Acessibilidade / Reportar erro

Exposição à violência e experiências difíceis vividas por adolescentes em situação de acolhimento institucional

RESUMO

Objetivos:

analisar a exposição à violência e experiências difíceis vivenciadas por adolescentes em situação de acolhimento institucional no município do Rio de Janeiro.

Métodos:

estudo transversal realizado nas unidades públicas de acolhimento institucional, com amostra de 72 adolescentes entre 12 e 18 anos. A aferição dos aspectos sociodemográficos, das relações familiares e das difíceis experiências foi realizada por meio do instrumento Parcours Amoureux des Jeunes, validado para uso no Brasil. A análise estatística contou com estimações de prevalências e intervalos de confiança a 95%.

Resultados:

foram observadas elevadas magnitudes de experiências difíceis e com sobreposição de abusos vividos pelos adolescentes, com destaque para os eventos violentos (72,2%), a exclusão social (59,1%) e o assédio sexual (48,6%).

Conclusões:

o estudo revelou elevadas e múltiplas magnitudes de experiências difíceis experenciadas pelos adolescentes em acolhimento institucional, tanto no âmbito familiar, em momentos prévios ao acolhimento, como em âmbito comunitário e grupal.

Descritores:
Adolescente; Adolescente Institucionalizado; Violência; Exposição à Violência; Drogas Ilícitas

ABSTRACT

Objectives:

to analyze the exposure to violence and distressful experiences lived by adolescents in institutional shelters in the city of Rio de Janeiro (previous to their admittance).

Methods:

a cross-sectional study carried out in public institutional shelter units, with a sample of 72 adolescents aged between 12 and 18 years. Data on sociodemographic aspects, family relationships and distressful experiences were obtained by means of the Parcours Amoureux des Jeunes instrument, validated for use in Brazil. Statistical analysis included estimates of prevalence and 95% confidence intervals.

Results:

high magnitudes of distressful experiences and overlapping abuses lived by adolescents were observed, especially violent events (72.2%), social exclusion (59.1%), and sexual harassment (48.6%).

Conclusions:

the study shows that adolescents under institutional sheltering come from a background of severe and frequent distressful experiences. These took place in multiple environments: family (prior to their institutional reception), community, and group.

Descriptors:
Adolescent; Institutionalized Adolescent; Violence; Exposure to Violence; Street Drugs

RESUMEN

Objetivos:

analizar la exposición a la violencia y las experiencias difíciles vividas por adolescentes en situación de acogida institucional en la ciudad de Río de Janeiro.

Métodos:

estudio transversal realizado en unidades públicas de acogida institucional, con una muestra de 72 adolescentes entre 12 y 18 años de edad. La medición de los aspectos sociodemográficos, de las relaciones familiares y de las experiencias difíciles se realizó mediante el instrumento Parcours Amoureux des Jeunes, validado suuso en Brasil. El análisis estadístico contó con estimaciones de prevalencias e intervalos de confianza al 95%.

Resultados:

se observaron altas magnitudes de experiencias difíciles, con superposición de abusos vividos por los adolescentes, en particular los eventos violentos (72,2%), la exclusión social (59,1%) y el acoso sexual (48,6%).

Conclusiones:

el estudio reveló altas y múltiples magnitudes de experiencias difíciles experimentadas por los adolescentes en acogida institucional tanto en el ámbito familiar, en momentos anteriores a la acogida, como en el ámbito comunitario y grupal.

Descriptores:
Adolescente; Adolescente Institucionalizado; Violencia; Exposición a la Violencia; Drogas Ilícitas

INTRODUÇÃO

De conceituação incerta e longe de atingir um consenso teórico, o múltiplo período conhecido por adolescências vêm ocupando cada vez mais as agendas de pesquisa no âmbito da saúde pública mundial e no Brasil. Parte deste fenômeno guarda relação com as dificuldades de recrutamento e adesão aos programas de promoção e atenção à saúde, já que estas unidades, em geral, não se adaptaram à pluralidade de necessidades e demandas deste público, agindo de forma normativa e impositiva na construção de hábitos ditos saudáveis. Por outro lado, parte das possibilidades explicativas se concentra na própria dificuldade de reduzir as experiências vivenciadas por este grupo em um conceito único sobre as adolescências(11 Vieira RP, Gomes SHP, Machado MFAS, Bezerra IMP, Machado CA. Participation of adolescents in the Family Health Strategy from the theoretical-methodological structure of an enabler to participation. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014;22(2):309-16. doi: 10.1590/0104-1169.3182.2417
https://doi.org/10.1590/0104-1169.3182.2...
).

Evitando o perigo desta redução, este estudo tem como objeto justamente estas experiências, considerando no pano de fundo do debate as suas múltiplas acepções. Dessa maneira, compreende-se as adolescências por um período do desenvolvimento humano de construção de identidades, de busca por autonomia frente à família e à sociedade e de tempo de (re)descoberta das relações afetivas, sejam elas familiares, íntimo-sexuais/íntimo-amorosas e grupais. O motivo desta opção teórica se baseia no entendimento de que este período não guarda necessariamente relação com o estágio etário e biológico de desencadeamento da maturação das funções fisiológicas, incluindo-se as sexuais e reprodutivas(22 Fontenele LQ, Miranda LL. Adolescência(s): produções e atravessamentos discursivos em análise. Trends Psychol. 2017;25(3):969-82. doi: 10.9788/tp2017.3-04
https://doi.org/10.9788/tp2017.3-04...
).

Nesta fase, a família deixa de ser o único agente de socialização importante, para abrir espaço às relações com os iguais. A socialização e interação entre amigos geralmente se dá durante tempo significativo, e os relacionamentos tornam-se mais estáveis na medida em que o adolescente compartilha questões íntimas, como sentimentos e segredos, que nem sempre se permitem partilhar com os seus pais. Deste modo, as relações com iguais assumem uma importância crescente para o adolescente na medida em que medeiam a construção da identidade e de papéis sociais. O adolescente passa a ser, indiscutivelmente, sujeito único e, simultaneamente, social, auxiliando na construção das normas a serem seguidas por ele e ao mesmo tempo servindo de referência para o grupo de pares. A aceitação de si e do outro passa a permear a nova rede de relações em constante construção(33 Correia J, Santos AJ, Freitas M, Ribeiro O, Rubin K. As relações entre pares de adolescentes socialmente retraídos. Aná Psicológica. 2014;32(4):467-79. doi: 10.14417/ap.870
https://doi.org/10.14417/ap.870...

4 Glick GC, Rose AJ. Prospective associations between friendship adjustment and social strategies: friendship as a context for building social skills. Dev Psychol. 2011;47(4):1117-32. doi: 10.1037/a0023277
https://doi.org/10.1037/a0023277...
-55 Purves RI, Stead M, Eadie D. "I wouldn't be friends with someone if they were liking too much rubbish": a qualitative study of alcohol brands, youth identity and social media. Int J Environ Res Public Health. 2018;15(2):E349. doi: 10.3390/ijerph15020349
https://doi.org/10.3390/ijerph15020349...
).

A literatura também tem apontado que essas experiências advindas das relações sociais - familiares, grupais e contextuais - também constituem fatores protetores ou de risco às trajetórias de desenvolvimento humano. Ou seja, as experiências vividas nesta fase parecem influenciar comportamentos, práticas e atitudes na fase adulta. São exemplos de fatores preditores baseados nas experiências da adolescência: o uso e abuso de tabaco, álcool e outras drogas, além das formas violentas de resolução dos conflitos durante os relacionamentos íntimos(66 Figueiredo VC, Szklo AS, Costa LC, Kuschnir MCC, Silva TLN, Bloch KV, et al. ERICA: smoking prevalence in Brazilian adolescents. Rev Saúde Pública. 2016;50(Suppl 1):12s. doi: 10.1590/S01518-8787.2016050006741
https://doi.org/10.1590/S01518-8787.2016...

7 Silins E, Horwood LJ, Naiman JM, Patton GC, Toumbourou JW, Olsson CA, et al. Adverse adult consequences of different alcohol use patterns in adolescence: an integrative analysis of data to age 30 years from four Australasian cohorts. Addiction. 2018;113(10):1811-25. doi: 10.1111/add.14263
https://doi.org/10.1111/add.14263...
-88 Kaufman-Parks AM, DeMaris A, Giordano PC, Manning WD, Longmore MA. Parents and partners: Moderating and mediating influences on intimate partner violence across adolescence and young adulthood. J Soc Pers Relat. 2017;34(8):1295-323. doi: 10.1177/0265407516676639
https://doi.org/10.1177/0265407516676639...
). Ademais, inúmeros desfechos negativos já foram vinculados às experiências difíceis durante esta fase, como: a associação entre a violência e o menor desenvolvimento econômico e educacional em adultos, a ampliação do risco de suicídios, de transtornos mentais, e outros desfechos que trazem consequências negativas e sofrimento psíquico(99 Jaffee SR, Ambler A, Merrick M, Goldman-Mellor S, Odgers CL, Fisher HL, et al. Childhood maltreatment predicts poor economic and educational outcomes in the transition to adulthood. Am J Public Health. 2018;108(9):1142-7. doi: 10.2105/AJPH.2018.304587
https://doi.org/10.2105/AJPH.2018.304587...

10 Sharma B, Nam EW, Kim HY, Kim JK. Factors associated with suicidal ideation and suicide attempt among school-going urban adolescents in Peru. Int J Environ Res Public Health. 2015;12(11):14842-56. doi: 10.3390/ijerph121114842
https://doi.org/10.3390/ijerph121114842...
-1111 Schaefer JD, Moffitt TE, Arseneault L, Danese A, Fisher HL, Houts R, et al. Adolescent victimization and early-adult psychopathology: approaching causal inference using a longitudinal twin study to rule out noncausal explanations. Clin Psychol Sci. 2018;6(3):352-71. doi: 10.1177/2167702617741381
https://doi.org/10.1177/2167702617741381...
).

Neste sentido, é possível refletir que o período da adolescência é experenciado de distintas maneiras pelos próprios adolescentes e suas famílias, trazendo implicações para outras fases do ciclo de vida dessas pessoas. Na tentativa de constituir uma rede protetiva para crianças, adolescentes e jovens cujas relações sociais e familiares apresentam esgarçamento socioafetivo e que colocam em risco o desenvolvimento humano, foi proposta a estratégia de acolhimento institucional (ou abrigamento) pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Aliado a um conjunto de outros dispositivos, estes aparelhos do Estado constituem uma rede de suporte e proteção para crianças e adolescentes que vivem (viveram) situações que ameaçam a vida e o pleno desenvolvimento humano(1212 Casa Civil (BR). Subchefia para assuntos jurídicos. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [Internet]. Brasília: Casa Civil; 1990 [cited 2018 Apr 08]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI...
).

Por outro lado, ainda é escassa a produção científica que se debruce sobre as experiências vividas no âmbito familiar e contextual deste grupo, parte pela invisibilidade social e acadêmica a qual este grupo está exposto, parte pela dificuldade de recrutamento destes adolescentes e jovens, impondo dificuldades de operacionalizar estudos na área. Deste modo, este estudo baseia-se na premissa que não se deve assumir a construção de laços sociais e afetivos de modo linear e padronizado, pois isso poderia esterilizar os contextos em que os adolescentes se inserem.

OBJETIVOS

Analisar a exposição à violência e experiências difíceis vivenciadas por adolescentes em situação de acolhimento institucional no município do Rio de Janeiro.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O protocolo de pesquisa respeitou os preceitos éticos, conforme determina a Resolução do Conselho Nacional de Saúde número 466/2012, sendo apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Por se tratar de um estudo envolvendo adolescentes em situação de acolhimento institucional e, com isso, respeitando o ordenamento jurídico e os demais dispositivos técnicos da rede de proteção de crianças e adolescentes, os responsáveis por cada unidade assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. Os adolescentes, após apresentação dos objetivos e protocolos do estudo, assinaram os Termos de Assentimento Livre e Esclarecido antes do início das entrevistas. Além disso, foram garantidos o anonimato, a privacidade durante a coleta, a possibilidade de retirada da autorização a qualquer tempo e a realização das entrevistas somente por mulheres, respeitando as recomendações sobre pesquisas envolvendo pessoas em situação de violência(1313 Rafael RMR, Moura ATMS. Considerações éticas sobre pesquisas com mulheres em situações de violência. Rev Bras Enferm. 2013;66(2):287-90. doi: 10.1590/S0034-71672013000200021
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201300...
).

Desenho, local e período do estudo

Trata-se de estudo observacional, do tipo transversal, ancorado no projeto intitulado “Violência nas relações afetivas íntimas de adolescentes em situação de acolhimento institucional no município do Rio de Janeiro: perspectiva de gênero e suas interfaces com a Saúde e a Enfermagem”.

O estudo se desenvolveu no município do Rio de Janeiro, localizado na região metropolitana I do estado. O município apresenta uma das maiores economias do país, além de ser um importante centro social e cultural. Com uma população de 15.989.929 habitantes, o município apresenta uma elevada quantidade de jovens vivendo em áreas mais vulneráveis e periféricas. Dada a complexidade do território municipal, a rede de acolhimento institucional para crianças e adolescentes conta 30% (n = 53) da malha de unidades públicas e privadas do estado(1414 Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Censo da população infanto-juvenil acolhida no Estado do Rio de Janeiro [Internet]. Rio de Janeiro: MPRJ; 2015 [cited 2018 Apr 08]. Available from: http://mca.mp.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/11/Apresentacao.pdf
http://mca.mp.rj.gov.br/wp-content/uploa...
). Quanto à rede de acolhimento para adolescentes, o município apresenta 11 instituições privadas e sete unidades públicas.

O cenário do estudo foi constituído pela totalidade de unidades públicas de acolhimento, excluídas as Casas Vivas - que acolhem exclusivamente adolescentes com características de consumo abusivo de álcool e outras drogas, e que poderiam enviesar o estudo que deu origem a este manuscrito - e as centrais de Recepção e Triagem, pela elevada rotatividade de jovens por elas assistidos.

População do estudo e critérios de seleção

Utilizando técnica de amostragem não probabilística, por conveniência, a população do estudo considerou a totalidade de adolescentes entre 12 e 18 anos em acolhimento institucional no período do estudo, perfazendo o quantitativo de 91 sujeitos. Considerando o objeto do estudo principal, foram incluídos os adolescentes que experenciaram ao menos uma relação afetiva-íntima (namoro ou o “ficar”) nos últimos 12 meses que antecederam a coleta (n = 90), e foram excluídos aqueles que não se encontravam no abrigo, após três tentativas infrutíferas de recrutamento em horários e dias da semana distintos, bem como aqueles que recusaram participar do estudo (n = 18; P = 20,0%). Deste modo, a amostra final foi composta por 72 participantes.

Protocolo do estudo

Os procedimentos de coleta foram previamente padronizados pelos coordenadores do estudo, a fim de garantir a reprodutibilidade dos dados e os pilares da validade em estudos epidemiológicos. Para tanto, as seis entrevistadoras foram treinadas sobre as temáticas da pesquisa, bem como os procedimentos de coleta e condução em casos adversos. Mediante a autorização do Centro de Capacitação da Secretaria Municipal de Assistência Social do município do Rio de Janeiro, as entrevistadoras iniciaram a aproximação com as unidades de acolhimento com o objetivo de conhecerem e serem reconhecidas pelos participantes do estudo. Reuniões com os/as adolescentes e os servidores das unidades foram realizadas para o planejamento das entrevistas e a eleição de locais privativos.

A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas face a face e utilizando um roteiro estruturado e multidimensional. A primeira dimensão do instrumento foi composta por escalas Parcours Amoureux des Jeunes (PAJ), validado e adaptado transculturalmente para uso no Brasil(1515 Nascimento OC, Costa MCO, Freitas KS, Hebert M, Moreau C. Adaptação transcultural do inventário Parcours Amoureux des Jeunes - PAJ de origem canadense para o contexto brasileiro. Ciênc Saúde Colet. 2015;20(11)3417-26. doi: 10.1590/1413-812320152011.02912015
https://doi.org/10.1590/1413-81232015201...
). O instrumento, originalmente concebido pelo Grupo de Pesquisa Violência e Saúde (Evissa) da Universidade de Quebec, em Montreal, é composto por 7 seções que mapeiam informações gerais e sociodemográficas, relações afetivas, difíceis experiências, comportamentos sexuais, família, comportamentos e hábitos de vida, e sentimentos e emoções.

A segunda e terceira dimensões foram compostas pelos instrumentos Alcohol Smoking and Substance Involvement Screening Test (Assist 2.0) e Conflict in Adolescent Dating Relationships Inventory (Cadri), ambos validados para uso brasileiro(1616 WHO ASSIST Working Group. The Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (ASSIST): development, reliability and feasibility. Addiction. 2002;97(9):1183-94. doi: 10.1046/j.1360-0443.2002.00185.x
https://doi.org/10.1046/j.1360-0443.2002...

17 Henrique IFS, De Micheli D, Lacerda RB, Lacerda LA, Formigoni MLOS. Validação da versão brasileira do teste de triagem do envolvimento com álcool, cigarro e outras substâncias (ASSIST) 2.0. Rev Assoc Med Bras. 2004;50(2):199-206. doi: 10.1590/S0104-42302004000200039
https://doi.org/10.1590/S0104-4230200400...

18 Wolfe DA, Scott K, Reitzel-Jaffe D, Wekerle C, Grasley C, Straatman AL. Development and validation of the conflict in adolescent dating relationships inventory. Pscychol Assess. 2001;13(2):277-93. doi: 10.1037/1040-3590.13.2.277
https://doi.org/10.1037/1040-3590.13.2.2...
-1919 Oliveira QBM, Assis SG, Njaine K, Oliveira RVC. Violência nas relações afetivo-sexuais. In: Minayo S, Assis S, Njaine K, organizadoras. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do 'ficar' entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 87-151. doi: 10.7476/9788575413852
https://doi.org/10.7476/9788575413852...
). Considerando os objetivos deste manuscrito, este estudo apresenta as análises de três escalas do PAJ: informações gerais, relações afetivas e difíceis experiências.

Análise dos resultados e estatística

O banco de dados foi construído utilizando-se o software EpiInfo 3.5.1., realizando-se dupla digitação de 20% dos instrumentos coletados. O preparo, processamento e análises estatísticas descritivas das prevalências e dos intervalos de confiança a 95% foram realizados no software Stata SE 13.0.

RESULTADOS

A caracterização demográfica da amostra evidencia que a idade dos participantes variou entre 12 e 18 anos, com concentração entre 12 e 15 anos (n = 42; 58,3%). A maior parte dos adolescentes (n = 46; 63,9%) entrevistados era do sexo masculino, negros (n = 63; P = 87,3%) e estudaram até o ensino fundamental (n = 59; P = 81,9%). Destaca-se que um número significativo de participantes não viveu tempo suficiente com os pais e responsáveis para responder todos os itens, gerando uma faixa de respostas em branco que variou de 4 a 27 adolescentes, de acordo com item questionado durante o inquérito.

A Tabela 1 apresenta um conjunto de experiências familiares vivenciadas por estes adolescentes antes do acolhimento institucional. A ingestão de bebidas alcoólicas por pais e responsáveis foi a experiência de maior magnitude no contexto das drogas lícitas, seguido do consumo de tabaco, sobretudo na figura paterna. Quanto às demais drogas, observou-se 2,3 chances a mais de vivências em relação aos responsáveis do sexo masculino. Evidencia-se que 37,1% dos adolescentes relataram ter presenciado o consumo deste conjunto de drogas pelos pais. No conjunto das violências, observa-se que 33,3% e 25,8% dos adolescentes relataram ter presenciado as figuras paterna e materna, respectivamente, agredindo e sendo agredidas por outros familiares. Especificamente sobre a análise das violências por parceiros íntimos, chama-se atenção para a magnitude de abusos físicos (puxar, empurrar, esbofetear, etc.) e físicos graves (ameaçar com faca ou arma, dar um murro ou pontapé, etc.) perpetradas pelas figuras paterna e materna.

Tabela 1
Experiências de uso de drogas e agressões relatadas pelo conjunto adolescentes em relação aos pais e responsáveis em períodos que antecederam o acolhimento institucional, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 2017

A Tabela 2 demonstra o conjunto de experiências difíceis experimentadas ao longo da vida pelo conjunto de adolescentes estudados. Chama-se atenção que mais da metade dos entrevistados relatou ter testemunhado alguma forma de violência contra outra pessoa, ter vivenciado a morte ou o adoecimento grave de um familiar, ter sido excluído do seu meio social e/ou já ter sofrido assédio moral na escola. Embora com menor prevalência, é importante destacar as magnitudes de assédio sexual, violência sexual (com penetração) e violência física vivenciada pelo conjunto de entrevistados.

Tabela 2
Experiências difíceis vivenciadas pelos adolescentes em acolhimento institucional, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 2017

A Tabela 3 apresenta as experiências do grupo de amigos, segundo os adolescentes entrevistados. De um lado é importante apresentar que, com exceção do consumo de bebida alcoólica, cigarro e maconha, as demais magnitudes relatadas estiveram inferiores a 50% quando avaliadas as categorias informacionais pelo conjunto da maioria e de todos os amigos. Por outro lado, quando analisada a informação considerando que ao menos um amigo já tenha passado pelas situações descritas, sete das 12 situações demonstradas na tabela apresentam prevalências superiores a 50%. Ademais, é importante apontar que a situação de abuso sexual em amigos é desconhecida por 23,6% da amostra.

Tabela 3
Experiências do conjunto de adolescentes em acolhimento institucional sobre os grupos de amigos, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 2017 (n = 72)

DISCUSSÃO

A análise possibilitou reconhecer as experiências difíceis vividas por um conjunto de adolescentes em acolhimento institucional, na tentativa de mapear esta exposição e subsidiar o debate de construção de políticas públicas voltadas ao cuidado singular deste grupo. Mesmo com as dificuldades voltadas ao recrutamento desses adolescentes, que possuem entre suas características o desenvolvimento de mecanismos de defesa e proteção, tornando-se mais reservados, ao que tudo indica, a adoção de algumas estratégias possibilitou a manutenção da taxa de perdas e de recusas às entrevistas em níveis aceitáveis (20%). Dentre eles, destacam-se: a utilização de entrevistadoras do sexo feminino e com experiência prévia em trabalhos com adolescentes; a realização de momentos de sensibilização e reconhecimento que antecederam a coleta de dados; e, indiscutivelmente, o desenho de estudo que contemplou todas as unidades de acolhimento elegíveis.

De conceituação variada, o fenômeno das violências, principal achado deste estudo, vem sendo alvo de múltiplas investigações e debates teórico-práticos na tentativa de mitigar suas relações com as consequências na vida das pessoas. A adoção de uma noção operacional, como a proposta no “Relatório sobre violência e saúde” da Organização Mundial da Saúde, parece ser um caminho para resolver o imbróglio conceitual expresso pelas características de mutabilidade e flexibilidade cultural impostas ao fenômeno(2020 Domenach JM. La violencia [Internet]. In: Domenach JM, Laboriti H, Joxe A, Galtung J, Senghaas D, Klineberg O, et al., editors. La violencia y sus causas. Paris: Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (Unesco); 1981 [cited 2018 Apr 08]. p. 33-46. Available from: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000043086_spa
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf...
-2121 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi A, Lozano R, editores. Relatório mundial sobre violência e saúde [Internet]. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 2002 [cited 2015 Sep 17]. Available from: http://www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-violencia-saude.pdf
http://www.opas.org.br/wp-content/upload...
). Nesta noção, compreende-se as violências por todo ato ou uso de poder que guarde relações intencionais e de dano, ou de potencial dano, físico, emocional, sexual, moral e econômico à quem perpetra, é vítima e/ou vivencia a situação violenta(2121 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi A, Lozano R, editores. Relatório mundial sobre violência e saúde [Internet]. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 2002 [cited 2015 Sep 17]. Available from: http://www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-violencia-saude.pdf
http://www.opas.org.br/wp-content/upload...
).

As múltiplas experiências difíceis e abusos experienciados nas relações afetivo-familiares e nas relações grupais entre os jovens, certamente, é o resultado que mais chama atenção neste trabalho. Se de um lado é importante considerar que, mesmo estando elevadas, as prevalências de abusos íntimos do tipo psicológico perpetrados entre as figuras paterna e materna dos adolescentes são menores do que as prevalências observadas na população geral(2222 Rafael RMR, Moura ATMS, Tavares JMC, Ferreira REM, Camilo GGS, Neto M. Profile of intimate partner violence in Family Health Units. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017;70(6):1259-67. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0007
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
-2323 Rafael RMR, Moura ATMS. Violência contra a mulher ou mulheres em situação de violência? Uma análise sobre a prevalência do fenômeno. J Bras Psiquiatr. 2014;63(2):149-53. doi: 10.1590/0047-2085000000019
https://doi.org/10.1590/0047-20850000000...
). Por outro, é igualmente relevante observar que os abusos físicos e físicos graves estiveram elevados. Pesquisas realizadas no Rio de Janeiro apontaram que prevalências de violência física no casal apresentam uma estimativa que varia entre 20% e 30%, enquanto as violências físicas graves estão na ordem de 6% e 14%(2323 Rafael RMR, Moura ATMS. Violência contra a mulher ou mulheres em situação de violência? Uma análise sobre a prevalência do fenômeno. J Bras Psiquiatr. 2014;63(2):149-53. doi: 10.1590/0047-2085000000019
https://doi.org/10.1590/0047-20850000000...
-2424 Moraes CL, Oliveira AGS, Reichenheim ME, Gama SGN, Leal MC. Prevalência de violência física entre parceiros íntimos nos primeiros seis meses após o parto no município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2017;33(8):e00141116. doi: 10.1590/0102-311x00141116
https://doi.org/10.1590/0102-311x0014111...
). Ademais, o provável esgarçamento familiar que antecedeu o acolhimento institucional dos adolescentes pode ter sido responsável pela taxa de ausência de respostas que variou entre 5% e 33% em itens que mapeavam as relações sociais prévias ao abrigo.

Mais de 70% dos adolescentes entrevistados testemunharam alguma cena de violência, seja ela no meio comunitário, familiar ou nos grupos de amigos. A literatura internacional tem apontado que, embora este fenômeno esteja presente nos diversos contextos e grupos etários, algumas populações estão mais expostas a este fenômeno, sobretudo quando se leva em consideração as características etárias, de sexo, escolaridade, etnia e renda. Não à toa o período da adolescência tem sido encarado como sendo o de com maior vulnerabilidade para estas exposições(2525 Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2014:os jovens do Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Flacso; 2014 [cited 2019 May 17]. Available from: https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf
https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf20...
).A busca pela autonomia, pela experimentação de novos ambientes e grupos sociais, embora sejam importantes para a construção das identidades, marcam também o aumento do risco para comportamentos que poderiam ser controlados em determinados ambientes sociais - como na própria família, caso estas sejam minimamente estruturadas(2626 Barbosa PV, Wagner A. A autonomia na adolescência: revisando conceitos, modelos e variáveis. Estud Psicol. 2013;18(4);639-48. doi: 10.1590/S1413-294X2013000400013
https://doi.org/10.1590/S1413-294X201300...
).

Estudo conduzido em um hospital de referência de Belo Horizonte identificou que 64,7% dos atendimentos emergenciais de adolescentes vítimas de violência foram por agressões físicas(2727 Silva CJP, Ferreira EF, Paula LPP, Naves MD, Vargas AMD, Zarzar PMPA. A violência urbana contra crianças e adolescentes em Belo Horizonte: uma história contada através dos traumas maxilofaciais. Physis. 2011;21(3):1103-20. doi: 10.1590/S0103-73312011000300018
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201100...
). Em estudo realizado com escolares de Brasília, que teve como objetivo aferir a prevalência de violências sofridas por adolescentes, identificou-se prevalências de 85,4% e 34,7%, respectivamente, para os abusos físicos e sexuais(2828 Ribeiro IMP, Ribeiro AST, Pratesi, R, Gandolfi L. Prevalência das várias formas de violência entre escolares. Acta Paul Enferm. 2015;28(1):54-9. doi: 10.1590/1982-0194201500010
https://doi.org/10.1590/1982-01942015000...
). Ao examinar os trabalhos voltados às violências no namoro, observa-se magnitudes similares às encontradas nos grupos de adolescentes investigados(1919 Oliveira QBM, Assis SG, Njaine K, Oliveira RVC. Violência nas relações afetivo-sexuais. In: Minayo S, Assis S, Njaine K, organizadoras. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do 'ficar' entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 87-151. doi: 10.7476/9788575413852
https://doi.org/10.7476/9788575413852...
).

A multiplicidade de experiências abusivas relatadas por estes jovens, incluindo a segregação social e as violências cibernéticas, parecem estar em consonância com as experiências vividas pelos pares, sobretudo quando se observa a multiplicidade de experiências difíceis direcionadas às categorias “a maioria dos/as amigos/as” e “todos/as os/as amigos/as”, incluindo o uso de álcool, tabaco e outras drogas, assim como comportamentos violentos. É relevante refletir que o envolvimento grupal tem sido visto como fator de risco ou proteção durante o adolescer, uma vez que potencializam determinados comportamentos em construção nesta fase(33 Correia J, Santos AJ, Freitas M, Ribeiro O, Rubin K. As relações entre pares de adolescentes socialmente retraídos. Aná Psicológica. 2014;32(4):467-79. doi: 10.14417/ap.870
https://doi.org/10.14417/ap.870...

4 Glick GC, Rose AJ. Prospective associations between friendship adjustment and social strategies: friendship as a context for building social skills. Dev Psychol. 2011;47(4):1117-32. doi: 10.1037/a0023277
https://doi.org/10.1037/a0023277...
-55 Purves RI, Stead M, Eadie D. "I wouldn't be friends with someone if they were liking too much rubbish": a qualitative study of alcohol brands, youth identity and social media. Int J Environ Res Public Health. 2018;15(2):E349. doi: 10.3390/ijerph15020349
https://doi.org/10.3390/ijerph15020349...
).

As relações dos adolescentes em acolhimento institucional são justamente permeadas por situações comuns de comportamentos antissociais e uso/consumo de álcool, tabaco e, em menor parcela, maconha. Ao mesmo tempo, associa-se a este universo a evasão escolar. Pode-se perceber a vulnerabilidade do adolescente acolhido a desenvolver comportamentos desviantes, como constatado no Modelo Sociointeracionista de Estágios(2929 Patterson G, Reid J, Dishion, T. Antisocial boys. Eugene: Castalia Publish Company; 1992.). Este Modelo sustenta que a associação com pares desviantes está fortemente relacionada ao uso de álcool, outras drogas e comportamentos antissociais, e, muitas vezes, no abandono escolar.

Num contexto de produção de pobrezas e desigualdades sociais, claramente mediadas pelas camadas sociais no Brasil, é que se divulgam os novos dados de violência do país. Com um capítulo intitulado “Juventude perdida”, os resultados do estudo, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelam o agravamento do quadro de homicídios em adolescentes e jovens, em geral homens, negros e periféricos(3030 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Atlas da Violência 2018 [Internet]. Brasília: Ipea, FBSP; 2018. [cited 2018 Aug 15]. Available from: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/06/FBSP_Atlas_da_Violencia_2018_Relatorio.pdf
http://www.forumseguranca.org.br/wp-cont...
). Neste contexto, o Rio de Janeirose encontra entre os 10 estados com maior taxa de homicídio de jovens. Deste modo, analisar estes dados à luz dos riscos e vulnerabilidades parece urgente. O principal argumento para isso está na necessidade de tornar público a magnitude do problema em que se encontram estes adolescentes e seus grupos sociais, uma vez que só é possível desconstruir aquilo que se reconhece como uma situação-problema(3131 Macedo, E. Violência entre parceiros íntimos (VPI): problema e sintoma no panorama das violências sobre as mulheres. Ex Aequo [Internet]. 2015 [cited 2018 Aug 15];31:29-44. Available from: http://www.scielo.mec.pt/pdf/aeq/n31/n31a04.pdf
http://www.scielo.mec.pt/pdf/aeq/n31/n31...
).

Estudo realizado no mesmo cenário desta investigação já apontou que a compreensão sobre os abusos e - por aproximação teórica - das experiências difíceis parece ser reconhecida como aspecto problemático pelos adolescentes. Ou seja, este grupo tende a compreender que o uso das violências como tática de resolução de conflitos e como forma de expressão - como o vandalismo - são injustificáveis e inaceitáveis. Por outro lado, o mesmo estudo traz a reflexão que esta elaboração parece ser pontual e idealizada, não representando com sucesso a evitação destas práticas frente a uma situação material e real(3232 Cariranha JI, Penna LHG. Violência vivenciada pelas adolescentes acolhidas em instituição de abrigamento. Texto Contexto Enferm. 2012;21(1):68-76. doi: 10.1590/S0104-07072012000100008
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201200...
). Outra clássica pesquisa, data da década de 1960 e conduzida no campo da psicologia social, expressou que o modo como as pessoas se comportam diante de uma situação concreta guarda pouca relação com os aspectos filosóficos e morais antes idealizados(3333 Milgram S. Behavioral study of obedience. J Abnorm Soc Psychol. 1963;67(4):371-8.).

Cabe refletir que a vivência destes hábitos e experiências podem produzir consequências não só no que tange ao adoecimento físico e psicossocial deste grupo, mas pode oferecer uma janela de oportunidades para a reprodução destes eventos no futuro(99 Jaffee SR, Ambler A, Merrick M, Goldman-Mellor S, Odgers CL, Fisher HL, et al. Childhood maltreatment predicts poor economic and educational outcomes in the transition to adulthood. Am J Public Health. 2018;108(9):1142-7. doi: 10.2105/AJPH.2018.304587
https://doi.org/10.2105/AJPH.2018.304587...

10 Sharma B, Nam EW, Kim HY, Kim JK. Factors associated with suicidal ideation and suicide attempt among school-going urban adolescents in Peru. Int J Environ Res Public Health. 2015;12(11):14842-56. doi: 10.3390/ijerph121114842
https://doi.org/10.3390/ijerph121114842...
-1111 Schaefer JD, Moffitt TE, Arseneault L, Danese A, Fisher HL, Houts R, et al. Adolescent victimization and early-adult psychopathology: approaching causal inference using a longitudinal twin study to rule out noncausal explanations. Clin Psychol Sci. 2018;6(3):352-71. doi: 10.1177/2167702617741381
https://doi.org/10.1177/2167702617741381...
). Romper com a naturalização dos fenômenos violentos aprendidos nos diversos espaços sociais parece ser uma das principais medidas para o enfrentamento deste cenário, e exigirá múltiplas experiências e estratégias que contemplem cuidados integrados com vistas a mitigar estes múltiplos sofrimentos. Deste modo, além dos cuidados produzidos no interior destes espaços de acolhimento institucional, parece fundamental a articulação de outros setores da sociedade, como a educação, a saúde e o judiciário. Suplantar as medidas puramente punitivas e produzir ambientes autenticamente inclusivos podem ser estratégias interessantes para o rompimento destes ciclos.

Limitações do estudo

É importante que os dados produzidos neste estudo sejam interpretados à luz de suas limitações. A primeira é inerente ao próprio desenho de estudo, onde desfecho e exposição foram aferidos simultaneamente. Deste modo, declara-se a impossibilidade, ainda que não fosse o desejo, de se produzir conhecimentos voltados à causalidade. A segunda limitação se vincula a possível presença de viés de memória, sobretudo pela tentativa de capturar eventos que antecederam o acolhimento institucional. Os dados sobre as experiências difíceis consideradas menos graves podem estar subnumerados e devem ser relativizados. Por fim, ainda que a estratégia amostral utilizada e o esforço de cobrir a totalidade de unidades públicas tenham recrutado a maior parte dos adolescentes, o tamanho final da amostra é um limite que produziu alargamento dos intervalos de confiança.

Contribuições para as políticas públicas

Mesmo com estes limites, o estudo possibilitou produzir um retrato das experiências difíceis vividas por este grupo de adolescentes, que por vezes é negligenciado na construção de políticas públicas e das agendas de pesquisa. Conhecer estes perfis certamente possibilitará a (re)construção de estratégias que ampliem o olhar sobre estes adolescentes, analisando as trajetórias de vida, com suas singulares experiências, compartilhando cuidados em que a particularidade de cada sujeito seja centralmente posicionada no debate. Deste modo, acredita-se que estes dados possam subsidiar a produção de cuidados emancipatórios e de interseções entre a assistência social, o campo jurídico e a atenção à saúde, visando a desnaturalização das violências e a promoção da integralidade assistencial.

CONCLUSÕES

O estudo revelou a multiplicidade de experiências difíceis experenciadas pelos adolescentes em acolhimento institucional. No âmbito afetivo-familiar foram identificadas elevadas magnitudes de violências íntimas entre os pais/responsáveis em momentos anteriores ao acolhimento, sobretudo nas formas físicas e físicas graves. Ademais, a utilização de drogas também esteve presente nas narrativas dos participantes da investigação. As relações grupais entre pares e as próprias experiências individuais guardaram aproximações, com a persistência das práticas violentas centralizadas na vida destes adolescentes. Destacam-se a exclusão social, os assédios morais na escola e nas mídias sociais, bem como os assédios e violências sexuais. Mediante o reconhecimento deste perfil de experiências, acredita-se que os dados aqui produzidos possam subsidiar novos trabalhos no âmbito da pesquisa e da intervenção qualificada nas políticas públicas, contemplando os direitos destes atores sociais e o dever do Estado na garantia de uma adolescência autenticamente incluída na sociedade.

REFERENCES

  • 1
    Vieira RP, Gomes SHP, Machado MFAS, Bezerra IMP, Machado CA. Participation of adolescents in the Family Health Strategy from the theoretical-methodological structure of an enabler to participation. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014;22(2):309-16. doi: 10.1590/0104-1169.3182.2417
    » https://doi.org/10.1590/0104-1169.3182.2417
  • 2
    Fontenele LQ, Miranda LL. Adolescência(s): produções e atravessamentos discursivos em análise. Trends Psychol. 2017;25(3):969-82. doi: 10.9788/tp2017.3-04
    » https://doi.org/10.9788/tp2017.3-04
  • 3
    Correia J, Santos AJ, Freitas M, Ribeiro O, Rubin K. As relações entre pares de adolescentes socialmente retraídos. Aná Psicológica. 2014;32(4):467-79. doi: 10.14417/ap.870
    » https://doi.org/10.14417/ap.870
  • 4
    Glick GC, Rose AJ. Prospective associations between friendship adjustment and social strategies: friendship as a context for building social skills. Dev Psychol. 2011;47(4):1117-32. doi: 10.1037/a0023277
    » https://doi.org/10.1037/a0023277
  • 5
    Purves RI, Stead M, Eadie D. "I wouldn't be friends with someone if they were liking too much rubbish": a qualitative study of alcohol brands, youth identity and social media. Int J Environ Res Public Health. 2018;15(2):E349. doi: 10.3390/ijerph15020349
    » https://doi.org/10.3390/ijerph15020349
  • 6
    Figueiredo VC, Szklo AS, Costa LC, Kuschnir MCC, Silva TLN, Bloch KV, et al. ERICA: smoking prevalence in Brazilian adolescents. Rev Saúde Pública. 2016;50(Suppl 1):12s. doi: 10.1590/S01518-8787.2016050006741
    » https://doi.org/10.1590/S01518-8787.2016050006741
  • 7
    Silins E, Horwood LJ, Naiman JM, Patton GC, Toumbourou JW, Olsson CA, et al. Adverse adult consequences of different alcohol use patterns in adolescence: an integrative analysis of data to age 30 years from four Australasian cohorts. Addiction. 2018;113(10):1811-25. doi: 10.1111/add.14263
    » https://doi.org/10.1111/add.14263
  • 8
    Kaufman-Parks AM, DeMaris A, Giordano PC, Manning WD, Longmore MA. Parents and partners: Moderating and mediating influences on intimate partner violence across adolescence and young adulthood. J Soc Pers Relat. 2017;34(8):1295-323. doi: 10.1177/0265407516676639
    » https://doi.org/10.1177/0265407516676639
  • 9
    Jaffee SR, Ambler A, Merrick M, Goldman-Mellor S, Odgers CL, Fisher HL, et al. Childhood maltreatment predicts poor economic and educational outcomes in the transition to adulthood. Am J Public Health. 2018;108(9):1142-7. doi: 10.2105/AJPH.2018.304587
    » https://doi.org/10.2105/AJPH.2018.304587
  • 10
    Sharma B, Nam EW, Kim HY, Kim JK. Factors associated with suicidal ideation and suicide attempt among school-going urban adolescents in Peru. Int J Environ Res Public Health. 2015;12(11):14842-56. doi: 10.3390/ijerph121114842
    » https://doi.org/10.3390/ijerph121114842
  • 11
    Schaefer JD, Moffitt TE, Arseneault L, Danese A, Fisher HL, Houts R, et al. Adolescent victimization and early-adult psychopathology: approaching causal inference using a longitudinal twin study to rule out noncausal explanations. Clin Psychol Sci. 2018;6(3):352-71. doi: 10.1177/2167702617741381
    » https://doi.org/10.1177/2167702617741381
  • 12
    Casa Civil (BR). Subchefia para assuntos jurídicos. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [Internet]. Brasília: Casa Civil; 1990 [cited 2018 Apr 08]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm
  • 13
    Rafael RMR, Moura ATMS. Considerações éticas sobre pesquisas com mulheres em situações de violência. Rev Bras Enferm. 2013;66(2):287-90. doi: 10.1590/S0034-71672013000200021
    » https://doi.org/10.1590/S0034-71672013000200021
  • 14
    Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Censo da população infanto-juvenil acolhida no Estado do Rio de Janeiro [Internet]. Rio de Janeiro: MPRJ; 2015 [cited 2018 Apr 08]. Available from: http://mca.mp.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/11/Apresentacao.pdf
    » http://mca.mp.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/11/Apresentacao.pdf
  • 15
    Nascimento OC, Costa MCO, Freitas KS, Hebert M, Moreau C. Adaptação transcultural do inventário Parcours Amoureux des Jeunes - PAJ de origem canadense para o contexto brasileiro. Ciênc Saúde Colet. 2015;20(11)3417-26. doi: 10.1590/1413-812320152011.02912015
    » https://doi.org/10.1590/1413-812320152011.02912015
  • 16
    WHO ASSIST Working Group. The Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (ASSIST): development, reliability and feasibility. Addiction. 2002;97(9):1183-94. doi: 10.1046/j.1360-0443.2002.00185.x
    » https://doi.org/10.1046/j.1360-0443.2002.00185.x
  • 17
    Henrique IFS, De Micheli D, Lacerda RB, Lacerda LA, Formigoni MLOS. Validação da versão brasileira do teste de triagem do envolvimento com álcool, cigarro e outras substâncias (ASSIST) 2.0. Rev Assoc Med Bras. 2004;50(2):199-206. doi: 10.1590/S0104-42302004000200039
    » https://doi.org/10.1590/S0104-42302004000200039
  • 18
    Wolfe DA, Scott K, Reitzel-Jaffe D, Wekerle C, Grasley C, Straatman AL. Development and validation of the conflict in adolescent dating relationships inventory. Pscychol Assess. 2001;13(2):277-93. doi: 10.1037/1040-3590.13.2.277
    » https://doi.org/10.1037/1040-3590.13.2.277
  • 19
    Oliveira QBM, Assis SG, Njaine K, Oliveira RVC. Violência nas relações afetivo-sexuais. In: Minayo S, Assis S, Njaine K, organizadoras. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do 'ficar' entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 87-151. doi: 10.7476/9788575413852
    » https://doi.org/10.7476/9788575413852
  • 20
    Domenach JM. La violencia [Internet]. In: Domenach JM, Laboriti H, Joxe A, Galtung J, Senghaas D, Klineberg O, et al., editors. La violencia y sus causas. Paris: Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (Unesco); 1981 [cited 2018 Apr 08]. p. 33-46. Available from: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000043086_spa
    » https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000043086_spa
  • 21
    Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi A, Lozano R, editores. Relatório mundial sobre violência e saúde [Internet]. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 2002 [cited 2015 Sep 17]. Available from: http://www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-violencia-saude.pdf
    » http://www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-violencia-saude.pdf
  • 22
    Rafael RMR, Moura ATMS, Tavares JMC, Ferreira REM, Camilo GGS, Neto M. Profile of intimate partner violence in Family Health Units. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017;70(6):1259-67. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0007
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0007
  • 23
    Rafael RMR, Moura ATMS. Violência contra a mulher ou mulheres em situação de violência? Uma análise sobre a prevalência do fenômeno. J Bras Psiquiatr. 2014;63(2):149-53. doi: 10.1590/0047-2085000000019
    » https://doi.org/10.1590/0047-2085000000019
  • 24
    Moraes CL, Oliveira AGS, Reichenheim ME, Gama SGN, Leal MC. Prevalência de violência física entre parceiros íntimos nos primeiros seis meses após o parto no município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 2017;33(8):e00141116. doi: 10.1590/0102-311x00141116
    » https://doi.org/10.1590/0102-311x00141116
  • 25
    Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2014:os jovens do Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Flacso; 2014 [cited 2019 May 17]. Available from: https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf
    » https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf
  • 26
    Barbosa PV, Wagner A. A autonomia na adolescência: revisando conceitos, modelos e variáveis. Estud Psicol. 2013;18(4);639-48. doi: 10.1590/S1413-294X2013000400013
    » https://doi.org/10.1590/S1413-294X2013000400013
  • 27
    Silva CJP, Ferreira EF, Paula LPP, Naves MD, Vargas AMD, Zarzar PMPA. A violência urbana contra crianças e adolescentes em Belo Horizonte: uma história contada através dos traumas maxilofaciais. Physis. 2011;21(3):1103-20. doi: 10.1590/S0103-73312011000300018
    » https://doi.org/10.1590/S0103-73312011000300018
  • 28
    Ribeiro IMP, Ribeiro AST, Pratesi, R, Gandolfi L. Prevalência das várias formas de violência entre escolares. Acta Paul Enferm. 2015;28(1):54-9. doi: 10.1590/1982-0194201500010
    » https://doi.org/10.1590/1982-0194201500010
  • 29
    Patterson G, Reid J, Dishion, T. Antisocial boys. Eugene: Castalia Publish Company; 1992.
  • 30
    Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Atlas da Violência 2018 [Internet]. Brasília: Ipea, FBSP; 2018. [cited 2018 Aug 15]. Available from: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/06/FBSP_Atlas_da_Violencia_2018_Relatorio.pdf
    » http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/06/FBSP_Atlas_da_Violencia_2018_Relatorio.pdf
  • 31
    Macedo, E. Violência entre parceiros íntimos (VPI): problema e sintoma no panorama das violências sobre as mulheres. Ex Aequo [Internet]. 2015 [cited 2018 Aug 15];31:29-44. Available from: http://www.scielo.mec.pt/pdf/aeq/n31/n31a04.pdf
    » http://www.scielo.mec.pt/pdf/aeq/n31/n31a04.pdf
  • 32
    Cariranha JI, Penna LHG. Violência vivenciada pelas adolescentes acolhidas em instituição de abrigamento. Texto Contexto Enferm. 2012;21(1):68-76. doi: 10.1590/S0104-07072012000100008
    » https://doi.org/10.1590/S0104-07072012000100008
  • 33
    Milgram S. Behavioral study of obedience. J Abnorm Soc Psychol. 1963;67(4):371-8.

Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Aparecida Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Priscilla Valladares Broca

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2018
  • Aceito
    29 Maio 2019
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br