melhorar o gerenciamento do fornecimento dos medicamentos pela via judicial. Isso possibilitou um melhor atendimento aos usuários do SUS e ganhos operacionais aos municípios, por meio de diversas medidas implementadas de forma integrada. O resultado foi a construção extrajudicial - a partir do Consorcio e do Núcleo - de diversas políticas públicas com a integração entre o Executivo e o Judiciário. Esses arranjos permitiram uma atuação predominantemente extrajudicial. O resultado alcançado foi a redução da litigiosidade e a ampliação de arranjos institucionais. (ASENSI, 2016).
  • 4
    Conforme já relatado, a pesquisa com orçamento público nos anos de 2013 e 2014 não foi realizada devido a ausência destes dados nos arquivos da Prefeitura Municipal de Simão Pereira.
  • 5
    Este recorte temporal não considerou os anos 2017 e 2018 deste mandato para conceder similitude à amostra de pesquisa tendo em vista a limitação fática imposta, a saber, a ausência de dados arquivados para os dois primeiros anos do primeiro mandato pesquisado. Para complementar a pesquisa, apenas relata-se que, no ano de 2017, apenas 0,05% dos gastos do Município em saúde pública ocorreram para cumprimento dos mandados judiciais. Essa porcentagem representou R$ 1.713,50 (um mil, setecentos e treze reais e cinquenta centavos). Foram supridos, com dispensa de licitação por valor 60% destes gastos, o que representou 61,04% dos gastos com “judicialização da saúde” nesta modalidade de compra. O ano de 2018 perseguiu um caminho semelhante, sendo que, dos gastos executados com saúde pública, 0,30% correspondem aos gastos com a judicialização. Deste percentual de gastos, 41,67% foram executadas as compras por meio de dispensa de licitação, o que correspondeu a 33,05% dos gastos nesta modalidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2022
  • Aceito
    05 Ago 2022
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