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DESVELANDO O PROSUMPTION: O PRODUTOR-CONSUMIDOR, AS PLATAFORMAS DIGITAIS E O MOVIMENTO DO CAPITAL1 1 Recebido em 13/8/2020, aceito em 12/3/2021.

UNVEILING PROSUMPTION: THE PRODUCER-CONSUMER, DIGITAL PLATFORMS AND CAPITAL MOVEMENT

DEVELANDO EL PROSUMPTION: EL PRODUCTOR-CONSUMIDOR, LAS PLATAFORMAS DIGITALES Y EL MOVIMIENTO DEL CAPITAL

RESUMO

No curso do desenvolvimento das relações de produção capitalista, o avanço tecnológico tem engendrado diferentes modos viver e produzir. Com as recentes transformações, pesquisas científicas no campo da Administração têm dado destaque sobre os modos como o consumidor tem se envolvido nas relações de produção, seja participando diretamente na coprodução dos produtos e serviços que consome, seja produzindo conteúdos criativos ou dados passíveis de serem aproveitados em prol da lucratividade de determinada empresa. Neste contexto, emergem as discussões sobre o prosumption, tratado como a união da atividade de consumo com a atividade de produção. A discussão sobre o prosumption se torna ainda mais complexa quando se leva em conta o recente movimento de expansão do comércio e da socialização mediados por plataformas digitais. Buscando ir além dos estudos predecessores que trataram do tema, analisamos o prosumption com base na teoria do valor, amparados na crítica da economia política marxiana. Expomos, assim, como as atividades do consumidor-produtor se integram à dinâmica da acumulação capitalista. Perscrutar o fenômeno prosumption nos permitiu apreender tanto o avanço do capital sobre a mercantilização das relações sociais, no qual atividades geradoras de forças naturais-sociais são transformadas em mercadorias e inseridas em processos de troca; quanto o maior potencial de exploração da classe trabalhadora, por meio da transferência de trabalhos necessários à produção e realização do valor ao consumidor.

Palavras-chave:
Prosumption ; Produtor-consumidor; Economia Política; Acumulação Capitalista; Plataformas Digitais

In the development route of capitalist production relations, technological advancement has engendered different ways of living and producing. With the recent changes, scientific research in the Administration field has highlighted the ways in which the consumers have been involved in the production relations, either by participating directly in the co-production of the products and services they consume, or by producing creative content or data that can be used for the profitability of certain companies. In this context, discussions about prosumption have emerged, treated as the union of the consumption and production activities. The discussion about prosumption becomes even more complex when one takes into account the recent expansion movement of commerce and sociability mediated by digital platforms. Seeking to go beyond the predecessor studies that dealt with the topic, we analyzed the prosumption based on the theory of value, supported by the Marxian critique of political economy. Thus, we expose how consumer-producer activities are integrated with the dynamics of capitalist accumulation. Looking at the prosumption phenomenon allowed us to apprehend both: the advance of capital on the commodification of social relations, in which activities that generate natural-social forces are transformed into commodities and inserted in exchange processes; and the greater potential for exploitation of the working class, through the transfer of labor, necessary for production and realization of value, to the consumer.

Keywords:
Prosumption ; Producer-consumer; Political Economy; Capital Accumulation; Digital Platforms


En el curso del desarrollo de las relaciones de producción capitalistas, el avance tecnológico ha engendrado diferentes formas vivir y producir. Con los cambios recientes, la investigación científica en el campo de la Administración ha dado atención a las formas en las que el consumidor se ha involucrado en las relaciones de producción, ya sea participando directamente en la coproducción de los productos y servicios que consume, bien produciendo contenidos creativos o datos útiles para la rentabilidad de una determinada empresa. En este contexto, surgen discusiones sobre el prosumption, tratado como la unión de la actividad de consumo con la actividad de producción. La discusión sobre el prosumption se vuelve aún más compleja si se tiene en cuenta el reciente movimiento de expansión del comercio y la sociabilidad mediado por las plataformas digitales. Buscando ir más allá de los estudios predecesores que trataron el tema, analizamos el prosumption desde la teoría del valor, sustentada en la crítica de la economía política marxista. Así, exponemos cómo las actividades del consumidor-productor se integran con la dinámica de acumulación capitalista. La mirada al fenómeno prosumption nos permitió aprehender ambos: el avance del capital en la mercantilización de las relaciones sociales, en que las actividades generadoras de fuerzas naturales-sociales se transforman en mercancías y se insertan en los procesos de intercambio; y el mayor potencial de explotación de la clase trabajadora, a través de la transferencia de trabajo, necesario para la producción y realización del valor, al consumidor.

Palabras-clave:
Prosumption ; Productor-consumidor; Economía Política; Acumulación Capitalista; Plataformas Digitales


INTRODUÇÃO

A categoria universal “trabalho” expressa o processo de interação do ser humano com o seu meio, despendendo energias físicas e psíquicas para a produção de valores de uso (MARX, 2011______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.). Por meio da atividade sensível, são gerados valores de uso objetivos (objetos que corporificam o efeito útil do trabalho para a satisfação de necessidades) e subjetividades dos seres sociais envolvidos. O modo em que o processo de trabalho é efetivado produz particularidades históricas, às quais correspondem ao engendramento de relações sociais específicas, do qual tomam parte desta unidade a própria produção da consciência, em um processo de subjetivação-objetivação dos modos de viver e de interagir com o meio. Aqui, a relação entre natureza e ser social é tratada dialeticamente, ambos constituindo uma unidade concreta, uma unidade do diverso. O grau em que um determinado modo de sociabilidade é capaz de transformar a natureza inorgânica, orgânica e humana com fins da reprodução dessa forma de sociabilidade expressa a força produtiva do trabalho de uma época. Na sociedade hodierna, as forças produtivas do trabalho, que abrangem tanto as tecnologias físicas da produção quanto a cooperação engendrada pelos modos de organização do trabalho coletivo, desenvolvem-se subordinadas ao ímpeto da acumulação de capital, atendendo, portanto, às necessidades do capital de exploração do trabalho.

Cada modo de produção desenvolve um sistema de conhecimento apropriado às suas necessidades de reprodução. Nesse contexto, a tecnologia deve ser compreendida enquanto um complexo de complexos, visto que sua natureza está intrinsecamente associada e relacionada ao seu modo de uso em determinado momento histórico (ALVES, 1968ALVES, R. Tecnologia e humanização. Revista Paz e Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, n. 8, 1968.). A particularidade das relações capitalistas necessita, pois, de um tipo específico de ciência e tecnologia. Os recentes avanços tecnológicos no campo da microeletrônica, por exemplo, criaram bases materiais para novas formas de exploração da força de trabalho e de apropriação das práticas sociais para otimizar as formas de acumulação de capital (FUCHS, 2015FUCHS, C. The Digital Labour Theory of Value and Karl Marx in the Age of Facebook, YouTube, Twitter, and Weibo. In: FISHER, Eran., FUCHS, Christian. Reconsidering Value and Labour in the Digital Age. London: Palgrave Macmillan, 2015.).

Com o espraiamento da base técnica produtiva fundamentada na microeletrônica, ampliaram-se os processos de automatização, informatização e terceirização do trabalho. Nesse sentido, Alves (2011)ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. disserta que a reestruturação produtiva representa o movimento de posição e reposição das formas de extração da mais-valia relativa, a partir do qual o capital busca o aperfeiçoamento do modo de organização do trabalho que melhor propicie a autovalorização do valor. Esse movimento se revela como um efetivo caminho para que a expansão do capital se realize com uma redução do capital adiantado em sua forma de capital variável (capital para a compra de força de trabalho) e com um aumento no capital adiantado na forma de capital constante (capital investido na compra de meios de produção) — não necessariamente na mesma proporção. Como fenômeno mais contemporâneo desse movimento, há a incorporação de plataformas digitais, principalmente no âmbito do chamado setor de serviços (ANTUNES, 2009ANTUNES, R. Século XXI: nova era da precarização estrutural do trabalho. In: ANTUNES, R. et al. (orgs.). Infoproletários. São Paulo: Boitempo, 2009. p. 231-238.), o que tem permitido a reorganização dos processos produtivos, com a transferência de atividades da esfera da produção e da circulação para a esfera do consumo individual.

Na imediaticidade da vida, observamos esse movimento na realização de atividades de autoatendimento, na produção de conteúdo de expressão artística, na comercialização de dados que trafegam a rede mundial de computadores e até mesmo na supervisão do trabalho, quando “clica-se nas estrelas dos aplicativos”. Fontenelle (2015aFONTENELLE, I. A. Prosumption: as novas articulações entre trabalho e consumo na reorganização do capital. Ciências Sociais Unisinos, v. 51, n. 1, p. 83-91, 2015a., 2015b______. Organizations as producers of consumers. Organization, London, v. 22, n. 5, p. 644-660, 2015b.) afirma que o consumidor tem apresentado um papel gradativamente mais ativo no ciclo de reprodução do capital. O papel ativo do consumidor não é algo inédito das relações sociais pós desenvolvimento de plataformas digitais, contudo, elas expandem as possibilidades de apropriação capitalista para e com as atividades situadas na esfera do consumo, engendrando especificidades ao momento do consumo individual que ainda não têm sido suficientemente apreendidas pela comunidade científica.

Enquanto a literatura ortodoxa das Ciências Sociais e da Administração (PRAHALAD, RAMASWAMY, 2004PRAHALAD, C. K.; RAMASWAMY, V. “Co-creation experiences: the next practice in value creation”. In: Journal of Interactive Marketing, v. 18, n. 3, p. 5-14, 2004.; XIE, BAGOZZI, TROYE, 2008XIE, C; BAGOZZI, R; TROYE, S. Trying to presume: toward a theory of consumers as co-creators of value. Journal of the Academy of Marketing Science, v. 36, n. 1, 2008.; FONSECA et al., 2008FONSECA, M. J. et al. Tendências sobre as comunidades virtuais da perspectiva dos prosumers. RAE eletrônica, São Paulo, v. 7, n. 2, 2008.; ALHASHEM, 2016ALHASHEM, M. A. Prosumption as a discursive pratice of consumer empowerment: Integration of individual resources and co-prosumption of value in an online community. Birmingham: University of Birmingham, 2016.) tem entendido tal papel ativo, o prosumption, como simples forma de empoderamento e de comodidade aos consumidores, parte da literatura crítica (HUWS, 2014HUWS, U. E. Vida, trabalho e valor no século XXI: desfazendo o nó. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 13-30, 2014.; COMOR, 2010COMOR, E. Digital prosumption and alienation. In: Ephemera: theory & politics in organization, v. 10, n. 3-4, p. 439-454, 2010., 2015______. Revisiting Marx's Value Theory: A Critical Response to Analyses of Digital Prosumption. The Information Society: An International Journal, v. 31, n. 1, p. 13-19. 2015.; FUCHS, 2015FUCHS, C. The Digital Labour Theory of Value and Karl Marx in the Age of Facebook, YouTube, Twitter, and Weibo. In: FISHER, Eran., FUCHS, Christian. Reconsidering Value and Labour in the Digital Age. London: Palgrave Macmillan, 2015.; FONTENELLE, 2015aFONTENELLE, I. A. Prosumption: as novas articulações entre trabalho e consumo na reorganização do capital. Ciências Sociais Unisinos, v. 51, n. 1, p. 83-91, 2015a., 2015b______. Organizations as producers of consumers. Organization, London, v. 22, n. 5, p. 644-660, 2015b.) aponta-o como mais uma forma de exploração do trabalho, porém, pouco tem diferenciado o trabalho efetivado na esfera do consumo individual daqueles realizados na esfera da produção e circulação das mercadorias. Ambas as abordagens tendem a apontar que o prosumption é uma forma de envolver o consumidor na produção de valor, todavia, cada abordagem imprime diferentes conteúdos à categoria valor, sendo um equívoco, portanto, considerar que ambas possam referir-se à essência desse fenômeno.

Na literatura, o conceito prosumer expressa ou uma autonomia do consumidor — nesse caso, o indivíduo em seu momento de consumo individual é alçado a elemento determinante da produção, isto é, o consumo como a esfera de prioridade ontológica — ou apresenta toda atividade em que produção-consumo individual coincidem temporalmente como exploração do trabalho — ignorando a existência de atividades sociais que não estão subsumidas aos processos de valorização do valor. Com isso, para explicar o fenômeno, incorrem em uma transposição direta dos momentos de consumo individual para a esfera da acumulação de capital. Nossas investigações, que tiveram o objetivo de apreender as determinâncias do fenômeno denominado prosumption e suas funcionalidades para as metamorfoses do valor, expostas neste texto, demonstram que essa categoria prosumer é uma abstração arbitrária. Podemos partir dela, mas não podemos nela permanecer. As práticas sociais que se subjazem a este conceito, para serem apreendidas, nos impõem lastrear não os atos particulares de consumo individual, mas o processo de valorização em sua totalidade, que necessita da mediação de atividades particulares para a efetivação do consumo. Assim, o fenômeno prosumer nos conduziu à apreensão de relações concretas, agora, categoricamente expressas no campo das ideias.

A ciência materialista histórica, cuja prioridade é do objeto e para a qual o problema do conhecimento encontra solução na raiz ontoprática do pensamento (de modo que a multi, inter e transdisciplinaridade não se colocam como forma de resolver a incompletude de uma ciência subjetivista), possibilita contribuir com reflexões que são necessariamente ignoradas em estudos que partem de perspectivas racionalistas e irracionalistas para compreender o fenômeno. Aceitando as contradições do próprio objeto, a apreensão do real não visa a análise por meio de “recortes”, mas por meio da investigação do movimento concreto que o fenômeno produz (e é produzido) na reprodução social. Ao procedermos dessa forma, o real é transposto para o pensamento e o conhecimento, assim, reproduz idealmente o movimento concreto de valorização do valor que faz, no atual estágio do desenvolvimento das forças produtivas, coincidir atividades do consumo individual e da produção subsumida à valorização do valor, coincidência que não produz identidade entre esses dois momentos.

Assim, o presente texto ensaístico apresenta três principais apreensões que demonstram que o chamado prosumption representa o avanço tecnológico, subsumido ao capital, que engendra atividades que se apresentam em relação ao trabalho produtivo e improdutivo como: 1) atividades geradoras de forças naturais sociais, passíveis de serem precificadas, tornando-se matéria-prima de atividades produtivas (nas quais estarão envolvidos trabalhadores produtivos e improdutivos) para o capital; 2) transferência de trabalhos necessários à esfera da circulação para o trabalhador que consome a mercadoria e não para um trabalhador que a produz ou a faz circular, diminuindo o custo de circulação e, 3) trabalho produtivo para o capital, fornecendo mais-valor, tornando o tempo em que não temos a força de trabalho vendida em tempo de trabalho produtivo para o capital, expandindo a massa de jornadas de trabalho sem a compra da força de trabalho.

Com isso, o texto traz contribuições para quem se interessa pelo tema a despeito de sua filiação disciplinar, sobretudo por trazer à tona as fragilidades do conhecimento apologético produzido disciplinarmente sobre o prosumption. Ademais, a demonstração de como o avanço tecnológico subsumido às necessidades do capital intensifica o processo de exploração da classe trabalhadora tende a contribuir para a produção de possibilidades de resistência na e da classe trabalhadora, fim último de todo conhecimento comprometido com transformações emancipatórias. A fim de expormos essas formas de expressão do chamado prosumer, esse texto parte da descrição da aparência fenomênica do prosumption — segundo item do texto —; o perscruta por meio das categorias da crítica da economia política — terceiro item do texto —; e, por fim, revela as relações determinantes do prosumption nas relações sociais.

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PROSUMPTION: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS TEORIAS

O neologismo prosumption foi assumido em diversas pesquisas que buscavam compreender o papel do consumidor na coprodução de mercadorias, na criação de culturas de consumo, na valorização das marcas e na redução de custos das empresas com mão de obra. Ritzer e Jurgenson (2010)RITZER, G.; JURGENSON, N. Production, Consumption, Prosumption: The Nature of Capitalism in the Age of the Digital “Prosumer”. Journal of Consumer Culture, v. 10, p.13-36. 2010. dissertam que o fenômeno representa o ato concomitante de consumo (implicitamente, restringem-se àquele realizado pelo consumidor final, não incluindo o consumo organizacional) e de produção. Para os autores, “embora o prosumption sempre tenha sido proeminente, uma série de mudanças sociais recentes, especialmente aquelas associadas à internet e à Web 2.0 (resumidamente, a web gerada pelo usuário, como, Facebook, YouTube, Twitter), deram a ela ainda maior centralidade” (RITZER; JURGENSON, 2010RITZER, G.; JURGENSON, N. Production, Consumption, Prosumption: The Nature of Capitalism in the Age of the Digital “Prosumer”. Journal of Consumer Culture, v. 10, p.13-36. 2010., p. 14, tradução livre). Nesse sentido, as plataformas digitais reforçam a necessidade de se analisar o fenômeno mais profundamente, especialmente pelo alcance massivo delas no cenário contemporâneo.

Na revisão da literatura elaborada por Fonseca et al. (2008FONSECA, M. J. et al. Tendências sobre as comunidades virtuais da perspectiva dos prosumers. RAE eletrônica, São Paulo, v. 7, n. 2, 2008., p. 4), os autores definem os prosumers como “consumidores engajados no processo de coprodução de produtos, significados e identidades”, considerando-os como predispostos a compartilhar os próprios pontos de vista e que têm uma atitude proativa para intervir junto às marcas e aos meios de comunicação. Partindo de um tipo ideal, com a ressalva de serem mais simplistas do que a análise weberiana permitiria, os autores atribuem aos prosumers características como: criam o próprio estilo de vida, não se prendem a estereótipos, estão digitalmente conectados, são árbitros das marcas e são predispostos a aprender e a compartilhar seus conhecimentos em relação às mercadorias.

Guimarães (2018)GUIMARÃES, R. C. Trabalho e Consumo: Proposta de Discussão acerca das Definições sobre o Processo de Co-criação. Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, v. 16, n. 1, p. 78-86, 2018. realizou uma ampla revisão da literatura sobre prosumption apresentando diversos assuntos e terminologias que acompanham a temática. Sua pesquisa resgata discussões sobre a atuação prosumer expostas tanto em textos do mainstream da gestão — a respeito de como o envolvimento dos consumidores nos processos de cocriação ampliam seus relacionamentos com as marcas e melhoram a capacidade das empresas em atender às necessidades dos clientes — quanto em debates críticos que analisam o fenômeno — como os que argumentam sobre a alienação dos “consumidores que trabalham” e os que analisam o trabalho digital como embasado na exploração dos usuários que interagem em rede. Guimarães (2018)GUIMARÃES, R. C. Trabalho e Consumo: Proposta de Discussão acerca das Definições sobre o Processo de Co-criação. Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, v. 16, n. 1, p. 78-86, 2018. aborda ainda as discussões que tangenciam o tema, como crowdsourcing (multidão de usuários on-line potencialmente utilizáveis como força de trabalho) e os inter-relacionados consumo colaborativo e sharing economy (empresas que se utilizam do potencial de compartilhamento dos usuários integrados à rede para a criação de novos negócios).

Cabe destacar que o termo prosumption foi utilizado pela primeira vez por Alvin Toffler, em 1980, sendo definido como a atividade econômica em que os indivíduos desempenham simultaneamente seu papel no consumo e na produção, numa referência às atividades de autosserviço ou mesmo do consumidor que participa da coprodução dos próprios produtos que consome (KOTLER, 1986KOTLER, P. The prosumer movement: A new challenge for marketers. Advances in Consumer Research, v.13, n.1, p.510-513, 1986.; HUMPHREYS, GRAYSON, 2008HUMPHREYS, A.; GRAYSON, K. The Intersecting Roles of Consumer and Producer: A Critical Perspective on Co-Production, Co-creation and Prosumption. Sociology Compass, v.2, n. 3, p. 963-980, 2008.; FONTENELLE, 2015aFONTENELLE, I. A. Prosumption: as novas articulações entre trabalho e consumo na reorganização do capital. Ciências Sociais Unisinos, v. 51, n. 1, p. 83-91, 2015a.). Na obra Terceira onda, Toffler (1980)TOFFLER, A. The third wave. New York: William Morrow, 1980. descreve três grandes ondas do sistema de criação de riquezas: na primeira, havia a indissociabilidade entre produtor e consumidor, porque a terra era o principal elemento produtivo, assim, a produção dos grupos era voltada primordialmente para o autoconsumo; na segunda onda, a manufatura industrial instituiu a produção em larga escala, essencialmente voltada à comercialização, de modo que a urbanização e a industrialização estabeleceram barreiras mais nítidas entre trabalho e consumo, ou seja, a sociedade industrial criou o que conhecemos por consumidor; já na terceira onda, o autor defende que há uma “desmassificação” da produção (produções customizadas e em pequenos lotes), com grande relevância aos ativos intangíveis das empresas (sistemas, informações, marcas) e a ascensão da atuação dos prosumers (produtores e consumidores, concomitantemente).

Para Toffler (1980)TOFFLER, A. The third wave. New York: William Morrow, 1980., a maioria da população, num futuro próximo, teria empregos de meio período — como se o aumento da produtividade do trabalho, uma das causas do desemprego estrutural, tivesse como saída óbvia a diminuição da jornada de trabalho. Com mais tempo livre, a classe trabalhadora (até então, em nenhum momento compreendida como classe) optaria por atuar ativamente na produção daquilo que consome, seja para se diferenciar em sua constituição identitária, seja porque não encontraria outros trabalhadores dispostos a realizar trabalhos domésticos de baixa qualificação (jardinagem, cozinha, costura, pintura de casas). O autor prevê uma evolução tecnológico-produtiva de pleno acesso, sem qualquer mudança estrutural na dinâmica do capitalismo, de modo que teríamos uma sociedade baseada na descentralização da produção e na reapropriação de grande parte dos produtos resultantes do trabalho pelo próprio trabalhador.

Toffler (1980)TOFFLER, A. The third wave. New York: William Morrow, 1980. desenvolve sua análise numa visão ingênua, crendo na redução contínua da jornada de trabalho, no acesso em massa às tecnologias produtivas de pequena escala e na alta qualificação da maioria da população no mundo capitalista — aparentemente, sem classes. O autor não foi o único a defender que a evolução tecnológica, por si só, seria capaz de libertar o ser humano das condições de exploração, dos trabalhos monótonos, da alienação vigente no modo de reprodução social capitalista. Também Rifkin (2014)RIFKIN, J. Zero Marginal Cost Society: The Internet of Things, The Collaborative Commons, and the Eclipse of Capitalism. New York: Palgrave Macmillan. 2014., autor de uma obra mais recente, traz uma visão semelhante — enquanto Toffler fala da máquina de costura inteligente, Rifkin demonstra o seu fascínio pelas as impressoras 3D, a Internet das Coisas (IoT) e as tecnologias de energias renováveis. Rifkin reconhece a força que as grandes companhias farão para frear sua perda de poder, mas acredita que as crises fariam com que a própria “população” (não a classe) reconhecesse a potência da colaboração para a reestruturação do sistema social. Assim, o autor vai além: saindo da economia da escassez para a economia da abundância, o capitalismo seria superado porque todos iriam dispor dos meios de produção para arcar com as próprias necessidades, algo que seria proporcionado pelo barateamento contínuo das mercadorias voltadas à produção e os seus respectivos insumos, pela maior atividade dos prosumers e pela instauração de uma verdadeira economia do compartilhamento.

Mas, nem somente de “Alices” vive a discussão. Na contramão das visões otimistas, Comor (2010COMOR, E. Digital prosumption and alienation. In: Ephemera: theory & politics in organization, v. 10, n. 3-4, p. 439-454, 2010., 2015______. Revisiting Marx's Value Theory: A Critical Response to Analyses of Digital Prosumption. The Information Society: An International Journal, v. 31, n. 1, p. 13-19. 2015.) defende que o prosumption tem sido um fenômeno representativo do trabalho no ambiente digital em que a alienação é, na verdade, reforçada. O autor argumenta que muitas empresas se apropriam de um trabalho que é, na maior parte, feito gratuitamente pelos consumidores. Nesse sentido, os prosumers seriam explorados por capitalistas particulares, os quais se apropriam do conteúdo produzido pelas pessoas quando elas se expõem nas redes sociais (o que pode ser ilustrado pelas postagens em blogs, publicação de fotos no Facebook, elaboração de vídeos para o YouTube, busca por amigos virtuais no Instagram) e quando a necessidade de reconhecimento social as estimulam a contribuir com o design de um produto, apresentar ideias de melhorias ou divulgar gratuitamente a marca. Embora o autor se destaque por uma análise crítica do fenômeno, a categoria “exploração” fica imprecisa em sua argumentação, visto que aparece dissociada da categoria “valor” no processo global de produção.

Já na visão de Fuchs (2015)FUCHS, C. The Digital Labour Theory of Value and Karl Marx in the Age of Facebook, YouTube, Twitter, and Weibo. In: FISHER, Eran., FUCHS, Christian. Reconsidering Value and Labour in the Digital Age. London: Palgrave Macmillan, 2015., os usuários das redes são parte do “trabalhador coletivo” que participam na produção de valor, visto que eles produzem a mercadoria “dados” e assim são explorados pelos capitalistas detentores dessas plataformas. O autor parte do princípio de que os usuários das plataformas digitais são produtivos por serem importantes para que as empresas-plataformas possam acumular capital — o que, efetivamente, não encontra solo real de determinação, pois o que determina ser um trabalho produtivo ou não, não é sua importância, tampouco suas qualidades concretas, mas sim o papel que assume no processo de reprodução do capital (MARX, 1978MARX, K. O Capital - Livro I - Capítulo VI (inédito). 1. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1978.). Restrito ao modo de operação do capital na esfera produtiva e generalizando-a, em seu modo específico de engendrar o valor, para todas as etapas que constituem o ciclo do capital industrial, Fuchs não aborda em seus argumentos as diferenças específicas dos trabalhos que se situam na esfera da circulação. Assim, ele se perde num interesse político, por considerar que a categoria ‘‘trabalho improdutivo’’ (ou simplesmente a consideração de que um trabalho importante seja não produtivo) traz consigo um juízo moral depreciativo.

Adentrando à discussão, Huws (2014)HUWS, U. E. Vida, trabalho e valor no século XXI: desfazendo o nó. Caderno CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 13-30, 2014., ao considerar as atividades dos consumidores necessárias à distribuição de mercadorias e ao aumento da lucratividade de empresas ou que eliminam formas de trabalho anteriormente remuneradas, acredita haver fortes argumentos para caracterizá-las como trabalhos produtivos. Em relação aos conteúdos que usuários criam gratuitamente em plataformas digitais, como a produção de textos escritos (como verbetes no Wikipedia e postagens em blogs) e conteúdos visuais (como vídeos no YouTube e fotografias nas redes sociais), a autora os compreendem como expressões artísticas que produzem valores sociais de uso. Embora a autora aborde pontos relevantes de análise, apontando aspectos do trabalho no capitalismo contemporâneo que ainda carecem de apreensão categorial com o arcabouço da teoria do valor, sua análise apresenta alguns problemas, como: não diferenciação entre produção, criação e transferência de valor; imprecisões quanto às categorias de trabalho produtivo e improdutivo; articulação insuficiente entre os diferentes trabalhos na esfera do consumo e o engendramento das metamorfoses do valor.

Diante das lacunas elencadas, para melhor apreender sobre como o trabalho na esfera do consumo é apropriado na dinâmica da produção capitalista, trazemos um breve resgate teórico sobre as esferas da produção no complexo categorial marxiano.

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PROSUMER E OS DIFERENTES MOMENTOS DA UNIDADE DA PRODUÇÃO CAPITALISTA

O fenômeno prosumption oportunizou um avanço, ainda que bem limitado, à discussão sobre como os atos concomitantes de produzir e de consumir são incorporados na dinâmica socioprodutiva. A proposta de Ritzer (1983RITZER, G. The McDonaldization of society. Journal of American Culture, n. 6, p.100-107, 1983., 2014, 2015) representa um desses avanços, tratando os processos de produção e de consumo como um continuum, rompendo com as tradicionais barreiras rígidas entre ambos. Ao destacar esse continuum, ele ressalta o modo como as redes de fast food foram pioneiras na ampliação da atribuição de trabalhos aos consumidores no processo de produção, afinal, após se dirigir ao caixa para solicitar o pedido, o consumidor deve se servir e, após consumir, limpar a mesa (depositando os restos e os descartáveis na lixeira e colocando a bandeja no local adequado). Em outro exemplo, no setor de hospitalidade, Ritzer (2015)______. Hospitalidade e prossumerização. Revista Hospitalidade. São Paulo, v. XII, n. especial, p. 12 - 41, 2015. destaca o envolvimento do prosumer como primordial para a criação de experiências memoráveis, pois demanda a participação ativa do consumidor para se fazer entretido, protegido e servido. Porém, embora o autor tenha tratado produção e consumo como um continuum e atribuído aos extremos a ‘‘prossumerização-como-produção’’ e a ‘‘prossumerização-como-consumo’’, ele ainda não rompe com o pressuposto da oposição entre o ato de produzir e o de consumir. A aparente oposição permanece como determinante.

Para avançarmos além da aparência do prosumption, é necessário que entendamos como se constitui o consumo e os demais momentos da produção, no movimento geral do sociometabolismo do capital, não enquanto momentos de oposição, mas enquanto um processo em que os distintos atos engendram um ao outro. Isso implica ir além das perspectivas que se debruçam sobre as especificidades e alterações no consumo, que tendem a realizar uma bárbara cisão entre este momento e os demais constituintes da produção geral (HUMPHREYS, GRAYSON, 2008HUMPHREYS, A.; GRAYSON, K. The Intersecting Roles of Consumer and Producer: A Critical Perspective on Co-Production, Co-creation and Prosumption. Sociology Compass, v.2, n. 3, p. 963-980, 2008.; FONTENELLE, 2015aFONTENELLE, I. A. Prosumption: as novas articulações entre trabalho e consumo na reorganização do capital. Ciências Sociais Unisinos, v. 51, n. 1, p. 83-91, 2015a.). Segundo Ritzer (2015______. Hospitalidade e prossumerização. Revista Hospitalidade. São Paulo, v. XII, n. especial, p. 12 - 41, 2015., p. 14):

Em boa parte da história recente, especialmente desde a Revolução Industrial, o foco popular e acadêmico sobre a economia tem se dado a partir da análise do processo de produção (MARX, 1867/1967; VEBLEN, 1914/1964). Mais recentemente, especialmente depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o foco começou a mudar para o processo cada vez mais dominante de consumo (BAUDRILLARD, 1970/1998; GALBRAITH, 1958/1984). Embora ambos sejam processos certamente importantes e que merecem atenção contínua, o foco sobre um ou sobre outro tende a obscurecer o fato de que ambos são mais bem compreendidos se analisados como um processo de prossumerização. (RITZER, 2015______. Hospitalidade e prossumerização. Revista Hospitalidade. São Paulo, v. XII, n. especial, p. 12 - 41, 2015., p.14)

O argumento de que produção e consumo devem ser analisados em sua complementaridade é válido. Contudo, Ritzer se equivoca ao indicar que Marx se foca exclusivamente sobre o papel da produção de modo estrito, ou seja, de que a análise marxiana se restringe à produção de mercadorias (e não a produção e reprodução da sociedade capitalista, como um todo). De acordo com Marx (2011)______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011., a cisão daquilo que em si é unidade faz com que a conexão entre os momentos da produção seja obnubilada, quais sejam: produção, distribuição, troca e consumo, momentos estes cuja relação dialética é intrínseca às práticas de reprodução da sociedade. Logo, para a condução da análise do prosumption, faz-se necessário, previamente, resgatarmos os diferentes momentos do processo global de (re)produção do capital, de modo a compreendermos como o valor se metamorfoseia neste processo.

Marx ressalta que, em vez de uma dualidade entre os momentos de produção e de consumo, eles fazem parte de uma unidade; nesta, os indivíduos não são ou trabalhadores ou consumidores; são consumidores e trabalhadores. De acordo com o autor, o próprio ato de produção é, em todos os seus momentos, um ato de consumo: consome-se a força de trabalho, consome-se a matéria-prima e os meios de produção; eis o consumo produtivo. Ele analisa, pois, a existência de um duplo caráter do consumo na produção, o consumo subjetivo e consumo objetivo. Em relação ao primeiro, mostra que “o indivíduo que desenvolve suas capacidades ao produzir também as despende, consome-as no ato de produção”, e, quanto ao segundo, cita o “consumo dos meios de produção que são usados e desgastados e, em parte [...], transformados novamente nos elementos gerais” (MARX, 2011______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 45).

Do mesmo modo, Marx (2011)______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. demonstra que cada ato de consumo é também um ato de produção, considerando que o consumo de uma mercadoria produz a necessidade de criação de novas mercadorias e produz o sujeito consumidor, visto que esta passa a se constituir de novas subjetividades a partir do ato de consumo. Dessa forma, o consumo é uma prática social que (re)produz um modo específico de viver, engendrando as consciências daqueles que usufruem do valor de uso de uma mercadoria, mas que o fazem mediados pelo ato de realização de seu valor de troca, momento da troca que, antes, é determinada pela distribuição. Dessa forma, os atos da produção e consumo são imediatamente o seu contrário: a produção medeia o consumo, ao passo que o consumo medeia a produção. Nesse ínterim, é constatado ainda que, no processo de produção em geral, a prioridade ontológica é atribuída à produção, pois os demais momentos não podem existir sem ela — embora a não efetivação dos demais momentos também crie obstáculos ao momento da produção, que, afinal, não é um fim em si mesmo.

Marx (2011______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 66) demonstra, assim, que a produção é o momento preponderante da reprodução social, visto que ela “1) cria o material para o consumo; 2) determina o modo do consumo; 3) gera como necessidade no consumidor os produtos por ela própria postos primeiramente como objetos”. Se há a divisão analítica das categorias produção, distribuição, troca e consumo, é porque, embora sejam uma unidade, há particularidades e, a partir delas, somos capazes de analisar com maior acuidade o movimento do valor no capitalismo. É sabido que o mais-valor tem origem no processo de produção, momento em que o capitalista consome produtivamente a força de trabalho para a produção de mercadorias (MARX, 2013______. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.). Todavia, tão necessário quanto a produção de mercadorias, também é a sua venda, isto é, que estas adentrem no consumo produtivo ou individual (MARX, 2014______. O Capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.) para que se efetive o ciclo do capital.

De forma sintética, podemos dizer que a produção capitalista se baseia na unidade do processo de produção e circulação de mercadorias, isto é, D – M – D’ (capital monetário, que se torna capital mercadoria e que, posteriormente, se converte em capital monetário valorizado), onde o capitalista aparece no mercado ora como comprador de mercadorias (comprando meios de produção e força de trabalho), ora como vendedor (vendendo a mercadoria produzida e prenhe de mais-valor) (MARX, 2017______. O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017.). A transformação das mercadorias no processo de produção e sua realização por meio da venda permitem com que capitalistas encerrem seus ciclos individuais com um valor maior do que aquele de seus elementos de produção, ou seja, uma massa de mercadorias acrescida de mais-valor. Uma vez que as mercadorias são trocadas por seus valores e não por seus valores de uso — ainda que, sem estes, aquelas não aconteçam —, o movimento do capital constitui um processo cíclico e desmedido, ou seja, em constante e crescente expansão, sendo a circulação do dinheiro enquanto capital um fim em si mesmo (MARX, 2013______. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.). Destacamos algumas das particularidades desta totalidade nos parágrafos abaixo, sem esgotá-las.

No momento da produção, o capital variável e o capital constante interagem para a produção de uma mercadoria qualquer. Tal mercadoria incorpora o valor do capital variável e do capital constante (tanto do capital em sua forma circulante quanto em sua forma de capital fixo, na proporção de seu desgaste) consumidos no processo de produção, acrescido do mais-valor (valor que a força de trabalho produz para além do seu próprio valor). Como demonstra Marx (2013)______. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., o valor de uma mercadoria é mensurado pelo tempo médio de trabalho socialmente necessário para a sua produção. Se há o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, torna-se possível a redução do tempo requerido para a produção das mercadorias. Quando o revolucionamento ocorre na produção de mercadorias destinadas ao consumo da classe trabalhadora, tem-se a redução do valor da força de trabalho, possibilitando aos capitalistas maior apropriação de trabalho não pago através do aumento da apropriação de mais-valor, mantida as demais circunstâncias constantes, como, por exemplo, a extensão da jornada de trabalho. Alice, surpresa, se perguntaria: “mas, então, se o aumento da força produtiva do trabalho é uma condição necessária para o aumento da apropriação de mais-valor, porque os capitalistas reduziriam as jornadas de trabalho, reduzindo essa apropriação, tal como vislumbrou Toffler (1980TOFFLER, A. The third wave. New York: William Morrow, 1980.)?”. Parece-nos um contrassenso desdobrar do avanço tecnológico uma automática diminuição da jornada de trabalho. A tendência é, como bem conhecemos, o desemprego.

No momento da distribuição, a mercadoria produzida é posta em circulação para que chegue ao consumo produtivo (mercadoria inserida em novo processo de produção) ou ao consumo final (consumo individual dos trabalhadores e capitalistas, porém, há desdobramentos distintos para cada um desses consumos, que não nos cabe aqui adentrar)5 5 Cabe lembrar que a distribuição de mercadorias é antes determinada pela distribuição de meios de produção, de trabalhadores nas diferentes áreas da divisão técnica do trabalho, etc. (MARX, 2011). . Neste momento, é importante levar em conta a existência de custos para a circulação das mercadorias, os quais são descontados do mais-valor que os capitalistas podem apropriar. Na discussão sobre o capital comercial no livro II d’O Capital, é possível analisar que podem haver novos momentos de produção durante a circulação das mercadorias, isto é, a produção de mercadorias cujo resultado consiste em um efeito útil indissoluvelmente vinculado ao próprio processo de produção, como transporte e armazenamento (MARX, 2014______. O Capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.). Neste caso, trata-se de esferas produtivas dentro da esfera da circulação e, como tais, devem ser tratadas. Porém, elas não refutam a existência do capital comercial, aquele que está empregado em atividades necessárias à realização do valor e não a sua produção. Tal complexificação da análise se faz pouco necessária ao propósito deste artigo — reflexões podem ser encontradas em Franco e Ferraz (2019)FRANCO, D.S.; FERRAZ, D.L.S. Uberização do trabalho e acumulação capitalista. CADERNOS EBAPE.BR (FGV), v. 17, p. 843-855, 2019.. Também aqui, é importante destacarmos que, a depender do nível de desenvolvimento das forças produtivas, é possível ao capitalista reduzir os seus custos de circulação, de modo a se apropriar de maior fatia do mais-valor produzido (MACIEL et al., 2021MACIEL, J. A. et al. O sistema bancário brasileiro: centralização de capitais e alterações na composição orgânica do capital. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 40, n. 1, jan-abr. 2021.).

Quando tratamos da troca, podemos considerar, sob a ótica do capitalista, que essa é a principal finalidade da produção de mercadorias, visto que é apenas nesse momento que o capitalista terá a realização do valor produzido, isto é, poderá se apropriar privadamente da riqueza social produzida. Assim, há a passagem da mercadoria produzida ao consumidor — a quem interessa seu valor de uso — e a passagem da mercadoria equivalente (usualmente dinheiro) ao capitalista, a quem interessava apenas o valor de troca da mercadoria produzida. Obviamente, deve-se considerar que parte do valor apropriado pelo capitalista deverá ser reinvestido na produção, além de, na sociabilidade burguesa, ser estabelecido que o capitalista deva repartir parte do mais-valor gerado com o Estado via tributos — aparato estatal que, por sua vez, é responsável por fornecer diversas das condições necessárias à reprodução da sociabilidade do capital. Com a melhoria dos meios de produção e da qualificação da força de trabalho, o capitalista poderá ao longo do tempo necessitar reinvestir cada vez menos capital variável para colocar em circulação a mesma quantidade de mercadorias, considerando que o desenvolvimento das forças produtivas possibilita que o trabalhador consiga produzir mais em um mesmo período de tempo.

Quando tratamos do consumo, momento em que a mercadoria é usufruída para a satisfação das necessidades de quem a adquiriu, temos o consumo produtivo e o individual. Ao capitalista, no que tange a realização do valor da mercadoria considerada individualmente, a priori, não lhe importa se o comprador irá ou não consumir a mercadoria, pois lhe interessava o valor de troca e esse já foi realizado. Todavia, para a reprodução do capital, tal consumo é necessário à classe de capitalistas. Primeiro, porque no tocante do consumo individual dos trabalhadores, ele é também momento de produção, ainda que não produza valor e mais-valor: trata-se da reprodução da força de trabalho. Ademais, como dito, o consumo repõe a produção e, deste modo, o capitalista, ao conhecer o processo deste consumo e as subjetividades engendradas nas práticas de produção e consumo, se torna capaz de melhor adequar as mercadorias ao processo de valorização. Um desdobramento dessa adequação que oportuniza a redução do tempo de rotação do capital, por exemplo, é a obsolescência programada, que, ao reduzir o período do valor de uso da mercadoria, estimula que novas trocas futuras sejam feitas. O que queremos demarcar é que o ato do consumo produz informações que, devidamente utilizadas no momento da produção, podem garantir a realização de novas trocas em um espaço menor de tempo, acelerando as metamorfoses pelas quais passa o valor. O capitalista privado que se adianta na transformação dessas informações em alterações na produção pode obter lucros extraordinários. Portanto, controlar os modos de consumo, transformando as informações advindas desse momento em alterações no momento da produção, atua como uma alavanca na concorrência entre os capitalistas privados. Controlar os modos de consumo atua como mediação para a expansão do capital, também, ao apontar necessidades sociais ainda não exploradas capitalisticamente.

Como dito, os momentos da produção, distribuição, troca e consumo não são idênticos, mas são constitutivos de uma mesma totalidade (MARX, 2011______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.); eles operam as relações históricas no interior da produção geral, isto é, são em si um todo orgânico. Nesse todo orgânico, ora os trabalhadores estão consumindo (meios de produção) e sendo consumidos (enquanto força de trabalho) sob o comando do processo de valorização do valor; ora estão consumindo para sua própria reprodução. Com o avanço tecnológico, que possibilitou a transferência de partes do processo produtivo para fora das grandes estruturas fabris e complexificou os processos de circulação das mercadorias, esses momentos de consumo (produtivo e individual) se tornam cada vez mais turvos, fazendo surgir, na imediaticidade dos atos, a aparente conjugação de um novo sujeito no capitalismo, o prosumer. Como sabemos, aparência e essência não coincidem e, portanto, cabe-nos avançar para apreender as particularidades concretas do que nos apresentam ser um “consumidor que trabalha”.

3

PROSUMPTION ALÉM DA APARÊNCIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS NA REPRODUÇÃO DO CAPITAL

Ao analisarmos as funcionalidades que os consumidores materialmente exercem no processo contemporâneo de reprodução do capital, apreendemos a constituição de três movimentos, entre os quais dois já se encontram desenvolvidos (e sendo intensamente expandidos) e um apresentando-se como tendência. São eles, respectivamente: 1) atividades geradoras de forças naturais-sociais, passíveis de serem inseridas em processos de troca, tornando-se matéria-prima de atividades produtivas (nas quais haverão envolvidos trabalhadores produtivos e improdutivos) para o capital; 2) transferência de trabalhos necessários à esfera da circulação para o trabalhador que consome a mercadoria e não para um trabalhador que a faz circular, diminuindo o custo de circulação e 3) trabalho produtivo do capital, fornecendo mais-valor, tornando o tempo em que não temos a força de trabalho vendida em tempo de trabalho produtivo para o capital, expandindo a massa de jornadas de trabalho sem a compra da força de trabalho.

3.1

APROPRIAÇÃO CAPITALISTA DE INTERAÇÕES SOCIAIS COMO FORÇA NATURAL-SOCIAL

Os usuários das plataformas digitais — sejam elas redes sociais, softwares de intermediação de compras ou de intermediação de trabalho — são considerados consumidores destas plataformas. Cada vez que realizam compras on-line, pesquisam por produtos específicos, interagem com determinado conteúdo informativo, manifestam likes ou dislikes, eles objetivam registros que revelam traços dos seus modos de viver e de consumir (SRNICEK, 2017SRNICEK, N. Platform Capitalism (ebook). Cambridge, UK; Malden, MA: Polity, 2017.). A objetividade desses traços constitui, na esfera virtual, rastros que marcam os modos de consumo.

A informação gerada a partir das atividades interativas on-line (compras, buscas, cliques em notícias, conversas intermediadas por softwares etc.) forma o big data. Os dados coletados são propriedades do proprietário da plataforma que, pelo valor de uso potencial desses dados, pode levá-los ao mercado. O uso desses pacotes de dados depende do destino dado a eles pelo comprador. As informações contidas nos pacotes podem influenciar a alteração dos processos de produção de bens e serviços, subsidiar a destinação de conteúdo de divulgação, oferecer insights para a alteração das características da mercadoria produzida; mas, sob o ponto de vista do valor, nada altera-se no processo de metamorfose. É capital constante a compra de mercadorias que não seja a força de trabalho e, como tal, o valor deste capital ou transfere-se ao valor da mercadoria (na esfera da produção) ou ao custo para a realização do valor (esfera da circulação), que por sua vez, determina o grau de desconto do mais-valor a ser apropriado pela classe de capitalistas.

Compreendendo esse movimento que ocorre na esfera da produção e da circulação da mercadoria, é conclusão imediata, portanto, que aqueles e aquelas que produzem os dados estão produzindo uma mercadoria, afinal, o pacote de dados possui um valor de uso, um valor de troca e está inserido em trocas no mercado. Desse modo, aparentemente, os consumidores que produziram os dados são trabalhadores explorados, pois não podemos esquecer que nos foi dito que os produtores dos dados são os indivíduos em suas atividades de consumo das plataformas. Mas, superando a imediaticidade da relação, podemos afirmar que os consumidores são trabalhadores explorados? Vamos observar mais de perto essa questão para superarmos a imediaticidade.

O que o consumo das plataformas gera? Como já dito, o consumidor das plataformas revela traços de seu modo de consumo e vida, deixando rastros (dados) ao interagir por meio do ambiente virtual, a exemplo dos espaços virtuais de empresas como Facebook, Youtube, MercadoLivre, eBay, OLX etc. A simples existência desses rastros não é, por si só, mercadoria, embora seja resultado de uma atividade humana. Não podemos esquecer, como demonstra Marx (2013)______. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., que o resultado de uma atividade humana não é, por sua natureza, uma mercadoria; a natureza da mercadoria é determinada pelo modo de produção. É sobre esse modo que precisamos nos deter.

A atividade realizada pelo consumidor das plataformas expressa as capacidades da riqueza humana e suas múltiplas formas de interação. Porém, no capitalismo, a riqueza social tem uma base bem mais restrita, pois ela é considerada sob o ponto de vista de seus valores de troca enquanto meio de acúmulo de capital, nesse sentido, os traços deixados pelos consumidores das plataformas sociais se tornam elementos potencialmente portadores de tais valores. Tornam-se força natural-social, que ao ser trabalhada sob o modo de produção capitalista, tornam-se mercadoria. Portanto, para que esses dados possam gerar efeito no aumento da riqueza social capitalista, mediações são necessárias à sua transformação de força natural-social em dados prenhes de mais-valor. Para apreender essas mediações, é necessário reportar às considerações realizadas por Marx no livro II d’O Capital.

Adiantamos explicitando que o processamento dos rastros deixados pelos consumidores compõe o setor 1 da indústria, ainda que a fonte geradora desses rastros sejam, em geral, as atividades vinculadas ao consumo individual. Vamos explicitar um pouco mais, partindo de uma citação de Marx (2014______. O Capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 498-9):

O produto total — portanto, também a produção total — da sociedade se decompõe em dois grandes setores: 1. meios de produção: mercadorias que, dada a sua forma, têm de entrar no consumo produtivo, ou pelo menos podem fazê-lo. 2. Meios de consumo: mercadorias que, dada a sua forma, entram no consumo individual da classe capitalista e da classe trabalhadora. Em cada um desses setores, os diversos ramos da produção que o compõem formam um único grande ramo de produção: o dos meios de produção, num caso, e o dos artigos de consumo, no outro. O capital total empregado em cada um desses dois ramos de produção constitui um grande setor particular do capital social. Em cada setor, o capital se decompõe em duas partes: 1. Capital variável [...]. 2. Capital constante. (MARX, 2014______. O Capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 498-9)

As plataformas digitais nas quais interagimos diariamente, embora muitas vezes sejam disponibilizadas gratuitamente para a realização do consumo individual, demandaram adiantamento de capital constante e capital variável para estarem disponíveis ao consumo. A relação concreta entre esses dois fatores, ou seja, a relação entre os trabalhadores das plataformas e os meios de trabalho produz, por um lado, o valor de uso da plataforma que entra no consumo individual, e, por outro, a captação e análise dos rastros deixados pelos consumidores, isto é, a transformação da força natural-social em produtos do setor 1.

Uma analogia nos auxiliará a compreensão: anualmente, organizações sociais de cunho ecológico denunciam a poluição dos mares. Milhares e milhares de toneladas de plásticos estão circulando pelos oceanos. Esses plásticos não nasceram espontaneamente de alguma relação entre os seres que habitam os mares. Eles sãos rastros, em geral, do consumo individual. Milhões de litros de Coca-Cola foram consumidos e toneladas de garrafas Pet descartadas. Agora, esses rastros que circulam tranquilamente pelas ondas do mar podem se tornar fonte de matéria-prima para outro processo produtivo, no caso, podem ser exploradas capitalisticamente. Um capitalista particular investirá capital na forma constante e variável para retirar do fundo do mar essa fonte de riqueza natural-social. As garrafas Pets não irão sozinhas do mar à fábrica para serem reutilizadas, por mais que estejam agitadas as correntes marítimas. Para essa travessia, necessita-se de trabalho. Esse trabalho, ao atuar sob um trabalho passado, o ressuscita, transformando-o em fonte de riqueza capitalista. Portanto, trata-se de um trabalho gerador de valor e, também, de mais-valor. Se o destino dessas garrafas recolhidas do mar for um grande moinho industrial ou um pequeno atelier de design de móveis reciclados ou a decoração de uma agência de propaganda politicamente correta, em nada altera o processo de trabalho que as conduziram até seu destino. O uso dessas mercadorias depende do destino dado pelo capitalista particular que as comprou, mas, antes, foi preciso trabalho para retirá-las do mar e torná-las objeto de novos processos de trabalho.

Os rastros que deixamos ao navegar pela internet por meio das plataformas digitais não tem, é óbvio, a mesma natureza de uma garrafa Pet, porém, não é a natureza do objeto que lhe impõe a condição de mercadoria (lembramos que o valor de uso é o suporte do valor). Sob esse aspecto, o capital investido nesse setor atua como capital a ser valorizado e a força de trabalho que atua para recolher, compilar e controlar os rastros virtuais deixados pelos consumidores, produz uma mercadoria. Se há produção de mercadoria, há produção de valor e também de mais-valor.

Se, por um lado, a natureza do rastro virtual não é o que lhe impõe ser mercadoria, por outro, uma vez tornado mercadoria por meio do trabalho, cuja capacidade técnica é o gerenciamento algorítmico, permite a efetivação de uma aparente vantagem: colocar os pacotes de dados tratados e analisados em vários processos de troca. O que não pode ser feito com garrafas Pet. Porém, essa multiplicidade da venda de cada pacote de dados se reflete na distribuição do valor formado entre os múltiplos atos de venda. Eis a base concreta sobre onde caminham as disputas entre a classe capitalista pela regulamentação de regras de comercialização de dados: uns defendem as exclusividades dos contratos, outros não.

Mas, a despeito de exclusividade ou não da venda dos pacotes de dados, o fato é que os trabalhadores das plataformas atuam sobre os rastros naturais-sociais e o produto gerado que, além de ser posto em processos de troca, ainda pode ser inserido no próprio processo de produção da própria plataforma que coleta os dados, pois qualifica o valor de uso da plataforma como espaço para a propaganda de outras mercadorias. Eis as publicidades direcionadas (ou outdoors virtuais). Sob a perspectiva da empresa anunciante nas plataformas, esse produto é um custo de circulação, por ser um custo que medeia a realização do valor — não sua criação. Essa mercadoria, pacotes de dados, ao ingressar em outros processos produtivos, pode atuar de distintas formas, a depender do uso indicado pelo capitalista que a comprou. Sob o ponto de vista do valor, é capital constante e, como tal, se foi adiantado como capital produtivo, ingressará em um processo em que o valor se transfere à nova mercadoria produzida; se foi adiantado enquanto capital comercial, representa um custo de circulação e impacta a apropriação da riqueza social geral pelo capitalista privado. Porém, nenhuma dessas condições altera o fato de a mercadoria pacote de dados ter um valor, pois o valor de uma mercadoria é “determinado não pelo processo de trabalho no qual ele entra como meio de produção, mas do processo de trabalho do qual ele resulta como produto” (MARX, 2013______. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 283). Nenhuma daquelas condições altera o fato de o trabalhador da plataforma ter produzido uma mercadoria prenhe de mais-valor e do consumidor desta plataforma ter deixado rastros virtuais enquanto navegava pelo www.

Em resumo, em relação às atividades dos usuários on-line, elas não são trabalhos produtivos, mas uma força produtiva de caráter natural-social. Embora possam ser estimulados a interagirem cada vez mais, os usuários das plataformas, ao interagir por meio delas, não atuam nesse momento como trabalhadores submetidos ao processo particular de produção do valor. Em outras palavras, embora o consumo e os modos de vida estejam submetidos à forma de consumir e viver na sociabilidade capitalista, isto, por si só, não torna todo o trabalho um trabalho produtivo. Afinal, não é a interação virtual a mercadoria, mas o conjunto de informações geradas por meio de um trabalho sob os rastros deixados pela interação. Portanto, é o ato de produzir produtos com o tratamento de big data que medeia o processo de valorização e esse ato é feito por aqueles que têm sua força de trabalho consumida nessas plataformas. Assim, alegar que os indivíduos são explorados, como defende Fuchs (2015)FUCHS, C. The Digital Labour Theory of Value and Karl Marx in the Age of Facebook, YouTube, Twitter, and Weibo. In: FISHER, Eran., FUCHS, Christian. Reconsidering Value and Labour in the Digital Age. London: Palgrave Macmillan, 2015., por terem seus dados extraídos pela plataforma, é atribuir ao movimento do real uma forma categorial que em nada lhe expressa e, ainda, deslocar a categoria “exploração” da sua real expressão: a relação entre trabalho pago e trabalho não pago. Ademais, o fato de que o uso dos rastros deixados pelos indivíduos em seu consumo das e nas plataformas só podem ser apropriados privadamente advém do fato de as tecnologias (plataformas) também constituírem propriedades privadas. Temos então que o capital cria as condições para que as interações sociais se deem em plataformas digitais de capitais particulares, interações sociais monopolizadas pelos proprietários dessas plataformas.

3.2

ATRIBUIÇÃO DE PROCESSOS DE TRABALHO QUE PERMANECEM NECESSÁRIOS À REALIZAÇÃO DO VALOR AOS CONSUMIDORES

Além da possibilidade de transformar forças naturais-sociais em mercadorias, o desenvolvimento tecnológico criou condições objetivas para que outra faceta do chamado prosumption emergisse, a saber: os capitalistas, com vistas a reduzir os custos relacionados à circulação das mercadorias, intensificaram a atribuição de determinados processos de trabalho, anteriormente realizados por trabalhadores diretamente contratados, para os consumidores, processos estes que continuam sendo necessários à realização do valor. Um exemplo clássico dessa transferência de atividades aos consumidores na esfera da circulação de mercadorias é a abertura de contas bancárias digitais, nas quais os próprios consumidores são responsáveis por levantar todos os dados para a efetivação da conta, como: enviar fotos dos documentos solicitados (RG ou CNH e comprovante de residência), enviar selfie segurando o documento de identidade ou gravar vídeo para comprovar autenticidade, assinar contrato digital e realizar impressão das digitais, quando necessário. Esse é apenas um dos diversos exemplos de como o desenvolvimento tecnológico materializado nas plataformas permite que atividades necessárias dos processos de trabalho vinculados às múltiplas etapas da metamorfose do valor (nesse caso, da circulação do dinheiro em operância de suas distintas funções) possam ser conduzidas pelo próprio consumidor/comprador final (VAN DIJCK; POELL; WAAL, 2018VAN DIJCK, J., POELL, T.; WAAL, M. The Platform Society: Public Values in a Connective World. Oxford University Press. 2018.).

Ao se tratar especificamente da esfera da circulação do capital, temos o capital comercial, que se desdobra em duas formas ou categorias, quais sejam: capital do comércio de mercadorias e o capital do comércio de dinheiro. O capital comercial emerge quando o capital-mercadoria ou as funções técnicas do dinheiro (enquanto meio de circulação ou meio de pagamento) se autonomizam como função específica de um determinado capital devido ao desenvolvimento da divisão do trabalho (MARX, 2017______. O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017.). Em outras palavras, o capital comercial não é senão a autonomização de operações secundárias dos capitalistas industriais, quando o movimento do capital industrial no interior da esfera da circulação se autonomiza como função específica de capitalistas particulares, com o objetivo de ganhos de escala no processo global de reprodução do capital6 6 Temos ainda o que se chama de capital portador de juros, no qual o dinheiro, para além das suas funções como meio de compra e de pagamento, obtém um valor de uso adicional, isto é, aquele de funcionar como capital. Todavia, nas mãos dos capitalistas monetários, o dinheiro é apenas capital enquanto potência e, dessa maneira, deve ser desembolsado uma segunda vez, agora pelo capitalista em atividade, que deverá comercializar com ele ou convertê-lo em capital produtivo. O duplo desembolso de dinheiro exige também um duplo refluxo, isto é, o capitalista tomador do empréstimo, após realizar seu ciclo individual, deverá devolvê-lo ao capitalista prestamista acrescido de uma parte do seu lucro. Dessa maneira, tanto os juros bancários como o lucro comercial são nada mais do que alíquotas do mais-valor produzido, em última instância, pelos capitalistas industriais (MARX, 2017). .

Mas é importante salientar que para realizar as metamorfoses do capital na esfera da circulação, ou seja, a troca de dinheiro por mercadorias (D – M) e, posteriormente, a mercadorias por dinheiro (M – D), assim como para viabilizar a intermediação financeira, isto é, o empréstimo de dinheiro a capitalistas particulares para que disponham de recursos e reduzam as interrupções em seus ciclos de acumulação, é necessário determinado quantum de força de trabalho e meios de trabalho. Ao se pensar no capital total de uma sociedade, tem-se que uma parte deste será sempre requerida para operações secundárias que, embora não participem diretamente do processo de produção de valor, necessitam ser constantemente reproduzidas para a finalidade da valorização (MARX, 2017______. O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017.). Essa parte do capital requerida para a realização do valor ou para a intermediação financeira realizada entre prestamistas e prestatários, seja capital constante ou variável, constitui, portanto, custos da circulação do capital, que são subtraídos da riqueza social total e representam descontos efetuados sobre o produto total da produção capitalista (MARX, 2014______. O Capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.). De acordo com Marx (2014______. O Capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 228),

O capital investido nesses custos faz parte do faux frais da produção capitalista. O ressarcimento destes gastos tem de provir do mais produto e constitui, considerando-se a classe capitalista em sua totalidade, um desconto do mais-valor ou do mais-produto, da mesma forma que, para um trabalhador, o tempo que ele dedica à compra de seus meios de subsistência é um tempo perdido. (MARX, 2014______. O Capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 228)

Dessa maneira, é possível compreender que aquilo que está posto para o trabalhador produtivo também está posto para o trabalhador improdutivo, ainda que sua expressão tenha a particularidade do trabalho improdutivo para o capital. Ou seja, os trabalhadores improdutivos estão sujeitos aos mesmos processos de intensificação do trabalho e de extensão da jornada de trabalho, porém, se para o trabalho produtivo isso engendra um aumento no processo de produção de valor, para o trabalho improdutivo isto permite a redução do desconto do mais-valor apropriado pelo capitalista comercial ou monetário que o emprega. Ao se pensar no capital variável tem-se que, da mesma forma “[...] como o trabalho não pago do trabalhador cria diretamente mais-valor para o capital produtivo, também o trabalho não pago dos assalariados comerciais cria para o capital comercial uma participação naquele mais-valor” (MARX, 2017______. O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 290).

Dessa forma, criar mecanismos para gestão dos trabalhadores empregados na esfera da circulação — seja prolongando suas jornadas de trabalho, seja intensificando seu consumo durante o processo de trabalho —, é algo constantemente perseguido pelos capitalistas comerciais e monetários, visto que, embora seus trabalhadores não produzam mais-valor, a forma como o capital variável é gerido implica diretamente no grau de suas participações no mais-valor já produzido; em outras palavras, quanto maior for o tempo de trabalho não pago dos trabalhadores improdutivos, menores serão os custos de capital variável na esfera da circulação e tanto menor será a dedução das participações dos capitalistas na massa de mais-valor total a ser dividida entre os capitais (MACIEL et al., 2021MACIEL, J. A. et al. O sistema bancário brasileiro: centralização de capitais e alterações na composição orgânica do capital. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 40, n. 1, jan-abr. 2021.).

Todavia, para além das possibilidades de aumento da produtividade do trabalho, oportunizadas pelo desenvolvimento tecnológico nas esferas de realização do valor, a emergência de novas tecnologias também tem possibilitado novas formas de engendrar trabalho não pago, que não se limitam às forças de trabalho diretamente compradas (capital variável adiantado) e atuantes entre as paredes dos escritórios. Entendemos, pois, que a virtualização dos processos de trabalho desdobra-se não apenas na intensificação do trabalho e/ou extensão da jornada dos trabalhadores empregados pelos capitalistas particulares, como também tem criado novas formas de exploração da classe trabalhadora, como por meio da transferência de atividades para uma força de trabalho que não aparece na forma de capital variável, por ser consumidor (MACIEL, 2020MACIEL, J. A. A circulação do dinheiro e o dinheiro enquanto capital: desenvolvimento tecnológico e seus desdobramentos sobre os momentos da produção e sobre a classe trabalhadora. Dissertação de mestrado, Administração, UFMG, 2020.). A partir desse momento, retornarmos ao cerne da questão.

A transferência de processos de trabalho aos consumidores precisa ser apreendida dentro do movimento de expansão do capital que, segundo Marx (1978)MARX, K. O Capital - Livro I - Capítulo VI (inédito). 1. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1978., quanto mais desenvolvida a produção capitalista, tanto maior é a procura de versatilidade da força de trabalho, tanto mais indiferente é o trabalhador em relação ao conteúdo particular de seu trabalho e tanto mais fluido o movimento do capital, que passa de uma esfera produtiva a outra. Como já dito, os processos de trabalho são subsumidos ao processo de valorização, cuja necessidade é a busca constante de ampliação das formas de apropriação de trabalho não pago. O prosumer, nesse momento, é a expressão de um trabalho gratuito desenvolvido pelo consumidor/comprador, sendo parte das estratégias de capitalistas particulares para redução do capital total adiantado que é necessário à apropriação de valor.

A apropriação do trabalho dos consumidores, que nesse desdobramento do prosumption nada custa aos capitalistas, permite: (1) uma redução da necessidade de força de trabalho sob o comando dos capitalistas particulares — redução de capital adiantado na forma de capital variável, (2) uma redução no tempo de rotação do capital e (3) mais uma forma de avanço sobre o tempo de vida do trabalhador, pois essas atividades subsumidas ao processo de valorização do valor (produção e realização) são desenvolvidas no tempo que o trabalhador tem para si, para seu consumo individual, para o tempo da reprodução de sua força de trabalho. Cabe agora debruçar-se sobre cada um destes elementos, de forma a compreender como tais possibilidades postas aos capitalistas modificam as relações de produção e trabalho.

No que tange ao primeiro desdobramento, destacamos que, no atual estágio da organização dos processos de trabalho, a atuação do prosumer ocorre majoritariamente na esfera da circulação: dos fast foods aos fast créditos. Por isso, nossa apreensão se dará a partir do desdobramento dele para o movimento do valor nessa esfera. O prosumer expressa, de forma geral, a possibilidade de redução da força de trabalho empregada pelos capitalistas, pois transfere-se parte dos processos de trabalho necessários à realização do valor para o consumidor (um indivíduo que atua como força de trabalho, todavia, sem vendê-la). O prosumer expressa, portanto, uma redução na necessidade de adiantamento de capital variável, no caso da esfera da circulação, para a realização de determinado quantum de valor (o que também pode significar que há a possibilidade de transferência do capital variável outrora empregado nestes processos de trabalho para outras atividades). Essa redução no adiantamento de capital variável impacta no quantum da massa de mais-valor que estará disponível para a distribuição entre os capitalistas, devido a redução do custo de circulação7 7 Essa redução também ocorre pela passagem de certos custos com aquisição de meios de produção (capital constante), mas não nos deteremos sobre esse aspecto neste texto. O aprofundamento pode ser visto em Franco (2020). .

Não é coincidência que o prosumer atue majoritariamente na esfera da circulação. Marx já nos indicava que não há contradição no movimento de tender à zero o custo de circulação para o processo de valorização do valor — pelo contrário. O movimento natural do capital é a redução dos custos de circulação para o aumento da massa de mais-valor à disposição da apropriação dos capitalistas para a acumulação de capital. Porém, o mesmo comportamento não se verifica na esfera produtiva. O fenômeno do prosumer pode se efetivar na esfera produtiva (esfera onde há produção de mais valor, seja por meio da produção de um produto tangível seja por meio da produção do efeito útil imediato do processo de trabalho), todavia, seu limite é posto pela própria necessidade de existência do capital, afinal, uma efetivação total do prosumer na esfera produtiva seria a eliminação do trabalho assalariado, porém, este é a condição de existência da sociabilidade capitalista.

Outro desdobramento do consumidor que trabalha, no sentido aqui discutido, refere-se à possibilidade de diluição da lacuna temporal existente entre a produção e a realização do valor (FONTENELLE, 2015aFONTENELLE, I. A. Prosumption: as novas articulações entre trabalho e consumo na reorganização do capital. Ciências Sociais Unisinos, v. 51, n. 1, p. 83-91, 2015a.), isto é, no tempo de rotação do capital. Marx argumenta que a acumulação de capital ocorre no movimento de produção e realização do valor. A esse respeito, tem-se que, “quanto mais rapidamente o produto é vendido, tanto mais líquido é o processo de reprodução. A permanência na transmutação de forma [...] estorva não só o metabolismo real que se tem de operar no ciclo do capital, como também sua função ulterior como capital produtivo” (MARX, 2014______. O Capital: crítica da economia política. Livro II: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 218). Dessa forma, quando os capitalistas comerciais transferem processos de trabalho aos consumidores, isto tende a abreviar o tempo de curso do capital e, por conseguinte, o tempo de rotação, uma vez que se elimina a intermediação da força de trabalho anteriormente requerida para a realização do valor. Cabe salientar que a aceleração do tempo de rotação do capital não aumenta necessariamente a produção de mais-valor e mais-trabalho, mas sim reduz o tempo entre a produção e a realização deste, permitindo que o capital esteja disponível de forma mais rápida para um novo ciclo. Trata-se, portanto, de acelerar o processo de acumulação. Aqui, apenas apontamos para estas especificidades do prosumer na esfera da realização do valor. Reconhecemos que se faz necessária uma investigação maior acerca dos diferentes desdobramentos do prosumer no caminho do capital produtivo.

Como último desdobramento, agora sob o ponto de vista da classe trabalhadora, tem-se o avanço do capital sobre o tempo de vida do trabalhador, a fim de utilizá-lo enquanto tempo de trabalho não pago. Aqui, torna-se notório como o desenvolvimento das forças produtivas permite com que o capital avance sobre o tempo de vida do trabalhador, transformando-o em tempo de valorização do valor. Quando Marx discorre sobre o consumo do trabalhador na sociabilidade capitalista, ele aponta que esse consumo tem uma dupla natureza: consumo produtivo e consumo individual. No processo de produção, ele é consumo produtivo, pois através do trabalho humano os meios de produção e a própria força de trabalho são consumidos e transformados em produtos de valor maior que o capital adiantado (MARX, 2013______. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.). O consumo também pode ser individual, pois os trabalhadores compram meios de subsistência com dinheiro adquirido com a venda da força de trabalho e os consome. Marx salienta ainda que o consumo produtivo e o consumo individual diferem-se inteiramente, pois enquanto “no primeiro, o trabalhador atua como força motriz do capital e pertence ao capitalista; no segundo, ele pertence a si mesmo e executa funções vitais à margem do processo de produção. O resultado de um é a vida do capitalista, o do outro é a vida do trabalhador” (MARX, 2013______. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 646).

Com a emergência do prosumption, temos, portanto, que os processos de trabalho necessários à realização do valor adentram a esfera do (tempo de) consumo individual dos trabalhadores, e a realização das atividades dos trabalhadores em seu momento de consumo individual torna-se imprescindível à realização do valor dos capitalistas particulares. Por ser realizado em grande parte sem contrapartida financeira, isto é, de forma gratuita, entendemos que a transferência de atividades aos consumidores permite com que capitalistas compartilhem socialmente um custo anteriormente privado de produção que resulta, por sua vez, em mais uma nova forma de se explorar a classe trabalhadora. Vale destacar, como já mencionado, que essa transferência, faz coincidir a realização de um trabalho improdutivo (trabalho relacionado às atividades de metamorfose do valor) com atividades concernentes ao consumo individual, contudo, não se estabelece nessa coincidência, a identidade entre ambas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Objetivamente, o prosumption (prosumer), como apresentado pela ciência em geral, expressa uma abstração arbitrária. Perscrutar o fenômeno nos permitiu dar materialidade a essa categoria, demonstrando que o ato do consumo individual é produtor de rastros naturais-sociais com potencialidade de ser explorado capitalisticamente, e, com o avanço das forças produtivas, assim o é. Porém, não é esse ato de consumo individual que se comporta como trabalho produtivo ou improdutivo para o capital. Por um lado, é a força de trabalho que atua sobre esses rastros que produzem mercadorias prenhes de valor. Por outro, é no tempo destinado ao consumo individual que o desenvolvimento da tecnologia permitiu a extensão e intensificação da redução de custos de circulação, de modo que há atividades desenvolvidas na esfera da reprodução da força de trabalho que são atividades necessárias à esfera da circulação da mercadoria.

Portanto, enquanto consumidores/compradores, atuamos como trabalhadores improdutivos, ainda que na aparência imediata sejamos apenas consumidores individuais. Esse mesmo avanço tecnológico tem a potencialidade de transferir trabalhos produtivos para indivíduos sem comprar deles a força de trabalho, embora essa possibilidade seja freada pela necessidade da acumulação de capital. E, sobre isso, destacamos que se faz necessário uma investigação maior acerca dos diferentes desdobramentos do prosumer no caminho do capital produtivo e do capital improdutivo. Estudos que prescrutem como setores específicos da economia têm lançado mão do prosumer, no intuito de prosseguir a valorização do valor, podem expor à classe trabalhadora as possibilidades de fissura do capital, os espaços de resistência e os enfrentamentos. Ademais, é importante destacar que carecemos, também, de estudos que ao enfocarem o fenômeno do prosumer, investiguem o seu impacto na vida da classe trabalhadora no que tange aos seus processos de adoecimento e de reprodução de opressões e, também, às questões geracionais marcadas por diferentes formas de acesso às tecnologias. Elementos esses que podem, inclusive, embasar a organização e a luta de trabalhadores e trabalhadoras, afinal, ser consumidor e ser trabalhador são apenas máscaras econômicas que usamos no movimento de reprodução da vida submetida às necessidades do valor. Estudos que demonstrem os determinantes dessa cisão podem oportunizar a constituição de uma consciência que enfrente o avanço do capital e não o avanço da tecnologia, das forças produtivas do trabalho social.

O potencial revolucionário da tecnologia não é por si só o produtor de uma nova sociabilidade. O prosumer não se apresenta automaticamente como o novo sujeito histórico da revolução. Mas, como produto da relação contraditória entre capital-trabalho — em que rastros sociais produzidos pelo consumo individual tornam-se materiais a serem explorados capitalistamente e atividades necessárias à metamorfose do valor são transferidas para o consumo individual, como forma de se reduzir o custo da circulação — ele carrega em si, por nada mais ser do que a expressão de formas de exploração da classe trabalhadora, o sujeito que nega tal contradição.

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    Cabe lembrar que a distribuição de mercadorias é antes determinada pela distribuição de meios de produção, de trabalhadores nas diferentes áreas da divisão técnica do trabalho, etc. (MARX, 2011______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.).
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    Temos ainda o que se chama de capital portador de juros, no qual o dinheiro, para além das suas funções como meio de compra e de pagamento, obtém um valor de uso adicional, isto é, aquele de funcionar como capital. Todavia, nas mãos dos capitalistas monetários, o dinheiro é apenas capital enquanto potência e, dessa maneira, deve ser desembolsado uma segunda vez, agora pelo capitalista em atividade, que deverá comercializar com ele ou convertê-lo em capital produtivo. O duplo desembolso de dinheiro exige também um duplo refluxo, isto é, o capitalista tomador do empréstimo, após realizar seu ciclo individual, deverá devolvê-lo ao capitalista prestamista acrescido de uma parte do seu lucro. Dessa maneira, tanto os juros bancários como o lucro comercial são nada mais do que alíquotas do mais-valor produzido, em última instância, pelos capitalistas industriais (MARX, 2017______. O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017.).
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    Essa redução também ocorre pela passagem de certos custos com aquisição de meios de produção (capital constante), mas não nos deteremos sobre esse aspecto neste texto. O aprofundamento pode ser visto em Franco (2020)FRANCO, D. S. Uberização do Trabalho — A materialização do valor entre plataformas digitais, gestão algorítmica e trabalhadores nas redes do capital. Tese (Doutorado em Administração). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. 2020..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May/Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2020
  • Aceito
    12 Mar 2021
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