A era da medicina de precisão e o impacto na enfermagem: mudanças de paradigmas?

INTRODUÇÃO

O grande investimento e desenvolvimento da pesquisa em genômica e em biologia molecular nas últimas duas décadas, especialmente após a conclusão do Projeto Genoma Humano, tem gerado muitas expectativas com relação ao seu impacto na transformação do paradigma da medicina convencional para o paradigma da medicina de precisão^(1-2). O termo medicina de precisão (MP) foi utilizado, pela primeira vez, em 2011, em um relatório da National Academy of Sciences dos Estados Unidos, que propunha as bases para a elaboração de uma nova taxonomia das doenças baseada em abordagens da biologia molecular. No documento, o termo é utilizado como sinônimo de medicina personalizada. A definição presente no documento americano, Precision Medicine Initiative, também não difere muito da forma como a medicina personalizada tem sido concebida: “an emerging approach for disease treatment and prevention that takes into account individual variability in genes, environment, and lifestyle for each person”⁽²⁾.

Se, por um lado, a finalização do PGH possibilitou o sequenciamento do genoma humano, auxiliando substancialmente nas pesquisas e na prática clínica em diversas áreas da saúde, por outro lado, não atendeu a todas as expectativas propagadas de que os benefícios seriam imediatos e que levariam à cura de diversas doenças genéticas, além de que haveria um grande avanço nas pesquisas biomédicas. De fato, houve um imenso avanço em relação às pesquisas, especialmente no campo da biologia molecular, o que permitiu um melhor conhecimento do genoma humano, particularmente quanto à estrutura e ao funcionamento do genoma, o que culminou no sequenciamento completo desta estrutura para a espécie humana^(1-2). Contudo, os pesquisadores concluíram que, isoladamente, o mapeamento genético e a identificação de genes (genômica estrutural) não explicariam a maior parte dos mecanismos biológicos, frustrando a expectativa inicial de desvendar, de forma definitiva, as causas das doenças e suas formas de prevenção. Assim, o desafio passou a ser encontrar possíveis correlações entre a estrutura e a função de cada gene (genômica funcional), o que deu início à chamada “Era Pós-Genômica” (EPG)^(1-2). A EPG iniciou há duas décadas e, desde então, os equipamentos e as técnicas de sequenciamento têm evoluído rapidamente, de modo a baratear o custo das análises e diminuir drasticamente o tempo necessário para o sequenciamento de um genoma completo⁽¹⁾. Por exemplo, com o lançamento da segunda geração de sequenciamento em 2008, conhecido como Next Generation Sequencing (NGS), possibilitou-se uma redução do custo do mapeamento do genoma e sua introdução na prática clínica⁽¹⁾. Os novos sequenciadores fornecem uma plataforma rápida e de baixo custo, superando largamente em eficiência àquelas tecnologias de sequenciamento tradicionais desenvolvidas na década 1970. O grande avanço oferecido pela NGS é sua capacidade de produzir e processar um enorme volume de dados de forma cada vez mais rápida, custo-efetiva e precisa, permitindo a compreensão da doença em nível molecular, aumentando a efetividade do diagnóstico e do tratamento de diversas doenças multifatoriais complexas⁽¹⁾.

Seguindo o fluxo 1) dados, 2) informação e 3) conhecimento, pesquisadores do mundo inteiro têm se esforçado para levar os avanços gerados na bancada do laboratório ao leito do paciente. A tecnologia da informação é um instrumento indispensável na MP no que diz respeito ao grande volume de dados, para que haja a translação do conhecimento à prática clínica⁽¹⁾. ^{( )}Nesse contexto, com base em conhecimentos da genômica estrutural, foram promovidas e aperfeiçoadas técnicas que permitiram o avanço da pesquisa relacionada à genômica funcional, que passaram a integrar as chamadas ciências “ômicas” - entre as principais estão a transcriptômica, a proteômica, a epigenômica e a metabolômica. Essas novas abordagens visam compreender as mudanças no funcionamento do genoma em diferentes estágios do desenvolvimento e sob diferentes condições ambientais, de modo a proporcionar uma melhor compreensão em nível molecular^(1-2). Enquanto dados genômicos, são decisivos para o entendimento de diversas doenças e efeitos de fármacos nos sistemas fisiológicos. A lacuna entre o genótipo e o fenótipo pode ser estudada por meio da caracterização dos diferentes níveis ômicos, incluindo os níveis intermediários: transcriptoma (sequências e níveis de RNA), proteoma (o conjunto de proteínas presentes na amostra), metaboloma (o conjunto de metabólitos); além dos estudos de regiões não codificantes do DNA, rico em microRNAs e de sequências reguladoras da expressão gênica^(1-2). Em síntese, a EPG foi caracterizada pela conscientização de um cenário de maior complexidade do que se esperava quanto aos mecanismos celulares de informação gênica e regulação de sua expressão para ajudar a responder questões complexas ainda não elucidadas com o PGH.

Em 2014, o primeiro-ministro do Reino Unido deu início ao Projeto 100K Genomas, com o objetivo de sequenciar 100 mil genomas de indivíduos do National Health Services (NHS), principalmente na busca de biomarcadores para o câncer e doenças genéticas raras. Em 2015, nos Estados Unidos, Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, anunciou para o Congresso o lançamento de um programa de MP com orçamento de 215 milhões de dólares, no qual seriam sequenciados os genomas de 1.000.000.000 de pessoas, com a promessa de se tornar um marco na transformação da medicina norte-americana. Em 2016 a China lançou um projeto com duração de 15 anos e investimento de 9,2 bilhões de dólares em MP, visando tornar o país um líder global na área^(2-3). No Brasil, a ciência e a tecnologia genômica vêm sendo incorporadas progressivamente à pesquisa biomédica, à epidemiologia (estudos de varredura genômica em genética de populações) e à prática clínica, especialmente na área da oncologia. Em 2015 foi lançado, em São Paulo, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o Brazilian Initiative on Precision Medicine (BIPMed), iniciativa que reúne cinco centros de pesquisa, inovação e difusão (CEPIDs), com o objetivo de criar condições para implantar a MP no Brasil⁽²⁾. Entre os testes genéticos disponíveis, encontra-se a genotipagem de até 1.000.000.000 de polimorfismos e o sequenciamento completo do exoma, buscando listar as mutações genéticas associadas a doenças e estimar suscetibilidades genéticas⁽²⁾.

A MP promete oferecer, com base na identificação das características genéticas do paciente, o medicamento preciso, na dose exata e no momento certo, tornando a medicina mais eficiente e diminuindo os custos da atenção médica. Enquanto o paradigma da medicina tradicional se caracteriza pelo enfoque no tratamento da doença após o aparecimento dos sintomas, com métodos de diagnóstico e de tratamentos baseados em médias populacionais - modelo do tamanho único (one-size-fits-all) para a prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, a base da MP reside no reconhecimento de que diferentes grupos de indivíduos têm características genômicas específicas e que os tratamentos devem considerar tais diferenças^(1,3). Ademais, a MP visa customizar o tratamento de acordo com as características biológicas dos indivíduos ou subgrupos da população. Ademais, no paradigma de medicina tradicional, a decisão do médico sobre qual medicação prescrever ocorre com base em uma informação geral sobre o tratamento a ser indicado ao paciente. Se o medicamento não tiver resposta satisfatória em algum tempo (diassemanas), ele poderá ser alterado. Entretanto, a abordagem “tentativa-e-erro” pode levar a reações adversas, baixa adesão ao regime de tratamento e insatisfação do paciente. Por sua vez, a MP busca considerar as diferenças de genótipo e fenótipo dos indivíduos na tomada de decisão sobre o melhor tratamento. Nesse contexto, a principal contribuição da MP é aumentar a eficiência na tomada de decisão clínica, ao distinguir, antecipadamente, os pacientes com maior probabilidade de se beneficiar de um determinado tratamento daqueles com menor chance. Assim, reduzem-se a possibilidade de incorrer em custos desnecessários de tratamento e a ocorrência de efeitos adversos do medicamento sem obtenção de sucesso terapêutico^(1,3).

Tecnologias relacionadas à MP contribuem para tornar mais eficiente o processo de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) seja pela redução do tempo de desenvolvimento de um produto ou pelo aumento de sua taxa de sucesso. Essa abordagem pressupõe a integração de diversas áreas do conhecimento, entretanto pode-se afirmar que a P&D da MP se baseia, principalmente, em três pilares de conhecimentos interdisciplinares e altamente relacionados: ciências ômicas, bioinformática e biomarcadores^(1,3). Diante do exposto até aqui, nota-se quão imensurável é a velocidade com a qual os novos conhecimentos genômicos, com potencial aplicação ao cuidado em saúde, estão sendo descobertos e vêm transformando o modelo de atenção à saúde^(1,3). Para satisfazer as novas demandas de cuidado, é necessário que esses avanços sejam incorporados à prática profissional da enfermagem e, sobretudo, ao cuidado de enfermagem^(3-4). Para que pacientes e suas famílias possam se beneficiar plenamente da explosão do conhecimento genômico, os profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros, precisam apreender os princípios subjacentes da genômica que vêm moldando toda a prática e cuidado em saúde. Esses princípios incluem, por exemplo, a existência de formas alternativas de um mesmo gene (alelos) na população; a ocorrência de fenótipos semelhantes surgidos a partir de mutações e variações em diferentes loci; a noção de que determinadas doenças nas famílias podem surgir a partir de variantes genéticas que causam suscetibilidade a doenças em meio às interações gene-gene e gene-ambiente; os diversos tipos de mutações; a possibilidade de se realizarem diagnósticos pré-natais, exames pré-sintomáticos e triagens populacionais; e, por fim, a promessa da MP por meio das terapias baseadas nos genes^(3-4).

Mesmo frente às novas abordagens do cuidar, muitos profissionais de saúde ainda consideram a genômica como uma especialidade médica e não como parte integrante de sua prática cotidiana⁽³⁾. Logo, a ênfase necessária à formação profissional do enfermeiro baseada em genômica se tornará um requisito importante à medida que as ciências ômicas passarão a integrar o cuidado de rotina, deixando de ser exclusivamente uma área de especialização^(4-5). Recentemente, em 2018, por meio da Resolução 581/2018 do COFEN, a qual atualiza, no âmbito do Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem, os procedimentos para Registro de Títulos de Pós-Graduação Lato e Stricto Sensu concedido a Enfermeiros e aprova a lista das especialidades, ressalta-se que a enfermagem em genética e genômica foi definitivamente reconhecida como especialidade⁽⁶⁾. De fato, um dos principais desafios da formação do enfermeiro neste século é a integração das ciências ômicas na prática clínica^(4-5,7). Para tanto, será necessária extensa educação continuada de enfermeiros, de docentes de Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Enfermagem e de reformulação de estruturas curriculares mais integradas, como ocorre em diversas instituições norte-americanas, aliado com amplo processo de educação permanente em saúde para preparar adequadamente a força de trabalho da enfermagem na era da MP^(4-5,7).

A concretização do paradigma da MP está sujeita a três principais desafios. O primeiro é o desafio científico de correlacionar as diversas condições clínicas, informações do genótipo às de fenótipo. O segundo desafio é que o maior impacto dos testes genômicos diagnósticos nas tomadas decisões clínicas tem levado as agências reguladoras a ampliar a fiscalização sobre essa indústria e, como toda nova regulação, ainda requer um tempo de adequação. O terceiro desafio se refere à incorporação tecnológica e aos possíveis impactos éticos, bem como os impactos nos sistemas de saúde. A incorporação de novas tecnologias às práticas médicas não acontece apenas por sua utilidade clínica. Os movimentos de transformação da medicina são influenciados pelos contextos políticos, históricos, socioeconômicos em que agem diferentes atores, como indústria farmacêutica/biotecnologias, pesquisadores, profissionais de saúde, políticos, associações de pacientes, cidadãos, mídia e ONGs. Ademais, o movimento da MP é bastante polêmico e tem suscitado debates acalorados no campo da bioética e dos impactos nos sistemas de saúde. Para a incorporação das novas tecnologias da MP, é fundamental empreender uma avalição de custo-benefício em uma perspectiva ética, que leve em conta se elas serão acessíveis a todos os que podem se beneficiar e se não agravarão as disparidades em saúde.

REFERENCES

• ¹
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• ²
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  Collins FS, Varmus H. A new initiative on precision medicine. N Engl J Med. 2015;372(9):793-5. https://doi.org/10.1056/NEJMp1500523
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• ⁶
  Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN 581/2018. Atualiza no âmbito do Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem, os procedimentos para registro de título de pós-graduação lato e stricto sensu concedido a enfermeiros e lista as especialidades. Brasília: COFEN, 2018.
• ⁷
  Regan M, Engler MB, Coleman B, Daack-Hirsch S, Calzone KA. Establishing the Genomic Knowledge Matrix for Nursing Science. J Nurs Scholarsh. 2019;51(1):50-57. https://doi.org/10.1111/jnu.12427
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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  28 Jul 2021
• Data do Fascículo
  2021